Comentário a “Tempo maquínico: contribuição para uma ritmologia do Capital”

 

 

Márcio José Silveira Lima[1]

 

Referência do artigo comentado: Foscolo, Guilherme. Tempo maquínico: contribuição para uma ritmologia do Capital. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 3, e02400214, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15841.

 

“E como ficou chato ser moderno, agora serei eterno”, escreveu, com sua dose constante de ironia, o poeta Carlos Drummond de Andrade, no poema “Eterno”, que integra Fazendeiro do ar (Drummond, 2006, p. 408), título metafórico que insinua as ambiguidades e paradoxos de uma linguagem que não se deixa encantar com a captura do real, além de realçar essa tensão no verso “agora serei eterno”. É justamente sob o signo da ambiguidade que gostaria de tecer alguns breves comentários ao artigo de Guilherme Foscolo, “Tempo maquínico: contribuição para uma ritmologia do Capital”. Segundo Foscolo (2024), a modernidade, enquanto ritmo, remete ao movimento de destruição/renovação de um tipo de urbanidade que se cumpriu como mundo, promessa traduzida na imagem de Marx e Engels de que tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar. Esse evento teria aberto o campo para novas experiências de renovação de um ritmo que não apenas se configura por movimentos (desordenados) no tempo, mas também por elementos espaciais.

Esses elementos de renovação soados a partir de um mundo que se esvai teriam tido um novo arranjo, em função das ansiedades humanas postas no fim do século XIX, cujo estímulo à disponibilidade tecnológica já daquele período teria respondido à altura. Noutras palavras, essas ansiedades humanas encontraram nos artefatos tecnológicos uma maneira de capturar, descrever, organizar e reorganizar o tempo, cujas expressões artísticas serão tão bem recortadas e exploradas por Foscolo (2024). Por isso, ele afirma, categoricamente, não ter sido por acaso que, nos Estados Unidos, a música explodiu numa pletora de gêneros e subgêneros. Que essa explosão vem preencher em larga escala aquele vazio  deixado pelo que no ar se desmanchara, em termos musicais, parece certo. Todavia, terá sido nos EUA sua primeira e principal ocorrência? E quais efeitos teriam esse evento, pois, por essas ironias próprias da modernidade, aquela pletora de gêneros e subgêneros, em vez de mostrar um mundo aberto à multiplicidade, rendeu-se à chatice da hegemonia cultural que o predomínio da música americana (e aquela cantada em língua inglesa) tem exercido, desde então.

Lendo o adágio de Marx e Engels de um ponto de vista musical, a ritmologia, a qual, para Foscolo, tenta domesticar o ruído, poderia ser compreendida com base na volatização da tradição moderna, cujo núcleo foi o sistema tonal. Seu esgotamento, no final do século XIX, permitirá essa pluralidade de gêneros, tanto na assim chamada música erudita (ou clássica) como também na ascensão das músicas populares. Parece, contudo, que não é nos países de língua inglesa onde essa crise primeiro acontece, pois,  até o início de século XX, eles tiveram participação bem pequena no cânone musical, cujo panteão é pouco habitado pelos compositores ingleses. Nessa esfera, parece natural que não tenham contribuído para as condições estético-musicais que levariam ao questionamento do sistema tonal. Wagner e, sobretudo, Debussy, são lembrados com recorrência como os arautos desse embate.

Em seu livro Debussy. The Master Musicians, Edward Lockspeiser narra um episódio ilustrativo para nossa discussão.  Numa noite do inverno de 1883, Debussy foi a uma loja de pianos e começou a tocar, reproduzindo os sons de ônibus que passavam na rua. O episódio teria causado um certo alarido, no ambiente, pois aqueles gestos motivaram algumas reflexões críticas e irônicas, em estilo debussyano, às regras da harmonia. Eram acordes de diversos graus, do sétimo ao décimo terceiro, os quais soavam dissonantes, mas que não haviam recebido qualquer resolução, como pedem as regras da harmonia. Tudo isso Debussy definiu como “le régal de l'ouie” (um banquete para os ouvidos). Noutra ocasião, quando seu professor Guiraud questionou se ele achava que se os acordes dissonantes não precisavam ser resolvidos, quais regras seguia, Debussy respondeu: “Mon plaisir”! (Lockspeiser, 1936, p. 17/180).

As experiências musicais de Debussy tornaram-se um marco decisivo para a música, porque representaram a primeira obra de fôlego assinalada por rupturas importantes com o modelo tonal, especialmente com as regras da harmonia, tendo exercido grande influência em nomes como Stravinsky, Bela-Bártok e, no Brasil, Villa-Lobos. Vale acrescentar que o peso dessa influência, em nosso país, pode ser mensurado igualmente pelas avaliações que escritores como Oswald e Mario de Andrade fizeram do compositor francês. No Manifesto da Poesia Pau-Brasil, Oswald de Andrade argumenta que a democratização das artes, conduzida pela burguesia, desencadeou uma revolução estética marcada por uma arte que se desmancha pela “[...] deformação através do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Malarmé, Rodin e Debussy até agora” (Andrade, 1970, p. 7). Mário de Andrade, por sua vez, destaca os pontos propriamente musicais de Debussy, pois ele “[...] rompe com a tradição melhor da expressividade musical francesa. [...] Desenvolvendo a expressividade analítica da harmonia oitocentista e a completando pela libertação definitiva da harmonia pura, Debussy se achava de posse dum instrumento prodigioso” (Andrade, 2023, p. 76/77).

A ênfase no caso Debussy, pelo viés da recepção que ele teve em terras brasileiras, ajuda-nos a negritar uma outra vertente do ritmo da modernidade que não seja a da domesticação do ruído, num exemplo de uma cultura musical tão ou mais rica do que a estadunidense, como é o caso da música, no Brasil. Isso nos faz ver, também, que novas experiências sonoras tenham ocorrido antes do início do século XX.

Essa dupla vertente parece matizar as afirmações de Foscolo (2024). Se o autor tem razão em apontar para a diversidade das experiências, parece hiperbólico reduzir justamente essa pluralidade a uma única forma de expressão: “[...] todas as experiências musicais do século XX passam a nos comunicar algo em comum: elas também constituem tentativas de domesticação do ruído” (Foscolo, 2024, p. 03). Diferentemente dessa totalidade, a música assumiu desde o início do século XX uma pluralidade de formas de expressão: variadas vanguardas, tentativas de concepção de novas escalas, tendo em vista o esgotamento do sistema tonal (dodecafonismo, atonalismo, pluritonalismo etc.), apelo às escalas modais e folclóricas. Há, inclusive, a resistência do próprio tonalismo, o qual, de diferentes formas, encontra abrigo em momentos distintos, como no neoclassicismo e, mais uma vez entre nós, no resgate bachiano promovido por Villa-Lobos. Adorno fez reflexões agudas sobre essa convivência nada harmoniosa entre a música de vanguarda e a restauração (Adorno, 2004).

Cabe uma reflexão também sobre o estatuto do que hoje se considera a música erudita diante da popular, uma vez que esta ocupou largamente o espaço de audição. Talvez a perda de uma linguagem comum e universal, na música erudita, tenha contribuído para a preferência do ouvinte pela canção popular, pois as múltiplas experiências de vanguarda e de domesticação do ruído, para usar a imagem de Foscolo, tenham tornado a arte sonora um nicho para “iniciados”, tal como ocorre, ademais, nas outras esferas artísticas. Justamente porque foi no seio da música popular, em suas variadas formas, mas sobretudo no âmbito da indústria cultural, que as escalas tonais continuaram dando as cartas.

Um exemplo de como as experiências de vanguarda não são recebidas com a mesma boa vontade, pelo público ouvinte da canção popular, é o álbum Araçá Azul, de Caetano Veloso; sobre o processo de composição e gravação, o músico informa que a primeira canção, por exemplo, “[...] consiste em gemidos e grunhidos superpostos, sons de vozes brasileiras em conversa [...]” (Veloso, 2017, p. 473). Em seu todo, é um disco experimental, constando inclusive na “[...] parte interior da capa dupla a frase ‘um disco para entendidos’” (Veloso, 2017, p. 474), cujo resultado foi: “A reação do público foi veemente: o disco bateu recordes de devolução [...] Ao chegar em casa, a maioria nem sequer aguentava ouvir a primeira faixa até o fim: voltava correndo ao vendedor para tentar devolver o disco” (Veloso, 2017, p. 475).

Sem poder me alongar além do que já o fiz, gostaria de encerrar este comentário à maneira de um da capo, para concordar com Foscolo (2024) sobre o aspecto incontornável de que a música, desde o início do século XX, tem sido caracterizada por rupturas e por experimentações, diante de uma tradição que se desmancha no ar, sendo seu traço mais genuíno a explosão de formas. Contudo, tento matizar a afirmação de que esses eventos cruciais tenham tido vez primeiramente nos Estados Unidos e que as experimentações que poderíamos entender como de vanguarda totalizam essas experiências. Parece soar demasiado “dogmático” para fenômenos múltiplos.

Por último, também concordo com o ponto de vista segundo o qual as experiências sonoras não são apenas temporais, mas também espaciais. Na perspectiva do que aqui tentei apresentar, desenvolvo melhor essa ideia num artigo no qual tento elaborar uma concepção espacial da música, a que denominei cartossonografia (Lima, 2021) e que pode representar uma forma de conversa com Foscolo (2024).

 

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Bach gegen seine Liebhaber verteidigt. In: ADORNO, Theodor W. Prismen. Kulturkritik und Gesellschaft. Munique: Deutscher Taschenbuch, 1963. p. 133-146.

ADORNO, Theodor W. Filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 2004.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Fazendeiro do Ar. In: Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.

ANDRADE, Mário de. Claude Debussy (II). In: COLI, Jorge. Música final. São Paulo: Edusp, 2023. p. 76-79.

ANDRADE, Oswald de. Obras completas. V. 6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.

FOSCOLO, Guilherme. Tempo maquínico: contribuição para uma ritmologia do Capital. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 47, n. 3, e02400214, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15841. Acesso em: 10 maio 2024.

LIMA, Márcio José Silveira. Nietzsche, Debussy e o sul da música: esboços de uma cartossonografia. Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v. 42, n. 1, p. 209-229, jan./abr., 2021.

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

 

Recebido: 31/07/2024 – Aprovado: 04/08/2024 – Publicado: 04/10/2024



[1] Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Porto Seguro, Bahia – Brasil. ORCID https://orcid.org/0000-0001-6813-8864 Email: marsil@ufsb.edu.br.