Husserl e Ortega: reflexões no bicentenário do nascimento de Kant
DOI:
https://doi.org/10.36311/2318-0501.2020.v8n1.04.p29Palavras-chave:
Husserl, Ortega, Kant, filosofia transcendental, reflexãoResumo
Em 1924, ano do bicentenário do nascimento de Kant, Edmund Husserl e Ortega y Gasset avaliam o significado e a importância da filosofia transcendental. Husserl fá-lo numa conferência intitulada “Kant e filosofia transcendental”, publicada apenas postumamente (com diversos acrescentos ao texto original) no volume VII da Husserliana; Ortega em dois artigos, intitulados “Reflexões do centenário” e “Filosofia pura: anexo ao meu folheto ‘Kant’”, agora disponíveis no volume III das Obras Completas. Se, no caso do primeiro autor, se pode falar de uma aproximação ao pensamento kantiano, já no caso do segundo se pode falar de um afastamento, sob a acusação de que a filosofia de Kant não é senão uma variante sofisticada do idealismo da modernidade. Neste sentido, revisitar o pensamento de Kant, para Ortega, significa o mesmo – como ele próprio ironicamente o diz – que ir ao jardim zoológico para ver a girafa. A questão, porém, é muito mais complexa. Tanto na aproximação husserliana como no afastamento orteguiano encontramos um mesmo problema, que ambos tentam resolver com o auxílio do pensamento do filósofo de Königsberg. Sinteticamente, podemos identificar tal problema como sendo o da subjectividade, problema que poderíamos também chamar “o enigma da intencionalidade”, ou o da relação do Eu com a sua circunstância. Ora, a partir daqui os dois autores parecem divergir. Pois se ambos concordam no diagnóstico das “falhas” de Kant, que encontram na sua incapacidade em constituir uma doutrina das faculdades liberta da psicologia empirista e associacionista, já, no que diz respeito à ultrapassagem desta falha, os caminhos que propõem não são coincidentes: 1) Husserl, por um lado, defende a necessidade da redução fenomenológica e, na base desta, de uma reflexão completa sobre os actos da consciência e as objectividades que, como seus correlatos, neles são constituídas; 2) Ortega, por outro, distancia-se do procedimento reflexivo (que encontra já em Kant, para mais tarde o detectar também em Husserl), considerando-o como uma perda da executividade dos actos intencionais que estabelecem a relação entre o Eu e a sua circunstância. Assim, se Husserl considera incompleta a reflexão kantiana sobre os actos, pois Kant adopta um procedimento regressivo que parte do facto do conhecimento mundano para as suas condições de possibilidade subjectivas, igualmente mundanas; Ortega pretende invalidar a legitimidade de qualquer procedimento reflexivo, pois tal procedimento transforma a consciência primária (a “consciência de...”) em objecto de uma consciência secundária que nunca restituirá a espontaneidade da primeira. Por detrás destas duas interpretações da filosofia de Kant e da divergência que, na base delas, existe entre Husserl e Ortega, encontramos duas questões que não perderam a sua actualidade: “quem sou eu?” e “que é o mundo para mim?”
Recebido / Received: 22 de abril de 2020 / 22 April 2020
Aceito / Accepted: 30 de abril de 2020 / 30 April 2020.