Comentário a “Nietzsche e o projeto político assentado na seletividade da virtude. Um projeto aristocrático de vontade de domínio

 

Clademir Luís Araldi[1]

 

Referência do artigo comentado: Feiler, Adilson. Nietzsche e o projeto político assentado na seletividade da virtude. Um projeto aristocrático de vontade de domínio. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400191, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15470.

 

Em seu artigo “Nietzsche e o projeto político assentado na seletividade da virtude”, Adilson Feiler defende que há no filósofo alemão um projeto aristocrático radical, que expressa uma vontade de domínio singular. Nesse sentido, Feiler (2024) propõe uma abordagem das questões da virtude e da política, em Nietzsche, desde o viés fisiopsicológico da vontade de poder. Pretendo questionar esse vínculo entre a virtude e a política, o qual aparece como elemento central para a transvaloração dos valores.

O autor propõe uma investigação de cunho crítico do projeto político de Nietzsche, ao defender uma nova concepção de virtude, centrada no aumento de potência e na maximização de forças, sem conotação estritamente moral. As virtudes da cultura aristocrática estariam para além da moral do rebanho decadente e de toda a cultura ocidental embasada nesses valores decadentes. No plano político, essas virtudes se manifestariam na guerra, na expansão das forças dominadoras, traço principal da vontade de poder:

Pela vontade de potência, o filósofo alemão pensa a política como uma guerra. Não uma guerra que se trava entre nações, no sentido propriamente de interesse político, mas uma guerra no sentido de potência, uma disposição psicológica afirmativa, capaz de provocar o enriquecimento instintual. Embora Nietzsche veja na guerra, entendida como guerra entre nações como algo necessário, desde que essa guerra venha a criar uma disposição psicológica afirmativa, no sentido de ativar um quantum maior de forças. O papel da política, neste sentido, se vincula ao aumento das forças imprescindíveis para a afirmação da vida. Esta tem na seletividade uma importância fundamental, pois é pela luta e pelo embate entre forças que se consegue atingir a maximização em termos de potência. E, somente aqueles espécimes mais fortes, que ocupam níveis mais altos na hierarquia, são capazes de prevalecer. Prevalecimento este que lhes confere virtude, que é o enaltecimento de seu vigor e força, atributos estes não despidos do caráter político-moral, mas que fazem parte da dimensão orgânica. E é justamente como organicismo que a política é compreendida no pensamento de Nietzsche, tendo ela um papel fundamental para o aumento das forças, que é a condição fundamental para a afirmação da vida (Feiler, 2024, p. 4).

 

Feiler (2024) não fornece uma resposta conclusiva acerca do teor e da efetivação dessas novas virtudes, as quais seriam valorizadas na cultura do espírito, ao sustentar que a guerra, em Nietzsche, se limita ao aumento de potência, enquanto disposição psicológica afirmativa. Nietzsche, no entanto, pensa em formações de domínio (Herrschaftsgebilde) que possuem base fisiopsicológica, mas que se constituem no amplo espectro de embate das forças, inclusive no campo político efetivo. É justamente essa “organicidade” da virtude aristocrática que mostra os limites do emprego dessa prova da força sui generis ao campo político. O próprio Nietzsche é lacunar, ao propor a “aristocracia espiritual” (geistige Aristokratie), ao não expor com detalhes suas características e propriedades.

Questiono, assim, se é possível definir a virtude em Nietzsche somente como maximização de forças. Se for o caso, Nietzsche teria apenas uma teoria do poder aplicada à política, sem conotações éticas definidas? Feiler (2024) interpreta a vontade de poder, no campo político, como “vontade de domínio”, sem definir suficientemente as implicações desse conceito, pois domínio (Herrschaft) é empregado pelo autor da Genealogia da moral também para os campos histórico-social e político.

Detenho-me aqui na questão: como se efetivará a vontade de domínio, em um novo aristocratismo do espírito[2], ou cultura aristocrática? No final de Além do bem e do mal, Nietzsche não define em que consistem as novas virtudes do nobre, porém, apenas aponta algumas condições para o seu estabelecimento. No cap. IX, “O que é nobre?”, ele afirma: “[...] o egoísmo é da essência de uma alma nobre” (Nietzsche, 1992, BM 265)[3]. Ou seja, esse nobre se destaca pela criatividade, capacidade guerreira de autossuperação de seus limites e dos limites da moralidade. Todavia, o egoísmo não é propriamente uma virtude, no máximo uma propriedade dessa “alma” que procura, sobretudo, cultivar seus traços individuais. Se a busca por excelência ocorrer apenas no plano individual, não haveria implicações políticas significativas desse egoísmo nobre, mesmo em sua guerra contra a moral.

Poderíamos objetar que Nietzsche espiritualiza também a guerra contra a moral cristã, visto que a radicalização da crítica aos valores morais seria feita pelos nobres de espírito: “Somos fecundos apenas ao preço de sermos ricos em antagonismos [...]. Renunciamos à vida grande ao renunciar à guerra...” (CI, Moral como antinatureza, 3). A guerra seria, segundo essa concepção da vida, o modus operandi da vontade de poder. Mesmo se considerarmos que são processos qualitativamente distintos de efetivação, quando a guerra é conduzida pelos tipos nobres ou pelos fracos, a busca por mais poder é o traço comum a ambos os tipos de homem. A guerra poderia fazer parte da virtude “transvalorada” dos nobres, por expressar sua vontade imperiosa de poder. Os fracos, contudo, são necessários no “[...] movimento total da vida” (Nietzsche, 1967, FP, 14[140]), afinal, os mais fortes necessitam dos mais fracos para extravasar seus excessos de força. Na Genealogia da moral (Nietzsche, 1998, GM I, 5-7) e nos escritos de 1888, Nietzsche procurou avançar nessa determinação das virtudes do nobre, contudo, acabou desenvolvendo mais a crítica à moral do rebanho e aos valores modernos decadentes, apontando para uma indefinida aristocracia do futuro.

Entretanto, de modo mais determinado, o nobre corporificaria o anseio pela intensificação do poder do si-mesmo (Selbst), movido por um egoísmo “saudável”, que vai além de um cultivo espiritual. Esse passo importante ocorre no Crepúsculo dos ídolos, em que o egoísmo é compreendido fisiologicamente: seu “valor natural” está na capacidade de intensificar a vida:

O egoísmo [die Selbstsucht] vale tanto quanto vale fisiologicamente aquele que o tem: pode valer muito, e pode carecer de valor e ser desprezível. Cada indivíduo pode ser examinado para ver se representa a linha ascendente ou a linha descendente da vida. [...] Se ele representa a linha em ascensão, seu valor é efetivamente extraordinário – e, em função da totalidade da vida, que com ele dá um passo adiante, deve mesmo ser extremo o cuidado pela conservação, pela criação do seu optimum de condições (Nietzsche, 2006, CI, Incursões de um extemporâneo, 34).

 

Em decorrência do grande acúmulo de forças oriundo do movimento da moral, o indivíduo nobre poderia configurar melhor seus impulsos do que o fraco, por reunir esse optimum de condições favoráveis para suas criações, e apartar-se dos elementos doentios. Nesse sentido, Feiler (2024) desenvolve com rigor a radicalidade crítica e desconstrutiva do nobre, em relação aos valores morais negativos da civilização. Mas não desenvolve com mais vagar em que consiste a “seletividade da virtude”, nesse novo projeto político de cunho aristocrático.

Se a guerra é apenas uma metáfora, em Nietzsche, fica difícil apontar a coerência de sua proposta de atuar diretamente na dinâmica da cultura moderna, de sorte a propiciar o triunfo da cultura aristocrática, com suas “novas” e indefiníveis virtudes. Se for somente o cultivo de virtudes de indivíduos isolados, a proposta de Nietzsche seria, no máximo, o projeto excêntrico de um sonhador solitário. Feiler (2024) defende que não, mas é preciso mostrar como essa nova concepção de virtude é relevante para as discussões éticas contemporâneas, e qual a contribuição de Nietzsche como pensador ético-político em nosso mundo atual, envolvido na “pequena política” e em guerras mesquinhas.

 

Referências

Feiler, A. Nietzsche e o projeto político assentado na seletividade da virtude. Um projeto aristocrático de vontade de domínio. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400191, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15470. Acesso em: 10 mar. 2024.

NIETZSCHE, F. W. Digitale Kritische Gesamtausgabe. Werke und Briefe (eKGWB). Baseada no texto crítico de G. Colli e M. Montinari. Berlim: de Gruyter, 1967. Org. por Paolo D’Iorio. Disponível em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB. Acesso em: 20 abr. 2024.

NIETZSCHE, F. W. Além do Bem e do Mal. Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. Trad. de Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

NIETZSCHE, F. W. A genealogia da moral. Trad. de Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

NIETZSCHE, F. W. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. de Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

 

Recebido: 31/07/2024 – Aprovado: 10/08/2024 - Publicado: 23/09/2024



[1] Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, RS – Brasil. Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Distrito Federal – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8255-2946. E-mail: clademir.araldi@gmail.com.

[2] Aristokratismus des Geistes, expressão utilizada em Nietzsche, 2006, p. CI. Incursões de um extemporâneo, 2. http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/GD-Streifzuege-2

[3] Serão adotadas as seguintes abreviaturas, para citar as obras de Nietzsche: BM (Além do bem e do mal), GM (Genealogia da moral), CI (Crepúsculo dos Ídolos), e FP, para os fragmentos póstumos por nós traduzidos, conforme a convenção adotada pelos editores G. Colli e M. Montinari, na Kritische Studienausgabe (KSA), a qual é seguida por Paolo D’Iorio, na edição eletrônica e-KGWB: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB .