SEÇÃO DOSSIÊ
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O PRINCIPE METAVERSO E A RAZÃO: EMANCIPAÇÃO EM
TEMPOS DE BARBÁRIE
Marcelo Lira Silva
1
RESUMO:
O trabalho em questão apresentou as imagens e representações construídas pelas questões fáusticas de
Goethe, para pensar a atualidade da teoria social de Antonio Gramsci (1891-1937), particularmente naquilo
que diz respeito às articulações conceituais de Moderno Príncipe, Hegemonia e Intelectuais. Assim,
apresentou-se a representação do Príncipe Metaverso, em um diálogo com Octavio Ianni (1926-2004), para
articular as questões de Gramsci ao debate sobre teoria da modernidade e processos reificados, a partir dos
quais técnica e ciência são retiradas do campo da emancipação e direcionadas a construção de uma
complexa ideologia burguesa. Nesse sentido, apresenta-se a mediação construída por Benjamin, na qual O
Príncipe apresenta-se como representação da melancolia fáustica e prometeica, ou seja, como símbolo e
representação da história moderna (p.165, 1984).
PALAVRAS-CHAVE: Príncipe Metaverso Razão Instrumental Emancipação.
ABSTRACT:
The work in question presented the images and representations constructed by Goethe's Faustian questions,
in order to reflect on the actuality of Antonio Gramsci's (1891-1937) social theory, particularly with regard
to the conceptual articulations of the Modern Prince, Hegemony and Intellectuals. Thus, the representation
of the Metaverse Prince is presented, in a dialogue with Octavio Ianni (1926-2004), to articulate Gramsci's
questions to the debate on the theory of modernity and reified processes, from which technique and science
are taken from the field. of emancipation and directed to the construction of a complex bourgeois ideology.
In this sense, the mediation constructed by Benjamin is presented, in which The Prince presents himself as
a representation of Faustian and Promethean melancholy, that is, as a symbol and representation of modern
history (p.165, 1984).
KEYWORDS: Prince Metaverse Instrumental Reason Emancipation.
RESUMEN:
La obra en cuestión presentó las imágenes y representaciones construidas a partir de las preguntas fáusticas
de Goethe, para reflexionar sobre la actualidad de la teoría social de Antonio Gramsci (1891-1937),
particularmente en lo que se refiere a las articulaciones conceptuales del Príncipe Moderno, la Hegemonía
y los Intelectuales. Así, se presenla representación del Príncipe del Metaverso, en diálogo con Octavio
Ianni (1926-2004), para articular los interrogantes de Gramsci al debate sobre la teoría de la modernidad y
los procesos cosificados, a partir de los cuales se toma la técnica y la ciencia del campo. de emancipación
y dirigida a la construcción de un complejo ideario burgués. En ese sentido, se presenta la mediación
construida por Benjamin, en la que El Príncipe se presenta como representación de la melancolía fáustica
y prometeica, es decir, como símbolo y representación de la historia moderna (p. 165, 1984).
PALABRAS-CLAVE: Príncipe Metaverso Razón Instrumental Emancipación.
1
Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), Campus Goiânia.
Goiânia, Goiás, Brasil. E-mail: marcelo.silva@ifg.edu.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3457-0864
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Talvez o que melhor caracterize a natureza da revolução cultural burguesa do
século XVIII seja o fato de ela, na obra do maior poeta da época, tomar corpo
na figura de um diabo, que, na condição de Satã, usufrui da liberdade de ‘dizer
as coisas como elas são’. O diabo é o primeiro realista pós-cristão; sua
liberdade de expressão parece ainda infernal aos contemporâneos mais
idosos. Quando o diabo abre a boca para dizer a quantas anda de fato o
mundo, a velha metafísica cristã, a teologia e a moral feudal são varridas. E
se lhe subtraímos os chifres e as patas, de Mefistófeles não sobra nada além
de um filósofo burguês: realista, antimetafísico, empirista, positivista.
(SLOTERDIJK, 2012, p. 244).
INTRODUÇÃO
No início era o verbo ou a ação? O debate sobre a teoria da modernidade continua
ocupando centralidade no século XXI, apesar da difusão generalizada de vias e vertentes
irracionalistas de diversas matizes. Pode-se dizer que Fausto
2
de Johann Wolfgang von
Goethe (1749-1832) apresentou a humanidade os elementos estruturais de um modo de
vida partejado e difundido pela cultura do capital, sob a forma e conteúdo do espírito
prático burguês que se universalizou. Trata-se de uma leitura na qual a modernidade é
apresentada como tragédia, permeada pelas questões fundamentais do novo ser social:
ciência, técnica, religião, política, economia, cultura... constituem-se em unidade
contraditória, a partir da qual compõe-se a tragédia da modernidade. O indivíduo e sua
existência em-si-mesmada que se manifesta na relação social complexa entre o mundo
interior e o mundo exterior. Assim, o pacto mefistofélico medeia a relação contraditória
entre indivíduo e sociedade, na qual Mefistófeles emerge como símbolo inaugural da
modernidade e Fausto como representação do indivíduo cindido e fragmentado
3
, incapaz
de reconciliar-se com o mundo, ao mesmo tempo, o pacto apresenta a emergência de uma
questão central da modernidade: a natureza da cnica e da ciência, bem como o papel
dos intelectuais, ou seja, a tragédia da razão. A aposta entre deus e o diabo, como
representação folclórica presente em diversas culturas, apresenta-se sob a forma e o
conteúdo da figura de despojado de tudo, todavia, secularizada e desencantada como
Fausto presenteado abundantemente, ambos condenados à dilaceração. Assim, o mundo
e/ou o mito fáustico não permite a existência de outros e novos modos de vida, de tal
forma a incorporar e submeter a tudo e a todos. [...] O mundo se cansou de seu passado,
sim. Que ele possa morrer ou descansar por fim [...]. (SHELLEY, 2009, p.39). Aquilo
que aparentemente é dual apresenta-se como unidade de contrários, como totalidade, seja
no campo dos pactos seja no campo das apostas.
CRISE DE SOCIABILIDADE COMO ELOGIO AO SENSO COMUM: A ALMA E
AS FORMAS DA REGRESSÃO CULTURAL
2
O livro foi dividido e publicado em duas partes, com intervalo de 24 anos: Fausto I, publicado em 1808;
e, Fausto II, publicado postumamente em 1832.
3
Vivem-me duas almas, ah! no seio, Querem trilhar em tudo opostas sendas; Uma se agarra, com sensual
enleio E órgãos de ferro, ao mundo e à matéria; A outra, soltando à força o térreo freio, De nobres manes
busca a plaga etérea. (GOETHE, 2004a, p. 119).
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Neal Stephenson (1959 ), em seu romance de ficção científica: Snow Crash
(1992), cunhou o termo metaverso, estruturado em um mundo virtual, no e a partir do
qual os indivíduos ao escaparem de uma realidade distópica poderiam realizar todos os
desejos e fantasias. Do ponto de vista literário o livro é previsível, estruturado em lugares
comuns, com personagens vazios não existe construção, tampouco, composições de
fisionomias intelectuais
4
de personagens. Poder-se-ia dizer que se encaixaria mais no
padrão de roteiro de Holywood do que propriamente em um romance de ficção. Mesmo
pensando-se em roteiros hollywoodianos, comparativamente é inferior a obra das irmãs
Wachowski. Todavia, torna-se importante citá-lo, por apresentar o termo que intitula este
trabalho e medeia as questões ora em discussão.
Gramsci, ao analisar a particularidade italiana do início do culo XX, forjara um
conceito de senso comum estruturado na formação social e na cultura. Ao analisar a visão
difundida pela Igreja Católica acerca de Maquiavel, compreendera o caráter ideológico e
alienado Entäusserung que formara o senso comum italiano. Nesse sentido, trata-se
de um concepção de senso comum, apresentado como uma relação social complexa que
se movimenta e se transforma no tempo e no espaço, ou seja, pode ser elevado e pode
representar a superação de alienações sedimentadas na e pela vida social submetida a
determinadas formas de dominação.
Em 2015 passado próximo, com ares de tempo longínquo , o pensador italiano
Umberto Eco (1932-2016), ao receber o título de doutor honoris causa, na Universidade
de Torino, afirmara: [...] I social network sono un fenomeno positivo ma danno diritto di
parola anche a legioni di imbecilli che prima parlavano solo al bar dopo un bicchiere di
vino, senza danneggiare la collettività. Ora questi imbecilli hanno lo stesso diritto di
parola dei Premi Nobel [...]
5
. Tratara-se de uma síntese imagética de aforismo e anedota.
A partir da semiótica o pensador italiano capturou o Zeitgeist e apontara para elementos
fundantes e constitutivos Diagnose der Gegenwart.
Talvez, o ponto relacional entre os pensadores italianos, separados pelo tempo e
espaço, encontre-se no entendimento e/ou tentativa de entendimento do papel e da função
social de trabalho-ciência-cultura. Adorno (1995), ao colocar a questão, entendia a
técnica como uma extensão dos braços humanos. Todavia, devido as particularidades da
cultura do capital, aquilo que seria “extensão dos braços humanos” converter-se-ia em
sujeito e constituiria um conjunto de cadeias de estranhamento, fundamentando e
estruturando diversas formas de dominação. Se observadas em sua manifestação
fenomênica, as chamadas redes sociais apresentam-se como possibilidade de expansão
4
O fundamento da grande poesia é o mundo único e comum dos homens “despertos”, do qual fala Heráclito;
o mundo dos homens que lutam lado a lado na sociedade, um pelo outro ou um contra o outro; e não vivem
passivamente um ao lado do outro, cada um possuindo suas próprias impressões. Sem uma consciência
“desperta” da realidade, a fisionomia intelectual não pode ser representada. Ela se torna cega e privada de
conteúdo, já que se limita a girar no círculo fechado da própria subjetividade. Mas, sem fisionomia
intelectual, nenhum personagem artístico se eleva aquela altitude na qual se podem destacar mesmo
conservando a plena vivacidade da individualidade da obtusa acidentalidade da realidade cotidiana,
elevando-se ao posto da tipicidade autentica. (LUKÁCS, 1968, p.178-9).
5
SMARGIASSI, Michele di. Umberto Eco, i social, gli imbecilli e cosa veramente quel giorno. In. La
Repubblica. Publicado em 05 jan. 2019. Disponível em https://www.repubblica.it/le-
storie/2019/01/05/news/umberto_eco_i_social_gli_imbecilli_e_cosa_disse_veramente_quel_giorno-
215761508/ Acesso em 26 jul. 2021.
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da comunicação e linguagem, na medida em que potencializariam experiências e
vivencias comunicativas. Deve-se observar que a definição de redes sociais, própria do
senso comum, não explica tampouco estrutura formas de entendimento do fenômeno, na
medida em que sua função social elementar não é a socialização e a interação social, mas
a criação de plataformas que viabilizem a relação social complexa elementar da cultura
do capital: compra e venda de mercadorias, de tal forma a transformar todos que dela
participam em potenciais vendedores-compradores. Portanto, o tipo e a forma de
socialização e interação social são fundamentalmente estranhados, na medida em que a
relação social fundamental não se dá entre indivíduos (pessoas), mas entre mercadorias.
Ao analisar o fenômeno social em sua essencialidade, pode-se constatar que as chamadas
redes sociais seriam redes de programas, voltadas única e exclusivamente a reprodução
ampliada do capital, a partir das quais operam e articulam relações complexas entre
algoritmos, informática e psicologia comportamental, como forma de captura, controle
e domínio da subjetividade dos indivíduos. Portanto, a semiótica teria apresentado apenas
os significados imediatos da comunicação, sem compreender os processos formativos dos
signos e do próprio tipo de comunicação. Nesse sentido, não se trataria simplesmente de
[...] diritto di parola anche a legioni di imbecilli [...], mas de captura, controle e domínio
da subjetividade dos indivíduos, contraditoriamente, ao colapso e decadência dos
processos de individuação.
A chamada indústria 4.0 instituiu e generalizou um novo tipo particular de
processo formativo, voltado única e exclusivamente a dinâmica e a lógica da reprodução
ampliada do capital, a partir da qual introduziu-se e generalizou-se tipos específicos de
socialização e interação social programadas, mediadas por experiências digitais
controladas. Os aplicativos (apps) assumiram a função e a representação simbólica das
instituições sociais, responsáveis historicamente por administrar, organizar e coordenar
os processos de socialização e interação social da criança com o mundo social, criando-
se a aparência de gerações autônomas que se autoeducam, na forma do mito da sociedade
do conhecimento ou da informação o senso comum das crianças que nascem sabendo.
O mito renasce como racionalização e desencantamento do mundo, para utilizar a
imagem de Schiller recuperada por Max Weber. Todavia, uma racionalização reificada,
na medida em que os processos de socialização e interação social são essencialmente
relações sociais mediadas e localizadas em tempo e espaço histórico-cultural; e, ao
transferir-se para a lógica e dinâmica das Big Techs, convertem-se em relações artificiais
controladas, despidas de experiências e vivencias necessárias a constituição do ser social
autônomo.
As Big Techs recolocaram na ordem do dia a relação fundamental das ciências
sociais: sujeito e objeto; bem como seus desdobramentos na vida cotidiana. Assim, a
teoria da modernidade e, particularmente, a teoria da reificação de Gyorg Lukács passam
a ser de fundamental importância para se constituir algum nível de entendimento acerca
do fenômeno social em questão. Nesse processo de relação social distorcida entre sujeito
e objeto, as Big Techs passaram a operar a partir do indivíduo-mercadoria, ou seja, do
sujeito que se converte em objeto-mercadoria, na dinâmica e lógica das redes sociais. No
mundo do trabalho, o indivíduo-mercadoria manifesta-se sob a forma do trabalhador que
vende sua força de trabalho, por um determinado tempo e exerce funções específicas,
claramente, administradas, organizadas e coordenadas pela estrutura empresarial-
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empregatícia. Portanto, manifesta-se sob a forma de uma obrigação contratual a ser
cumprida, independentemente dos quereres, vontades e desejos individuais. Todavia, no
âmbito das relações sociais complexas instituídas pelas Big Techs o indivíduo-mercadoria
têm sua subjetividade colonizada, de tal forma a emergir como se fosse manifestação
espontânea, própria de seus quereres, vontades e desejos, convertendo-se em uma espécie
de trabalhador-vendedor full time.
O conceito de chupeta pode ser encontrado em hábitos e costumes de diferentes
civilizações, ao longo dos séculos, e tinha como objetivo acalmar a criança no processo
de erupção dos dentes, e, ao mesmo tempo, reproduzir artificialmente o processo de
aleitamento materno. Assim, ao longo da história, o conceito esteve vinculado a
mordedores, por um lado, voltados ao alívio da dor por ocasião da erupção dentária, por
outro, a representação e significação mística, como forma de afastar os maus espíritos e
as doenças, devido as altas taxas de mortalidade infantil, em diferentes processos
históricos, particularmente, no contexto da revolução industrial e o aparecimento das
grandes metrópoles. Os fenômenos sociais interseccionados da urbanização e
industrialização que produziram a cultura citadina de tipo capitalista levaram ao decnio
da amamentação, devido a rotina e dinâmica dos processos de produção-circulação
impostos pela reprodução ampliada do capital que exigia a generalização da feminização
do trabalho e do próprio trabalho infantil. Tal processo estimulou a “amamentação
artificial” e generalizou hábitos de sucção não-nutritivos. Em sociedades tradicionais,
pode-se constatar que o aleitamento materno ocorria em regime de livre demanda, com
duas funções sociais bem definidas: i. nutrir os lactentes; e, posteriormente, ii. aliviar a
dor, no processo de erupção dos dentes. Assim, o comportamento-reflexo de sucção,
presente desde o processo intrauterino, transformou-se em comportamento do ser social
e passou a assumir representações simbólicas de satisfação nutricional e emocional.
Deve-se destacar que os bebês humanos nascem com reflexos adaptativos
sucção e deglutição , comportamentos-reflexos mecânicos do organismo que os auxiliam
na sobrevivência. Pesquisas demonstram que a ação da sucção se inicia entre a 17ª e a 24ª
semanas de vida intrauterina, a partir das quais torna-se possível observar bebês sugando
os dedos no ventre materno. Assim, o recém-nascido desenvolve as ações mecânicas de
sucção e deglutição como forma de saciar a fome, ao fazê-lo experimenta as sensações de
prazer e alívio. Outrora, a amamentação em regime de livre demanda satisfazia tanto as
necessidades nutritivas quanto emocionais. Todavia, com a introdução de processos de
socialização e interação social da cultura do capital aquilo que era comportamento-
reflexo de sobrevivência transformou-se em hábito e costume, de tal forma a condicionar
o bebê a procurar o seio materno ou sua representação simbólica, mesmo na ausência de
fome, como forma de saciar suas necessidades psicofísicas. Assim, associa-se os hábitos
orais (sucção, roer unhas, fumar, mascar) ao alívio da tensão, da dor e dos desprazeres,
particularmente, em momentos de ansiedade. Por conseguinte, a chupeta, como
representação simbólica e com as funções sociais que conhecemos converteu-se em
tecnologia social de adaptação do ser social a lógica da reprodução ampliada do capital.
Na sociedade burguesa, a chupeta é oferecida a criança em situações de desprazer, dor e
choro.
Pode-se dizer que as plataformas das chamadas Big Techs grandes corporações
de tecnologia partiram desse diagnóstico simples, para estabelecer uma relação
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umbilical entre tecnologia e controle, domínio e vigilância do comportamento humano.
Trata-se de processos de socialização e interação social controlados e induzidos, voltados
única e exclusivamente a reprodução ampliada do capital. Assim, o Vale do Silício
tornou-se o útero materno que adapta e condiciona comportamos do ser social, via
aplicativos, algoritmos e inteligência artificial, produzidos e articulados a partir das
grandes empresas de tecnologia (Facebook/Meta, Instagram, Whatasapp, Twitter, Apple,
Amazon, Google e YouTube). No documentário O dilema das redes/2020, dirigido por
Jeff Orlowski (1984 ), a questão é levantada a partir de um conjunto de entrevistas que
elucidam como funcionam os processos criativos de objetivação das redes sociais, bem
como a dinâmica de formação e captura da subjetividade dos indivíduos. Deve-se destacar
que podemos identificar simbolicamente os Vales do Silício do Ocidente
(Califórnia/EUA) e do Oriente (Shenzhen /China) unificados na e pela cultura do
capital , como representações político-econômicas e socioculturais da chamada IV
Revolução Industrial, bem como da guerra comercial entre Estados Unidos e China.
Nesse sentido, poder-se-ia dizer que materializam os sentidos e significados do capital-
imperialismo do século XXI. Abre-se um tipo particular de questão meridional complexa.
O conceito de chupeta digital pode ser definido a partir da representação simbólica
do instrumento artificial com as funções próprias do capital, todavia, adaptadas as
dinâmicas relacionais estabelecidas pela tecnologia e a psicologia comportamental. Trata-
se da sofisticação de uma tecnologia rudimentar da primeira revolução industrial,
adaptada a dinâmica da indústria 4.0. Assim, o chamado usuário conceito utilizado
pelas Big Techs, como forma de estabelecer uma analogia com indivíduos acometidos por
dependência química das redes sociais, por definição é compreendido como uma
“criança” a procura permanente de aceitação, satisfação, alívio e prazer
comportamentos-reflexos primitivos, controlados pelas Big Techs. Trata-se de um novo
tipo de captura, controle e domínio da subjetividade dos indivíduos, via conexão
ininterrupta e permanente uma forma de substituir artificialmente a relação primitiva
uterina, estabelecida entre o feto e a genitora.
Em tempos de pandemia, abateu-se sobre a humanidade uma crise sanitário-
humanitária sem precedentes (SILVA, 2020), que por um lado ceifou centenas de
milhares de vidas e, por outro, criou as condições para que os bilionários do planeta
aumentassem substantivamente suas fortunas, dentre os quais, os proprietários das
corporações de tecnologia, como Mark Zuckerberg (1984 )
6
. Na dinâmica e lógica de
reprodução ampliada do capital impõem-se o princípio da concorrência que se acelera
e se intensifica, nos momentos de crise do capital desfazendo-se o mito de que todos
perdem na crise. Na cultura do capital e, portanto, dos povos da mercadoria, alguém
sempre ganha, mesmo que implique na perda de centenas de milhares de pessoas perdas
impostas que vão desde o padrão de vida, com o aumento do desemprego e pauperização
à perda da própria vida. No cenário de crise sanitário-humanitária as empresas de
tecnologia viram seu faturamento aumentar substantivamente, na medida em que a
dinâmica de isolamento social e trabalho remoto, passaram a agudizar o sentimento
próprio da cultura burguesa o indivíduo que se sente só e isolado, em meio à multidão
6
PÉREZ, Gorka; ARANDA, José Luis. Pandemia faz as maiores fortunas do planeta dispararem. In. El
pais. Publicado em 01 jan. 2021. Disponivel em https://brasil.elpais.com/economia/2021-01-01/pandemia-
faz-as-maiores-fortunas-do-planeta-dispararem.html Acesso em 20 jul. 2021.
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(SIMMEL, 1903). Assim, o novo cenário estimulou a entrada de novos usuários nas redes
sociais, bem como criou as condições para o aumento do tempo de conexão.
A indústria 4.0 forjou e impôs um novo tipo de Chaplin coisificado, na medida
em que exigiu um nível mais profundo de adaptabilidade que implica em captura,
controle e domínio pleno da subjetividade dos indivíduos. Tal processo se pelo
controle do tempo de vida e, portanto, da anima/animus dos indivíduos. Trata-se da
adoção e conversão em princípio ético dos conselhos de Thomas Jefferson (1743-1826),
integrante dos fouding fathers, elevado às últimas consequências: times money. As redes
sociais difundem um tipo particular de comportamento e de ação social, despidos de
filtros e reflexões mínimas, de tal forma que os indivíduos (re)agem de forma imediata,
sem refletir acerca das questões apresentadas, dando lugar à insultos e agressões verbais
de toda ordem. Trata-se de um espaço (virtual), no qual alimenta-se, enraíza-se e
estimula-se a violência como princípio relacional.
Isso ocorre porque no espaço virtual que se aprofunda com o conceito de
metaverso (real, virtual e imaginário não se distinguem), fragmentam-se, fragilizam-se e
no limite descontroem-se quaisquer princípios de coesão e coerção social, ou seja,
desarticulam-se e fragmentam-se consensos lógicos elementares, com funções sociais
coercitivas que impedem os indivíduos a adotarem determinadas ações sociais e/ou
padrões de comportamentos tidos como inadequados pela sociedade. Deve-se destacar
que toda sociedade produz instituições sociais responsáveis por forjar consensos lógicos,
fundamentais a dinâmica, estruturação e administração-organização da vida social.
Portanto, os processos de coerção e coesão social não possuem um caráter negativo e/ou
positivo por natureza, mas encontram-se inscritos nas diversas formas de organização e
administração da vida social produzida pelo ser social. Assim, a constituição e
generalização do mundo virtual desfaz e descontrói o conceito de liberdade, na medida
em que liberdade é uma relação social complexa que, necessariamente, implica no
entendimento de que existe o outro, como forma de se impor limites ao próprio conceito
de liberdade. Nesse sentido, liberdade emerge como um dado da natureza, uma espécie
de instinto primitivo que reproduz e representa a imagem criada por Thomas Hobbes, em
Leviatã: Lupus est homo homini lupus. O conceito de metaverso, em suas múltiplas
dimensões teórico-práticas, tem a função social de coagir o indivíduo-mercadoria,
absorvido sob a forma de usuário, a manter-se conectado permanentemente, na medida
em que quanto maior o tempo de “comunicação” mais profunda e complexa torna-se a
captura da subjetividade, na medida em que tempo de “comunicação” implica,
necessariamente, em captura de informações do usuário, a serem utilizadas como forma
de controle e dominação, desde os hábitos ordinários do cotidiano a concepção de
sociedade.
Entra em cena algoritmos sofisticados denominado pelo senso comum de
inteligência artificial , responsáveis por constituir uma cartografia da psique do usuário
ou indivíduo-mercadoria. Pode-se dizer que o entendimento de inteligência artificial é a
representação do estranhamento produzido pela cultura do capital, na medida em que se
trata de uma extensão da inteligência humana. Todavia, apresenta-se como objeto
alienado do sujeito que a criou, de tal forma a elevar-se a condição de sujeito e objetificar
seu criador. Tratar-se-ia de uma suposta interface cérebro-maquina, a partir da qual
emergiria uma falsa oposição, estabelecida entre inteligência humana x inteligência
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artificial. Tal cartografia estrutura-se a partir de informações detalhadas, colhidas a partir
do controle de hábitos e costumes (capturam imagens de locais frequentados, diálogos
cotidianos, tipos e formas de relações, acessos e pesquisas feitas na internet, hábitos
alimentares, filmes e programas televisivos assistidos, músicas ouvidas...). Trata-se da
desconstrução de um dos principais avanços civilizatórios, forjado na e pela sociabilidade
burguesa: direito à privacidade, a inviolabilidade do lar, a intimidade, no limite, a
constituição da individuação. No âmbito das relações imediatas, as informações tornam-
se mercadorias, comercializadas pelas grandes corporações, como forma de fidelizar
clientes dispostos a consumir seus produtos, via difusão de anúncios direcionados de
forma permanente. Todavia, no âmbito das relações mediatizadas, trata-se da captura,
controle e domínio das subjetividades, com capacidade de intervenção, controle e
dominação de processos político-econômicos e socioculturais: i. intervenção em
processos eleitorais; ii. Golpes de Estado, aparentemente, estruturados em
descontentamento popular; iii. Movimentos anticientíficos, terraplanistas,
antivacinação... Trata-se de um tipo particular de condicionamento operante, estruturado
objetiva e subjetivamente no e pelo campo do reforço. Pode-se dizer que existem dois
tipos de reforço: positivo e/ou negativo. O primeiro, consiste na apresentação de um
estímulo agradável ou recompensador após a ocorrência da resposta; o segundo,
consiste em retirar um estímulo aversivo ou desagradável após a ocorrência da resposta
Assim, as Big Techs, fundamentadas na psicologia comportamental, desenvolvem
ferramentas que unificam tecnologias e processos científicos, voltados a manutenção da
conexão total do indivíduo-mercadoria, tais como: i. barra de rolagem, como forma de
criar a ilusão e a projeção de um mundo virtual infinito, em constante processo de
mudança e transformação; ii. notificações, como forma de projetar a ilusão de novidade,
aceitação e reconhecimento social, de tal forma de manter e incentivar a conexão total e
permanente; iii. curtidas e comentários, como forma de projetar a ilusão de que o
indivíduo-mercadoria interfere na dinâmica da vida social e nas grandes questões
socioculturais e político-econômicas; e, iv. avatar, como mecanismo e instrumento do
capitalismo de vigilância, voltado a captura da estrutura cognitiva, psicológica, mental e
emocional dos indivíduos-mercadorias.
A utilização das chamadas redes sociais cria e dinamiza processos de coleta e
atualização de dados de forma permanente, a partir da aplicação de um conjunto integrado
de tecnologias. Assim, forja-se e atualiza-se permanentemente o histórico
comportamental do indivíduo-mercadoria, constituindo-se uma cartografia que coleta e
atualiza dados on e off-line, de tal forma a (re)desenhar permanentemente hábitos,
costumes, comportamentos e ações sociais dos indivíduos-mercadorias. A dinâmica dos
aplicativos impõem e operam via geolocalização. Assim, o app sabe onde você está
(esteve), como, com quem, quando e para onde se desloca, identificando e mapeando
lugares e pessoas com as quais se comunica. Todas ações e comportamentos são
monitorados, permanentemente, coletados e armazenados por algoritmos e inteligência
artificial institui-se um tipo particular de capitalismo de vigilância complexo e
sofisticado, no qual o próprio indivíduo-mercadoria oferece informações pessoais das
mais diversas, sob uma suposta forma entretenimento.
A vida digital articula-se, difunde-se e naturaliza-se como mercado full time, no
qual os indivíduos-mercadorias são empreendedores de si mesmo e ao mesmo tempo a
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principal mercadoria a ser comercializada. O mercado full time exige exposição
permanente a imagem rápida do cotidiano capturado e atemporal torna-se o principal
negócio. Como o cotidiano se torna o negócio e os hábitos, comportamentos e ações
individuais a mercadoria a ser consumida, a exposição digital torna-se extremada. Isso
quer dizer que o indivíduo-mercadoria não tem direito à privacidade e aos erros que a
própria dinâmica do cotidiano impõe ao ser social. Caso cometa algum deslize, ou seja,
caso seja aquilo que a sociedade o educou a ser, o julgamento é sumário e o crime não
tem prescrição. Não direito amplo de defesa e contraditório, tampouco instâncias de
apelação. O julgamento é sumário, o crime imprescritível e a pena eternizada. Não existe
possibilidade de ressocialização e ou acesso ao direito ao esquecimento, após o
cumprimento da pena. Ou seja, a força motriz é o ódio, a vingança, o linchamento, o
ressentimento social... que ao condenar o bode expiatório, cria-se um ritual de expiação
das culpas do cotidiano. Trata-se de uma cisão e de um abismo profundo entre o mundo
social e o mundo virtual, a partir da qual o segundo aliena o primeiro de suas mediações.
A inteligência artificial algorítmica administra, organiza, coordena e unifica os
novos circuitos do capital, de tal forma a acelerar o processo produtivo e de circulação,
tanto do capital quanto do trabalho, por um lado convertendo-o em aparente
entretenimento (redes sociais) e por outro instituindo processos complexos e integrados
de mais valia absoluto-relativa (nessa nova dinâmica a mais valia se unifica e se dinamiza
em um mesmo processo). As plataformas e aplicativos são a manifestação fenomênica do
processo.
Ora, pode-se observar que a unificação e a operacionalidade das ferramentas
possuem sentidos e significados explícitos. Exemplo: o aumento do número de inscritos
e/ou seguidores, curtidas e comentários, converter-se-iam em métodos sutis, complexos
e sofisticados de manipulação de emoções do indivíduo-mercadoria, por meio da
produção e liberação de dopamina neurotransmissor ligado ao prazer, à alegria e ao
bem-estar. Introduz-se uma série de experiências e vivencias artificiais a partir das quais
institui-se na vida cotidiana do indivíduo-mercadoria sistemas de respostas positiva e/ou
negativas. Assim, número de inscritos/seguidores, curtidas/descurtidas, comentários
positivos/negativos, unificados na forma e no conteúdo das chamadas redes sociais teriam
criado métodos de navegação capazes de estimular a circulação de dopamina em níveis
sem precedentes. Nesse sentido, validações/desaprovações online teriam implicações na
vida subjetiva e objetiva dos indivíduos-mercadorias, fossem na forma e no conteúdo de
novos impulsos artificiais de dopamina, fossem na forma e no conteúdo de redes sociais
que aprisionariam legiões de usuários solitários e carentes. No âmbito da cultura do
capital, tal dinâmica parece apontar para a tendência de aumentos exponenciais de casos
de ansiedade, depressão e suicídio, particularmente de crianças e adolescentes.
O PRÍNCIPE ELETRÔNICO COMO REPRESENTAÇÃO DA HEGEMONIA
CIVIL DO CAPITAL-IMPERIALISMO
Em seus estudos sobre a metrópole Georg Simmel (1858-1918) definira o homem
como um ser que faz distinções, ao mesmo tempo partira do diagnóstico de que o
fundamento psicológico sobre o qual se eleva o tipo das individualidades da cidade grande
é a intensificação da vida nervosa (SIMMEL, 1903). Tratar-se-ia de um mundo
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newtoniano, no qual o espírito moderno tornou-se contábil. Assim, a vida moderna
implicaria na integração de técnicas e métodos, a partir dos quais as relações sociais
seriam ordenadas objetiva e subjetivamente, sendo a ciência e a tecnologia fundamentais
a efetivação de tais processos. Tratar-se-ia da formação de um ser social maquínico,
inserido em um tipo particular de formação social, mediada em todas as esferas da vida
pela impessoalidade, ao qual Simmel denominara de blasé. Assim, Simmel explicara o
traço de personalidade do indivíduo-mercadoria, como símbolo e representação dos
estímulos nervosos provocados pela vida citadina moderna, na qual as mudanças e
transformações aceleradas e permanentes extraem dos nervos sua última reserva de
forças. Institui-se um tipo particular de cotidiano que não permite a restauração das forças,
de tal forma a dar lugar a um ser social maquínico, partejado pelo traço de personalidade
blasé. Para Simmel (1903), a essência do caráter blasé encontra-se no embotamento frente
à distinção das coisas, ou seja, o ser social continua a ter a capacidade de percebê-las,
mas o significado e o valor da distinção das coisas são nulos. Tal processo forjou o
indivíduo burguês, bem com seu entendimento de liberdade e, portanto, sua relação com
o outro. Ora, se no processo constitutivo das revoluções burguesas o fundamento do
indivíduo encontrava-se no valor de homem universal em cada ser singular, no decorrer
do século XIX, o estatuto de indivíduo perde seu caráter de valor emancipatório e
converte-se em unicidade e incompatibilidade qualitativas. O ser social maquínico que
denominamos indivíduo-mercadoria apresenta uma disposição anímica formada pela
cultura do capital, que Simmel chamara equivocadamente de economia monetária.
Equivocada, na medida em que não se restringe a reflexo subjetivo da economia
monetária, mas avança para o campo da formação da subjetividade do ser social. Simmel
entendia que o dinheiro, definido pela ausência de cor e completa indiferença, ao tornar-
se denominador comum de todos os valores, teria se tornado um tipo particular de
nivelador que tenderia a corroer o núcleo das coisas. Nesse sentido, o ser social
maquínico equivaleria as coisas; e, ao ser coisificado teria desenvolvido a personalidade
blasé como forma de adaptar-se a vida cotidiana maquinizada, a qual Marx definira como
Entfremdung.
O século XX constituiu-se a partir de tessituras sociais heterogêneas, complexas
e contraditórias que acabaram por colocar em crise o núcleo central da sociabilidade
burguesa: o projeto de modernidade. Assim, se por um lado os espíritos épicos faustiano-
prometéicos generalizaram-se e tomaram de assalto a subjetividade humana, com a
finalidade de conhecer a verdade do mundo e da vida, tomando-a em suas mãos e
transformando-a; por outro, o espírito nietzschiano, para o qual o humano é demasiado
humano forjou um modo de pensar e narrar, a partir de uma ética e estética fundamentadas
no paroxismo, fragmentário e errático, nos quais prevaleceu o simulacro e a
desconstrução, portanto, a inexistência de passado, presente e futuro.
Uma das questões fundamentais do projeto de modernidade encontra-se na defesa
e no compromisso com a razão e a emancipação humana. Deve-se destacar que o
entendimento de projeto de modernidade encontra-se estruturado na e pela sociabilidade
liberal-burguesa e, portanto, extrapola o caráter metafisico presente nos idealizadores e
difusores de tal projeto, de tal forma a compreendê-lo como ideologia da cultura do
capital. Assim sendo, o projeto apresenta problemas crônico-degenerativos advindos de
sua própria estrutura genética não se trata de promessas não cumpridas ou irrealizáveis,
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como em certo momento declarou Norberto Bobbio (1986). Assim, a realização parcial,
relativa, flexível e ou total do projeto dependeria fundamentalmente da sociabilidade
burguesa forjada no âmbito da cultura do capital, na qual constituiu-se um conjunto
complexo de instituições sociais, jurídico-políticas, socioculturais e econômicas a partir
das quais as relações sociais se enraizaram e se generalizaram. A partir de tal paradigma
é que se poderia constituir algum nível de entendimento acerca de relações sociais
complexas que formam unidades de contrários, tais como: indivíduo-sociedade; trabalho-
capital; sociedade civil-Estado; democracia-autocracia; liberdade-igualdade; público-
privado; diversidade-desigualdade; imperialismo-nacionalismo; centro-periferia; e,
modernidade-colonialidade. Não se tratam de utopias do projeto de modernidade que se
tornaram distopias irrealizáveis, mas de processos históricos que (re)configuraram
diversas culturas, de tal forma a se impor a cultura do capital singular-particular-
universal. Todavia, no campo da crítica reificada ao projeto de modernidade, a realidade
virtual e a imagem (simulacro dentro do simulacro) tornaram-se substitutas e sucedâneas,
respectivamente, da experiência e da palavra, de tal forma a desaparecer tempo e espaço,
ou seja, o processo, o sujeito, e a consciência histórica. O mundo virtual e puramente
imagético, substituiu as mediações (experiências e vivenciais) e os consensos lógicos, de
tal forma que o mundo da vida foi colonizado por uma realidade virtual reificada, na qual
toda forma de comunicação e linguagem foram convertidos em imagem
7
(colorida,
sonorizada, suave, impactante, fascinante, brutal, horripilante e estetizante), na medida
em que difundiu-se a concepção de subjetividade de que não havia tempo para
experiências e vivencias, tampouco, sua representação em palavras com sentidos e
significados precisos.
Pode-se dizer que as chamadas fake news, articulam-se e desenvolvem-se a partir
da lógica complexa a partir da qual opera o Príncipe Metaverso, na medida em que os
algoritmos operam na instrumentalização de informações com o intuito de intervir
política, econômica e socioculturalmente em dada realidade social. Trata-se de operação
planejada, organizada e coordenada, com aparente impressão de “viralização” espontânea
vírus que se espalha sem controle.
A partir de estudos sistemáticos sobre a globalização, o cientista social brasileiro
Octavio Ianni (1999, pp.14-5), cunhou o conceito de príncipe eletrônico:
O príncipe eletrônico, no entanto, não é bem condottiero nem partido político,
mas realiza e ultrapassa os descortinos e as atividades dessas duas figuras
clássicas da política. O príncipe eletrônico é uma entidade nebulosa e ativa,
presente e invisível, predominante e ubíqua, permeando continuamente todos
7
Fenômeno social dos memes, relacionado a indústria cultural e as NTICs. De maneira imediata e
provisória, o meme poderia ser definido como uma unidade de informação e comunicação reificada, com
capacidade de se multiplicar, no âmbito da rede mundial de computadores, via aplicativos, plataformas e
redes sociais, com a finalidade de produzir difundir ideias e informações reificadas acerca da realidade.
Cria-se a ilusão de que se trata de uma iniciativa espontânea e individual, com a finalidade de
entretenimento, como forma de ocultar a concepção de mundo que difunde, bem como os interesses
políticos, econômicos e culturais que representam. Assim, a cultura do capital instrumentaliza
culturalmente a imagem, na e a partir da qual pode-se (re)montar, colar, mixar, desconstruir, parodiar,
carnavalizar tudo e todas as coisas, descontextualizando-as. Trata-se da difusão e generalização da estética
do paroxismo, da fragmentação e do aforismo, como uma forma de colonizar o mundo da vida, a partir da
instrumentalização técnica de composição dos videoclipes.
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os níveis da sociedade, nos âmbitos local, nacional, regional e mundial. É o
intelectual coletivo e orgânico das estruturas e blocos de poder presentes,
predominantes e atuantes em escala nacional, regional e mundial, sempre em
conformidade com os diferentes contextos socioculturais e político-
econômicos desenhados no novo mapa do mundo. É óbvio que o príncipe
eletrônico não é nem homogêneo nem monolítico, tanto em âmbito nacional
como mundial. Além da competição evidente ou implícita entre os meios de
comunicação de massas, ocorrem frequentes irrupções de fatos, situações,
relatos, análises, interpretações e fabulações que pluralizam e democratizam a
mídia. Sem esquecer que são inúmeros os intelectuais de todos os tipos,
jornalistas, fotógrafos, cineastas, programadores, atores, entrevistadores,
redatores, autores, psicólogos, sociólogos, relações públicas, especialistas em
eletrônica, informática e cibernética e outros que diversificam, pluralizam,
enriquecem e democratizam a mídia. jornais, revistas, livros, rádios,
televisões e outros meios que expressam formas e visões alternativas do que
vai pelo mundo, desde o narcotráfico e o terrorismo transnacionais às guerras
e revoluções, dos eventos mundiais da cultura popular aos movimentos globais
do capital especulativo. Assim se enriquece o príncipe eletrônico, tornando-o
mais sensível ao que vai pelo mundo, desde a perspectiva das classes e grupos
sociais subalternos à perspectiva das classes e grupos sociais predominantes.
Em geral, no entanto, o príncipe eletrônico expressa sobretudo a visão do
mundo prevalecente nos blocos de poder predominantes, em escala nacional,
regional e mundial, habitualmente articulados.
Na cultura do capital, a imagem tornou-se central nos processos de
mercadorização de todas as esferas da vida, na medida em que tornou-se um instrumento
fundamental para a formação da subjetividade, em um contexto de generalização da
indústria cultural massificada. Nesse processo, a linguagem e a comunicação não se
realizam mais pela palavra, mas pela imagem simples e rápida. A palavra tornou-se
descartável e/ou secundarizada, de tal forma que a imagem adquiriu centralidade e
preponderância. A palavra escrita pode ser considerada uma das tecnologias mais
complexas e sofisticadas produzidas pela humanidade, exatamente porque pela palavra o
ser social tornou possível a reflexão, o pensamento e a síntese de suas experiências e
vivencias, na forma e no conteúdo do conceito.
Nesse sentido, abriu-se o campo da cultura para que a pós-modernidade
redesenhasse as concepções de ngua e fala, sintaxe e semântica, sincronia e diacronia,
som e sentido, palavra e imagem, autor e leitor, texto e contexto. Assim, constituiu-se
uma relação social de unidade de contrários entre a ideologia da pós-modernidade e a
cultura do capital, a partir da qual forjou-se um clima cultural e imaginário de
reflorescimento da imagem
8
, que alterou profundamente as concepções de objetividade e
subjetividade. A complexa e sofisticada indústria cultural, fundamentada nas Novas
Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs), forjou um conjunto de técnicas
sociais
9
, como forma de organizar, administrar e coordenar o processo de reflorescimento
8
Ver RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la Imagen: miradas ch'ixi desde la historia andina.
Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.
9
As práticas e as agências que têm como seu objetivo principal modelar o comportamento humano e as
relações sociais, eu as descrevo como técnicas sociais. Sem elas e as invenções tecnológicas que as
acompanham, as vastas e radicais mudanças do mundo contemporâneo jamais teriam sido possíveis.
(MANNHEIM, 1949, p.247).
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da imagem, entendida como comunicação e linguagem reificadas. Não ao acaso, no
âmbito das teorias da pós-modernidade, predomina-se a concepção e o entendimento da
teoria social e da história como discurso e narrativa. Todavia, ambos articulados a partir
do uso da hermenêutica, da fenomenologia, do estruturalismo e da semiótica, como forma
aparentemente rigorosa de desconstrução de chaves de leituras conceituais-categoriais
(instrumentalizam-se teorias partejadas pela modernidade, para desconstruir a
modernidade). Trata-se do manuseio de uma razão de tipo instrumental, voltada a
construção de um entendimento reificado, fundamentado na lógica da desconstrução do
discurso ad infinitum o texto entendido como sistema de signos em-si-mesmado,
virtualmente autônomo e despido de temporalidade, espacialidade, sujeitos e consciência
histórica.
Na cultura do capital, em um contexto de crise de sociabilidade profunda,
encontra-se em processo de universalização, via NTICs, a estetização da linguagem, na e
a partir da qual o conceito e a categoria, definidos com clareza e distinção, são
substituídos pela imprecisão da metáfora e da alegoria. No primeiro caso, a teoria social
e da história necessitam fundamentalmente do estudo aprofundado e sistemático das
experiências e vivencias, localizadas em determinado tempo e espaço, mediados pela
sociabilidade instituída por determinados sujeitos que possuem consciência acerca de seu
modo de vida. A relação epistêmica e ontológica, fundamentalmente complexa,
estabelecida entre sujeito e objeto, são acessíveis a partir de tais entendimentos e
consensos lógicos mínimos acerca de determinados processos. No âmbito da pós-
modernidade não existem nem sujeito nem objeto do conhecimento, mas apenas a
narrativa e o discurso em-si-mesmados, entendidos como texto e sistema de signos. Se
até o culo XIX, uma das principais questões do conhecimento encontrava-se no campo
da metafísica, na qual o pensamento era uma entidade autônoma e separada do mundo
social, todavia, de fundamental importância para a produção do conhecimento; na pós-
modernidade, a linguagem reificada ocupou tal lugar, na medida em que existe em-si-
mesma e encontra-se cindida do mundo social. Como apontara Marx, a linguagem
10
não
existe em-si, mas é sempre um para-si, ou seja, uma relação social complexa forjada e
generalizada a partir de um determinado modo de vida
11
.
A modernidade em sua complexa tessitura e construção de redes de dominação
impôs, a partir das invasões colonialistas, as línguas dos dominadores, universalizando-
as a partir da lógica instituída pela cultura do capital. O inglês tornou-se uma língua
10
[...] A relação entre o pensamento e a palavra não é uma coisa mas um processo, um movimento contínuo
de vaivém entre a palavra e o pensamento; nesse processo a relação entre o pensamento e a palavra sofre
alterações que, também elas, podem ser consideradas como um desenvolvimento no sentido funcional. As
palavras não se limitam a exprimir o pensamento: é por elas que este acede à existência. O pensamento e a
palavra não são talhados no mesmo modelo: em certo sentido há mais diferenças do que semelhanças entre
eles. A estrutura da linguagem não se limita a refletir como num espelho a estrutura do pensamento; é por
isso que não se pode vestir o pensamento com palavras, como se de um ornamento se tratasse. O
pensamento sofre muitas alterações ao transformar-se em fala. Não se limita a encontrar expressão na fala;
encontra nela a sua realidade e a sua forma [...] (VYGOTSKY, 1979, pp165-6).
11
[...] Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados no
decorrer de um processo de interação. Razão pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela
organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece. Uma modificação
destas formas ocasiona uma modificação do signo [...] (BAKHTIN, 1981, p.44).
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global, a medida em que a mundialização e a cultura do capital se impuseram,
primeiramente, com o Império Britânico e, posteriormente, com o Império Estadunidense.
Tratam-se de impérios de naturezas distintas, marcados por continuidades-descontínuas,
todavia, interligados pela cultura do capital. O entendimento de tal processo nos permite
acessar níveis de conhecimento a partir dos quais se pode compreender o porquê do inglês
ter se tornado língua global, na medida em que se impôs como linguagem dos povos da
mercadoria.
O início do século XX demarcou a transição de um capitalismo de tipo
concorrencial para o capital-imperialismo. Os desdobramentos imediatos de tal processo,
se por um lado materializou a dissolução e redesenhou os impérios e, consequentemente,
as colônias, via duas grandes guerras mundiais; por outro, criou as condições, objetivas e
subjetivas, para a eclosão da Revolução Russa de 1917 e a Revolução Chinesa de 1949,
que redesenhariam profundamente a geopolítica do século XX e as primeiras décadas do
século XXI. Com todos os problemas e limites que se possa apontar acerca da Revolução
Russa de 1917 e seus desdobramentos históricos, culturais e político-econômicos, tratou-
se de um evento histórico (SALLINS,1976) que colocou na ordem do dia duas pautas
fundamentais que até então não se encontravam em questão: reforma e/ou revolução.
Tratar-se-iam de duas pautas impostas pela realidade objetiva, capazes de
tencionar o processo de consolidação do capital-imperialismo e a contrapelo das classes
dominantes impor o tema da democratização da democracia (até então restrito e limitado
a classe dominante e dominado pela teoria das elites), tanto no âmbito dos Estados-
nacionais quanto das relações internacionais. Portanto, os processos de universalização
dos direitos civis, políticos e sociais (MARSHALL, 1950), como forma de estabelecer
uma relação contraditória entre capitalismo e democracia, via liberalismo (e sua
materialização na forma do conceito de cidadania), deram-se devido a imposição da pauta
internacional aberta com a Revolução de Outubro. Assim, a generalização dos direitos
humanos e a democratização da democracia foram pautas civilizatórias impostas pelos
“de baixo”. A classe trabalhadora e as demais classes subalternas retiraram os direitos
humanos e a democratização da democracia dos Tratados Metafísicos do pensamento
liberal-burguês e lhes deram materialidade, objetiva e subjetiva, a partir de movimentos
sociais, sindicatos e partidos, em outros termos, a partir de um Programa societário
sistêmico dos “de baixo”. Tratar-se-iam de concessões impostas pela mudança de
correlações de forças, de tal forma a fazer com que o capital-imperialismo redesenhasse
seus tipos e formas de dominação, tanto em relação ao centro quanto a periferia
capitalista. A democracia ampliada só é compatível com o capitalismo em determinadas
circunstâncias, como aquela forjada no pós-guerra e que tinha como representação a
URSS e o Muro de Berlim. Assim, o século XX foi marcado por um período histórico
que poderíamos denominar de tempo das revoluções passivas (DEL ROIO, 2021).
Diferentemente, o século XXI iniciou-se sob a insígnia da contrarrevolução
preventiva, na medida em que o neoliberalismo-flexível derrotou e esvaziou tanto a pauta
da reforma quanto da revolução social, recolocando na ordem do dia a democracia
formal, restrita e limitada, como mero exercício do poder da classe dominante (SILVA,
2011b). Nesse cenário, impõem-se como imperativo, no âmbito do inconsciente coletivo,
o binômio utopia-distopia (a alternativa metafisica torna-se ausência de alternativas), que
aparecem de diferentes maneiras tanto na prática quanto na teoria social. Assim, a
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resistência se daria pelo imediatismo e espontaneísmo (o espontâneo entendido como
ação social advinda de alguma entidade metafisica, despido de materialidade social), a
partir dos quais emergiriam romantismos de toda ordem, tanto na forma do capitalismo
romântico (sob a forma da socialdemocracia keynesiana), quanto na forma do
romantismo cultural, voltado ao elogio de cosmologias mitificadas de caráter multiétnico
(sob a forma da decolonialidade). Ambos os romantismos, embalados por tipos, formas
e conteúdos distintos de nacionalismo (SILVA, 2022).
CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
Em seus Quaderni del Cárcere, particularmente em seus estudos sobre
americanismo-fordismo Caderno 22 de 1934 Gramsci elaborou um conjunto de
conceitos que podem nos auxiliar no Diagnose der Gegenwart: no início do século XX,
observava-se um processo de estagnação e/ou regressão teórica do marxismo e, portanto,
a necessidade imperiosa de refundação comunista e constituição de um marxismo
dinâmico, ativo e vivo. O Diagnose der Gegenwart e a necessidade de refundação podem
ser observados na produção e nas obras dos principais intelectuais orgânicos da classe
trabalhadora do século XX: i. em um primeiro momento, em Lênin e Rosa Luxemburgo;
e, ii. em um segundo momento, em Gramsci e Lukács (DEL ROIO, 2018).
Nesse sentido, o trabalho em questão buscará resgatar um conjunto de conceitos
gramscianos, como forma de produzir algum nível de entendimento acerca da sociedade
contemporânea, definida ideologicamente enquanto sociedade do conhecimento e/ou da
informação. Nos Quaderni (1975), pode-se observar que de forma germinal o
desenvolvimento de uma teoria social, e, portanto, de uma teoria da história, a partir da
qual compreendera as classes subalternas como essencialmente multiétnica, heterogênea
e complexa, portanto, o fenômeno da desagregação seria parte intrínseca de sua vida
cotidiana. Todavia, haveria uma tendência à unificação, radicalizada, na forma e no
conteúdo de construção de uma nova hegemonia. O conceito de tendência é de
fundamental importância na teoria social marxiana, na medida em que a partir da análise
crítica, rigorosa e radical da sociabilidade, poderia desvendar as leis sociais que
articulariam, dinamizariam e constituiriam as relações sociais complexas que
estruturariam a vida social, a curto, médio e longo prazo. A tendência à unificação
apontada por Gramsci encontra-se nas contradições impostas pela sociabilidade burguesa,
a partir das quais nega a grandes contingentes populacionais acesso aos direitos civis,
políticos e sociais (MARSHALL, 1950), fundamentais a produção e reprodução tanto da
força de trabalho (indivíduo-mercadoria) como da própria sociabilidade burguesa. Tratar-
se-ia da efetividade do princípio de Montesquieu, para o qual o poder só se contrapõe ao
poder. Ou seja, o poder de mudanças e transformações encontrar-se-ia na tendência à
unidade, como único instrumento de poder das classes subalternas, seja na forma de
sindicatos, partidos, movimentos e, no caso da particularidade italiana do biennio rosso
(1919-1920) dos conselhos.
Assim, para Gramsci, tratar-se-ia de saber se o instrumento de poder fundamentar-
se-ia na auto-atividade e auto-organização das classes subalternas, como via autônoma
de construção de uma nova sociabilidade. Em outros termos: qual seria a capacidade de
constituir uma cultura política fundamentada na dualidade de poderes e, portanto, de
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alteração da correlação de forças existente em dada realidade histórico-social? Deve-se
destacar que unidade não significa homogeneidade, mas capacidade de construção de
mediação e conhecimento de sua cultura, tanto pela via do princípio da identidade quanto
da contradição, ou seja, impõem-se o desafio de construção de um Programa capaz de
cultivar, mobilizar e estruturar de forma permanente a unidade na diversidade. Tratar-se-
ia de pensar a auto-atividade e auto-organização das classes subalternas como princípio
educativo, a partir dos quais forjar-se-ia o espírito de cisão, necessário a construção de
uma reforma moral e intelectual profunda, ou seja, do entendimento da revolução social
como fenômeno de longo prazo.
O pensador italiano desenvolveu uma análise complexa acerca da particularidade
italiana e suas ondas de revolução passiva, na qual a questão meridional passou a ser
central, em um primeiro momento, como forma de se pensar as contradições da questão
nacional na Itália; e, em um segundo momento, para se pensar as contradições da questão
internacional e a relação entre imperialismo-colonialismo. Assim, em Gramsci o capital-
imperialismo impôs um tipo particular de colonialismo que não se restringiu a dominação
econômica e política, mas avançou, enraizou-se e articulou-se, fundamentalmente, pelo
campo da cultural. Portanto, a questão da unificação das classes subalternas seria ao
mesmo tempo nacional e internacional. um enfrentamento e uma crítica profunda a
uma das ideologias mais complexas e sofisticadas da ordem burguesa: o nacionalismo
seja em sua forma liberal e fascista. Observando-se as particularidades da América,
poder-se-ia dizer que existiria uma questão meridional, a partir da qual impôs-se o
capital-imperialismo estadunidense, tanto nos Estados-nacionais quanto no continente.
Nesses termos, emancipação para Gramsci implicaria em ruptura tanto com o
economicismo, quanto com o politicismo ao atualizar a análise gramsciana para o século
XXI, poder-se-ia dizer também com o culturalismo , variantes de subalternidade teórico-
práticas da intelectualidade burguesa, seja em suas representações de defesa da razão ou
do irracionalismo. Em outros termos, uma ruptura com as teorias sociais e suas ideologias
de sustentação teórico-prática, que entendem e difundem a concepção de que existiria
uma separação e no limite oposição entre Estado, Sociedade Civil e Cultura. Assim, a
questão da emancipação das classes subalternas passaria necessariamente pelo
entendimento de que o cultural, o econômico e o político seriam manifestações,
representações e expressões de uma mesma realidade em movimento, ou seja, constituir-
se-iam na forma e no conteúdo da totalidade. Nesse sentido, quaisquer entendimentos
que se quisesse produzir acerca das classes subalternas necessitaria de uma metodologia
de estudos e pesquisas que fosse capaz de captar o espírito popular criativo. Tratar-se-ia
de conhecer a cultura das classes subalternas e os métodos e procedimentos de criação e
rebeldia popular, frente a cultura social imposta pelas classes dominantes
12
. Ora, nesse
sentido, o chamado folclore emergiria como um método espontâneo de criação,
interpretação, organização e rebeldia, a partir do qual as classes subalternas
transformariam a cultura política de dominação em cultura popular, estruturada na
resistência e rebeldia. Salienta-se que a definição de folclore elaborada por Gramsci
sintetiza e representa um conjunto de relações sociais complexas de dominação, nas quais
entrecruzam-se e relacionam-se umbilicalmente: religião, moral, ciência e filosofia;
12
[...] A unidade histórica das classes dirigentes ocorre no Estado e a sua história é essencialmente a história
dos Estados e dos grupos de Estados. [...] (Q 25, § 5, p. 2288).
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todavia, e, contraditoriamente, está presente o espírito popular criativo, a partir do qual
emergem germes e potencialidades de manifestações e organizações autônomas dos
grupos subalternos. Em que pese que Gramsci tenha abandonado a formulação de espírito
popular criativo, como forma de se afastar do idealismo italiano, torna-se importante
recuperá-la, como forma de tentativa de entendimento da cultura popular do século XXI.
Torna-se importante destacar que Gramsci não compreende as representações do folclore
como mito e/ou dádiva, como fazem os teóricos decoloniais (SILVA, 2022).
Por mais que, nos Quaderni (1975), Gramsci discuta e atravesse diversas
temáticas e questões, deve-se observar a centralidade do trabalho. Assim, os conceitos
de americanismo-fordismo adquirem centralidade, em um contexto de aprofundamento e
generalização da Segunda Revolução Industrial e seus impactos nos campos da ciência,
da técnica e da cultura, fragmentados pela lógica e dinâmica da cultura do capital. Dizer
que os conceitos de americanismo-fordismo são centrais significa dizer que as
organizações autônomas da classe operária sindicatos e partidos continuam centrais,
em quaisquer questões que pretendam produzir algum nível de entendimento acerca da
dominação burguesa e das possibilidades de construção de uma hegemonia de novo tipo.
Somente a partir da centralidade do trabalho é que se poderia pensar o conceito/fórmula
de frente única, bem como a relação social complexa estabelecida entre partido-massas,
ou seja, a capacidade de constituição de institutos autônomos e antagônicos à ordem do
capital, com capilaridade social e condições de se opor a cultura do capital seja na
forma do mercado, do Estado ou dos complexos aparelhos privados de hegemonia
presentes na Bürgerlicher Gesellschaft (SILVA, 2011a) como expressão e representação
da auto-organização, auto-atividade e autoeducação, a partir dos quais formariam sua
intelectualidade orgânica.
Assim, o partido emergiria como expressão e representação autônoma e
antagônica à cultura do capital, ou seja, mediado pelo espírito de cisão. A elaboração de
Moderno Príncipe poderia ser compreendida a partir da articulação e
indissociabilidade entre os diversos conceitos apresentados, entendidos como uma
totalidade complexa. Assim, o Moderno Príncipe seria a representação de uma vontade
coletiva de novo tipo, capaz de partejar e cultivar a formação e difusão de uma nova
subjetividade, ou seja, tratar-se-ia de recompor e redesenhar a vida material e espiritual
em todas as suas esferas. Ora, nesse sentido, as organizações autônomas da classe
trabalhadora e das demais classes subalternas passariam a ser de fundamental
importância, na medida em que a auto-atividade, auto-organização e autoeducação
forjariam e cultivariam uma intelectualidade orgânica de novo tipo, com capacidade de
construção de uma nova hegemonia.
Ao analisar a revolução burguesa como uma revolução de longo prazo,
estruturada em reformas moral e intelectual profundas e complexas, como o
Renascimento, a Reforma Protestante e o Iluminismo, Gramsci articulou os conceitos de
Moderno Príncipe, hegemonia e intelectuais orgânicos, utilizando-se da imagem e
representação do jacobinismo, entendido como intelectuais orgânicos que expressavam
e representavam uma nova sociabilidade grande política , na medida em que suas
ações sintetizavam a vontade coletiva nacional-popular francesa que se universalizaria
com a completude da Revolução Francesa. Nesse sentido, o partido converter-se-ia em
um intelectual orgânico coletivo e teria a função social de, ao mesmo tempo, estimular a
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autoatividade vívida que se alimentaria e se dinamizaria da espontaneidade das massas,
e, ser o mediador dos movimentos espontâneos, como forma de autoeducação e auto-
organização, direcionadas a formação e difusão de uma nova sociabilidade, capaz de
forjar uma nova hegemonia. Os conceitos explicitam os diálogos, debates e discussões
com as elaborações desenvolvidas por Croce, Lenin, Rosa Luxemburgo e Sorel.
Gramsci articulou a questão do Moderno Príncipe a partir da mediação e do
estabelecimento do diálogo entre Maquiavel e Lênin, estabelecendo como ponto central
dialógico a questão da fundação de um Estado de novo tipo, e, portanto, da revolução
social. Para Gramsci, Maquiavel teria sido o primeiro filósofo da práxis, por ter
antecipado o jacobinismo francês. Assim, o conceito de jacobinismo reelaborado, após
a ruptura com Sorel, que o via como mera manifestação burguesa emergiria como
mediação e instrumento do Diagnose der Gegenwart, para se compreender as
particularidades da Itália do período e, portanto, sua derrota; e, ao mesmo tempo,
compreender as particularidades da Rússia do período e sua vitória. Isso quer dizer que
se poderia compreender a elaboração de Moderno Príncipe, a partir do entendimento
e diálogo das teorias de Maquiavel e Lênin, na medida em que articulariam três variáveis
fundamentais: i. a questão da organização política; ii. a questão dos intelectuais; e, ii. a
questão da revolução social. Nesse ponto, Gramsci incorporou de Lênin a elaboração
teórico-prática da Nova Política Econômica (NEP), para elaborar o conceito-fórmula da
frente única e, portanto, a imposição da viragem estratégica de mudança tática de guerra
permanente para guerra manobrada (DEL ROIO, 2018).
No caderno 22, Gramsci apresentou a elaboração germinal de americanismo-
fordismo como símbolo e representação da cultura do capital do início do século XX,
voltada de maneira imediata a reverter a lei tendencial da queda da taxa de lucro; todavia,
sua mediação fundamental encontrar-se-ia na racionalização, em todas as esferas da vida,
da classe trabalhadora e das demais classes subalternas. Ora, trata-se do redesenho da
cultura do capital, a partir do qual a sociabilidade burguesa avançou para o campo da
educação de um novo tipo de ser social, fundamentalmente, maquinizado e automatizado,
com uma subjetividade programada e adequada aos novos tipos de trabalho e de processos
produtivos (Q 22, § 2, p. 2146). Tratar-se-ia de uma classe trabalhadora e de demais
classes subalternas de tipo fordista, forjadas pela iniciativa das classes dominantes. Ou
seja, a burguesia redesenhou sua dominação e avançou dos campos político e econômico
para o campo cultural: [...] a hegemonia nasce da fábrica e necessita apenas, para ser
exercida, de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da
ideologia [...]. (Q 22, § 2, p. 2146). Isso significa que o estranhamento Entfremdung
, produzido no e pelos processos e circuitos de produção-circulação tornam-se mais
complexos e dinâmicos, de tal forma a colonizar o mundo da vida, em todas as suas
dimensões e esferas.
Ao longo do século XX e início do século XXI, o americanismo entendido como
representação da nova hegemonia burguesa, tornou-se mais complexo: i. no campo da
produção-circulação, transitou do binômio fordismo-taylorismo para o binômio
toyotismo-ohismo; ii. no campo científico-tecnológico-cultural, impôs a III e a IV
Revoluções Industriais, com representações e simbologias sofisticadas que o senso
comum passou a denominar de economia digital e inteligência artificial; iii. no campo da
política, transitou do Estado de bem-estar para o Estado Neoliberal; e, iii. no campo da
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economia, transitou para um tipo particular de capital-imperialismo que necessita
recolonizar Estados nacionais periféricos, aparentemente consolidados por revoluções
passivas, como o caso do Brasil, a partir da dinâmica imposta pelas novas cadeias globais
de produção-circulação.
Gramsci partiu do Diagnose der Gegenwart de que a novíssima classe operária
encontrava-se em construção e, portanto, tinha como desafio colocar-se a questão da
hegemonia. Trata-se de saber quais seriam as condições objetivas e subjetivas da
novíssima classe operária forjada a partir do conjunto de mudanças e transformações
impostas pela cultura do capital nos campos da cultura, economia e política , para
colocar-se a questão da hegemonia. Em outros termos, qual seria sua capacidade de
transitar da condição de grupos subalternizados à classe social unificada, capaz de
converter-se em núcleo articulador de arcos de alianças, ou seja, de articular uma frente
única das classes subalternas. Assim, a novíssima classe social seria entendida como
força política e cultual potencial que necessita realizar-se material, objetiva e
subjetivamente.
A razão instrumental cultivada e difundida pela cultura do capital, a partir da qual
colonizou a tríade: ciência-cultura-trabalho; e, ao fazê-lo, impôs a fragmentação da vida
em todas as suas dimensões, constituiu-se na forma e no conteúdo de processos
complexos de estranhamento, forjando-se um tipo particular de homem maquínico.
Assim, o mundo imediato projeta subjetividades em-si-mesmadas, na e a partir das quais
naturaliza-se o indivíduo, como única existência concreta da vida social. Nesse sentido,
torna-se cada vez mais complexo estabelecer níveis e formas de associação, identidade e
pertencimento social, fundamentalmente, naquilo que diz respeitos a classe social. Ora,
como Gramsci apontou no caderno 25, torna-se necessário e de fundamental importância
a reconstrução da história dos grupos subalternos, como forma de se efetivar a necessária
e desejável tendência a unificação dos subalternos
13
. O conceito de grupos subalternos
amplia o conceito de classe social, exatamente porque inclui camadas sociais que não se
encaixam na definição de classes. Trata-se de um elaboração fundamental para se
compreender as transformações e dinâmicas impostas pelas classes dominantes, a partir
dos (re)desenhos da classe trabalhadora, instituídos pelas revoluções industriais, bem
como as mudanças na anatomia da sociedade civil-burguesa (SILVA, 2011a) e seus
desdobramentos no Estado. As questões postas nos e pelos pactos e apostas fáusticas
permanecem, até que o ser social, por intermédio da razão, possa reivindicar Fausto e
afirmar:
[...] Se vier um dia em que ao momento
Disser: Oh, pára! és tão formoso!
Então algema-me a contento,
Então pereço venturoso!
Repique o sino derradeiro,
A teu serviço ponhas fim,
Pare a hora então, caia o ponteiro,
13
[...] Os grupos subalternos sofrem sempre a iniciativa dos grupos dominantes, mesmo quando se rebelam
e se insurgem: só a vitória 'permanente' rompe, e não imediatamente, a subordinação. Na realidade, mesmo
quando parecem triunfantes, os grupos subalternos estão só em estado de defesa alarmada [...]. (Q 25, § 2,
p. 2283-2284).
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Recebido em 13 de janeiro de 2023
Aceito em 13 de janeiro de 2023
Editado em fevereiro de 2023