Comentário a “O sentido do dever: as virtudes nas obras de Marco Túlio Cícero e Miyamoto Musashi

 

Odilon José Roble[1]

 

Referência do artigo comentado: DEL VECCHIO, Fabricio Boscolo; SANTOS, Robinson dos. O sentido do dever: as virtudes nas obras de Marco Túlio Cícero e Miyamoto Musashi. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 6, e02400290, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/16044.

 

Del Vecchio e Santos (2024) realizam uma análise comparativa entre as concepções de virtude e dever, presentes nas obras do filósofo romano Túlio Cícero e de Miyamoto Musashi, um mestre espadachim japonês. A investigação se concentra em “Dos Deveres” de Cícero e em Gorin No Sho e Dokkôdô, de Musashi. Em tal comparação filosófica intercultural, a centralidade das virtudes, a crítica ao hedonismo e a valorização da racionalidade são componentes centrais da análise, os quais apontam sinergias consistentes entre o pensamento dos dois personagens confrontados.

As comparações filosóficas interculturais possuem as qualidades de ampliar o campo de alcance da filosofia e aprofundar a compreensão de questões existenciais e éticas comuns a diversas culturas. Levando-se em conta que atravessamos um período de crise do papel da universalidade, em filosofia, sobretudo em comparações Ocidente e Oriente, estudos pautados em tal método comparativo podem ser considerados ousados, quando não francamente arriscados. Sem enveredarmos por esse gerenciamento dos perigos contemporâneos, sobressaltam dois elementos adjacentes que tal comparação mobiliza e oportuniza o debate: a Filosofia do Corpo e a Filosofia do Esporte. Em Del Vechio e Santos (2024), essas filosofias são exploradas através da prática das artes marciais, que são vistas como uma forma de filosofia prática.

De fato, alguns saberes do Oriente já são signatários desse fenômeno que poderíamos considerar da ordem de uma filosofia prática, tais como o Yoga, o Tai Chi Chuan, entre outros. Já no Ocidente, com a sua conhecida herança cartesiana, mais maldita do que reinterpretada pelos filósofos do corpo, parecemos apegados a uma res cogitans refratária a toda res extensa. As tentativas de conciliação desses polos, por sua vez, produziram, não raramente, peças teóricas paradoxalmente desencarnadas, além de pouco claras e distintas, pois o corpo parece ser algo que escapa entre os dedos, quando pensamos nele.

Em único exemplo paradigmático, o cultuado pensamento de Antônio Damásio, especialmente em O erro de Descartes (2012), é frequentemente elogiado por reintegrar corpo e mente, mas, em última análise, parece também ele se reverter a uma estrutura racionalista. Damásio enfatiza a natureza incorporada das emoções e da consciência, contudo, sua abordagem depende fortemente de explicações neurofisiológicas e mecanismos neurais subjacentes às emoções e à consciência, os quais são, ao final do dia, um modelo racionalista da experiência humana que pouco consegue escapar da mentalidade dualista que busca desafiar. A análise de uma filosofia prática, como na proposta por Del Vechio e Santos (2024), parece mais modesta, porém, talvez, tenha acertado melhor o alvo, ao menos no que diz respeito a uma Filosofia do Corpo de fato corporal.

Nesse sentido, o retorno de uma “filosofia prática” talvez seja mesmo uma das melhores apostas. Por que, afinal, temos tanta dificuldade em considerar que o que se passa em uma prática de Yoga, em um trabalho de consciência corporal, em uma arte marcial ou até mesmo em um efervescente campo de futebol não possa ser pensado como uma fonte de reflexão filosófica? A Filosofia do Corpo e a Filosofia do Esporte podem ocupar um papel de subdisciplinas profícuas, para assumirem esse ponto de vista epistemológico.

Claro que há limites no conhecimento dessa natureza, os quais, se não lembrados, faríamos dessas subdisciplinas não uma filosofia aplicada, mas uma espécie de saber prático da família da autoajuda, tão poderosa no tempo das respostas fáceis. E a primeira lembrança aqui é a mais óbvia: como filosofia aplicada, não podemos prescindir da fortuna filosófica que efetivamente fundamenta o olhar ao corpo e não apenas o sofistica. Por essa razão, o retorno a uma ética das virtudes de um samurai japonês, nascido em 1584, é, sim, um exercício de filosofia aplicada, pois aquilo que ele faz parece coincidir com o que ele crê, continuidade aparentemente simples e filosoficamente tão desafiadora.

Stephen Mumford (2013) argumenta que o esporte contemporâneo teria tomado o lugar que fora da tragédia grega, na pólis. Explorando os paralelos entre o papel do esporte, na sociedade moderna, e a função da tragédia grega, nos tempos antigos, sugere que o esporte serve a um propósito existencial semelhante ao das tragédias, ao fornecer uma plataforma para experiências emocionais comunitárias e contemplação moral, ocupando papel matricial para uma filosofia prática. O filósofo britânico parece ter conseguido escapar com lucidez da simplificação analítica que insiste em reduzir o esporte de massa em entretenimento alienante, posição agressiva que realimenta insistentemente o hiato entre filosofia e vida.

Ao contrário, como um “laboratório da vida” (McFee, 2000; Edgard, 2015), o esporte é capaz de colocar diante do olhar do filósofo toda a riqueza que se estrutura, tanto em uma Filosofia do Corpo quanto na Filosofia do Esporte. Esse mesmo laboratório parece ter existido na ética das virtudes de Cícero e na arte marcial de Musashi. Esse samurai, como vimos no texto de Del Vechio e Santos, erige uma filosofia prática que recusa um par oposto entre os instintos e a racionalidade, embora reconheça, assim como Cícero, a importância de disciplinar a vontade irracional. Seu projeto avançado é uma espécie de economia do desejo, tal como veremos em sistematização clínica ocidental muito posterior, com o advento da psicanálise. Em Schopenhauer, Nietzsche e, finalmente, em Freud, o corpo instintual, volitivo e libidinal é francamente assumido, não deixando margem para a razão desencarnada. Sob as lentes da filosofia, o corpo pensado por Túlio Cícero tem muito em comum ao corpo pensado por Miyamoto Musashi, e essa sincronia propõe páginas preciosas para uma Filosofia do Corpo. Por extensão, como se tem em pauta também a prática da Luta, alimenta-se igualmente uma Filosofia do Esporte.

O texto de Del Vecchio e Santos (2024) não é uma reflexão exatamente sobre a Filosofia do Corpo ou a Filosofia do Esporte, mas uma peça teórica que materializa ou até mesmo exemplifica a possibilidade dessas intervenções. Em termos metodológicos, é uma comparação filosófica intercultural capaz de demonstrar certa confluência de saberes distintos, em sua origem e propósito, todavia, a qual, de algum modo, tem como pivô o corpo e suas potencialidades. Talvez, somado aos argumentos que tentei demonstrar, neste comentário, tenhamos um convite para se assumir a Filosofia do Corpo e a Filosofia do Esporte como subdisciplinas pertinentes do campo filosófico, até mesmo vendo-as com maior frequência na revista Trans/Form/Ação.

 

REFERÊNCIAS

DAMÁSIO, Antônio. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

DEL VECCHIO, Fabricio Boscolo; SANTOS, Robinson dos. O sentido do dever: as virtudes nas obras de Marco Túlio Cícero e Miyamoto Musashi. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 6, e02400290, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/16044. Acesso em: 10 out. 2024.

EDGAR, Andrew. The Philosophy of Sport. The International Journal of the History of Sport, v. 32, n. 15, p. 1804-1807. https://doi.org/10.1080/09523367.2015.1108309.

McFEE, Graham. ‘Sport: A Moral Laboratory?’ In: McNAMEE, Mike. (org.). Just Leisure: Policy, Ethics and Professionalism. Eastbourne: Leisure Studies Association, 2000. p. 153-168.

MUMFORD, Stephen. Watching sport: Aesthetics, ethics and emotion. London: Routledge, 2013.

 

Submissão: 29/10/2024 – Decisão: 05/11/2024

Revisão: 10/11/2024 – Publicação: 25/11/2024



[1] Professor da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP – Brasil. Orcid: https://orcid.org/my-orcid?orcid=0000-0003-1579-0116. Email: roble@unicamp.br.