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ANALISANDO NARRATIVAS NA PESQUISA QUALITATIVA:
NOTAS SOBRE A UTILIZAÇÃO DE NARRATIVAS
AUTOBIOGRÁFICAS EM ESTUDOS DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E
HUMANAS
ANALIZANDO NARRATIVAS EN INVESTIGACIÓN CUALITATIVA:
NOTAS SOBRE EL USO DE NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS EN
ESTUDIOS DE CIENCIAS SOCIALES Y HUMANIDADES
ANALYZING NARRATIVES IN QUALITATIVE RESEARCH:
NOTES ON THE USE OF AUTOBIOGRAPHICAL NARRATIVES IN
STUDIES OF SOCIAL SCIENCES AND HUMANITIES
DOI:
https://doi.org/10.36311/1982-8004.2024.v17.e024007
Ensaio
Recebido: 07/03/2024
Aprovado: 02/05/2024
Publicado: 13/05/2024
_________________________________
Renan Vieira de Santana Rochaª
https://orcid.org/0000-0003-4981-2854
ª Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Santos, São Paulo, Brasil. E-mail:
renan.rocha@unifesp.br
ENSAIO
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Resumo: O presente ensaio teórico-metodológico, guiado a partir de uma revisão
narrativa da literatura científica, discute o uso de narrativas autobiográficas como fonte
de dados em pesquisas qualitativas das Ciências Sociais e Humanas. Destacando a
diversidade na pesquisa com narrativas, procura-se observar e enfatizar o quanto elas são
construções discursivas que reconstituem tempos e espaços históricos, variando de acordo
com diferentes escolas de pensamento. Assim, discute-se e destaca-se a relevância
contemporânea dos estudos sobre narrativas, em diálogo com um pot-pourri de autoras/es
que exploram esse método. Conclui-se que a pesquisa com narrativas, especialmente
quando autobiográficas, é considerada uma abordagem de fundamental importância na
compreensão da experiência humana e o método de Análise de Narrativas
Autobiográficas é apresentado, em especial, como uma abordagem escolhida para o
estudo em questão. Em suma, o estudo enfatiza a subjetividade nas narrativas em sua
dimensão sobremaneira coletiva, e reitera a importância de contextualizá-las nas
dinâmicas sociais, econômicas, políticas, históricas, culturais e ambientais.
Palavras-chave: Análise de Narrativas; Narrativas Autobiográficas; Pesquisa
Qualitativa; Ciências Sociais; Ciências Humanas.
Resumen: El presente ensayo teórico-metodológico, guiado a partir de una revisión
narrativa de la literatura científica, discute el uso de narrativas autobiográficas como
fuente de datos en investigaciones cualitativas de las Ciencias Sociales y Humanas.
Destacando la diversidad en la investigación con narrativas, se busca observar y enfatizar
cómo son construcciones discursivas que reconstruyen tiempos y espacios históricos,
variando según diferentes corrientes de pensamiento. Así, se discute y resalta la
relevancia contemporánea de los estudios sobre narrativas, en diálogo con una variedad
de autoras/es que exploran este método. Se concluye que la investigación con narrativas,
especialmente cuando son autobiográficas, se considera un enfoque de importancia
fundamental para comprender la experiencia humana; y se presenta el método de Análisis
de Narrativas Autobiográficas, especialmente como un enfoque elegido para el estudio
en cuestión. En resumen, el estudio enfatiza la subjetividad en las narrativas en su
dimensión colectiva significativa, y reafirma la importancia de contextualizarlas en las
dinámicas sociales, económicas, políticas, históricas, culturales y ambientales.
Palabras clave: Análisis narrativo; Narrativas autobiográficas; Investigación cualitativa;
Ciencias sociales; Humanidades.
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Abstract: The present theoretical-methodological essay, guided by a narrative review of
the scientific literature, discusses the use of autobiographical narratives as a data source
in qualitative research in the Social Sciences and Humanities. Highlighting the diversity
in narrative research, the aim is to observe and emphasize how they are discursive
constructions that reconstruct historical times and spaces, varying according to different
schools of thought. Thus, the contemporary relevance of narrative studies is discussed
and emphasized, in dialogue with a variety of authors who explore this method. It is
concluded that research with narratives, especially when autobiographical, is considered
an approach of fundamental importance in understanding human experience - and the
method of Autobiographical Narrative Analysis is presented, especially as an approach
chosen for the study in question. In summary, the study emphasizes the subjectivity in
narratives in their significantly collective dimension, and reaffirms the importance of
contextualizing them in social, economic, political, historical, cultural, and environmental
dynamics.
Keywords: Narrative Analysis; Autobiographical Narratives; Qualitative Research;
Social Sciences; Humanities.
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1. Introdução
A pesquisa com narrativas é diversa e, certamente, não produzida por uma única
voz, uma única forma de pensar e uma única forma de fazê-la acontecer (Jovchelovitch;
Bauer, 2002; Wittizorecki et al., 2006; Souza; Souza, 2007). É dotada de várias
possibilidades técnicas, éticas e interpretativas, a partir de diferentes escolas do
pensamento e aplicada em diferentes campos da produção do conhecimento
(Jovchelovitch; Bauer, 2002; Wittizorecki et al.; 2006; Souza; Souza, 2007; Lyra;
Ribeiro; DeConti, 2018).
Sobre elas, enquanto Jovchelovitch e Bauer (2002) nos dirão que “não
experiência humana que não possa ser expressa na forma de uma narrativa” (ibidem, p.
91), Wittizorecki e colaboradores (2006) nos dirão que “as narrativas são infinitas em sua
variedade, e nós as encontramos em todo o lugar” (ibidem, p. 10). E, enquanto estes
últimos dizem-nos também que “(...) de alguma forma narramos. Narramos fatos, feitos,
fenômenos. Narramos experiências, sentimentos, outras pessoas e nos narramos” (ibidem,
p. 10), sobre o seu estudo, Lyra, Ribeiro e DeConti (2018) nos afirmam que “as narrativas
são estudadas com diferentes propósitos, sendo concebidas de diferentes maneiras”
(ibidem, p. 01).
Talvez por tais reconhecimentos, a pesquisa com narrativas tem encontrado
terreno fértil na produção acadêmico-científica das últimas décadas. Escapando de
modelos mais estruturados de produção de dados em pesquisa, ela aponta para um
horizonte fundamentalmente dialógico e menos “encaixotado”, em que o “contar
histórias” constitui-se de possibilidade de revisitação da realidade (Jovchelovitch; Bauer,
2002; Wittizorecki et al.; 2006; Souza; Souza, 2007; Lyra; Ribeiro; DeConti, 2018). Nas
palavras de Wittizorecki e colaboradores (2006), esta forma de pesquisa, ao centralizar a
narração de histórias, se constituirá como o método “[...] que melhor se adapta à
compreensão da historicidade da experiência humana como uma ação contextualizada”
(ibidem, p. 26).
Outrossim, a título de problematização, avanços na pesquisa qualitativa com
narrativas têm sido substanciais, especialmente pela sua capacidade de proporcionar uma
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compreensão mais profunda e mais contextualizada da experiência humana
(Jovchelovitch; Bauer, 2002; Wittizorecki et al.; 2006; Souza; Souza, 2007; Lyra;
Ribeiro; DeConti, 2018). Esta abordagem teórico-metodológica, como veremos, em
sobrevoo, oferece uma plataforma técnica acurada para a análise detalhada das
complexidades subjetivas individuais e sociais que emergem da exploração de
narrativas. Além disso, os avanços na metodologia têm permitido uma compreensão
igualmente mais técnica e mais apuradas das “dinâmicas narrativas”, contribuindo para a
validade e, sobremodo, a confiabilidade dos resultados obtidos.
Contudo, apesar destes avanços notáveis, a pesquisa qualitativa com narrativas
não está isenta de limitações significativas que demandam de cuidadosas considerações
(Wittizorecki et al.; 2006; Souza; Souza, 2007; Lyra; Ribeiro; DeConti, 2018). Uma
preocupação central, a título de exemplo, reside na subjetividade inerente à interpretação
das narrativas, o que pode introduzir vieses de pesquisa e comprometer a (pretensa)
“objetividade” dos resultados. Além disso, a necessidade de proteger a confidencialidade
e o bem-estar dos participantes deste tipo de pesquisa é uma consideração fundamental,
especialmente em contextos em que a divulgação de informações sensíveis pode expor
indivíduos ao reconhecimento público de suas narrativas particulares.
Por tais premissas, consideramos que a pesquisa com narrativas em que se
destaquem as de tipo autobiográfico – podem revelar-se como importantes produções de
conhecimento acerca da experiência humana e, sobremodo, da própria história humana,
o que denota à Análise de Narrativas um reconhecido lugar entre os métodos que
utilizamos para pesquisar nas Ciências Sociais e Humanas
1
. Entretanto, a “Análise de
Narrativas” não se constitui como método uníssono; do contrário, ela é vista a partir de
diferentes prismas quanto aos seus saberes-fazeres e, por isso, apresentamos este ensaio
teórico-metodológico (Meneghetti, 2011).
A análise objetiva observar o uso de narrativas autobiográficas como fonte de
dados em pesquisas qualitativas, ao passo em que, para tal, apresentará leituras de
1
Muito embora a unidade das Ciências Sociais e Humanas seja problemática, tendo em vista ser este um campo bastante
heterogêneo, procuramos não necessariamente delimitar teórico-metodologicamente um subcampo em particular deste
campo de análise; precisamente por compreendermos que a reflexão teórico-metodológica aqui presente pretende
encontrar, na própria multiplicidade posta, caminhos comuns para a prática qualitativa em pesquisa em tal campo.
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diferentes autoras e autores, nacionais e internacionais, quanto a tal objeto. Deste modo,
pretendemos (re)afirmar a Análise de Narrativas como uma rica possibilidade teórico-
metodológica para pesquisar nas Ciências Sociais e Humanas, e, ao cabo, dialogar acerca
das narrativas a partir das leituras da Análise de Narrativas Autobiográficas, que fora
escolhida dentre o leque da Análise de Narrativas, como exemplo, para o estudo em
questão
2
.
Isto dito, passemos, então, ao diálogo proposto.
2. Notas Gerais sobre Narrativas em Ciências Sociais e Humanas
Registros históricos irão nos apontar que entre os primeiros teóricos a desenvolver
estudos sobre as narrativas em nossa sociedade, encontra-se o filósofo russo Mikhail
Bakhtin (Bakhtin, 2008; Machado, 1998; Germano; Bessa, 2010). Bakhtin desenvolveu
grande parte de seus estudos perscrutando a linguagem humana, compreendendo esta
como uma construção marcada pelo dialogismo (Bakhtin, 2008; Germano; Bessa, 2010).
Em outras palavras, na perspectiva do filósofo, o princípio dialógico, constituinte basilar
da linguagem humana, se pelo desenvolvimento da palavra, e de tudo o que ela
representa, no laço comunicacional; assim: “(...) a palavra é uma espécie de ponte lançada
entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra, apoia-se
sobre meu interlocutor” (Bakhtin, 2008, p. 113).
No transcorrer de seus estudos, Bakhtin chegará à conclusão de que a linguagem
é condição fundamental para o desenvolvimento da humanidade, e que o seu estudo pode
ser uma forma bastante significativa de compreensão sobre como se conforma a própria
2
Em tempo, na condição de um ensaio teórico-metodológico, as referências utilizadas foram selecionadas a partir de
um modelo inspirado no de revisão narrativa, em que, nas palavras de Rother (2007): “Os artigos de revisão narrativa
são publicações amplas, apropriadas para descrever e discutir o desenvolvimento ou o ‘estado da arte’ de um
determinado assunto, sob ponto de vista teórico ou contextual” (p. 05). Em outras palavras: “As revisões narrativas não
informam as fontes de informação utilizadas, a metodologia para busca das referências, nem os critérios utilizados na
avaliação e seleção dos trabalhos” (p. 05), na medida em que elas se constituem, basicamente, de uma “(...) análise da
literatura publicada em livros, artigos de revista impressas e/ou eletrônicas na interpretação e análise crítica pessoal do
autor” (p. 05, grifo nosso). A seleção de textos por via de um modelo de revisão narrativa, outrossim, serve muito bem
à fundamentação de um ensaio teórico-metodológico, na medida em que, como nos diz Meneghetti (2011): “Diferente
do método tradicional da ciência, em que a forma é considerada mais importante que o conteúdo, o ensaio requer
sujeitos, ensaísta e leitor, capazes de avaliarem que a compreensão da realidade também ocorre de outras formas.” (p.
321).
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realidade, compreendendo que esta é, também, fruto das relações (dialógicas) humanas
(Bakhtin, 2008; Machado, 1998; Germano; Bessa, 2010).
Em Bakhtin (2008), narrativas, por sua vez, enquanto reconstituições de
experiências humanas, narradas a partir da linguagem, podem configurar-se como estratos
bastante representativos dos contextos sociais, econômicos, políticos, históricos, culturais
e ambientais em que se encontram inseridas, em que um ser humano, ao deparar-se com
a narração de outro, “(...) nunca encontra previamente a palavra neutra da língua, isenta
das aspirações e avaliações de outros ou despovoada das vozes dos outros.
Absolutamente. A palavra, ele a recebe da voz de outro e repleta de voz de outro”
(Bakhtin, 2008, p. 232).
De contribuição também bastante relevante ao pensamento europeu sobre as
narrativas, encontraremos os estudos do filósofo francês Paul Ricoeur (Silva; Nahur,
2020). Nas palavras do filósofo, em uma de suas obras mais consagradas, “a vida tem a
ver com a narração” (Ricoeur, 2010, p. 197). Se assim o é, Ricoeur afirma que os seres
humanos exprimem no texto (enquanto mimetismo de narrativas) um esforço de fazer
valer a sua existência, existência esta que pode perpetuar-se na medida em que, pelo texto,
autor e leitor se encontram, quase que (com ressalvas) atemporalmente. Logo, um autor,
ao escrever sobre sua experiência, sua época, sua cultura, opera uma “apropriação de
nosso esforço de existir e de nosso desejo de ser através das obras que testemunham esse
esforço e esse desejo” (Ricoeur, 1989, p. 21).
Em franco diálogo com perspectivas fenomenológico-existenciais, Ricoeur
defenderá que o texto é, à vista disso, uma forma de “permanecer existindo”, que acaba
constituindo uma representação simbólica acessível a outras pessoas que leiam o texto
em momentos outros, mediando, histórica e culturalmente, uma possibilidade de
“compreensão à distância” (ibidem, p. 123) acerca de determinado contexto, e que é capaz
de ultrapassar a própria existência de seu autor.
Com efeito:
O texto, como uma composição literária, escapa da referência imediata,
distancia-se da linguagem cotidiana e introduz através da ficção novas
possibilidades de ser-no-mundo. (...) O mundo do texto, através de sua
configuração, cria um mundo de significações que nasceram de uma cultura,
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de uma história e de um conjunto de vivências e, além disso, ele é autônomo,
independente do seu autor (ibidem, p. 184).
Em diálogo com estes autores de base (mas não apenas com eles), diferentes
escolas de pensamento contemporâneo sobre as narrativas e as possibilidades de seus usos
em pesquisas surgirão, destacando-se, neste cenário, as produções que derivam do
continente europeu
3
, e de campos do conhecimento correlacionados à Filosofia, à
Psicologia e às demais Ciências Sociais e Humanas inclusive em interfaces com
diferentes pautas de Direitos Humanos.
No âmbito dos estudos contemporâneos em Psicologia, Ciências Sociais, Letras,
Literatura, Gênero e Feminismo, por exemplo, veremos significativos aportes a partir de
pesquisadoras como Molly Andrews, Corinne Squire e Maria Tamboukou autoras que
se destacam pela publicação de obras como Doing Narrative Research (2008)
4
e de
pesquisadores como Jens Brockmeier e Kenneth Plummer autores que, por sua vez, se
destacam pela publicação de obras como Between Life and Story: Possibilities and Limits
of the Psychological Study of Life Narratives (1999)
5
e Narrative Power: The Struggle
for Human Value (2019)
6
, respectivamente.
Veremos, da leitura de Andrews, Squire e Tamboukou (2008), que as pesquisas
narrativas se expandiram consideravelmente nas Ciências Sociais e Humanas ao longo
das últimas décadas, possivelmente pela riqueza que estas possibilitam quanto à
compreensão da complexidade discursiva que nos relatos narrativos ainda que esta
mesma riqueza não revele, sobremaneira, uma coesão ou visão única sobre o uso de
narrativas em pesquisas, haja posta uma ampla gama de definições possíveis para o
vocábulo “narrativa”.
Reconhecendo a diversidade que pode haver nesta definição, Squire (2014), em
particular, dirá, então, que, em sendo as narrativas “[...] uma cadeia de signos com
3
É mister ressaltar que a produção bibliográfica sobre pesquisas com narrativas não é algo restrito ao contexto europeu.
No contexto estadunidense, p. ex., veremos que as contribuições de Catherine Kohler Riessman (1993) são de notório
reconhecimento. Entretanto, e a despeito disto, pela amplitude dos estudos desenvolvidos no continente europeu acerca
deste método, e especificamente acerca deste quesito, privilegiaremos a análise a partir deste lócus de produção de
conhecimento.
4
Fazendo Pesquisa Narrativa, em tradução livre.
5
Vida e História: Possibilidades e Limites do Estudo Psicológico de Narrativas de Vida, em tradução livre.
6
Poder Narrativo: A Luta pelo Valor Humano, em tradução livre.
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sentidos sociais, culturais e/ou históricos particulares, e não gerais” (ibidem, p. 273),
devemos cuidar para não reduzi-las a teorias ou representações totalitárias da realidade
que elas historicizam, mas que podemos apreendê-las como “[...] conjuntos de signos que
se movimentam temporalmente, causalmente ou de alguma outra forma
socioculturalmente reconhecível” (ibidem, p. 273) e que, nesta movimentação, estas
podem, sob um olhar ético do pesquisador, representar um tempo e um espaço vividos
por um sujeito ou mais sujeitos, de maneira a que este(s) possa(m) dizer algo
suficientemente válido sobre tal.
Esta ressalva final de Squire (2014) nos transporta, imediatamente, para uma
síntese compreensiva, que é: a pesquisa com narrativas pode, então, colaborar diretamente
na reconstituição de realidades temporal e especialmente localizadas, mas com a máxima
cautela de não assumirmos experiências particulares como amálgamas absolutamente
generalizáveis. Este ímpeto de ressalvar, por conseguinte, será acompanhado por um
ímpeto igualmente poderoso de avançar, que é, ao mesmo tempo, rico e cauteloso, e que
encontra coro entre os pesquisadores brasileiros, a exemplo de Castellanos (2014) e
Onocko-Campos e colaboradores (2013). É isto o que veremos a seguir.
3. Notas Particulares sobre Narrativas no Cenário de Pesquisas Brasileiras
Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos (2014), professor e pesquisador da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), é quem definirá as narrativas como formas de
“estabelecimento do sentido de ser-no-mundo, na medida em que situa[m] os eventos e
as ações em ‘dramas' instituídos na ordem temporal do vivido” (ibidem, p. 1071). Ao
fazê-lo, o autor novamente nos aproxima das perspectivas fenomenológico-existenciais
sobre as narrativas, e leva-nos à conclusão de que estas podem ser, em seu desfecho,
suficientes “modos de elaboração da experiência social” (ibidem, p. 1071). Se assim as
compreendermos, reforça-se o argumento que vai começando a se apresentar a partir das
diferentes autoras e autores aqui em diálogo: as narrativas podem ser estratos de uma
realidade, têmporo-espacialmente localizada, que, aos olhos e representações de um
determinado sujeito, nos sejam fontes de dados razoáveis e hábeis para fins de pesquisa.
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Por sua parte, no campo da saúde, Rosana Onocko-Campos, pesquisadora e
professora da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), corroborará com os
entendimentos apresentados de Andrews, Squire e Tamboukou (2008) e Castellanos
(2014). Ela, em estudo com colaboradores da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), nos sinaliza que o
uso de abordagens narrativas em pesquisas de cunho qualitativo, no campo da Saúde
Coletiva e das Ciências Sociais em Saúde, em suas mais diferentes escolas, tem se
mostrado cada vez mais frequente nos estudos acadêmico-científicos, inclusive no Brasil,
especialmente aqueles voltados a compreender diferentes experiências e diferentes pontos
de vista de sujeitos sobre determinados processos que envolvem saúde e adoecimento(s),
utilizando-se destas compreensões para a leitura de uma realidade social, sempre temporal
e espacialmente localizada (Onocko-Campos et al., 2013).
Mais ainda, dizem-nos que:
Alguns estudos defendem a narrativa como uma ferramenta essencial na
construção de significados para a existência humana e demonstram a
importância do seu uso como forma de descrever experiências vividas,
especialmente em relação ao adoecimento. Também apontam a narrativa como
possibilidade de ampliação da prática clínica, discutem diferentes abordagens
e estruturas narrativas e enfatizam sua utilização no âmbito de pesquisas
qualitativas (Onocko-Campos et al., 2013, p. 2848).
Discutindo três modelos metodológicos e epistemológicos possíveis para a
realização de pesquisas com narrativas na área da saúde a partir das propostas de Paul
Ricoeur (já supracitado), Walter Benjamim e da Antropologia Médica nos dizem os
autores que, em Saúde Coletiva e nas Ciências Sociais em Saúde, o estudo das práticas
profissionais têm se mostrado um “campo fértil e instigante”, destacando as possíveis
contribuições das pesquisas com narrativas, destacadamente para o campo da Saúde
Mental. Afirmam a potência que a narração de histórias pode trazer para uma reflexão
práxica sobre estas práticas profissionais, tanto do lugar de quem as maneja (no caso, as
trabalhadoras e trabalhadores dos serviços de Saúde Mental), quanto do lugar de
sujeitos/usuárias(os) a quem tais práticas se direcionam (Onocko-Campos et al., 2013).
Onocko-Campos e colaboradores (2013) tentam nos sinalizar, a partir de sua
leitura, que o contar de histórias do vivido nos serviços de Saúde Mental pode ser material
deveras significativo para pensarmos a historicidade de nossas práticas, desenhando, nas
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experiências a priori individuais, leituras que revelam, também, vislumbres
macroscópicos, já que uma experiência, via de regra, não reflete tão somente uma leitura
individual ou individualizante, mas a expressão subjetiva e coletiva de um espaço e de
um tempo em que tal experiência se sucedeu, com seus vieses subjetivos, é óbvio, mas
também sociais, econômicos, políticos, históricos, culturais e ambientais.
Sobre tal, afirmam os autores que um conhecimento produzido nestes moldes tem
condições de surgir e fazer-se acessível de um modo:
[...] compromissado, tanto com as experiências encarnadas e em primeira
pessoa (intransferíveis, portanto) como ocorre quando queremos saber como
foi viver determinada forma de adoecer, os percursos dos pacientes e suas
percepções , quanto com a importância e a necessidade de sua
‘traducibilidade’ para o campo das políticas e das práticas, no sentido de
contribuir para formar serviços mais porosos e plásticos às necessidades dos
usuários e que incorporem construtivamente as experiências e os aprendizados
de seus trabalhadores (Onocko-Campos et al., 2013, p. 2855).
Um exemplo mais palpável do que Onocko-Campos e colaboradores (2013) tem
argumentado pode ser visualizado, ainda, a partir do estudo intitulado Saúde Mental e
Racismo à Brasileira: Narrativas de Trabalhadoras e Trabalhadores da Atenção
Psicossocial, de Rocha, Torrenté e Coelho (2021), pesquisadores da Universidade
Federal da Bahia (UFBA).
Neste estudo, operacionalizado a partir da realização de entrevistas narrativas com
trabalhadoras e trabalhadores de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) em
Salvador/BA, devidamente analisadas a partir do escopo da Análise de Narrativas
Autobiográficas de Fritz Schütze (Schütze, 1976; 2014; Jovchelovitch; Bauer, 2002), os
autores nos apresentam uma análise detalhada das intersecções entre loucura e racismo
no contexto do trabalho em Saúde Mental no estado da Bahia.
Por meio das narrativas coletadas junto aos profissionais em questão, vão se
destacando as experiências vividas por estas trabalhadoras e trabalhadores em suas
práticas, e os impactos que estas mesmas práticas profissionais terminam por ocasionar
na vivência de cuidado das usuárias e usuários destes serviços, revelando os desafios
encarados no próprio enfrentamento do racismo estrutural no campo das políticas
públicas de Saúde Mental.
Nas palavras dos autores:
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[...] o que constatamos é que o fenômeno do racismo não é uma questão que
passa incólume ante os discursos (ou narrativas) apresentados pelas
trabalhadoras e trabalhadores entrevistados em nosso serviço selecionado o
que nos permite pensar que, talvez, não seja, então, uma questão de todo
desconhecida às/aos profissionais atuantes na Saúde Pública local. De maneira
geral, as narrativas apresentadas compreendem que é à negra e ao negro (ou
aos não-brancos) que se voltam os maiores efeitos prejudiciais da manifestação
e/ou da manutenção desse fenômeno social no âmbito das relações cotidianas,
embora apontem ser muito difícil esquadrinhar e identificar os tempos e os
espaços em que tais efeitos se fazem valer (ROCHA; TORRENTÉ; COELHO,
2021, p. 158).
Rocha, Torrenté e Coelho (2021) compreendem, dessarte, que o estudo das
narrativas no contexto supracitado acabou por permitir um acesso mais profundo às
vivências destas trabalhadoras e trabalhadores, na medida em que, de forma simples, o
esforço de conceituar o racismo poderia esconder os “racismos cotidianos” que a narração
de histórias não permite esconder. Então, de forma bastante interessante a este nosso
estudo, concluem que:
[...] a Análise de Narrativas como vimos, pressupõe que uma narração não
se trata apenas de uma descrição de elementos vividos, mas sim de uma
tentativa de reconstituição discursiva da realidade. Portanto, a narração destes
casos pressupõe que os sujeitos informantes destes reconhecem nestas
experiências narradas elementos fortes o suficiente para caracterizar a
realidade a partir destas [mesmas] narrações (ibidem, p. 149).
Postas afirmações e exemplificações tão significativas, cremos ser possível
reconhecer a validade do(s) método(s) de Análise de Narrativas como fonte de produção
de dados na área da saúde no Brasil, e mais particularmente no campo da Saúde Coletiva
e das Ciências Sociais em Saúde exemplo que, aqui, escolhemos, mas que bem
metaforiza as contribuições da Análise de Narrativas a tantos outros campos do
conhecimento para além da saúde, quanto possíveis em nosso país.
Tendo isto dito, como dissemos, a pesquisa com narrativas é diversa, e se
apresenta a partir de diferentes formas, inclusive na ideia do que são e de como se
apresentam as próprias narrativas. Deste modo, em nossas pesquisas, selecionar uma
perspectiva teórico-metodológica é fundamental, para que não incorramos em uma matriz
ampla demais, ou em uma pulverização da leitura sobre narrativas. Reconhecendo, assim,
que qualquer reducionismo seria por demais empobrecedor, queremos propor, de forma
exemplificativa, uma breve análise sobre as narrativas a partir de um dos métodos
possíveis que se incorpora ao que chamamos por Análise de Narrativas: a Análise de
Narrativas Autobiográficas. Vide a seguir.
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4. Notas Específicas sobre a Análise de Narrativas Autobiográficas
Dentre as possibilidades metodológicas internas à Análise de Narrativas, em sua
leitura mais ampla, vemos um terreno “fértil e instigante” para compreender o uso de
narrativas em pesquisas qualitativas na chamada Análise de Narrativas Autobiográficas
(Schütze, 1976; 2014; Jovchelovitch; Bauer, 2002; Abrahão, 2003; Wittizorecki et al.,
2006; Freitas; Galvão, 2007; Brockmeier, 2015; Passeggi; Nascimento; Oliveira, 2016;
Fernandes et al., 2017; Lyra; Ribeiro; DeConti, 2018; Ventura; Cruz, 2019).
Narrativas autobiográficas, nas palavras de Passeggi, Nascimento e Oliveira
(2016), “[...] constituem, quase um século, fontes privilegiadas no campo epistêmico
da pesquisa qualitativa interpretativista” (ibidem, p. 113), e constituem-se, por definição,
em uma atividade de reflexividade autobiográfica, que é, em verdade, “uma disposição
humana para refletir sobre si e as experiências vividas” (ibidem, p. 114).
Esta reflexividade autobiográfica depende da memória daquela ou daquele que
narra, ao pesquisador, determinada história, sendo esta mesma memória fruto da
subjetividade da narradora ou do narrador, mas também produto co-construído nas
dinâmicas e nas contradições das relações sociais, econômicas, políticas, históricas,
culturais e ambientais (Abrahão, 2003; Brockmeier, 2015; Passeggi; Nascimento;
Oliveira, 2016). Logo, ao tomar narrativas autobiográficas como objetos de pesquisa,
temos a ciência de que o trabalho incide sobre a memória. Nas diferentes correntes da
pesquisa com narrativas, memória pode dar lugar a outros construtos conceituais que, ao
cabo, giram em torno da mesma coisa: a capacidade de representação e/ou simbolização
da realidade, enquanto coletividade, para cada sujeito.
Vejamos isto a partir dos estudos de Maria Helena Menna Barreto Abrahão
(2003), pesquisadora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e da Universidad
Nacional de Rosario (UNR, na Argentina):
A pesquisa autobiográfica histórias de vida, biografias, autobiografias,
memoriais não obstante se utilize de diversas fontes, tais como narrativas,
história oral, fotos, vídeos, filmes, diários, documentos em geral, reconhece-se
dependente da memória. Esta é o componente essencial na característica do(a)
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narrador(a) com que o pesquisador trabalha para poder (re)construir elementos
de análise que possam auxiliá-lo na compreensão de determinado objeto de
estudo (ibidem, p. 80).
Avançando nesta leitura, Abrahão (2003) nos diz que, ao trabalhar com
metodologias e fontes autobiográficas, o pesquisador “conscientemente adota uma
tradição em pesquisa que reconhece ser a realidade social multifacetária” (ibidem, p. 80);
ou seja, como temos argumentado para as narrativas, a realidade que as autobiografias
descrevem não pode ser tomada como síntese de extratos individuais ou personalíssimos,
mas sim como representações socialmente construídas por seres humanos, “que
vivenciam a experiência de modo holístico e integrado, em que as pessoas estão em
constante processo de autoconhecimento” (ibidem, p. 80).
Desta forma, o pesquisador que trabalha com narrativas autobiográficas, ao
reconhecer que trabalha com a subjetividade – da narradora ou do narrador, da sociedade
que circunscreve a esta ou a este e a sua própria “não pretende estabelecer
generalizações estatísticas, mas, sim, compreender o fenômeno em estudo, o que lhe pode
até permitir uma generalização analítica” (ibidem, p. 80), na medida em que, com
ressalvas, “as narrativas permitem, dependendo do modo como nos são relatadas,
universalizar as experiências vividas nas trajetórias de nossos informantes” (ibidem, p.
81).
Longe de afirmar, deste ponto em diante, que toda narrativa autobiográfica
permitirá proferir generalidades analíticas sobre a realidade que descreve, é importante
evidenciar também os prós e os contras de seu uso em pesquisa. Convém, então,
reproduzir as quatro proposições clássicas de Jovchelovitch e Bauer (2002),
pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que, alicerçados
na leitura do sociólogo alemão Fritz Schütze (1976; 2014) sobre o uso de narrativas
autobiográficas em pesquisas, nos dizem o que seguirá sinterizado no quadro a seguir:
Quadro 01: Proposições Clássicas sobre o Uso de Narrativas Autobiográficas em
Pesquisas (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002).
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As narrativas privilegiam a realidade do que é experienciado pelos contadores de
história: a realidade de uma narrativa refere-se ao que é real para o contador de história.
As narrativas não copiam a realidade do mundo fora delas: elas propõem
representações/interpretações particulares do mundo, mas numa mediação indivíduo-
coletividade.
As narrativas não estão abertas à comprovação e não podem ser simplesmente julgadas
como verdadeiras ou falsas: elas expressam a verdade de um ponto de vista, de uma
situação específica no tempo e no espaço.
As narrativas estão sempre inseridas no contexto sócio-histórico: uma voz específica
em uma narrativa somente pode ser compreendida em relação a um contexto mais
amplo: nenhuma narrativa pode ser formulada sem tal sistema de referentes.
Fonte: Elaboração dos autores, 2024.
Tais cautelas, evidenciadas por Jovchelovitch e Bauer (2002), não devem, de outro
modo, servir para nós como desabonadoras da potência das narrativas autobiográficas na
representação da realidade; mas sim, servem-nos como um alerta de que estas narrativas
devem sempre ser tomadas como a leitura de um sujeito sobre uma determinada realidade
ou fato; sujeito que é, ao mesmo tempo individual e social. Eis a importância de
correlacionar, portanto, as narrativas em análise, sempre com: elementos outros que se
evidenciam no campo de estudos em que nos inserimos; na produção dos pares que
constroem, conosco, o conhecimento nestes mesmos campos; e no próprio
reconhecimento do tempo e do espaço históricos que estamos a ler a partir de determinada
narrativa autobiográfica.
Ou seja: a narrativa, quando sozinha, perde força analítica; mas a narrativa,
sobremodo a autobiográfica, quando contextualizada com as dinâmicas e as contradições
das relações sociais, econômicas, políticas, históricas, culturais e ambientais, bem
localizadas têmporo-espacialmente, e quando em relação com o conhecimento produzido
até então sobre aquilo a que ela se propõe a narrar, e, se possível, em diálogo com outras
formas de narração dentre as quais incluamos a “narração acadêmico-científica”, por
assim dizer se fortalece e melhor exemplifica, quando não metaforiza, aquilo que
conceitualmente desenhamos e desejamos, a partir dela, compreender.
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Estas ressalvas, todavia, podem erigir ante a nós um questionamento sobre o
porquê de sua utilização em pesquisas, já que tão dotadas de subjetividade. Questionam-
se, por exemplo, Ventura e Cruz (2019):
Pesquisadores narrativos amontoam linguagens, sobrecodificam e são
atravessados pelas histórias que lhes são narradas. Mas se o caso é assim tão
subjetivo e cheio de possíveis erros de paralaxes instrumentais e psicológicos,
por que ainda nos mantemos nesta empreitada indefinida? (ibidem, p. 444).
A resposta a este questionamento se precisamente naquilo que motiva o seu
soerguimento: a subjetividade. Subjetividade não é e nem pode ser tomada como mera
representação personalista ou individualizante dos sujeitos; ela é, antes disso, construto
mediado pelo ser humano com as dinâmicas e as contradições das relações sociais,
econômicas, políticas, históricas, culturais e ambientais em que se encontra inserido
(Abrahão, 2003; Brockmeier, 2015; Passeggi; Nascimento; Oliveira, 2016). Se assim o é,
ter a subjetividade como objeto de nossa análise, expressa na produção de narrativas
autobiográficas, e contextualizada com os elementos teórico-conceituais do campo em
que o pesquisador adentra, revelar-se-á, em verdade, em riqueza de sentidos e significados
sobre a sociedade, o tempo e o espaço – objetos de nossa análise – que o ato da pesquisa
poderá eliciar e produzir
7
.
Vejamos isto, desta feita e uma vez mais, pela análise de Jovchelovitch e Bauer
(2002):
[...] para o pesquisador social um ouvinte e um observador a história possui
sempre dois lados. Ela tanto representa o indivíduo (ou uma coletividade),
como se refere ao mundo além do indivíduo. Assim como precisamos ter muita
sensibilidade para perceber as imaginações e distorções que configuram toda
narrativa humana, precisamos também prestar atenção à materialidade de um
mundo de histórias (ibidem, p. 110).
Por tudo isto, pondera-se a força e a representatividade que narrativas
autobiográficas, enquanto “histórias sobre um e sobre todos”, podem acrescentar à
pesquisa qualitativa em diferentes áreas, para a leitura desta “materialidade de um mundo
de histórias”.
7
Importante notar, adicionalmente, que quando estas narrativas se encontram produzidas na literatura, como nos
casos em que se trabalha com narrativas autobiográficas em formato de dados secundários, o registro é, ainda, da maior
segurança no trabalho com esses dados por parte da maioria dos pesquisadores deste método, ratificando “(...) a
importância das narrativas autobiográficas como fontes privilegiadas da pesquisa qualitativa face às inquietações com
o rigor científico e a ética em pesquisa” (Passeggi; Nascimento; Oliveira, 2016, p. 121).
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5. Considerações Finais
A pesquisa com narrativas, especialmente as de caráter autobiográfico, destaca-se
como uma abordagem rica e complexa nas Ciências Sociais e Humanas, permitindo uma
compreensão aprofundada da experiência humana. Neste ensaio teórico-metodológico,
como em uma espécie de pot-pourri científico-literário, exploramos diversas
perspectivas, desde a visão de Bakhtin sobre a linguagem como construção dialógica até
as contribuições contemporâneas de pesquisadores como Molly Andrews, Corinne Squire
e Maria Tamboukou.
A diversidade de abordagens e escolas de pensamento sobre as narrativas reflete
a complexidade inerente à pesquisa nesse campo. A Análise de Narrativas, longe de ser
um método uníssono, oferece uma abordagem dialógica e não estruturada, permitindo
uma compreensão mais profunda da historicidade da experiência humana. As narrativas,
como pontes entre o indivíduo e a coletividade, revelam-se como ferramentas poderosas
para a análise da realidade social, econômica, política, histórica, cultural e ambiental.
Ao discutir a relevância das narrativas autobiográficas, destacamos a importância
da reflexividade autobiográfica na construção de leituras subjetivas sobre a realidade,
leituras estas, por sua vez, que estão em uma incessante mediação indivíduo-coletividade.
Reconhecemos, logo, a subjetividade inerente a essas narrativas, mas ressaltamos que
essa subjetividade é mediada pelas dinâmicas sociais. Assim, as narrativas
autobiográficas não pretendem ser ou verdades objetivas ou opiniões personalíssimas,
mas sim representar interpretações particulares do mundo, enraizadas na experiência
vivida que é, em primeira e última instância, e o diremos mais uma vez, individual e
coletiva.
A análise de Jovchelovitch e Bauer (2002), derradeiramente, nos lembra que as
narrativas têm dois lados, representando tanto o indivíduo quanto o mundo além dele. A
força analítica das narrativas autobiográficas reside, por corolário, na sua
contextualização, na interação com outros tipos de narrativas (inclusive as acadêmico-
científicas) e na mediação entre a subjetividade do narrador e a realidade social vista em
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sua perspectiva o mais ampla possível sendo, tudo isto, elementos que, por corolário,
cremos bem exemplificados a partir do estudo apresentado de Rocha, Torrenté e Coelho
(2021).
Por fim, e em última análise, vale recordar que este ensaio buscou reafirmar a
Análise de Narrativas, especialmente a Análise de Narrativas Autobiográficas, como uma
valiosa ferramenta teórico-metodológica para a pesquisa nas Ciências Sociais e Humanas.
Reconhecemos, assim, as nuances, as complexidades e os desafios associados a essa
abordagem, mas acreditamos que, quando utilizada de maneira reflexiva e
contextualizada, a Análise de Narrativas (Autobiográficas) pode oferecer insights
significativos e enriquecedores sobre a complexidade da experiência humana e sua
inscrição na história, na cultura e na sociedade o que quiçá se ampliará, enquanto
constatação, a partir da continuidade e do crescimento das pesquisas neste escopo teórico-
metodológico, ao longo dos próximos anos. Ao menos, assim o desejamos. Quiçá.
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NOTAS
Contribuição de Autoria: Renan Vieira de Santana Rocha é responsável concepção e
elaboração do manuscrito, coleta e análise de dados, discussão dos resultados, revisão,
correções e aprovação da versão final do manuscrito.
Agradecimentos: Não se aplica.
Financiamento: Não se aplica.
Comitê de ética em Pesquisa: Pesquisa bibliográfica, sem atuação com seres humanos.
Disponibilidade de Dados e Material: Sim, como hiperlinks, no próprio estudo.
Conflitos de Interesse: Não há conflitos de interesse.
Uso de Inteligência Artificial (IA): Não houve uso de Inteligência Artificial no processo
de escrita deste trabalho.
Publisher: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília. Programa de Pós-Graduação Ciências
Sociais. Portal de Periódicos da UNESP. As ideias expressadas neste ensaio são de
responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos
editores ou da universidade.
Como citar este ensaio: ROCHA, Renan Vieira de Santana. Analisando narrativas na
pesquisa qualitativa: notas sobre a utilização de narrativas autobiográficas em estudos das
ciências sociais e humanas. Revista Aurora, [S. l.], v. 17, p. e024007, 2024. DOI:
10.36311/1982-8004.2024.v17.e024007