Comentário a “Breaking barriers in intercultural philosophy: the power of empathy and interrelationship”
Matheus Oliva da Costa[1]
Referência do artigo comentado: PRAZERES, Amanda Sayonara Fernandes. Breaking barriers in intercultural philosophy: the power of empathy and interrelationship. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 2, e02400274, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/16100.
No presente texto, busco comentar aspectos que considero centrais de Prazeres (2024). O objetivo é refletir sobre a viabilidade da proposta apresentada pela filósofa Amanda Prazeres. Para isso, seguirei os seguintes passos: (1) analisar brevemente o pressuposto do impacto da globalização para as trocas filosófico-culturais; (2) realizar um balanço crítico da proposta de aprendizado via empatia mútua e interpenetração recíproca.
Em uma realidade social em que cada vez mais há conexões internacionais de pessoas e de produtos, e as comunicações em nível mundial são não apenas possíveis como também são bastante facilitadas, as diversas áreas de conhecimento procuram se beneficiar dessa troca. Nas chamadas hard sciences, ou seja, nas ciências naturais e exatas, se uma pesquisa X mostra seu valor a partir das regras do jogo científico sobre o tema Y, tal conhecimento sobre Y é aceito em revistas e outros meios de divulgação. Se X foi conduzida na Índia, nos Estados Unidos ou na África do Sul, essa é uma informação a mais, porém, certamente não é um fator legítimo para justificar a negação de um artigo que demonstra seus resultados sobre Y. Também áreas acadêmicas não científicas, mas que seguem padrões modernos influenciados pela política das ciências, como as artes e a matemática teórica, também estão cada vez mais atentas às contribuições das mais diversas fontes de todo o mundo. Contudo, a filosofia, enquanto área acadêmica, parece ainda não ter-se aberto nesse sentido.
Claro que o que eu escrevi acima não tem a ingenuidade de pensar que todo o mundo tem condições básicas iguais para contribuir com conhecimentos nas várias áreas acadêmicas; nem mesmo implica que sempre as contribuições vindas das mais diversas localidades serão bem recebidas; muito menos estou desconsiderando possíveis preconceitos dos mais variados tipos contra autores. Concordo com as teorias decoloniais sobre a modernidade, as quais afirmam que esta é marcada justamente por assimetrias, não apenas de poder, como também da valorização de conhecimentos, causadas pela colonialidade (cf. Quijano, 2005; Mignolo, 2017). Colonialidade é um resultado estrutural do colonialismo que continua mesmo após independências formais dos países colonizados, como a relação contínua de subalternidade, de racialização e de hierarquização assimétrica das relações humanas. Contudo, além da colonialidade e suas assimetrias intrínsecas entre os povos, a modernidade é igualmente marcada pela conexão transcultural, cada vez mais intensa, entre povos de todo o mundo (Dussel, 2005). Tal como outras áreas de conhecimento já mencionadas, a filosofia acadêmica não escapa disso. Sempre houve diálogos e influências interculturais na história da filosofia – do impacto da quádrupla negação indiana no ceticismo pirrônico até o aristotelismo da falsafa sendo base do tomismo –, no entanto, durante a modernidade esses encontros se tornaram incontornáveis. As facilidades em transportes e nas comunicações da globalização criaram pontes que beneficiaram, também, a filosofia enquanto área.
Apesar disso, muitos desencontros, preconceitos e resistências supostamente justificadas têm ocorrido na história da filosofia universitária, no sentido de dificultar trocas mais frutíferas entre pesquisas filosóficas de todo o mundo. Os desencontros foram, principalmente, guerras e o próprio colonialismo, os quais dificultaram materialmente trocas mais equitativas e diálogos pacíficos. Os preconceitos, em grande medida marcados pelo colonialismo, dificultaram a própria inclusão de filosofias asiáticas, africanas e americanas nos currículos de formação em filosofia, já que parecia a muitos impensável que tais culturas colonizadas tivessem contribuições filosóficas.
Já as resistências supostamente justificadas vêm de nomes de peso da filosofia, seja Friedrich Hegel ou, no contexto brasileiro, Marilena Chauí, que levantaram argumentos para sustentar que filosofia teria origem exclusivamente grega. Só para mencionar um exemplo comum dessas resistências: Hegel (cf. Pleines; Rosa Filho, 2010, p. 54) julgava que a língua chinesa ainda era centrada nas representações do sensível, logo, não suficientemente madura para representar o suprassensível; por sua vez, Chaui (2000, p. 36) chega a afirmar que as antigas escritas egípcia e chinesa não apresentariam uma suficiente capacidade de abstração e generalização como a antiga escrita alfabética grega. Ambos, entretanto, não dedicaram sequer poucas palavras para explicar essa suposta característica da escrita chinesa e egípcia, e nem mesmo citaram nenhum especialista como fundamentação, pois nenhum linguista sério aceitaria que uma forma de escrita não é suficientemente “abstrata”. Especificamente nesse ponto, faltou para esses autores clássicos tanto uma empatia como fundamentação teórica para saber que, na verdade, essas línguas têm, sim, essas capacidades de abstração e de generalização (cf. Obenga, 2004; Alleton, 2012).
Mesmo com as facilidades trazidas pelas trocas globais da modernidade, ainda assim houve várias reações por parte da comunidade filosófica acadêmica, as quais foram contrárias (ou, ao menos, dificultadoras) à interculturalidade na filosofia. Contudo, propostas mais inclusivas começaram a emergir posteriormente. Uma delas é a noção de “filosofia intercultural”, na perspectiva dos filósofos Ram Mall e Raúl Fornet-Betancourt, mostrada por Prazeres. Tal proposta aponta para processos polifônicos de sintonia e harmonia de diferentes vozes filosóficas que se contrapõem a absolutismos de uma ou outra fonte filosófica sobre outras – ou seja, rompem com eurocentrismos na filosofia.
Prazeres busca avançar na discussão sobre como fazer filosofia intercultural de modo efetivo. Para ela, é necessária uma “conexão genuína” entre as partes envolvidas na inter-relação filosófica. Para tanto, ela mobiliza a filosofia de Nishitani Keiji, que, a partir da investigação sobre o aprender numa perspectiva crítica de dualismos fortes entre sujeito e objeto, formulou a noção de “empatia ontológica”. Essa espécie de empatia encaminha para uma conexão mútua entre os seres que buscam se entender, tendo como pressuposto a ideia de interconexão de tudo que existe vinda da teoria budista da originação dependente (do sânscrito, pratītya-samutpāda). Na busca por superar a dualidade cartesiana entre sujeito e objeto no processo de aprendizagem mútua, Prazeres formula o termo “transontologia”, enfatizando a relação entre os seres. O processo de aprender sob a ótica da transontologia leva ao conceito de interpenetração recíproca (do japonês, egoteki sōnyū 回互的相入): uma relação não dualista na qual não há protagonismo do sujeito sobre um objeto, mas, sim, uma empatia mútua entre seres que aprendem um sobre o outro, justamente enfatizando suas relações e conexões.
Vejo que a autora articulou novos caminhos, para superar essa atitude reativa contra diálogos interculturais no filosofar, por meio das noções de empatia mútua e de interpenetração recíproca. Sua ênfase recai na postura da pessoa que procura praticar a filosofia de modo intercultural: a interculturalidade efetiva tem como base a disposição de cada um para a essa empatia, de tal modo que ocorra a interpenetração recíproca na relação estabelecida. A lição de Prazeres é mostrar que, sem isso, a prática da filosofia intercultural seria mais difícil (se é que possível) e, com as posturas defendidas, essa forma inclusiva de filosofar é possibilitada.
É oportuna, no entanto, uma crítica: no caso de discussões que envolvem dissensos ou até discordâncias profundas, como em debates éticos e políticos que incluem opressões, não caberiam, na verdade, posturas de justiça e desconstrução, para além da empatia? Em outras palavras, nem sempre a empatia e a consequente harmonia parecem ser o caminho mais defensável para interações interculturais que passam pela leitura e prática filosófica. Pela própria natureza assimétrica da modernidade, causada pela colonialidade, muitas vezes a postura mais justa é de rompimento com formas opressivas e injustas de relações.
Concluo que a proposta de Prazeres tem duas contribuições e uma lacuna a ser preenchida. Sua primeira contribuição é a articulação de ideias de diferentes filósofos, os quais, já em seu texto, se interpenetraram reciprocamente de forma mutuamente empática. A segunda contribuição, resultado da primeira, é mostrar que a prática do filosofar intercultural é mais efetiva, se ocorrer de maneira empática e relacional. A lacuna deixada é que existem algumas relações, como as opressivas e as injustas, nas quais a empatia não parece ser a postura mais adequada, o que aponta para a necessidade de investigar um leque maior de posturas para a prática da filosofia intercultural.
REFERÊNCIAS
ALLETON, Viviane. Escrita chinesa. Porto Alegre: L & PM, 2012.
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
DUSSEL, Enrique. Europa, modernidad y eurocentrismo. In: LANDER, Edgardo, Lander (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO/UNESCO, 2000. p. 55-70.
MIGNOLO, Walter. Colonialidade: O Lado Mais Escuro da Modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 32, n. 94, 2017.
OBENGA, Théophile. Egypt: Ancient History of African Philosophy. In: KWASI, Wiredu (ed.). A Companion to African Philosophy. Massachusetts: Blackwell, 2004. p. 31-49.
PLEINES, Jürgen-Eckardt; ROSA FILHO, Sílvio (org.). Friedrich Hegel. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massangana, 2010.
PRAZERES, Amanda Sayonara Fernandes. Breaking barriers in intercultural philosophy: the power of empathy and interrelationship. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 2, e02400274, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/16100. Acesso em: 10 set. 2024.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO/UNESCO, 2000. p. 201-246.
Submissão: 30/09/2024 – Decisão: 05/10/2024
Revisão: 08/10/2024 - Publicação: 28/10/2024
[1] Pós-doutorando pelo Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6537-2188. Email: matheusolivacosta@usp.br.