A DINÂMICADO PASSADO E DO FUTURO
DOI:
https://doi.org/10.36311/2318-0501.2016.v4n2.12.p189Resumo
No Livro II, capítulo 6, §§39-45 de seu Ensaio sobre o entendimento humano, Locke compara as ideias de espécies artificiais (como relógios, navios, sapatos) às ideias de modos mistos (como a traição), opondo ambas às ideias de espécies naturais; segundo ele, essas últimas, ao visarem substâncias extra mentais, seriam mais obscuras e confusas do que as duas primeiras, as quais, justamente por serem ideias de realidades forjadas pelo arbítrio e pelo intelecto humanos, esgotam sua realidade em convenções e práticas inteiramente evidentes para o autor de sua fabricação. Esse trecho ilumina a passagem do capítulo 27, na qual Locke afirma que “pessoa” é um “termo forense” – i.e., uma realidade que é construída por necessidades ligadas a nossa vida prática. Um dos principais comentadores de Locke no século XVIII, Edmund Law, cujo texto A Defense of Mr. Locke’s Opinion concerning Personal Identity fez parte de várias edições da obra de Locke a partir de 1777, propunha uma interpretação similar a essa; segundo Law, “A personalidade [é] apenas uma criação da sociedade, [...] necessária para o benefício mútuo [dos homens]; i.e., um mero termo forense”; “Trata-se de uma distinção artificial, ainda assim fundada na natureza, mas não na natureza integral do homem”.2 É essa interpretação ciceroniana de pessoa como sendo uma qualidade, uma personagem, de seres inteligentes que desempenha um papel fundamental na teoria lockiana da moral (ao menos tal como ela é formulada no Ensaio): só através dela é possível mostrar que um agente capaz de ser imputado moral e juridicamente por suas ações tem acesso a suas próprias intenções e decisões de modo claro e distinto. Além de considerar as ações humanas como modos mistos capazes de integrar uma ciência dedutiva da moralidade, Locke tem de pressupor o acesso das pessoas a sua essência própria para que a moral possa ter fundamentos certos, pois só através desse acesso as intenções das ações podem ser determinadas. Se isso for correto, a teoria de Locke poderia ser caracterizada como envolvendo, ao mesmo tempo, elementos convencionais e tipos naturais com relação à determinação da natureza das pessoas. Tipos naturais, porque o conceito de pessoa, embora pessoas não sejam seres substanciais, envolve necessariamente atos de pensamento de substâncias (as quais, quer sejam elas espirituais ou materiais, são seres vivos pertencentes ao mundo natural), apreendidos reflexivamente. Elementos convencionais, porque há um interesse em nós mesmos que explica por que queremos nos ver como pessoas, interesse que só pode ser realizado por meio de uma atitude com relação a nosso próprio “eu” mediada por convenções (na medida mesma em que faz parte da natureza humana estabelecer convenções e leis que, ao regular, constituem sua vida prática).