Comentário a “Nietzsche e o projeto político assentado na seletividade da virtude. Um projeto aristocrático de vontade de domínio”
Jorge Luiz Viesenteiner[1]
Referência do artigo comentado: Feiler, Adilson. Nietzsche e o projeto político assentado na seletividade da virtude. Um projeto aristocrático de vontade de domínio. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400191, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15470.
O artigo “Nietzsche e o projeto político assentado na seletividade da virtude. Um projeto aristocrático de vontade de domínio”, escrito por Adilson Feiler (2024), retoma o debate em torno das considerações feitas por Nietzsche sobre a política, especialmente por meio de duas noções fundamentais ao tema, a saber, as noções de “pequena política” e de “grande política”, a fim de esboçar os indicativos de um projeto de radicalismo aristocrático que consiste em vontade de domínio, entendida, por sua vez, como uma concepção transvalorada de virtude, a qual, em tese, forneceria as condições de superação da moralidade judaico-cristã assentada na décadence. O pressuposto central da hipótese da seletividade da virtude, além disso, é a elaboração do que se poderia chamar de uma ontologia política imanente, que remonta ao registro fisiológico/orgânico da noção de força e estaria à base de um tipo humano seleto – pertencente a essa aristocracia –, que aspira ao domínio ou a mais poder, endossando uma dinâmica baseada na cara noção de “guerra” ou antagonismo, nas relações interpessoais, agonismo este que acaba por se revelar como combustível indispensável à autossuperação, na medida em que se desdobra em resistências e antagonismos em cada um dos âmbitos da cultura.
De fato, as controvérsias políticas na filosofia de Nietzsche são inúmeras e foram palco para as mais distintas apropriações devidas ou indevidas do seu pensamento, de modo que revisitar essas reflexões são, por si só, vantajosas em termos de avanço teórico na pesquisa. Embora Nietzsche seja um autor, como reconhecido no artigo, que não tenha muito a contribuir em termos políticos, tal como tradicionalmente se entende a noção de política, na filosofia e em autores mais clássicos, como Maquiavel, Hobbes etc., as provocações e os embates encaminhados pelo artigo certamente abrem espaço para a persistência de questões teóricas ainda não resolvidas em definitivo, especialmente se remontarmos a expressões carregadas no pensamento de Nietzsche, tais como o par “pequena política” e “grande política”, esta última elaborada sobretudo no último ano de produção filosófica de Nietzsche, notadamente nos apontamentos póstumos, ou mesmo o estatuto do termo “política”, a própria noção de virtude e seletividade ou ainda os registros teóricos de uma ontologia política imanente, assentada na articulação entre fisiologia/forças e antagonismos.
No que se segue, gostaria de debater duas questões que considero importantes – dentre outras abordadas pelo artigo –: por um lado, o estatuto que o termo “política” recebe, em Nietzsche, abordagem na qual acompanho a elaboração de Adilson e, por outro lado, a elaboração de uma hipótese concorrente à apresentada no artigo, em torno do papel que uma economia afetiva/emocional exerce no horizonte político. Esse segundo debate é menos uma objeção ao argumento de Adilson, mas muito mais a maneira como faço a entrada no debate, chamando atenção ao pano de fundo de uma psicologia moral que tem de ser pensada e problematizada não apenas na esfera moral, mas também na política. Assim, o segundo aspecto ao qual chamo atenção é um esboço plausível e concorrente ao argumento do artigo.
Sobre o estatuto da política em Nietzsche
Um primeiro aspecto em que acompanho Feiler (2024) diz respeito ao fato de não isolar as reflexões políticas de Nietzsche de um horizonte maior de crítica à cultura, notadamente de crítica à moralidade (em específico, a moral judaico-cristã de apequenamento ou rebaixamento do tipo humano), a fim de circunscrever o estatuto do debate “político”, em Nietzsche. Logo na introdução, ele escreve: “Pode-se dizer, em última análise, que Nietzsche apresenta uma reflexão político-moral, já que a dimensão política não pode ser compreendida como desconectada de todas as suas considerações sobre a moral” (Feiler, 2024, p. 2).
De fato, Nietzsche não é um filósofo com fortuna crítica suficientemente robusta para contribuir com um debate político, no sentido tradicional das teorias políticas, na filosofia, aquelas que definem uma concepção de Estado, sociedade, estados de natureza e civil etc. – ainda que empregue, por vezes, uma terminologia característica desse debate –, ao mesmo tempo, porém, que lança mão de temas políticos comuns ao debate da sua época. Em um esboço escrito ao livro Ecce homo, o qual foi posteriormente suprimido e não publicado na sua autogenealogia de 1888, Nietzsche se autodenominou como “[...] o último alemão antipolítico” (KSA, 1999, 14.472).[2]
Mesmo essa maneira de se autoencenar “antipolítico” não nos exime de reconhecer, ato contínuo, a distância crítica que ele toma em relação ao debate político de seu tempo, fazendo dele, precisamente por isso, um filósofo que exprime de alguma maneira suas reflexões políticas. Quando Nietzsche escreve que “[...] o tempo da pequena política chegou ao fim”, indicando, prospectivamente, “[...] que o próximo século” traria a luta em torno da “[...] grande política” (ABM 208), cumpre a nós reconhecer a posição crítica que ele ocupa em relação à “pequena política” da sua época, posição essa que, no fundo, não deixa de ser também política de alguma maneira. A primeira tensão em torno do estatuto da política, portanto, é metateórica, no sentido de oscilar entre um autor que não tem texto suficiente para ser considerado um clássico autor político, e um filósofo que exprime posições políticas em função dos antagonismos e distâncias que estabelece em relação a um contexto maior de crítica à cultura.
Uma segunda tensão em torno do estatuto da política diz respeito à relação de antagonismos e resistências próprias ao modus operandi da vontade de poder em todo acontecer, inclusive nas relações políticas interpessoais. Embora eu tenha algumas objeções ao argumento orgânico/fisiológico das forças empregadas por Adilson, no artigo – conforme retomarei adiante –, reconheço um aspecto importante da dinâmica de contraposições nessa relação de forças em Nietzsche, a qual caracteriza a vontade de poder – especialmente pensada à luz da seção 12 da Segunda Dissertação de Para genealogia da moral, quando apresentada como “método histórico” que se opõe à “idiossincrasia democrática” da sua época.
A articulação entre fisiologia e força com a dinâmica de antagonismos e resistências próprias da vontade de poder, de fato, exprime o ser humano como político, na medida em que cresce e se desenvolve em meio à tensão entre forças e resistências (cf. ABM 262), portanto, em processo constante de fluidez sem especificação de um telos definitivo. Se o ser humano “[...] é o animal ainda não determinado” (ABM 62), a manutenção dessa tensão é, sim, uma estrutura política, uma ontologia política imanente em todo acontecer que marca o desenvolvimento de cada um de nós e que foi registrado por Nietzsche sob o mote de contínua “autossuperação”. Quando Adilson situa virtude como domínio com vistas à superação ou autossuperação, reforça a hipótese das reflexões político-morais de Nietzsche como condição para um florescimento humano. Nesse sentido, novamente, ainda que não seja um clássico pensador político, Nietzsche exprime posições sobre temas políticos, inclusive sobre a estrutura das nossas relações interpessoais.
Em função dessas duas tensões apresentadas, não diria em absoluto que Nietzsche é um autor antipolítico ou apolítico, mas reiteraria a hipótese de um pensador político-moral evocada no artigo. Como filósofo da cultura, as reflexões críticas ou propositivas de Nietzsche se voltam para cada uma das estruturas da cultura: arte, filosofia, religião, ciência, moral e, obviamente, política. Além disso, é preciso reconhecer que a crítica direcionada a cada uma dessas estruturas da cultura articula o pano de fundo moral como eixo diretivo dos seus posicionamentos, ou seja, os comprometimentos morais – independentemente de qual concepção moral está em jogo, nessas críticas – subjazem às reflexões que Nietzsche faz sobre a cultura. Endosso, portanto, a maneira como Adilson situa o tema política em Nietzsche, isto é, um estatuto em que a política é entendida como reflexão “político-moral”, nesse sentido mesmo da impossibilidade de desconexão dos termos.
Hipótese concorrente
Um segundo aspecto que gostaria de mencionar do artigo em tela se refere ao que chamaria de ontologia política imanente, em Nietzsche: a articulação entre o registro fisiológico/orgânico de força que aspira à elevação, mais poder (ou vontade de domínio) ou simplesmente “autossuperação”, e o modus operandi dessa vontade de poder em todo acontecer, por meio de conflitos, resistências e antagonismos. Decisivo no argumento do texto é o significativo compromisso de Nietzsche com esse registro orgânico e fisiológico do desdobramento de forças que, segundo Feiler (2024, p. 14), tomaria corpo em uma “fisiopolítica”: “Nesses moldes, o que Nietzsche propõe, em termos de reflexão política é, na verdade, uma espécie de fisiopolítica, uma política concebida a partir de um desdobramento da natureza humana, em que a fisiologia é um componente importante”.
Assim, o indivíduo virtuoso possui uma economia afetiva suficientemente forte para assumir, em suas relações cotidianas, uma dinâmica que consiste em antagonismos e resistências – subsumido por Nietzsche sob o mote de “guerra espiritual” –, com vistas à elevação ou autossuperação, cuja economia de forças é transmutada justamente na virtude seletiva que aspira à elevação. O endosso teórico do compromisso orgânico/fisiológico estruturante dessa economia afetiva na vontade de domínio – registre-se: “domínio” que não se confunde com domínio sobre outros, mas “[...] sobre si mesmo e sobre suas próprias condições” (p. 22, mas também a nota 10, à p. 10) – percorre o artigo desde a introdução até as considerações finais, de modo que “a reflexão política”, escreve Adilson (2024, p. 21), “[...] não pode caminhar dissociada da reflexão fisiológica, pois é nela que se apresentam as chaves fundamentais de leitura para se pensar o seu funcionamento e redimensionamento”. Ainda que o artigo faça menção, corretamente, de que não se trata de “[...] reducionismo naturalista, como se a economia das forças determinasse as posições político-morais” (Feiler, 2024, p. 9), o texto estrutura virtude, domínio e grande política desde uma fisiologia de forças que, em tese, transmutaria essa economia afetiva em fisiopolítica “[...] concebida a partir de um desdobramento da natureza humana”.
Estou de acordo que o debate político-moral em Nietzsche não pode se dissociar de uma fisiopsicologia ou de uma economia emocional, seja em termos de entendimento sobre a dinâmica das interrelações pessoais e institucionais, seja em termos de compreensão de emoções políticas ou motivações político-morais. Minha consideração em relação ao argumento do artigo é menos uma objeção, mas antes o encaminhamento de uma hipótese concorrente para debater a relação entre economia afetiva e política, sobretudo por conta da tratativa do estatuto da política indissociável da moralidade.
Minha interpretação é que Nietzsche desloca a concepção hidráulica da nossa economia afetiva, em detrimento de uma “fisiopolítica” que faz conexão direta entre nossos afetos e nossas experiências e ações no mundo, incluindo político-morais, porém, em proveito de uma concepção circular ou de retroalimentação, por um lado, entre afeto/emoção e cognição interdependentes e atuantes no agente e, por outro lado, entre um corpo preparado para ação (o agente), que é performada em um ambiente desde sempre estruturado. Esse modelo circular e interdependente pode se ajustar de maneira mais plausível nas inter-relações que temos no cotidiano, mesmo à luz de uma perspectiva maior de florescimento humano – aspecto com o qual o artigo também flerta.
É inegável a filiação de Nietzsche à tradição sentimentalista que remonta a uma economia afetiva/fisiológica informadora de juízos epistemológicos, artísticos, religiosos, morais e, inclusive, políticos, ao mesmo tempo que essa economia emocional é igualmente acompanhada de alterações somáticas. Em outro lugar, situamos a estreita relação de Nietzsche com a tese sentimentalista que informa perspectivas filosóficas, incluindo alterações corporais (cf. Viesenteiner; Apolinário, 2023). De fato, em distintos textos de períodos diferentes da sua produção filosófica, Nietzsche escreveu que nossa economia emocional informa nossos sentimentos de inclinação e aversão em relação a algo, informa nossos juízos, nossos pensamentos, nosso gosto etc. Em Aurora, lemos que a “[...] imagem da totalidade dos nossos impulsos” (A 119; KSA, 1999, 3.111) compõe as experiências humanas, incluindo as políticas, independentemente da sua complexidade; em Para além de bem e mal, lemos que a moralidade é uma “[...] semiologia dos afetos” (ABM 187; KSA, 1999, 5.107); em um apontamento póstumo do outono de 1885/outono de 1886, Nietzsche escreve que avaliar moralmente significa uma “interpretação”, a qual, por sua vez, é informada desde sempre pelos “nossos afetos” (Nachlass 2[190]; KSA, 1999, 12.161); em Para genealogia da moral, está registrado que a dinâmica da vontade de poder operante em todo acontecer é posição distante da “[...] idiossincrasia democrática” (GM II 12).
Assim, desde as mais triviais experiências, como notar que alguém riu de nós, passando pelas mais complexas, tais como avaliar moralmente (GC 335), ou mesmo o próprio ato de pensar (ABM 19), a formação dos nossos conceitos epistemológicos como a causalidade (CI, Os quatro grandes erros 5) ou, ainda, posições políticas próprias do “[...] movimento democrático” (ABM 242), lemos frequentemente que Nietzsche remonta tais experiências a uma totalidade emocional que informa e motiva nossas experiências cotidianas. Nesse sentido, é bem plausível e até mesmo intuitivo articular a relação direta, por exemplo, entre economia afetiva e posições político-morais.
Considero, porém, que essa relação é um pouco mais complexa. Em primeiro lugar, minha hipótese concorrente, a qual esboço com brevidade, é que nossa economia afetiva atuante em cada experiência motiva regulativamente e não constitutivamente, de modo a desinflacionar a relação direta entre afetos e posições político-morais, forçando-nos a reconhecer uma modulação mais nuançada de estados emocionais que impede a construção, sem maiores problemas, da ponte direta entre economia afetiva e experiências político-morais. Dizer que nossa economia afetiva atua regulativamente significa assumir que afetos e suas alterações somáticas preparam o corpo para uma performance político-moral, ao mesmo tempo que essas experiências só podem ser performadas em um ambiente igualmente estruturado.
Esse estatuto regulativo exprime a interdependência ou retroalimentação entre um corpo afetivamente preparado para agir e um ambiente já desde sempre estruturado social, moral, linguística e politicamente. O estatuto regulativo da “prontidão para ação” – para empregar a expressão de Frijda (2011) – implica apenas um corpo afetivamente preparado para agir, mas não necessariamente que transmute a economia de forças e impulsos de maneira direta, pois a interdependência com uma situação faz com que o ambiente, por sua vez, igualmente module nossa economia afetiva, regulando simultaneamente a maneira como vamos agir e nos posicionar em relação a algo. Trata-se, então, de corregulação entre nossa economia emocional e uma situação, um ambiente, cuja experiência leva em conta a intensidade e o poder daquilo que se torna mais saliente na situação, correspondentemente à avaliação que possuímos do que nos afeta.
Em segundo lugar, embora Nietzsche empregue amplamente uma concepção hidráulica de emoção típica da sua época e que ocorre ao longo dos seus textos – concepção amplamente influenciada por Julius R. Mayer, por exemplo, subsumida pelo filosofema Auslösung (desencadeamento) –, no típico registro de que “[...] processos fisiológicos são semelhantes no fato de que são desencadeadores de força” (Nachlass 1884, 27[3]; KSA, 1999, 11.275), à base dessa concepção regulativa e não constitutiva, assim interpreto, está também uma alteração da própria noção hidráulica de afeto/emoção, que passa a ter que abrigar, simultaneamente a essa economia afetiva, uma dimensão avaliativa ou cognitiva das nossas performances político-morais. Trata-se igualmente, por conseguinte, de uma relação de interdependência ou retroalimentação entre economia afetiva e cognição que subjaz ao estatuto regulativo do modo como um corpo preparado para agir performa posições, em um ambiente. Em um importante apontamento póstumo do inverno de 1883/1884, Nietzsche escreve sobre a “crença nos ‘afetos’”:
Afetos são uma construção do intelecto, uma fabulação de causas que não existem. Todos os corriqueiros sentimentos corporais que não compreendemos são interpretados intelectualmente, ou seja, procura-se uma razão para sentir-se de tal ou tal forma em pessoas, vivências etc.; assim, algo desfavorável, perigoso ou estranho é inserido como se fosse a causa de nosso mal-estar: na verdade, isso é buscado para justificar intelectualmente nosso estado. — Frequentemente, fluxos de sangue para o cérebro acompanhados pela sensação de sufocamento são interpretados como raiva: as pessoas e coisas que nos irritam são desencadeadores para o estado fisiológico. — Retrospectivamente, através de um longo hábito, certos eventos e sentimentos gerais se tornam tão regularmente associados que a visão de certos eventos provoca aquele estado de sentimento geral e, especificamente, algum bloqueio sanguíneo, excitação seminal etc.: assim, por proximidade, “o afeto é provocado”, como costumamos dizer. Em “prazer” e “desprazer” já estão embutidos julgamentos: os estímulos são distinguidos, dependendo de serem ou não benéficos para o sentimento de poder (Nachlass, 1883/1884, 24[20]; KSA, 1999, 10.657s, grifos do original).
Chamo atenção aqui para três aspectos da citação acima, a fim de enfatizar a interdependência entre economia afetiva/emocional e cognição, fundamental para entender o deslocamento conceitual plausível que Nietzsche opera, em relação à concepção hidráulica: 1) afetos são fabulações enviesadas de uma economia afetiva que não compreendemos, todavia, interpretamos em proveito do nosso bem-estar; 2) pessoas e coisas (ambiente) são “desencadeadores” de emoções das mais distintas, como a “raiva”, em função da saliência daquilo que nos afeta, de sorte que, com o tempo, emoções e afetos sedimentam-se na forma de hábito corporificado ou atitudes corporificadas sempre que estejamos naquela situação, ou seja, uma estrutura de retroalimentação entre um corpo afetivamente preparado e um ambiente, cuja interdependência corregula nossas performances político-morais; por fim, 3) a conclusão dessa corregulação interdependente do agente e do ambiente é o fato de que nos sentimentos de “prazer” e “desprazer” já estão embutidos, desde sempre, certos julgamentos avaliativos que fazemos em relação ao que é mais saliente do ambiente e que nos afeta.[3]
Em Humano, demasiado humano I, além disso, Nietzsche escreveu que “[...] um impulso para algo ou de afastamento de algo, sem o sentimento de que se deseja o que é benéfico ou se evita o que é prejudicial, um impulso sem uma espécie de avaliação cognitiva sobre o valor do objetivo, não existe no ser humano” (HH I 32; KSA, 1999, 2.52) Para além da interpretação hidráulica da nossa economia afetiva/emocional, Nietzsche opera também, assim interpreto, com um modelo circular de retroalimentação entre economia afetiva/emocional e cognição. Trata-se, pois, de duplo movimento de retroalimentação: por um lado, interdependência entre afeto/emoção e cognição atuante em cada um de nós e, por outro lado, interdependência entre o corpo preparado para ação (o agente) e sua performance, em um ambiente. Ambos os movimentos, a meu ver, são indissociáveis, intercambiáveis e interagem entre si, retroalimentativamente.
Nesse sentido, nossas performances político-morais em busca de domínio e autossuperação, por exemplo, não são resultados da transmutação direta dos nossos afetos – hipótese que ainda opera com a concepção hidráulica –, entretanto, têm uma modulação mais nuançada em termos emocionais, no sentido de ser expressão da corregulação interdependente entre afeto e cognição (ou emoção e avaliação) no agente, bem como corregulação interdependente entre o agente e um ambiente estruturado. Ambos os movimentos também são simultâneos.
Gostaria de justificar brevemente essa alteração mais nuançada de emoção – para além da concepção hidráulica – com uma reflexão que Nietzsche faz, tanto no Crepúsculo dos ídolos quanto em sua autogenealogia Ecce homo, em torno da expressão “não reagir”. No aforismo 6 do capítulo “O que os alemães estão perdendo”, do Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche se refere à incapacidade fisiológica de “não reagir” justamente como algo “doentio”, expressão de afetos de “declínio, sintoma de esgotamento”, ou seja, expressão de uma vontade fraca e incapaz de resistir a um estímulo ou a algo saliente, no ambiente. No fundo, Nietzsche insere uma contraperspectiva à hipótese da ponte direta entre economia afetiva e ações, na medida em que, assim interpreto, poder não reagir a um estímulo, ponderar performances político-morais em face de juízos avaliativos que temos sobre o que é mais relevante e saliente, em um ambiente, exprime precisamente grandeza, boa constituição ou uma “vontade forte”: “[...] toda não espiritualidade”, continua Nietzsche, “[...] toda vulgaridade assenta-se na incapacidade de produzir resistência a um estímulo – tem de reagir, deixar-se levar por cada impulso”.
Dessa forma, “vontade forte” e bem constituída exprime “poder suspender a decisão [...] poder não ‘querer’” em alguma situação, renunciando, portanto, à “[...] mera incapacidade fisiológica de não reagir” (CI, O que os alemães estão perdendo 6; KSA, 1999, 6.108s.) Trata-se então de reconhecer que uma dimensão avaliativa/cognitiva acompanha igualmente nossa economia afetiva que, tão logo um agente esteja somaticamente preparado para ação, pode também não performar ou não reagir em face dos impulsos que o constituem, naquele momento, simultaneamente às avaliações que também possui relativamente ao que é saliente nesse ambiente, implicando que a situação é variável fundamental, em uma performance político-moral.
Algumas emoções políticas que ascenderam a primeiro plano, em nossa época contemporânea, como o ressentimento[4], são um claro exemplo desse aspecto doentio e decadencial da incapacidade de não reagir imediatamente a um estímulo, cujas práticas político-morais se desdobram sob o signo da baba venenosa ou fúria intransigente e fascista, diante de qualquer diferença. Porém, Nietzsche também tem no horizonte a manutenção mesma do que poderíamos chamar da saúde mental própria. Esse é o caso, por exemplo, da dietética espiritual demandada por ele, em Ecce homo: “Outra forma de prudência e autodefesa consiste em reagir o menos possível e evitar situações e relações em que se seja obrigado a exibir sua ‘liberdade’, sua iniciativa, e se tornar simplesmente um reagente” (EH, Por que sou tão inteligente 8; KSA, 1999, 6.292). Nesse caso, poder não reagir imediatamente a um estímulo, ponderar situações, a fim de suspender a decisão em função da avaliação que se tem do que está em jogo, no ambiente em que se encontra, exprime igualmente uma vontade forte, a qual, ao contrário de desdobrar, hidraulicamente, nossa economia afetiva em juízos e ações, toma distância, renuncia, altera e inclusive não reage, com vistas a um horizonte maior de florescimento, que, por sua vez, pressupõe desde sempre uma avaliação desse próprio horizonte de expectativa.
Em resumo, nossa economia afetiva exerce função regulativa das nossas performances político-morais e não constitutivas, impedindo-nos, assim interpreto, de estabelecer a ponte direta entre nossa constituição fisiopsicológica e nossas ações, em detrimento de um modelo linear da “fisiopolítica”, contudo, em proveito de um mecanismo processual de retroalimentação, tanto entre emoções e avaliações do agente quanto entre o agente e um ambiente, à luz da maneira como esse ambiente o afeta, em relação às saliências e importâncias que pessoas e objetos possuem a cada um de nós.
Nesse argumento concorrente que esboço, pressuponho uma alteração semântica que Nietzsche efetua, no modelo hidráulico dos afetos, cuja premissa basilar é precisamente a perspectiva avaliativa que carregamos desde sempre sobre as saliências de um ambiente, cuja relação imanente a uma situação tem de ser levada em conta, com vistas a um horizonte maior de florescimento humano. A dimensão processual da contínua interdependência entre agente e ambiente, além disso, faz jus à tese normativa da contínua autossuperação do homem, no rigoroso sentido de que nosso horizonte de florescimento se altera, na medida em que nós mesmos nos movimentamos.
Como escrevi anteriormente, trata-se menos de uma objeção ao argumento do artigo em tela, mas muito mais uma disposição para debater um horizonte cada vez mais decisivo, na pesquisa Nietzsche, e que tem a ver não apenas com nossa economia afetiva, nossas emoções políticas diretamente, porém, sobretudo, como essas emoções motivam e podem se desdobrar politicamente. Na medida em que o problema ainda está longe de estar esgotado, trata-se sem dúvida de levar adiante o debate, seja em termos exegéticos, seja no sentido sobre o que um filósofo como Nietzsche ainda tem a dizer sobre política, à luz dos problemas e das demandas contemporâneas.
Para contribuir com o debate, ainda que acompanhe o argumento do estatuto que ao termo “política” foi conferido por Adilson, situado em um horizonte político-moral, precisamente por isso é que elaboro uma perspectiva concorrente, a fim de pensarmos, em termos de psicologia moral, nossas emoções político-morais e o modus operandi da sua atuação. Talvez a conclusão mais direta desse esboço não seja mais a seletividade da virtude, mas a processualidade em “andaimes” das nossas performances político-morais, com vistas a um horizonte maior de perfecção ou florescimento humano.
Referências
Feiler, Adilson. Nietzsche e o projeto político assentado na seletividade da virtude. Um projeto aristocrático de vontade de domínio. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, Marília, v. 47, n. 3, e02400191, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15470. Acesso em: 10 mar. 2024.
FRIJDA, Nico H. An emotion perspective on emotion regulation. Cognition and Emotion, v. 25, n. 5, p. 782-784, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. (KSA) Hrsg. Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin: DTV & Walter de Gruyter, 1999.
VIESENTEINER, Jorge L.; APOLINÁRIO, Vinícius F. Nietzsche e Prinz: uma hipótese compatibilista das abordagens cognitivas e não cognitivas na filosofia das emoções. Veritas, v. 68, n. 1, e43798, 2023. https://doi.org/10.15448/1984-6746.2023.1.43798.
Recebido: 01/08/2024 – Aprovado: 05/08/2024 – Publicado: 23/09/2024
[1] Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3727-7890. E-mail: jvies@uol.com.br.
[2] Todas as traduções são de minha autoria. As abreviações das obras de Nietzsche seguem o padrão já consolidado da pesquisa.
[3] Não é por acaso que, por um lado, Nietzsche se refira a uma “crença” nos afetos, ao mesmo tempo que, por outro lado, os afetos mesmos também interpretam (Nachlass, 1885, 2 [151]), um movimento que pressupõe estreita inter-relação entre afeto e cognição (e não binaridade).
[4] N’A gaia ciência 7, Nietzsche elaborou um plano de trabalho em torno da genealogia das emoções, incluindo emoções políticas que envolvem nossas relações interpessoais. Trata-se aí, no caso da pesquisa Nietzsche, de um imenso campo de trabalho ainda a ser percorrido. Não por acaso, o título do aforismo é justamente “Algo para homens trabalhadores” (GC 7).