Comentário a “Os Ensaios de Michel de Montaigne como exercícios do juízo”

 

Maria Cristina Theobaldo[1]

Referência do artigo comentado: AZIZI, Diego dos Anjos. Os Ensaios de Michel de Montaigne como exercícios do juízo. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 6, e02400242, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15931.

 

O artigo de Diego dos Anjos Azizi – “Os Ensaios de Michel de Montaigne como exercícios do juízo” – logo de início, oferece um sucinto levantamento da noção de juízo em Crísipo, Aristóteles, Descartes e, na sequência, discute demoradamente a noção de juízo em Montaigne, sua originalidade e sua aplicabilidade, no contexto dos Ensaios e no cenário filosófico posterior, sendo este o objeto do artigo. Azizi (2024, p. 7) destaca a percepção montaigniana de juízo como “faculdade avaliativa e valorativa”, o que nos permite inferir ajuizamentos no campo epistemológico e no campo ético, e, deste último, para as práticas morais. Disso decorre a relevância de uma educação direcionada para o exercício do julgamento e que tenha, prioritariamente, a filosofia como matéria-prima, pois é ela, a filosofia, que, segundo Montaigne e lembrado por Azizi, nos faz livres (Montaigne, I, 26, 2002, p. 238). Mais à frente, já nas considerações finais, o Autor (2024, p. 12) aponta o juízo como uma “instância judicativa”, “particular, pessoal e subjetiva” do “sujeito judicativo”

Nosso comentário toma a antessala da ação do “sujeito judicativo” anunciado por Azizi (2024, p. 12). Visamos, primeiramente, a indicar algumas operações implicadas na composição e na recepção do conhecimento, das narrativas e das opiniões que constituem a matéria-prima para a elaboração dos juízos em Montaigne e, depois, arriscar sua atualidade entre nós. Nos Ensaios, capítulos “Da educação das crianças” (I, 26), “Dos livros” (II, 10) e, fortemente, no “Dos coxos” (III, 11), encontramos proposições que ajudam, pelo menos em parte, a explorar criticamente os processos de constituição e de difusão das doutrinas, das narrativas, dos pontos de vista e dos saberes e suas respectivas participações na “instância judicativa”.

            Azizi (2024) retoma uma passagem do I, 26, a qual marca a crítica incisiva de Montaigne ao modo corrente de apropriação da matéria para o julgamento: “Tanto nos submeteram às cordas que já não temos livres os passos” (Montaigne, I, 26, 2002, p. 226). Inferimos aqui dois pontos fundamentais para o exercício independente do juízo: recusar o servilismo às autoridades – aquelas que manejam as cordas, que agenciam a matéria do ajuizamento – e reivindicar a libertação dos créditos alheios – das tradições, das doutrinas, das opiniões – que hipotecam e paralisam a investigação e a dúvida. O complemento da citação diz muito: “Nosso vigor e liberdade estão extintos. [C] ‘Estão sempre sob tutela’” (Montaigne, I, 26, 2002, p. 225, 226). A libertação ou a subserviência às autoridades e suas doutrinas conformam posturas decisivas, seja para o enfrentamento, seja para a sujeição ao dogmatismo.

É nesse ponto que a filosofia pode ser entendida como uma prática libertadora. Segundo Plínio Smith (2023, p. 102), em seus comentários críticos sobre o capítulo “Dos coxos” (III, 11)[2], a filosofia necessita assumir um duplo papel: ela

[...] deve ocupar-se, não somente com a verdade das opiniões dogmáticas [...], mas também com a gênese dessas opiniões: como surgem os discursos produzidos pelo mau uso da razão? Essa explicação tem várias partes: a sua criação; a sua difusão ou propagação; o seu aprimoramento; a sua imposição.

 

Em relação às posições dogmáticas, que sabemos inibidoras de uma exercitação do ajuizamento investigativa, no “Dos coxos”, Montaigne afirma estarem resguardadas por nossa pouca afinidade com a dúvida, pois desprezamos a mentalidade que acolhe o “talvez” e os pontos de vista “[...] que abrandam a temeridade de nossas asserções” (2001, III, 11, p. 369). Pouco se faz na direção de posturas indutivas da investigação; ao contrário, a conservação do veredito assentido é a regra (Montaigne, III, 11, 2001, p. 366). Preferimos crer e convencer, a permanecer na dúvida ou ser uma voz destoante do lugar-comum (Smith, 2023, p. 105).

À medida que cresce a aderência ao discurso compartilhado consensualmente, amplificam-se as manobras de convencimento, as quais facilmente podem ultrapassar os meios convencionais – a palavra que persuade – e enveredar para dispositivos violentos (Montaigne, III, 11, 2001, p. 366). Sobretudo, um ponto de nota diz respeito ao itinerário de uma narrativa ou opinião até sua acomodação em juízos e convicções consensuais e, quiçá, em discursos dogmáticos. Montaigne (III, 11, 2001, p. 366) esclarece tal percurso:

É coisa difícil estabelecermos nosso julgamento contrariando as ideias comuns. A convicção inicial, extraída do próprio assunto, apodera-se dos simples espíritos; deles espalha-se para os mais capazes, sob a autoridade do número e da antiguidade dos testemunhos.

 

As opiniões, as narrativas e os conhecimentos aceitos socialmente adquirem, em escala ascendente, uma suposta consistência vinculada ao quantitativo de adesões e à credibilidade concedida a certos testemunhos e opiniões. A consolidação de tais “convicções” são como “cordas” que amarram os “passos” do julgamento.

De um lado, o exercício do juízo, segundo Azizi (2024, p. 11), está apoiado em motivações subjetivas do “sujeito judicativo”:

Montaigne associa diretamente o juízo a uma subjetividade singular, ponto arquimediano, crivo pelo qual as proposições deverão passar. Essa associação direta e necessária que Montaigne faz entre os juízos e um “eu” inaugura uma forma de se compreender esses enunciados e proposições, os quais, antes de mais nada, são produtos de uma subjetividade específica, demasiadamente humana.

 

De outro, a ausência da curiosidade e o afastamento da dúvida, consequentemente, da investigação, consolidam opiniões correntes até o status de inquestionáveis e, assim, a porta para o dogmatismo é aberta e o julgamento é paralisado. Montaigne (2001, III, 11, p.366) ironiza: “É espantoso de quão vãos começos e frívolas causas costumam nascer opiniões tão divulgadas. Exatamente isso dificulta a investigação sobre elas”.

E aqui chegamos a um ponto peculiar, no que se refere à incorporação da matéria do ajuizamento: a potência do impacto e da aderência a uma posição é proporcional à força do testemunho e à confiança depositada em quem testemunha (Montaigne, III, 11, 2001, p. 366). Mas, qual o critério para se aderir a um testemunho, sem o perigo de asfixiar o “talvez”, mantendo no horizonte a provisoriedade do julgamento? Este é um problema para Montaigne e ainda é um problema para nós!

            No capítulo “Dos livros” (II, 10), Montaigne, a propósito do comentário sobre os historiadores, observa que as narrativas históricas circunscritas por testemunhos qualificados de “rumores” recolhidos nas “esquinas das ruas” ou, melhor dizendo, pouco confiáveis, mas depois escritos em belas palavras que moldam os acontecimentos ao gosto de muitos, conseguem, com essa estratégia, impulsionar sua adesão. E, mesmo as histórias narradas por testemunhas confiáveis ou por aquelas que participaram diretamente do acontecimento como, por exemplo, o registro, no “Dos canibais” (I, 31), do testemunho sobre os indígenas brasileiros, a partir de alguém da confiança de Montaigne, ainda ali há riscos de não se alcançar a realidade dos fatos e suas causas. No “Dos livros” (2000, II, 10, p. 130-131) confirmamos tal dificuldade:

Pode-se ver [...] se tal busca da verdade não é mesmo tão difícil que sobre um combate não possamos confiar no conhecimento daquele que o comandou, nem nos soldados sobre o que aconteceu perto deles, se, à maneira de uma investigação judicial, não confrontarmos as testemunhas e não acolhermos as objeções sobre a prova dos pequenos detalhes de cada particularidade.

 

Por sua vez, no “Dos coxos”, Montaigne é enfático ao comentar que o “número e a antiguidade dos testemunhos” não são suficientes para persuadi-lo: “[...] quando não acredito em um, não acredito em cem vezes um. E não julgo as ideias pelos anos” (2001, III, 11, p. 366). Em outros termos, a quantidade e a força creditadas à tradição, à autoridade, à antiguidade, não são critérios suficientes para gerar juízos críveis.

Os atributos da testemunha e do testemunho são, portanto, questão para Montaigne e também nos são atualíssimos, como campo da epistemologia social, especificamente a “epistemologia do testemunho”. A título de aproximação dessa problemática, aludimos à explicação de Plastino (2017, p. 10-11).

Em certas condições, ao observar o testemunho de outra pessoa alguém passa a acreditar no conteúdo atestado. É a chamada “transição” do testemunho para a verdade, que nem sempre é completamente consciente. Há também outra forma de transição, em sentido inverso: se uma proposição é verdadeira, então alguma das fontes confiáveis atesta essa proposição. Nesse caso, se nenhuma fonte confiável atesta uma determinada proposição, então essa proposição é falsa. [...] Quem atesta apresenta o testemunho como inteligível e verdadeiro, assume a responsabilidade de estar dizendo a verdade, empenha sua palavra, como que convida o outro a confiar no que ele disse, a acreditar que as coisas realmente são tais como foram expressas. Claro que isso por si só não implica que o testemunho provenha de alguém que seja um guia confiável para alcançar a verdade, nem que o receptor não tenha bons motivos para não confiar em quem transmite o testemunho.

 

A percepção da verdade ou da falsidade e, para Montaigne, também da mentira (2001, III, 11, p. 364), não despreza a relevância moral de quem dá seu testemunho. Assim, a condição da testemunha, seu ethos e prática discursiva, é também potência para o convencimento. Depoimentos duvidosos maquiados por discursos pomposos, mentiras aceitas, aderência incondicional às narrativas, tão presentes no nosso cotidiano, como nas historietas do “Dos coxos”, são exemplos bem-sucedidos da adesão à narrativas que, entre outros dispositivos, têm como sustentação a confiabilidade na testemunha, independentemente do lastro para tal boa-fé ou até mesmo para a plausibilidade do fato ou ponto de vista. Plastino (2017, p. 13, 14) novamente nos auxilia:

Considerando o tipo de relato, há numerosas circunstâncias e particularidades a serem levadas em conta quando se avalia a força do testemunho humano: pode haver contradição entre as afirmações de diferentes pessoas sobre uma questão de fato, as testemunhas podem ser muito poucas ou de caráter duvidoso, elas podem ter interesse naquilo que afirmam, podem dar o testemunho com alguma hesitação ou, ao contrário, com demasiada veemência. [...] Por outo lado, no que concerne ao tipo de objeto, aquilo que o testemunho pretende estabelecer como fato pode ser inusitado, extraordinário, fantástico ou mesmo contrário à experiência.

 

Montaigne não profetizou nossas contemporâneas bolhas epistêmicas[3], mas, no “Dos coxos”, mirou o ponto crucial da elaboração e da fundamentação das crenças e das opiniões coletivas. A reincidência endógena dos graus de confiabilidade e de difusão em relação à testemunha e ao testemunho impacta a consolidação da argumentação e, mais ainda, os mecanismos que impulsionam sua adesão massiva, chegando até mesmo à imposição violenta (Smith, 2023, p. 108-109).

Se, na dimensão epistemológica cética de Montaigne, é possível suspender o julgamento e, na impossibilidade de verificação (2001, III, 11, p. 372), é melhor admitir a ignorância e seguir a opinião de “[...] santo Agostinho, de que vale tender para a dúvida do que para a certeza nas coisas de difícil comprovação e arriscada credibilidade” (Montaigne, 2001, III, 11, p. 372). Já na dimensão prática, é sempre necessário tomar posição e agir: “[...] o ceticismo de Montaigne implica uma posição engajada e bem definida na vida cotidiana” (Smith, 2023, p. 111), o que inclui julgar sobre a verdade e a mentira.

Porém, há situações nebulosas nas quais até as condições de aplicabilidade de qualquer critério se ausentam, minando as avaliações tanto aos testemunhos quanto às testemunhas, impedindo, por conseguinte, o seguro discernimento acerca da verdade e da mentira. Nessas circunstâncias, admitir a ignorância é o procedimento mais adequado, contudo, para isso, é preciso escapar da bolha epistêmica que faz reforçar as proposições sem os dispositivos que evitam as injustiças e os malfeitos provocados pelas posições dogmáticas (e aqui poderíamos enveredar para os temas correlacionados às injustiças epistêmicas).

Nos dias que correm, similarmente ao tempo de Montaigne, “[...] hesitamos em professar nossa ignorância” (2001, III, 11, p. 369), substituindo-a por imperativos dogmáticos (Smith, 2023, p. 119), pela testemunha pouco confiável e pelo testemunho transformado em certeza. O “sujeito judicativo” que salvaguarda a dúvida, que é “[...] inquiridor, não resolutivo” (Montaigne, 2001, III, 11, p. 369), parece um tanto escasso entre os contemporâneos de Montaigne e entre nós. Com isso, fecha-se um mundo.

 

REFERÊNCIAS

AZIZI, D. dos A. Os Ensaios de Michel de Montaigne como exercícios do juízo. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 6, e02400242, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15931. Acesso em: 25 set. 2024.

GUIMARÃES SANTOS, B. R. Genealogia epistêmica e normas de credibilidade. Sofia, v. 7, n. 1, p. 126-146, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/sofia/article/view/19387/13960. Acesso em: 29 ago. 2024.

GUIMARÃES SANTOS, B. R. Epistemologia em tempos de crise. Coluna ANPOF, 28 maio 2019. Disponível em: https://anpof.org.br/comunicacoes/coluna-anpof/epistemologia-em-tempos-de-crise . Acesso em: 29 ago. 2024.

MONTAIGNE, M. Ensaios - Livro II. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MONTAIGNE, M. Ensaios - Livro III. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

MONTAIGNE, M. Ensaios - Livro I. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

PLASTINO, C. E. O conhecimento com base no testemunho. Revista Discurso, v. 47, n. 2, p. 9-24, 2017. Disponível em: ehttps://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/141428/136449. Acesso em: 10 mar. 2024.

SMITH, P. J. Comentários críticos. In: MONTAIGNE, M. de. Dos coxos (Ensaios, III, 11). Tradução, Introdução, notas e comentários de Plínio J. Smith. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia, 2023.

Submissão: 07/09/2024 – Decisão: 10/09/2024

Revisão: 25/09/2024 – Publicação: 15/10/2024



[1] Professora associada do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, MT – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8277-2981. Email: maria.theobaldo@ufmt.br.

[2] Parte do texto aqui exposto constituiu uma fala minha, quando do lançamento do livro Dos coxos (Ensaios III, 11) de Michel de Montaigne, pela Associação Filosófica Scientiae Studia, com nova tradução e comentários de Plínio Junqueira Smith. Ver em https://www.youtube.com/watch?v=TzjExa68_Eg.

[3] Ver Breno Guimarães Santos, 2018, 2019.