Comentário a “Os ensaios de Michel de Montaigne como exercícios do juízo”

 

Thiago Rodrigues[1]

 

Referência do artigo comentado: AZIZI, Diego dos Anjos. Os Ensaios de Michel de Montaigne como exercícios do juízo. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 6, e02400242, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15931.

 

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

(Drummond)

 

Munido de uma breve, mas cuidadosa apresentação do termo “juízo”, Azizi (2024) demonstra, neste oportuno artigo,[2] a centralidade desse conceito na filosofia de Michel de Montaigne e, mais especificamente, no gênero ensaístico inaugurado pelo filósofo. Percorrendo com muita propriedade os Ensaios, Azizi estabelece a necessária relação entre o exercício do juízo e o ensaio como expressão filosófica. De pronto, cumpre indagar: o que caracteriza o juízo? E o que significa o ato de julgar? Um julgamento? Uma posição diante do mundo e de si mesmo? A construção de um discurso? A incisão precisa de Azizi conduz à crença de que nos deparamos com a verdadeira definição de “juízo”, entretanto, o comentário do autor pretende abarcar o jugement em pleno movimento, em meio ao ato ensaístico, gênero necessário, como veremos, ao ceticismo de Montaigne. Uma filosofia de nova figura exige uma nova forma de filosofar. O ensaio surge, portanto, como um imperativo.

Antes de avançar, porém, é preciso penetrar surdamente no reino das palavras, pois lá estão os ensaios que esperam ser escritos, em estado de dicionário. Mudos. De saída, destaco duas acepções correntes para o termo “juízo”. Vejamos[3]:

1.     Juízo como proposição judicativa

[...] juízos. m. 1 ato, processo ou efeito de julgar 2 faculdade de avaliar os seres e as coisas; julgamento 2.1 a decorrência desta faculdade  3 faculdade intelectual que permite julgar, avaliar com correção, discernimento, bom senso; capacidade de ponderação; equilíbrio mental 4 pensamento, mente, cabeça 5 lógica operação mental que articula termos ou conceitos, por meio de uma atribuição afirmativa ou negativa de um predicado (P) a um sujeito (S), intermediados por um verbo (redutível ao verbo ser) com papel de cópula ou ligação, segundo o modelo S é P.

 

2.     Julgamento como ato de julgar, avaliar, medir

[...] julgamentos. m. ato, processo ou efeito de julgar 1 direito ato pelo qual a autoridade judicante, após examinar os autos do processo e formar sobre ele um juízo, expõe e justifica sua decisão para a solução do conflito 2 direito a sentença de um juiz ou tribunal; decisão resultante de uma disputa judicial 3 direito audiência de um tribunal perante o juiz 4 apreciação crítica, opinião (favorável ou desfavorável) sobre alguém ou algo; juízo, parecer.

           

Parece dispensável esse apelo às palavras estáticas e dicionarizáveis, capturadas por uma definição, no entanto, essa tentativa vã parece expressar o cerne da metafísica intelectualista clássica, qual seja, o problema do movimento: ou a Verdade é e não muda ou a mudança é que é real. O Ser é, o não ser... O ceticismo parece se radicar nesse terreno. Azizi é certeiro, ao identificar o juízo como elemento catalizador da filosofia e do ensaio em Montaigne. Todavia, entendo que esse elemento fundante, ao invés de afastar o filósofo do pensamento cético, talvez nada mais seja do que o coroamento do seu ceticismo. Trata-se de um ceticismo de nova figura, é verdade, mas nem por isso menos cético. Cumpre perguntar se se trata, de fato, de uma “crise cética”, como sugere Azizi, ou apenas de um desdobramento coerente do pensamento cético?

Ora, o juízo concebido como exercício de si no pensamento (Cf. Foucault, 1984, p. 13), para me utilizar de uma expressão de Michel Foucault, configura justamente o sentido fundamental do ceticismo, isto é, que a verdade absoluta é inatingível, por isso, o caráter perpétuo da busca (sképsis ou investigação). Ser cético, nesse sentido, é assumir o ato ensaístico da busca de si como exercício judicativo. Assim, se esse argumento se sustenta, o exercício do ato judicativo,[4] ao invés de representar a superação da “crise cética”, representaria a sua mais completa tradução, pois: 1. se o juízo é uma proposição judicativa, ou seja, um ato ou a própria faculdade de julgar, então, é preciso compreender que a filosofia de Montaigne postula a verdade como movimento, por isso mesmo, inalcançável. 2. Azizi lembra que Montaigne foi um homem da lei, um jurista, por isso talvez as imagens jurídicas. O ato ensaístico representa um julgamento, porque, ao julgar, é capaz de construir sentido. Como também dirá Descartes – o que não é por acaso, conforme sugere Azizi –, o bom senso, isto é, a capacidade de julgar entre o verdadeiro e o falso, é a coisa mais bem distribuída entre os homens. Em suma, se a filosofia é compreendida como um ato e não como um conteúdo, o ensaio se configura não apenas como um gênero expressivo, mas como parte constitutiva do próprio ato de filosofar.

Nesse ponto, é fundamental lembrar que o cético não se confunde com o sofista: se o último assume a subjetividade como fundamento do caráter relativo da verdade, o primeiro, ao contrário, entende que o senso comum seria o ponto de estabilidade que garantiria a permanência da investigação pela verdade. Nunca o abandono da busca. Numa variação da célebre alegoria do filósofo (Tales), que, imerso no “mundo das ideias”, cai no buraco por não enxergar “um palmo diante do nariz”,[5] Pirro também caminharia em direção a um buraco, como Tales, mas por não ser capaz de demonstrar a realidade do obstáculo, continuaria sua caminhada rumo ao destino fatal.

Ora, não é preciso muito esforço para perceber que a suspensão cética do juízo (epokhé) não implica o abandono da realidade da experiência; assim, uma visão comum de mundo[6] bastaria para o filósofo saber que o buraco é real. Não é necessário demonstrar a Verdade última, para que nossas ações produzam julgamentos sobre a realidade. Existir é produzir sentido sobre os objetos do mundo da experiência. Voltando a Montaigne, no esteio daquilo que defende Azizi, proponho aqui que o ato judicativo corresponderia à forma como a subjetividade doa sentido aos objetos do mundo, e o ensaio seria o gênero expressivo necessário à essa nova filosofia:

Se os Ensaios se configuram como uma pintura de si – e Montaigne enfatiza que o que está fazendo é um ensaio de seus juízos –, logo, esse si que é pintado pode nos levar a concluir que ele não é nada mais que seus juízos. Os juízos seriam o “eu” que aparece, quase que fenomenologicamente, no ato ensaístico. Montaigne se descreve na medida em que seus juízos vão aparecendo para si, enquanto atos e produtos desses atos (Azizi, 2024, p. 8).[7]

 

O sujeito que enuncia, como ressalta Azizi, é característica fundamental do ensaio. E o ensaio, por sua vez, é a expressão da subjetividade, por isso, sua forma exige o juízo como elemento central. A filosofia em Montaigne nos lembra que todas as nossas ações são julgamentos sobre o mundo, e que nossos juízos (tomados como resultado de um julgamento) são expressões de uma subjetividade. Assim, o gênero ensaístico não é escrito em primeira pessoa por acaso, mas como consequência dessa nova filosofia que pretende abarcar as existências em ato ou o próprio movimento da vida.

A consequência da manifestação da subjetividade é que Montaigne expressa a impossibilidade de atingir as Verdades eternas, as quais se encontrariam perenes na imobilidade das formas ou “em estado de dicionário”, definíveis. “Não há nenhuma possibilidade de identidade universal repetível, atingível, através da emulação da experiência das pessoas exemplares. O ser humano é contingente e acidental, singular, irrepetível, fortuito” (Azizi, 2024, p. 9). O ser humano está lançado no mundo, coisa entre coisas.

Defendo aqui que a atualidade da leitura proposta por Azizi projeta a filosofia de Montaigne no contexto contemporâneo, pois se trata de um pensamento que acolhe o movimento da existência e, por isso, é capaz de contemplar o problema do sentido, isto é, se a Verdade entendida como imobilidade – necessidade e universalidade – inexiste, então, o ato ensaístico deve ser concebido como constitutivo do próprio sentido da existência[8]. O exercício de si através do ato ensaístico é uma forma de atribuir sentido à própria existência. É nesse contexto que compreendemos o que assevera Azizi: “Montaigne frequentemente relaciona o termo jugement com o termo discours, o que pode indicar uma relação direta entre o ato de julgar (juízo como faculdade e ação de ajuizar) e o produto discursivo desse ato, ou seja, a sentença e a proposição” (Azizi, 2024, p. 4). Assim, o ensaio, entendido “[...] como experiência modificadora de si” Foucault (1984, p. 13), constituiria um discurso sobre si e sobre o mundo. Em suma:

O ensaio é experimental porque “persegue um fim concreto, existencial”, nesse sentido, ele “possui uma forma dramática em que o aspecto dialético se transfere para a dimensão experimental” (Bense, 2018, p. 123). O caráter experimental – o aspecto "metodologicamente sem método do ensaio” – não é, portanto, arbitrário, mas a forma mais apropriada de se aproximar da realidade (Rodrigues, 2023, p. 50).

 

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Se uma das formas de se mensurar a relevância de um trabalho é a capacidade que ele tem de gerar interlocução, por sua pertinência e, sobretudo, por sua qualidade, certamente o ensaio de Diego Azizi se torna uma contribuição incontornável para o debate acerca do lugar do juízo, nos Ensaios de Montaigne.

 

REFERÊNCIAS

AZIZI, D. dos A. Os Ensaios de Michel de Montaigne como exercícios do juízo. Trans/form/ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 6, e02400242, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15931. Acesso em: 28 ago. 2024.

BENSE, M. O ensaio e a sua prosa. In: PIRES, P. R. (org.). Doze ensaios sobre o ensaio: antologia serrote. São Paulo: IMS, 2018.

FOUCAULT, M. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Trad. de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

PLATÃO. Teeteto. Crátilo. Trad. Carlos Alberto Nunes. Coord. Benedito Nunes. 3. ed. Belém, Pará: UFPA, 2001.

PORCHAT, O. P. A filosofia e a visão comum do mundo. São Paulo: Brasiliense, 1981.

RODRIGUES, T. A necessidade o ensaio: o ensaio como experiência filosófica. Jundiaí: Fibra/Edições Brasil, 2023.

STAROBINSKI, J. É possível definir o Ensaio? In: PIRES, P. R. (org.). Doze ensaios sobre o ensaio: antologia serrote. São Paulo: IMS, 2018.

 

Submissão: 07/08/2024 – Decisão: 10/09/2024

Revisão: 26/09/2024 – Publicação: 15/10/2024



[1] Pós-Doutorado pela Universidade de São Paulo – USP. Coordenador no Centro Universitário Assunção, São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6434-4564. E-mail: macedoniorodrigues@gmail.com.

[2] Se entendemos o ensaio, segundo mostra Starobinski, como um exame atento no qual o examinador participa dessa “pesagem exigente”, então, não seria mais adequado falar em ensaio, ao invés de artigo?

[3] Cf. o dicionário de português Oxford University Press.

[4] Mesmo quando o termo jugement é substituído por sens, como acertadamente afirma Azizi (2024).

[5] “Foi o caso de Tales, Teodoro, quando observava os astros; porque olhava para o céu, caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou dele, com dizer-lhe que ele procurava conhecer o que se passava no céu, mas não via o que estava junto dos próprios pés” (Platão, 2001, 174a-b).

[6] Penso aqui no neopirronismo de O. Porchat. (ver: Porchat, 1981).

[7] Por uma questão de espaço, não comentarei a passagem na íntegra, mas vale frisar que Azizi está atento aos limites do ato judicativo: “[...] afirmar que os juízos são o “eu” pode parecer uma afirmação muito forte. É possível notar, ao longo dos Ensaios, que, apesar de o juízo ocupar um lugar central em suas reflexões e ser a faculdade que ordena e organiza todas as outras (e os dados trazidos por elas), ele não funciona sozinho” (Azizi, 2024, p. 8).

[8] Para mais, ver: “[...] porque o ensaio é uma necessidade, isto é, a ruptura com a imobilidade das formas perfeitas exige que a filosofia se lance sobre o movimento da vida. Quando a filosofia se reconhece como histórica, as formas tradicionais da sua apresentação também se mostram como insuficientes e inadequadas. O ensaio não configura uma excentricidade, mas sim, um elemento necessário se queremos expressar a realidade do real” (Rodrigues, 2023, p. 25-26).