Comentário a “Ciência Precautória: sistematização e proposta de definição da precaução epistêmica”: uma ciência que está ciente de suas responsabilidades

 

Félix Flores Pinheiro[1]

 

Referência do artigo comentado: BRAVO, P. Ciência precautória: sistematização e proposta de definição da precaução epistêmica. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 3, e02400176, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15395.

 

Certa feita, nessas ocasiões típicas em que ocorrem os nossos círculos acadêmicos especializados, conversávamos eu e alguns colegas de profissão e de pesquisa, quando um de nós recuperou a célebre intuição de que a ciência informa os meios para atingir certos fins, mas não tem nada a dizer de relevante sobre “os fins eles mesmos”. Fazia algum tempo que não me deparava com a moral desse slogan. Um pensamento nem um pouco despretensioso, mas que é quase um provérbio, por ser tão filosófico quanto popular, sobre os objetivos e os limites do saber científico. Confesso que escutá-lo naquele momento – em uma situação acadêmica – fez ressoar um entendimento já quase cristalizado que acompanhava uma concordância automática, apesar dos já inúmeros estudos sobre ciência e sua relação com os valores. Uma colega, então, prontamente demonstrou seu estranhamento com a frase, trazendo à consciência do grupo o paradoxo entre a impregnação valorativa da ciência e o pensamento de que a mesma é uma atividade sempre confinada à descritividade e à busca dos fatos (ao invés dos valores, se é que ainda faz sentido, de todo modo, a clássica distinção).

Acrescento aqui, como o fiz no dia: não parece no mínimo estranho retirar da ciência a capacidade de informar objetivos – inclusive os seus próprios – em função dos (recentes) acontecimentos sociais e ambientais? Como poderíamos ainda sustentar uma visão de neutralidade axiológica e de neutralidade teleológica, nos tempos em que o aquecimento global é a discussão urgente, não apenas científica, mas também midiática e cotidiana? Como podemos suplicar que se escutem as recomendações da ciência enquanto instituição social, na adoção de políticas públicas se, ao mesmo tempo, a própria instituição não recomenda “os fins” e os deixa em aberto? Aplicando esse mesmo pensamento aos cenários recentes, podemos perguntar: em tempos nos quais as enchentes assolam o Sul do nosso país, o que parece que dizemos implicitamente sobre a natureza da ciência (e do conhecimento científico), quando afirmamos que o governador do estado do Rio Grande do Sul adotou medidas de uma agenda que é contrária às recomendações científicas? Ademais, se, por um lado, a emergência das “tecnociências” tanto preocupa quanto motiva arqueologias do seu conceito, originando reflexões inclusive sobre gênese das “ciências que estão postas a serviço do capital”, não poderíamos solicitar por uma ciência em prol da humanidade?[2]

Ajudando-nos a nos situar nessas reflexões, Bravo (2024) lembra daquilo que uma “boa” ciência não apenas é, mas deve ser; ou ao menos precisa tentar ser, para colocar em termos mais factíveis. Em seu “Ciência precautória: sistematização e proposta de definição da precaução epistêmica”, Bravo (2024) inicialmente oferece uma análise resumida da história do conceito de “precaução” aplicado às ciências ambientais e das suas conexões (por vezes difusas) com o assim chamado “princípio de precaução”. A partir disso, o artigo desenvolve duas tarefas, a saber: uma sistematização da literatura sobre a ciência precautória e a formulação de uma definição do conceito de “precaução epistêmica”.

Com relação à sistematização, a literatura precautória teve suas recomendações organizadas em quatro momentos característicos da ciência, sua formulação, gestão e aplicação. Parece acertado interpretar, nessa perspectiva, que tal literatura tem proporcionado, embora de maneira pulverizada, uma metodologia científica autônoma e completa, com recomendações positivas e negativas que perpassam elementos metodológicos e metametodológicos. Tais etapas, utilizando a nomeação colocada pelo autor, podem ser organizadas entre se “direcionar a ciência”, “fazer ciência”, “usar a ciência” e “gerir a ciência”. Para as recomendações em todas essas etapas, a literatura tende também a pesar os conceitos típicos da análise da confiabilidade dos resultados científicos, dentre os quais se destacam os conceitos de incerteza e de risco.[3] Em face da demanda contextual de ambas noções, a proposta de definição do conceito de “precaução epistêmica” de Bravo (2024) nos traz um respiro na reflexão sobre os papéis que esses conceitos desempenham na compreensão pública e especializada sobre a própria ciência. No meu entendimento, tal definição permite focarmos o que está em jogo em cada recomendação da literatura precautória, a qual merece ser aqui reproduzida: “[...] no momento de gerir riscos indutivos com consequências não epistêmicas significativas e plausíveis, decisões que facilitem a proteção do meio ambiente ou da saúde humana devem ser tomadas” (Bravo, 2024, p. 13, grifo meu).

A partir desses pontos, eu gostaria de enfatizar outros aspectos que a definição de “ciência precautória” (re)afirma sobre a ciência, em complemento às considerações do próprio autor. Tais aspectos apontam para um entendimento de que a (boa) ciência é (para além de um saber teórico e abstrato que é resultado de uma prática; para além dos próprios atos concretos e traços normativos da prática que origina esse resultado; para além de uma instituição com hábitos e regras, escritas ou não escritas) uma atitude responsável de engajamento coletivo.[4] Inclusive, penso que as três objeções sinalizadas por Bravo (2024, p. 16) estão diretamente relacionadas com esse aspecto da ciência enquanto atitude.

Tal atitude, marcada pela tentativa de calcular a incerteza e o impacto das decisões, pede por uma postura responsável: ela é um ideal científico tradicional que mistura cuidado e controle, como nos conta o já clássico trabalho de Crosby (1999). Uma vez colocado o ponto de que a ciência precautória tem como norte um chamado à responsabilização, à tomada de consciência da própria comunidade científica sobre o modo como pode promover recomendações normativas, visualizamos melhor os múltiplos motivos pelos quais deveríamos considerar com atenção o que essa literatura tem a dizer. A título de fechamento, destaco dois deles.

Por um lado, a consideração sobre o momento de pesar os riscos e as incertezas tem a consequência de tornar o debate imune aos argumentos similares às conhecidas falácias de apelo à ignorância, as quais, seja na esfera pública, seja nas próprias discussões internas à ciência-instituição, constantemente aparecem vinculadas às recomendações com certo grau de incerteza. A recomendação é crucial para o entendimento de que é por justamente não se esconder os juízos de valor e as incertezas que se pode tomar uma decisão consciente e bem-informada. Por outro lado, e talvez mais importante, fica claro que o aspecto “facilitador” inserido na definição de Bravo (2024) é um compromisso normativo em prol de certa agência. Como facilitar envolve não apenas evitar boicotes, mas certo tipo de engajamento ab initio, o seu compromisso pede por uma preocupação coletiva e constante. Assim, se minha interpretação estiver correta, a precaução epistêmica se mostra um valor constitutivo da boa prática científica.

Na ocasião relatada no primeiro parágrafo deste comentário, a nossa colega de profissão fez emergir, junto do seu estranhamento, uma tomada de consciência que logo atingiu todo o nosso grupo. Talvez, ao final, seja essa uma das tarefas mais importantes da filosofia e do seu caráter normativo: fazer com que estejamos cientes das nossas direções. Não penso ser por acaso que o artigo de Bravo (2024) me remeteu a essa situação. Para além dos méritos teóricos que encontramos na sua investigação, as suas reflexões me soam valiosas também em se considerar os efeitos em quem as com atenção. Acredito que, assim como ocorreu naquela situação, o seu estudo pode desencadear uma tomada de consciência coletiva sobre o tipo de questão que a filosofia da ciência tem tentado avançar e, claro, sobre a própria ciência enquanto algo que é feito e é caracterizado em função desta nossa época.

 

Referências

AYMORÉ, D.; MOCELLIN, R. Apontamentos Filosóficos sobre as Tecnociências. Cadernos Pet de Filosofia - UFPR, v. 23, n. 1, 2022. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/petfilo/article/view/85728. Acesso em: 10 maio 2024.

BRAVO, P. Ciência precautória: sistematização e proposta de definição da precaução epistêmica. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 47, n. 3, e02400176, 2024. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/15395. Acesso em: 20 maio 2024.

CROSBY, A. A Mensuração da Realidade: a Quantificação e a Sociedade Ocidental, 1250-1600. São Paulo: Editora UNESP, 1999.

CUPANI, A. Sobre a Ciência: Estudos de Filosofia da Ciência. Florianópolis: Editora da UFSC, 2018.

DAVID, M. G. Incerteza de medição: adoção do conceito e implicações epistemológicas. 2022. 300 f. Tese (Doutorado em Filosofia) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022. Disponível em: http://www.bdtd.uerj.br/handle/1/18654. Acesso em: 10 maio 2024.

 

Recebido: 10/06/2024 – Aprovado: 14/06/2024 – Publicado: 25/062024



[1] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Piauí (UFPI) Terezina, PI – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7318-5294. Email: feliks.sm@gmail.com.

[2] A análise do conceito de “tecnociência” tem ganhado destaque na literatura filosófica, discussão que está muito bem situada na apresentação de Aymoré e Mocellin (2022). Para além disso, gostaria de comentar algo sobre a expressão “ciência a serviço do capital”. Seu entendimento não se confunde, nem se esgota, nas “tecnociências”. A noção adentra também ao âmbito das “ciências sujas”, mas enfatiza sobretudo duas maneiras com que a prática científica - a prática profissional - pode ser cooptada por projetos que visam o lucro: na produção e utilização de conhecimento científico em prol da exploração do meio ambiente ou em prol da dominação dos povos.

[3] A literatura filosófica sobre o conceito de “risco” aplicado às discussões epistêmicas da ciência é um pouco mais conhecida na nossa comunidade do que a literatura sobre o conceito de “incerteza”. O último tem sido alvo de interesse da recente “epistemologia das medições”, em função da sua caracterização nos termos metrológicos de “incerteza de medição”. Para um entendimento panorâmico desse conceito, recomendo uma consulta ao trabalho de David Gazineu (2022).

[4] As análises de Alberto Cupani (2018) ensejam reflexões sobre o conceito de ciência em função das suas “faces” ou “dimensões”. Nos seus trabalhos, os quatro elementos aqui destacados (i. corpo de conhecimento; ii. atividade coletiva; iii. instituição social e iv. atitude) aparecem como “sentidos” nos quais podemos entender, analisar, estudar e enfatizar as práticas científicas. Creio que a consideração dessas faces é tão útil quanto sempre relevante nas discussões sobre a relação entre ciência, valores e sociedade.