Sumário

 

Apresentação_________________________________________________________ 4

Marcos Antonio Alves________________________________________________ 4

 

Por uma Filosofia (da Religião) Criativa: o Problema da Formação Filosófica a partir de uma Analogia com a Música____________________________________ 17

Agnaldo Cuoco Portugal; Clarissa Pimentel Portugal_______________________ 17

Comentário a “Por uma filosofia (da religião) Criativa”: o problema da formação filosófica a partir de uma analogia com a música___________________________ 46

Murilo Rocha Seabra________________________________________________ 46

 

Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir______ 50

Alfredo Pereira Jr.; Vinícius Jonas de Aguiar_____________________________ 50

Comentário a “Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir”_____________________________________________________________ 78

Juliana de Orione Arraes Fagundes_____________________________________ 78

Comentário a “Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir”: o lugar e a função dos afetos e das emoções: uma crítica psicanalítica dos fundamentos e aplicações da sentiômica__________________________________ 83

Manuel Moreira da Silva_____________________________________________ 83

 

Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético_______________________________________________ 92

André J. Abath_____________________________________________________ 92

Comentário a “Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético”_________________________________ 122

Felipe G. A. Moreira_______________________________________________ 122

 

Comentário a “Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético”: de conceitos a perguntas, de perguntas a conceitos__________________________________________________________ 127

Cesar Schirmer dos Santos___________________________________________ 127

 

O disjuntivismo ecológico e o argumento causal___________________________ 132

Eros Moreira de Carvalho___________________________________________ 132

Comentário a “O disjuntivismo ecológico e o argumento causal”_____________ 158

Sabrina Balthazar Ramos Ferreira_____________________________________ 158

 

Qual o papel das experiências subjetivas na crítica social? Distinguindo entre justiça de primeira e de segunda ordem________________________________________ 164

Filipe Campello___________________________________________________ 164

 

Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo______________ 185

Giovanni Rolla____________________________________________________ 185

Comentário a “Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo”: representações situadas como um terreno comum entre o cognitivismo e o enativismo__________________________________________________________________ 213

Felipe Nogueira de Carvalho_________________________________________ 213

Comentário a “Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo” 219

Marcos Silva_____________________________________________________ 219

 

A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos___________________________________________________________ 225

Ivan Domingues___________________________________________________ 225

Comentário a “A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos”_______________________________________________ 243

Lúcio Álvaro Marques______________________________________________ 243

 

Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica________________ 248

Jonas Gonçalves Coelho____________________________________________ 248

Comentário a Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica”__ 264

Leonardo Ferreira Almada___________________________________________ 264

 

Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira__________________________________________________________ 269

José Crisóstomo de Souza___________________________________________ 269

Comentário a “Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira”: a filosofia é conversação_____________________ 304

Waldomiro J. Silva Filho____________________________________________ 304

 

Inteligência contínua: a sétima revolução cognitiva do Sapiens_______________ 311

Lucia Santaella____________________________________________________ 311

Comentário a “Inteligência contínua: a sétima revolução cognitiva do Sapiens”_ 326

Adriano Messias___________________________________________________ 326

 

Hábitos e racionalidade: um estudo filosófico-interdisciplinar sobre autonomia na era dos big data_____________________________________________________ 330

Maria Eunice Gonzalez; Mariana C. Broens; José Artur Quilici-Gonzalez; Guiou Kobayashi_______________________________________________________ 330

Comentário a “Hábitos e racionalidade: um estudo filosófico-interdisciplinar sobre autonomia na era dos big data”: buscando o equilíbrio no fio da navalha digital_ 348

Maxwell Morais de Lima-Filho_______________________________________ 348

 

Leis de ponte na Filosofia da Mente e nas Ciências Físicas__________________ 364

Osvaldo Pessoa Jr._________________________________________________ 364

Comentário a “Leis de ponte na filosofia da mente e nas ciências físicas”_______ 378

José Gladstone Almeida Júnior_______________________________________ 378

 

A cultura pode evoluir?_______________________________________________ 383

Paulo C. Abrantes_________________________________________________ 383

Comentário a “A cultura pode evoluir”: a evolução cultural da cultura cumulativa – a hipótese da “automontagem” como uma teoria de “coevolução cultura-cultura”__________________________________________________________________ 418

João Pinheiro_____________________________________________________ 418

 

Sobre o status metafísico das cores______________________________________ 426

Plínio Junqueira Smith______________________________________________ 426

Comentário a “Sobre o status metafísico das cores”: sobre o projeto de uma metafísica cética sobre as cores________________________________________ 452

Luiz A. A. Eva____________________________________________________ 452

Comentário a “Sobre o status metafísico das cores”: a concepção comum das cores e a ciência das cores__________________________________________________ 462

Raquel Krempel___________________________________________________ 462

 

Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão_______________ 467

Roberto Horácio de Sá Pereira; Sérgio Farias de Souza Filho; Victor Machado Barcellos________________________________________________________ 467

Comentário a “Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão”: cerebralismo radical_________________________________________________ 500

César Fernando Meurer_____________________________________________ 500

Comentário a “Por que somos nossos cérebros” e “Por que não somos só o nosso cérebro”: avaliando um debate_________________________________________ 506

Ralph Ings Bannell_________________________________________________ 506

 

Uma visão de mundo filosófica_________________________________________ 514

Rodrigo Reis Lastra Cid_____________________________________________ 514

Comentário ao artigo: “Uma visão de mundo filosófica”: visões de mundo filosóficas e visões da filosofia__________________________________________________ 538

Gregory Gaboardi_________________________________________________ 538

 

O perspectivismo neutro e a função biológica de experiências fenomênicas______ 542

Sofia Inês Albornoz Stein___________________________________________ 542

Comment on “O perpectivismo neutro e a função biológica de experiências fenomênicas”_______________________________________________________ 560

Ricardo Augusto Perera_____________________________________________ 560

 

Contextualismo e relativismo na ética___________________________________ 564

Wilson Mendonça_________________________________________________ 564

Comments on “Contextualismo e relativismo na ética”: relativism in ethics_____ 602

André Fuhrmann__________________________________________________ 602

Comentário a “Contextualismo e relativismo na ética”: contextualismo e relativismo na ética___________________________________________________________ 606

Léo Peruzzo Júnior________________________________________________ 606


 

Apresentação

 

Marcos Antonio Alves[1]

 

Algo vem mudando na comunidade filosófica nacional. A tradição de pesquisa baseada em análises hermenêuticas e de comentários de grandes nomes da história da filosofia, embora ainda permaneça dominante e seja de grande valia e relevância, vem abrindo espaço para o surgimento, no Brasil, de uma área de reflexão filosófica feita em primeira pessoa. De início modesta e reservada a pequenos nichos, essa área vem se ampliando, nos últimos anos.

Os adeptos dessa metodologia não visam a comentar as propostas de filósofos, incluindo os considerados tradicionais, sem, no entanto, desmerecê-los ou menosprezá-los, nem mesmo dar suas respostas, através das citações de outros. Buscam, em boa parte das vezes, a partir de uma abordagem interdisciplinar e com o uso de ferramentas conceituais contemporâneas, oferecer respostas próprias a questões filosóficas, muitas delas tradicionais. Nesse sentido, são as suas propostas que devem ser comentadas, analisadas e avaliadas.

Foi nesse contexto que, em 24 de junho de 2020, Gustavo Leal Toledo, coeditor desta edição, me envia a seguinte pergunta, via redes sociais:

A Trans/Form/Ação não estaria interessada em fazer um número bem diverso dos especiais que são padrão na academia brasileira? Eu pensei em um fascículo sobre Filosofia Brasileira, no sentido de Pensadoras e Pensadores nacionais que realizam estudos mais livres e autorais, que se constituem em propostas próprias ao desenvolvimento de problemas filosóficos.

 

A minha resposta, de imediato, expressou minha admiração pela excelente ideia, observando a sua harmonia com o que já estávamos realizando, na revista. Lembrei que, naquele momento, já estávamos organizando o “Especial Filosofias do Sul”, o qual se identificava com esse estilo autoral, valorizando e apoiando a reflexão própria sobre questões filosóficas, em função de uma perspectiva de pensadoras e pensadores do Hemisfério Sul. Tal edição especial, lançada em 2022, chamava para publicação de textos com pensamento em primeira pessoa, sem que se baseassem na citação, interpretação ou divulgação de outros autores ou de suas ideias. O próximo passo seria pensar em algo especificamente brasileiro, o que veio a calhar com a proposta do professor Toledo.

Dada a convergência da proposta com os intuitos recentes da linha editorial da Trans/Form/Ação, passamos a conceber este fascículo, ora apresentado. Por questões diversas, decidimos compô-lo não por chamada aberta, mas por convite aos autores. Elaboramos, pois, uma lista de possíveis contribuidores, cerca de trinta. Nossa escolha tomou como ponto de partida a mais equânime distribuição possível de gênero e de proveniência geográfica. De alguma forma, tais critérios foram atingidos, nesta publicação. Embora ainda haja uma maior concentração de autores do sexo masculino e da Região Sudeste, a porcentagem de autoria está bem distribuída, se comparada à porcentagem de artigos normalmente publicados por mulheres, na filosofia, ou oriundos desta região do país em relação às demais. Nosso intuito, ainda, com este fascículo, seguindo os princípios da revista, é contribuir para essa melhor distribuição. Buscamos a socialização do conhecimento produzido, sem distinção de gênero, raça, localização geográfica, bem como preferências ideológicas, linhas de pensamento, áreas de pesquisa ou metodologias filosóficas.

Entretanto, como toda escolha, também por conta do espaço, tempo e restrições financeiras, há sempre algum tipo de delimitação, com base em certos critérios. O rol de textos aqui publicados possui, em boa parte, um direcionamento de pesquisa, voltado especialmente a uma linha mais analítica. Não desconsideramos ou desconhecemos a existência de outras frentes, com diferentes objetivos e perspectivas das oferecidas aqui, na discussão e contribuição para a composição de uma filosofia brasileira ou de um pensamento autoral. Mas foi necessária uma escolha.

Uma vez feitos os convites aos possíveis autores, o prazo para envio dos artigos, em sua primeira versão, foi para setembro de 2021. Em geral, a construção de textos filosóficos exige um período de maturação e constituição. Mesmo para esses autores, cujo texto produzido seria resultado de suas pesquisas, algumas já de longa data, outros de jovens pesquisadores, mas já especialistas e promissores em suas áreas, seria necessário um tempo mínimo para a recepção da primeira versão do artigo.

Uma vez recebidos os textos, fizemos uma experiência de publicação de Preprints, seguindo os princípios do Programa “Ciência Aberta”. Publicamos os textos no ScieLO Preprints e na página da revista Academia.edu, onde ficaram por aproximadamente dez meses disponíveis. Nesse período, os autores poderiam receber contribuições de leitores aos seus textos ainda em composição.

Ademais, em outra frente, realizamos a XXXIII Jornada de Filosofia e Teoria das Ciências humanas da Unesp, com o tema “Filosofia Autoral Brasileira” (https://www.marilia.unesp.br/#!/eventos/2022/xxxiii-jornada-de-filosofia-e-teoria-das-ciencias-humanas-filosofia-autoral-brasileira/). Os vídeos podem ser conferidos no canal da Unesp, que nos auxiliou na produção do evento, implementado pelo Grupo de Estudos em Filosofia da Informação, da Mente e Epistemologia – GEFIME (https://www.youtube.com/playlist?list=PLzEm9RCekzdjzXrfdYFhFOmNQMqNEKPj4). Os autores deste fascículo, em sua maioria, puderam apresentar seus textos, discutindo-os com a comunidade acadêmica, tendo outra oportunidade de aprimorar suas ideias aqui, por fim, publicadas.

Uma vez enviados os textos em sua versão final, submetidos no sistema da Revista, o próximo passo editorial foi, a partir de junho de 2022, cumprir outra difícil tarefa de revistas acadêmicas: a busca por avaliadores. Mesmo para os fascículos especiais, a Trans/Form/Ação prima pela avaliação dos artigos enviados, passando pelo crivo de pareceristas, no modo de parecer duplo cego. Entretanto, nesse caso, procurando cumprir outro requisito do Programa “Ciência Aberta”, os pareceres seguiram o modo aberto de revisão por pares, no qual tanto o avaliador quanto o avaliado são identificados. Por volta de agosto de 2022, os autores receberam os textos com as observações dos avaliadores e tiveram o prazo até novembro, para fazer as adequações finais.

Uma vez aprovados os textos, os próprios avaliadores foram convidados a compor um comentário a respeito do texto avaliado, prática já consagrada na Revista e de grande sucesso, como apontado por Alves (2021). Aqueles que puderam aceitar esse convite têm seus comentários publicados nesta edição.

Uma vez recebidos os textos, partimos, no começo de 2023, para o serviço de revisões técnicas, como correção gramatical e normalização dos textos, que, depois de corrigidos, voltaram novamente aos autores, para sua aprovação final. Em abril de 2023, estávamos com todos os textos em sua versão definitiva e fizemos a diagramação com posterior publicação dos textos, na página da revista e em outros ambientes, como ANPOF e Academia.edu. Por fim, foi feita a marcação XML para publicação em certos portais, como SciELO e REdalyc, possibilitando a indexação dos artigos em determinados bancos de dados, como Scopus, SJR, Web of Science.

Os textos foram apresentados em ordem alfabética de seus autores, seguindo o padrão da revista. Ao contrário do evento, os textos não foram agrupados por temas. Ainda assim, podemos distinguir duas linhas basilares temáticas: por um lado, há textos que discutem o que seria uma filosofia brasileira, um pensamento autoral. Em outra frente, encontramos textos que tratam de problemas filosóficos em diferentes áreas, tais como epistemologia, ética, metafísica, filosofia da mente, ciências cognitivas.

Por questões técnicas, foi necessário dividir o fascículo em dois Tomos. O primeiro deles é constituído de 10 artigos e 12 comentários. Já o segundo possui oito artigos e 11 comentários.

 

O primeiro artigo do Tomo 1 é “Por uma Filosofia (da Religião) Criativa: o Problema da Formação Filosófica a partir de uma Analogia com a Música”, escrito em parceria por Agnaldo Cuoco Portugal e Clarissa Pimentel Portugal, comentado por Murilo Rocha Seabra. Os autores dividem o artigo em três partes, buscando investigar a produção filosófica acadêmica autoral e criativa, no Brasil. Na primeira parte, eles expõem o desafio da produção autoral em filosofia, no Brasil, com base no exemplo de iniciativas recentes em filosofia da religião. Na segunda parte, por meio de uma analogia com a música, argumentam que a defesa de uma maior valorização da filosofia autoral, no Brasil, não significa desvalorizar o trabalho com história da filosofia, área que aparenta maior predominância na filosofia acadêmica, no país. Na terceira parte, abordam os desafios para a formação, para a autoria filosófica, baseando-se na tríplice fórmula aluno-professor-conhecimento e reconhecendo os aspectos objetivos e subjetivos da aprendizagem.

Em seguida, vem “Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir”, de Alfredo Pereira Jr. e Vinícius Jonas de Aguiar, comentado por Manuel Moreira da Silva e por Juliana de Orione Arraes Fagundes. A sentiência, definida como a capacidade inconsciente de se ter experiência consciente do sentir, é um fenômeno psicobiológico, envolvendo padrões dinâmicos de ondas eletroquímicas, em sistemas vivos. O processo de sentir pode ser estudado em duas modalidades, dizem os autores: a) identificação empírica e análise dos padrões temporais universais, que caracterizam a sentiência, cujo estudo seria a Sentiômica; b) identificação introspectiva e relato da variedade de experiências conscientes, na perspectiva de primeira pessoa, cujo estudo seria a Qualiômica.

A Qualiômica é, sem dúvida, um desafio para a ciência convencional, como afirmado no “problema difícil da consciência” de Chalmers, pois a perspectiva de primeira pessoa não é acessível aos métodos de medição e às explicações científicas convencionais. A Sentiômica, enfocando padrões dinâmicos que definem a capacidade de sentir, é, portanto, por definição, suscetível de um tratamento empírico e experimental. Com base nisso, os autores propõem uma contextualização de pressupostos e problemas filosóficos da Sentiômica, bem como apresentam algumas das suas diversas aplicações, com foco na sua relação com a música.

Em terceiro lugar, publicamos o texto de André J. Abath, intitulado “Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético”, comentado por Cesar Schirmer dos Santos e Felipe G. A. Moreira. Abath apresenta uma posição costumeiramente denominada aprimoramento erotético, segundo a qual devemos avaliar e, eventualmente, aprimorar nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?”. O foco será em casos em que x captura uma categoria fortemente social, como o casamento. Tal posição é oferecida enquanto alternativa à ideia – por vezes identificada como engenharia conceitual de acordo com a qual devemos avaliar e, eventualmente, buscar uma melhoria de nossos conceitos. Uma vez introduzida a ideia de aprimoramento erotético, o autor busca mostrar como ela pode ser mobilizada para lidar com o que chama de desafio da preservação de tópico, e que vantagens possui em relação a uma posição semelhante disponível na literatura, nomeadamente, o Quadro Austero, defendido por Cappelen.

“O disjuntivismo ecológico e o argumento causal”, de autoria de Eros Moreira de Carvalho, é comentado por Sabrina Balthazar Ramos Ferreira. Carvalho explica que a abordagem ecológica da percepção oferece recursos para desarmar o argumento causal contra o disjuntivismo. Segundo o argumento causal, como os estados cerebrais que proximamente antecedem a experiência perceptiva e a experiência alucinatória correspondente podem ser do mesmo tipo, não haveria, portanto, uma boa razão para rejeitar que a experiência perceptiva e a experiência alucinatória correspondente tenham fundamentalmente a mesma natureza. O disjuntivismo com respeito à natureza da experiência seria, assim, falso.

O autor identifica três suposições que apoiam o argumento causal: a suposição da indistinguibilidade, a suposição da linearidade e a suposição da duplicação. Conforme a abordagem ecológica da percepção, essas suposições não se sustentam, abrindo espaço para a defesa de uma versão ecológica do disjuntivismo. Episódios perceptivos se estendem ao longo do tempo e são supervenientes ao sistema organismo-ambiente. Eles também podem ser distinguidos dos “correspondentes” episódios de alucinação, por serem o resultado de um processo controlado de sintonização, ao passo que as alucinações são passivas e refratárias às atividades de exploração e sintonização. Por fim, o autor procura enfatizar que o disjuntivismo ecológico, na medida em que é imune ao argumento causal, se mostra vantajoso em relação aos disjuntivismos negativo e positivo.

O quinto artigo é de Filipe Campello: “Qual o papel das experiências subjetivas na crítica social? Distinguindo entre justiça de primeira e de segunda ordem”. Nas últimas décadas, diferentes abordagens ligadas à tradição de(s)colonial têm movido o pêndulo da crítica de pretensões de universalidade para relatos e experiências particulares. Contudo, nisso que podemos chamar de virada narrativa, não são sempre evidentes as justificativas morais de perspectivas em primeira pessoa. A questão explorada por Campello diz respeito à possibilidade de encontrar relevância epistêmica de relatos e experiências subjetivas na crítica de injustiça. O autor inicialmente inverte a questão, partindo do problema da objetividade na crítica, diante da particularidade das experiências. A questão, nesse caso, é de onde fala o filósofo ou a filósofa, na sua intenção de descrever experiências de sofrimento de outras pessoas. Se falamos sempre em primeira pessoa, e se existe algum limite cognitivo ou epistêmico de experiências, de onde viria a capacidade de criticar experiências que não são as nossas? Afinal, como podemos compartilhar experiências de injustiça?

Em seguida, Campello sustenta que podemos avançar, se distinguirmos duas dimensões de justiça. Acompanhando distinções conhecidas de teorias de primeira e de segunda ordem, ele defende que reivindicações ligadas à virada narrativa se referem a demandas de justiça de primeira ordem: trata-se de reconhecer moralmente a pretensão epistêmica dos sujeitos, vendo-se ali a possibilidade de confrontar noções falhas de universalidade e pontos cegos em teorias da justiça. Todavia, essas pretensões não possuem em si próprias critérios de justificação, requerendo dependências normativas, as quais são externas às próprias experiências – essas, sim, situadas em justiça de segunda ordem. O autor assevera que esse modelo tem a vantagem de incorporar as vantagens teóricas de teorias de(s)coloniais, sem negligenciar os potenciais da crítica da injustiça.

“Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo”, de Giovanni Rolla, é a próxima publicação, comentada por Felipe Nogueira de Carvalho e por Marcos Silva. Conforme Rolla, no artigo “Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão” (neste volume), Pereira e colaboradores levantam uma bateria de críticas ao enativismo, a qual é uma família de abordagens nas ciências cognitivas que confere centralidade ao corpo e à ação autônoma dos organismos, nas explicações dos seus processos cognitivos. As investidas dos autores miram alguns conceitos centrais da proposta enativista, como conhecimento prático, corporificação (ou corporeidade) e regularidades sensório-motoras. Rolla argumenta que as críticas de Pereira et al. não procedem, por razões diversas: algumas assumem o que querem provar, outras conferem peso excessivo a intuições sobre cenários ficcionais e, por fim, outras atacam espantalhos que não representam as posições enativistas. O autor ressalta que nenhum dos pontos levantados por ele em defesa do enativismo são novos, mas considera importantes explicitá-los, a fim de tornar o debate sobre filosofia das ciências cognitivas mais claro.

Em sétimo lugar, aparece “A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos”, de Ivan Domingues, comentado por Lúcio Álvaro Marques. O artigo versa sobre a filosofia contemporânea brasileira e tem como objetivo introduzir dois pontos. O primeiro deles refere-se aos operadores conceituais no plano teórico-filosófico, com foco no problema da natureza da filosofia brasileira, tomando como ponto de partida as ideias de autoralidade/originalidade. O segundo ponto trata das ferramentas analíticas no plano epistêmico-metodológico, associando os métodos da metafilosofia, ao operar e dar expressão à ratio filosófica, e os métodos da história intelectual, ao operar e dar expressão à realização histórica da filosofia e da intelligentsia filosófica.

O campo das discussões é a metafilosofia, na acepção de filosofia da filosofia, ao desenhar um percurso argumentativo onde metafilosofia, história da filosofia e história intelectual caminham juntas. O autor considera, na vertente da história intelectual, a título de hipóteses para operar os processos históricos, os paradigmas da formação e pós-formação; na vertente metafilosófica, com foco no ethos, para tipificar os diferentes posicionamentos da intelligentsia filosófica brasileira frente à matriz europeia, nos séculos XX-XXI, as atitudes de alinhamento e reverência, autonomia e assimilação crítica, instrumentalização ideológica e política, suspeição e defenestração.

O oitavo texto é “Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica”, de Jonas Gonçalves Coelho, comentado por Leonardo Ferreira Almada. A questão sobre a qual Coelho se propõe refletir, nesse artigo, é se, e em caso afirmativo, em que termos, uma abordagem fisicalista não reducionista e interacionista explica a relação entre consciência e cérebro. Para tanto, o autor toma como fio condutor o problema da lacuna explicativa, em sua relação com o problema da lacuna ontológica, o que envolveu duas questões entrelaçadas: 1. A existência de uma lacuna explicativa implica a existência de uma lacuna ontológica? 2. A inexistência de uma lacuna ontológica implica a inexistência de uma lacuna explicativa? Na visão do autor, essa reflexão pode ser bem-vinda, uma vez que essas duas perspectivas, a epistemológica e a ontológica, muitas vezes se confundem e não são compreendidas.

Em penúltimo aparece “Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira”, escrito por José Crisóstomo de Souza e comentado por Waldomiro J. Silva Filho. Souza apresenta os elementos básicos de um novo paradigma poético-pragmático e destranscendentalizado para a filosofia, situado entre o pragmatismo e a filosofia da práxis, como uma posição não fundacionista, não representacionista, antirrelativista, essencialmente oposta às formas linguocêntricas ou simplesmente intersubjetivistas dominantes, hoje em dia, na cena filosófica não mentalista. Como parte dessa apresentação, o texto recapitula a metodologia, de trabalho coletivo, plural e concertado, que corresponde, no plano do fazer filosofia, ao espírito do paradigma, e a plataforma geral por trás do seu desenvolvimento progressivo.

Por fim, o décimo texto é “Inteligência contínua: a sétima revolução cognitiva do sapiens”, de Lucia Santaella, comentado por Adriano Messias. Conforme ressalta a autora, a sua formação, no campo das linguagens – musicais, visuais e verbais – foi sempre marcada pela atenção à materialidade das próprias linguagens e aos meios pelos quais elas são transmitidas, de sorte a permitir suas funções comunicativas. Desde o aparelho fonador, instalado no próprio corpo, esses meios se constituem como tecnologias que foram evoluindo, através dos séculos, trazendo consigo novas formas de linguagem, tais como as distintas formas de escrita, a galáxia de Gutenberg e, do século XIX para cá, as revoluções industrial, eletrônica e digital, cada qual introduzindo tecnologias que lhe são próprias.

Quando as questões de linguagem são colocadas no foco da atenção, o que importa, desde a Revolução Industrial, é o advento de tecnologias cognitivas, como são a fotografia e o cinema, seguidas das tecnologias eletrônicas – rádio e televisão – e, por fim, a explosão da revolução digital, com todas as suas novas formas de linguagens e, consequentemente, de cognição, que hoje se distribuem pelos mais distintos aplicativos e plataformas. Conforme Santaella, o estudo dessa evolução a levou a postular, a partir da inspiração colhida em alguns autores, que a cognição humana está, desde as primeiras formas de escrita, crescendo fora da caixa craniana. Por conseguinte, é uma proposta que diz respeito à exossomatização da inteligência e da cognição humana, com todas as contradições que isso traz. Santaella dedica esse artigo à explicitação dessa proposta, com atenção ao modo como ela foi se desenvolvendo, no seu pensamento.

 

Assim está constituída essa primeira parte do fascículo, publicada em maio de 2023. O Tomo 2, publicado em julho do mesmo ano, ficou constituído da seguinte maneira.

O primeiro artigo do Tomo 2 é “Hábitos e racionalidade: um estudo filosófico-interdisciplinar sobre autonomia na era dos Big Data”, escrito em parceria por Maria Eunice Gonzalez, Mariana C. Broens, José Artur Quilici-Gonzalez e Guiou Kobayashi, e comentado por Maxwell Morais de Lima-Filho. Os autores discutem o seguinte dilema: por um lado, o crescente impacto das Tecnologias de Comunicação e Informação nos hábitos cotidianos parece influenciar a dinâmica da opinião pública, reforçando crenças irracionais e criando a impressão de que a autonomia da opinião e das decisões das pessoas é apenas um mito. Por outro lado, as pessoas parecem agir racionalmente, na maioria das vezes, nas circunstâncias normais da vida cotidiana, como se suas ações habituais resultassem de decisões relativamente autônomas. A hipótese proposta pelos autores, para superar o dilema, é que as pessoas podem agir racionalmente, na maioria das vezes, mas têm suas opiniões influenciadas por informações insuficientes ou distorcidas ou por hábitos e disposições emocionais previamente adquiridos. Essa hipótese, por sua vez, será examinada em função de uma perspectiva filosófico-interdisciplinar, considerando o papel das escolhas racionais na dinâmica de formação da opinião autônoma. Com diagramas ilustrativos, eles argumentam que hipóteses da teoria dos Sistemas Complexos podem auxiliar a compreensão do possível papel de disposições emocionais, no processo de formação de opiniões.

Em seguida vem “Leis de ponte na filosofia da mente e nas ciências físicas”, de Osvaldo Pessoa Jr., comentado por José Gladstone Almeida Júnior. No debate sobre a redutibilidade da mente ao corpo, o autor sustenta não ser plausível supor que tal redução possa se dar apenas a partir das condições físicas basais, mas que é necessário levar em conta também as leis de ponte psicofisiológicas. Essa posição é geralmente considerada antirreducionista, na Filosofia da Mente, mas Pessoa Jr. prefere chamá-la de “reducionismo indutivo”, devido à analogia com duas outras formas de determinação, nas Ciências Físicas: o determinismo causal e o reducionismo escalar espacial. A discussão é feita com base em “sondas epistemológicas” abstratas, como o demônio de Laplace, o demônio escalar e o demônio psicofisiológico. O autor critica, ainda, a noção de causalidade sincrônica usada por Searle.

Em terceiro lugar, publicamos “A cultura pode evoluir?, de autoria de Paulo C. Abrantes, comentado por João Pinheiro. O artigo parte de uma distinção entre tipos de descrição que podem ser propostos para uma dinâmica populacional, incluindo uma descrição “darwiniana”, em termos de variação, herança e aptidão diferencial, envolvendo as entidades que compõem a população relevante. Depois disso, Abrantes propõe uma categorização de tipos de populações culturais e investiga as condições mais gerais que precisam ser satisfeitas, para que as dinâmicas dessas populações tenham um caráter evolutivo e darwiniano, com ênfase na população composta pelos próprios traços culturais. O autor destaca algumas abordagens da evolução na linhagem hominínea, como a teoria da dupla herança e a memética, as quais concedem à evolução cultural um lugar privilegiado, nos seus cenários. Essas abordagens contribuem, desse modo, para o desenvolvimento de uma teoria geral da evolução cultural, de maneira que as compara, nesse tocante, com outras abordagens. Abrantes defende que esses confrontos também permitem ilustrar analogias entre a evolução biológica e a evolução cultural, bem como falhas na analogia.

“Sobre o status metafísico das cores” é o próximo artigo publicado, de autoria de Plínio Junqueira Smith, com comentários de Luiz A. A. Eva e de Raquel Krempel. Smith desenvolve uma concepção sobre as cores como parte de uma visão cética do mundo. Para isso, investiga como alguns dos principais céticos, ao longo da história da filosofia, conceberam as cores, seja em relação a outras qualidades sensíveis, seja com respeito ao objeto físico. Depois, à luz do debate entre Barry Stroud e John McDowell, ele descreve aquela que lhe parece ser a concepção comum das cores e sustenta que o cético não apenas aceita que os objetos são coloridos, mas que ele pode saber qual é a sua cor, por meio da percepção.

Roberto Horácio de Sá Pereira, Sérgio Farias de Souza Filho e Victor Machado Barcellos escrevem “Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão”, com comentário de César Fernando Meurer e Ralph Ings Bannell. Os autores defendem as seguintes teses: 1- o know-how não é uma forma de saber prático destituído de sentido proposicional; 2- a relação entre cada percepção e o corpo próprio é metafisicamente contingente (os organismos e os corpos podem variar, como podem inclusive variar os espaços que ocupam, em uma mesma experiência), 3- cabe ao cérebro configurar ou moldar um corpo físico (Körper) em um corpo vivo (Leib) e não o inverso; 4- o externismo fenomenal de base enativista, mesmo na sua forma branda, é empiricamente implausível: a correlação entre o caráter consciente da experiência sensorial com padrões neuronais espaço-temporais é muito mais sistemática e regular do que com a correlação com qualquer coisa fora do cérebro. Porém, na sua forma radical, é inteiramente implausível: duplicatas fenomenais não são necessariamente duplicatas de agência; em suma, 5- somos o nosso próprio cérebro, o qual possui um corpo, avatares e artefatos, devidamente configurados e moldados pelo cérebro, e não um corpo que possui um cérebro, dentre outros órgãos.

O sexto artigo dessa parte é “Uma visão de mundo filosófica”, de Rodrigo Reis Lastra Cid, comentado por Gregory Gaboardi. O objetivo desse texto é apresentar uma visão de mundo filosófica, especificamente metafísica. A importância disso é justamente obter uma visão generalista da realidade, em um momento quando as discussões filosóficas se tornam cada vez mais especializadas. A visão de mundo metafísica aqui focalizada é uma perspectiva geral sobre o tempo, o espaço, a matéria, as leis da natureza, a mente e a normatividade. Para realizar esse objetivo, em primeiro lugar, o autor aborda, em linhas gerais, a natureza da filosofia e sobre sua relação com a construção de uma visão de mundo. Em segundo lugar, reúne alguns argumentos para tratar da natureza das entidades mencionadas. Por fim, conclui, expondo uma visão de mundo metafísica unificada, que leva em consideração tais argumentos.

“O perspectivismo neutro e a função biológica de experiências fenomênicas”, de Sofia Inês Albornoz Stein, é o penúltimo artigo publicado, comentado por Ricardo Augusto Perera. Stein argumenta em favor de uma posição acerca da natureza da mente humana, que não é um fisicalismo reducionista e nem tampouco qualquer tipo de dualismo, seja de substância, seja de propriedade. Ela sustenta o perspectivismo neutro, inspirado no monismo neutro, de teor cientificista e materialista, o qual permite incluir experiências fenomênicas conscientes, como parte de cadeias causais de processos perceptivos, emocionais, cognitivos e deliberativos. Embora não existam ainda teorias, leis e dados que autorizem uma decisão final sobre qual o papel das experiências fenomênicas conscientes, em processos físico-químicos do corpo, evidências coletadas nas últimas décadas não apenas fortalecem a crença da autora, na correlação entre eventos físico-químicos e experiências qualitativas conscientes, como também aumentam o número de razões em favor da tese de que essas experiências realmente têm um papel funcional importante nos processos de coleta e uso de informações pelo organismo.

Por fim, “Contextualismo e Relativismo na Ética”, de Wilson Mendonça, comentado por André Fuhrmann e por Léo Pruzzo Júnior, fecha este fascículo. De acordo com uma abordagem proeminente, na semântica formal contemporânea, a verdade das asserções morais depende de uma perspectiva normativa sobre os fatos do mundo. A implementação dessa abordagem, conhecida como contextualismo indexical, concebe a dependência da verdade moral vis-à-vis a perspectiva moral correspondente, em analogia com a dependência contextual característica de sentenças contendo termos indexicais.

Alternativamente, a perspectiva moral é vista como configurando as circunstâncias de avaliação, nas quais o conteúdo expresso pela ocorrência de uma sentença moral é avaliado como verdadeiro ou falso. Ainda segundo o autor, a versão moderada dessa visão alternativa (o contextualismo não indexical ou relativismo moderado) considera que a verdade da ocorrência de uma sentença moral, em um contexto de uso, é determinada pela avaliação do seu conteúdo na “circunstância do contexto”: a circunstância de avaliação representada pelo mesmo conjunto indexado que representa o contexto de uso.

A versão radical (o relativismo de apreciação), por sua vez, faz a verdade da ocorrência de uma sentença moral em um contexto depender essencialmente do valor do padrão normativo em outro contexto, em função do qual o enunciado original é apreciado. Tomando o juízo sobre o status moral do casamento poligâmico como ilustração, Mendonça examina os méritos concorrentes de explicações contextualistas e relativistas do uso da linguagem moral, especialmente em situações de desacordo e debate. Ele argumenta que, embora o contextualismo indexical acoplado a considerações pragmáticas adequadas possa explicar alguns dados relevantes do desacordo, a explicação alternativa desses dados, dada pelo contextualismo não indexical, é preferível, porque mais simples e mais econômica. Ademais, defende que o relativismo de apreciação está mais bem situado do que o contextualismo não indexical, para explicar os fenômenos relevantes da retratação obrigatória, podendo, portanto, acomodar mais facilmente algumas possibilidades discursivas que desempenham um papel central em debates morais.

 

Assim está constituído este fascículo, que teve como finalidade reunir pensadoras e pensadores, a fim de alavancar a ideia de uma filosofia que pense problemas a partir de uma perspectiva que considere também o contexto no qual vivemos, procurando entender e propor soluções para questões nossas, em busca de uma identidade nacional, de um pensamento autônomo e independente, somando-se aos estudos já consagrados na filosofia feita no Brasil, de cunho mais historiográfico.

É com esse intuito de contribuir para o fortalecimento de uma identidade nacional que este fascículo é apresentado, inaugurando as comemorações do jubileu de ouro da Trans/Form/Ação, que, em 2024 completa 50 anos de existência. Desejamos, com isso, fazendo jus ao seu próprio nome, transformar, sem a necessidade de destruir, o pensamento nacional, em vistas de nossa inserção propositiva no cenário filosófico mundial.

Agradecemos a participação de todos aqueles que nos ajudaram a compor este fascículo e desejamos boas leituras e discussões, a partir delas.

 

Referência

ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 9-20, 2021.

 

Recebido: 20/06/2023

Aceito: 25/06/2023


 

Por uma Filosofia (da Religião) Criativa: o Problema da Formação Filosófica a partir de uma Analogia com a Música

 

Agnaldo Cuoco Portugal[2]

Clarissa Pimentel Portugal[3]

 

Resumo: Este artigo se divide em três partes, a fim de investigar a produção filosófica acadêmica autoral e criativa, no Brasil. Na primeira parte, apresenta-se o desafio da produção autoral em filosofia, no Brasil, a partir do exemplo de iniciativas recentes em filosofia da religião. Na segunda parte, por meio de uma analogia com a música, pretende-se argumentar que a defesa de uma maior valorização da filosofia autoral, no Brasil, não significa desvalorizar o trabalho com história da filosofia, área que aparenta maior predominância na filosofia acadêmica, no país. A terceira parte aborda os desafios para a formação para a autoria filosófica, baseando-se na tríplice fórmula aluno-professor-conhecimento e reconhecendo os aspectos objetivos e subjetivos da aprendizagem.

Palavras-chave: Filosofia como composição. Filosofia acadêmica no Brasil. Formação para a criatividade. Falta. Desejo e aprendizagem.

 

Introdução

Pretendemos contribuir, neste artigo, para pensar melhor o problema da filosofia autoral, no Brasil, nos tempos atuais, por meio do estudo do caso da filosofia da religião. O que tem acontecido nessa área pode ajudar a compreender melhor a questão e vislumbrar um encaminhamento viável para ela.

Comecemos com três episódios ilustrativos. Em 2005, quando o filósofo da religião britânico D. Z. Phillips[4] foi convidado para ser conferencista no Congresso Brasileiro de Filosofia da Religião, em 2007, ele aceitou com entusiasmo, dizendo, na ocasião: “Eu adoraria ir ao Brasil, sou um grande fã de Villa-Lobos!”[5] Em 2013, o também britânico Nick Zangwill[6], que estava por um período em São Paulo, aceitou convite do Grupo de Pesquisa em Filosofia da Religião da UnB, para uma série de seminários. Um grande incentivo para o aceite foi sua admiração pela arquitetura de Oscar Niemeyer, o qual ele conhecera ainda criança, por ocasião da inauguração de Brasília. Em 2017, ao ser apresentado a um dos autores deste artigo, David Bentley Hart[7] – um dos mais reconhecidos teólogos e filósofos da religião, nos Estados Unidos ,atualmente – disse ao brasileiro que tinha grande admiração por Machado de Assis, do qual havia lido várias obras, em português mesmo.

Para os fins de nossa argumentação, gostaríamos de chamar a atenção para dois elementos que se repetem, nesses três episódios. Em primeiro lugar, as três pessoas se mostraram admiradoras do trabalho autoral de brasileiros, por suas contribuições internacionalmente reconhecidas. Em segundo lugar, apesar do contexto comum às três interações, nenhum filósofo da religião do Brasil foi mencionado. E por que nenhum trabalho de filosofia da religião do Brasil era considerado digno de nota, por aqueles três filósofos da religião relatados acima? Por que, apesar de serem da área, falando com alguém da área, eles se referiram a obras de um músico, um arquiteto e um literato brasileiros? Uma boa resposta é que não havia nenhuma contribuição brasileira em filosofia da religião que eles conhecessem, ainda. E o problema talvez não seja a desinformação, por parte dos três filósofos mencionados, mas, sim, que não haja ainda uma contribuição internacionalmente relevante nessa área, de nossa parte. E não há ainda uma contribuição internacionalmente relevante em filosofia da religião, porque ainda somos pouco criativos – essa é a tese que este texto pretende explorar.

Para tal, o presente artigo se divide em três partes, a fim de investigar a produção autoral e criativa em filosofia da religião dentro da academia, no Brasil. A primeira parte vai descrever o trabalho mais recente de construção da área de filosofia da religião, no país, desde 2005, o qual servirá para ilustrar a compreensão e os desafios para uma filosofia acadêmica autoral e sua relação com a tradição filosófica. Na segunda parte, por meio de uma analogia com a música, pretendemos argumentar que a defesa de uma maior valorização da filosofia original, no Brasil, não significa desvalorizar o trabalho com história da filosofia, área que aparenta maior predominância na filosofia acadêmica, em nosso país. Percebe-se que o compositor e o intérprete musical são funções interdependentes e sem as quais não seria possível desfrutar das diferentes produções musicais, ao longo da história. Ambas as funções necessitam de uma base técnica e teórica sólida, a fim de executarem e criarem composições, as quais são um elemento fundamental da atividade musical. Porém, o que se destaca, em ambos, é o caráter criativo que advém da subjetividade do compositor/intérprete. Nesse sentido, para o aspecto criativo converge a base objetiva de conhecimento adquirida da tradição e a singularidade própria do sujeito e suas experiências pessoais. Essa interação entre objetivo e subjetivo é um dos fatores centrais que possibilitam a ação criativa do compositor e do intérprete contemporâneos.

A terceira parte aborda os desafios na formação para a autoria filosófica. A partir da analogia com a música, é possível pensar a produção filosófica segundo os aspectos objetivos e subjetivos da criatividade, considerando o ambiente acadêmico, em especial a sala de aula. O aspecto objetivo está consolidado na história de ensino de filosofia nacional, cabendo aqui uma análise do aspecto subjetivo e seu surgimento, na relação entre professor, aluno e conhecimento. De sorte a sustentar essa investigação, utilizaremos o conceito de “transferência” da psicanálise, o qual permite analisar o que opera nas relações subjetivas em sala de aula, a favor da abertura ao diálogo criativo. O que sustenta a relação transferencial entre professor e aluno é o próprio conhecimento, seja como desejo de aprender, por parte do aluno, seja como desejo de ensinar, por parte do professor, ambos embasados na confiança do arcabouço teórico do professor e na reputação da instituição de ensino na qual se encontram. A possibilidade criativa encontra campo fértil, quando há o reconhecimento de que o conhecimento não está dado, ou seja, há ainda falta a suprir e campos a pesquisar, mas não na simples repetição da tradição, e, sim, no seu apoio para algo novo.

 

1 O trabalho recente em filosofia da religião no Brasil e os desafios da filosofia autoral

 

I tell you what mine authors say.

(WILKINS; SHAKESPEARE.

Pericles, Prince of Tyre. Scene I, 20, 1607).

 

Filosofia da religião é o estudo das crenças e práticas religiosas, em termos filosóficos. A noção do que seja “estudar algo em termos filosóficos” é notoriamente controversa. Para fins do presente trabalho, propomos entender como abordagem filosófica da religião aquela que busca compreender, de modo crítico – no sentido de uma intelecção a mais aprofundada possível, à luz da razão –, os pressupostos conceituais mais gerais ou fundamentais daquilo que se crê e se faz nas religiões.

Um modo de justificar essa ideia acerca do que é filosofia da religião é mostrando o quanto ela ajuda a diferenciar-se de outras abordagens do fenômeno religioso. Essa atividade crítica que a Filosofia desenvolve se distingue e se aproxima de outras áreas do conhecimento, de diversos modos. Em relação às ciências da religião (Antropologia, Economia, História, Psicologia, Sociologia, entre outras), a Filosofia se aproxima, porque não usa uma determinada revelação ou tradição filosófica como argumento, em suas análises. Mas a abordagem filosófica se distingue da feita pelas ciências, porque se volta para os conceitos gerais ou fundamentais e não para o que de fato acontece, sob diferentes óticas científicas, no fenômeno religioso – embora frequentemente tome como ponto de partida de sua reflexão uma descrição desses fatos religiosos. Assim, por exemplo, enquanto a Sociologia procura entender como uma religião ajuda a aumentar a coesão das relações sociais, em um determinado grupo, a Filosofia vai se perguntar se aquelas crenças se justificam racionalmente ou qual o significado daquelas práticas.

Por outro lado, a filosofia da religião tenta, assim como a Teologia, uma reconstrução racional da experiência religiosa vivida por uma comunidade. No entanto, diferentemente da abordagem teológica, a filosófica não toma os textos sagrados ou a tradição da religião que está analisando como algo inquestionável, ao qual cabe apenas, no máximo, uma interpretação mais adequada aos novos tempos. A filosofia da religião pode até defender as ideias dos textos ou o sentido das atividades praticadas em uma tradição religiosa, mas isso deve ser justificado racionalmente e não por causa da sacralidade dos escritos ou da venerabilidade daquelas práticas.[8]

Entendida dessa forma, apesar de a expressão “filosofia da religião” ser relativamente moderna[9], aquilo que estamos chamando por ela tem uma longa história, na atividade filosófica. As críticas de Xenófanes de Cólofon ao antropomorfismo da religiosidade popular grega são um exemplo já entre os chamados filósofos pré-socráticos.[10] Quando Tomás de Aquino apresenta suas famosas cinco vias (Suma Teológica, 1ª parte, Questão 2, Art. 3º), para provar a existência de Deus, ele estava fazendo algo filosófico e não teológico, no sentido acima, pois argumentava sobre a existência de Deus, não com base na autoridade das escrituras ou da tradição cristã, mas de princípios que ele entendia serem aceitáveis por qualquer pessoa racional. E quando David Hume, nos Diálogos sobre a Religião Natural (1779), ou Immanuel Kant, na dialética transcendental da Crítica da Razão Pura (1781/87), criticam a atividade de expor argumentos contra ou a favor da existência de Deus, também estavam tratando do que chamamos hoje de filosofia da religião. Esses são apenas alguns exemplos de um dos assuntos mais abordados, ao longo da história da Filosofia.

Além de uma longa tradição histórica, a filosofia da religião se liga a todas as principais áreas da pesquisa filosófica. Os desenvolvimentos recentes do argumento ontológico envolvem um considerável aparato de lógica modal e têm sido um incentivo importante para a pesquisa nessa área. A questão da laicidade do Estado, envolvida na relação entre religião e política nos sistemas democráticos, constitui uma oportunidade interessante de estudo dos limites e das exigências da democracia moderna. O significado da experiência mística e a possibilidade que ela abre para a justificação da crença religiosa trazem à baila e provocam instigantes trabalhos em epistemologia. A existência do mal e sua compatibilidade com uma ordenação intencionalmente benevolente do mundo têm grandes relações com estudos de ética e metafísica. O fato de que religião tem a ver com tudo na vida daqueles que dela participam – é nelas que essas pessoas encontram “o sentido fundamental para as suas existências”, poderíamos dizer – talvez sejam a razão dessa enorme diversidade temática, de modo que, ao se fazer filosofia da religião, é possível transitar pelos grandes problemas da Filosofia e, ainda assim, manter uma unidade quanto ao objeto de reflexão.

Os desenvolvimentos recentes da filosofia da religião, no Brasil, mostram essas características apresentadas acima. É claro que, no sentido de estudo das crenças e práticas religiosas, em termos filosóficos, defendido aqui, a filosofia da religião não é algo recente entre nós. Há vários exemplos dignos de nota. Vale a pena conferir as reflexões sobre a inclinação da pessoa humana para a transcendência, seja em termos estruturais, seja relacionais, propostas pelo Pe. Vaz (cf. VAZ, 1991/2). Não têm ainda a atenção merecida as teses sobre a origem religiosa da cultura, entre várias outras acerca da religião e da mitologia, de Vicente Ferreira da Silva (cf. SILVA, 2010 [1964]). E não podemos esquecer as inúmeras partes dos Sermões do Pe. Vieira que trazem reflexões e argumentos filosoficamente relevantes sobre a atividade religiosa e o tema da relação humana com o transcendente. Com esses casos, entre vários outros, os quais mereceriam menção, se tivéssemos espaço para tanto, queremos afirmar que a exposição a ser realizada aqui, a propósito dos desenvolvimentos recentes da filosofia da religião, no Brasil, não significa desconsiderar o trabalho filosófico que foi feito entre nós sobre esse assunto anteriormente.

O marco temporal que vai nos servir de referência é o início dos anos 2000. Em 2004, um grupo de professores da PUC de São Paulo, da Universidade Federal de Juiz de Fora e da Universidade de Brasília, entre outros, propuseram à ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia) a criação do Grupo de Trabalho de Filosofia da Religião. Em 2005, foi realizado, na UnB, o 1º Congresso Brasileiro de Filosofia da Religião e, em 2006, no X Encontro Nacional da ANPOF, em Salvador-BA, aconteceu a primeira reunião do GT de Filosofia da Religião da ANPOF. Em 2010, foi fundada a Associação Brasileira de Filosofia da Religião – ABFR – e, em 2014, foi criada a Revista Brasileira de Filosofia da Religião.

O que aconteceu na área, no Brasil, desde os anos 2000, reflete a diversidade histórica e temática da filosofia da religião. Os primeiros cinco congressos da ABFR não tiveram tema central, numa estratégia para se abrir ao máximo a possibilidade de participação e se ter uma ideia mais clara do que se estava fazendo no país sobre o assunto. De 2015 em diante, a partir do 6º Congresso Internacional da ABFR (como passaram e vêm sendo chamados até hoje os eventos que começaram como “Congresso Brasileiro de Filosofia da Religião”), propunha-se um assunto principal, o qual seria o núcleo das discussões no evento, mas sem desconsiderar contribuições sobre outros assuntos. O que sempre se observou foi uma expressiva pluralidade de temas e autores abordados relativos ao estudo filosófico da religião. De pré-socráticos à filosofia contemporânea, da filosofia feminista ao pós-modernismo, do tomismo ao novo ateísmo, pensadores brasileiros, europeus, norte-americanos e de várias outras nacionalidades foram objeto de reflexão sobre os mais diversos tópicos da filosofia da religião.

Essa variedade em interação é pouco usual entre nós, mas tem sido bastante instigante. É muito interessante (e, ao que sabemos, pouco frequente, no Brasil) ver um especialista em Schopenhauer apresentando seu trabalho em uma mesa ao lado de um estudioso de Marx, mediados por um kierkegaardiano.[11] Não é só interessante e pouco comum: trata-se de algo muito frutífero para a reflexão filosófica. Em vista de assuntos tão difíceis, como aqueles com os quais a Filosofia lida (e a religião é apenas um deles), o diálogo por meio da comparação das ideias de pontos de vista diferentes pode ser bastante iluminador. Grandes escolas de pensamento se formam a partir de obras fundamentais ou de filósofos tidos como grandes referências de pensamento. Boa parte da filosofia acadêmica moderna se faz como estudo dessas, o que permite significativo aprofundamento na compreensão dessas matrizes de ideias filosóficas.

Ora, o que vimos tendo na filosofia da religião recente, no Brasil, é um encontro de estudiosos de diferentes paradigmas filosóficos, com a possibilidade de mútuo enriquecimento. Quem está nos lendo talvez considere essa análise otimista demais, pois o encontro dessas tradições frequentemente resulta em total falta de comunicação e incompreensão da posição diferente, normalmente tida como adversária e não possível colaboradora, exatamente pela falta de uma base comum. Sem dúvida, isso acontece bastante. Todavia, essa possibilidade de interação se mostra mais factível, quando há um objeto comum a ser discutido, como é o caso da filosofia da religião.

Apesar dessa diversidade salutar, a reflexão intencionalmente original ou autoral[12] tem sido rara nesse movimento que estamos descrevendo. O mais usual, na filosofia da religião acadêmica brasileira, é vermos trabalhos que expõem e interpretam o pensamento de alguém sobre um assunto. A capacidade de organizar as ideias originalmente expostas e apresentá-las com fidelidade e clareza já é considerada um mérito importante de um artigo ou apresentação em evento filosófico brasileiro. No entanto, a intenção não é ser original, não é inaugurar uma ideia e assumir as consequências dela. Tanto é assim que, quando alguém questiona se aquele pensamento é mesmo correto (normalmente, uma pergunta inconveniente daqueles que aparecem na palestra, mas não são do meio acadêmico), uma resposta frequente é de que “estou apenas expondo o que o autor está afirmando”. Geralmente, não se questiona se a ideia está certa, mas, sim, se a exposição feita sobre ela está bem feita ou se a interpretação apresentada é pertinente. É por isso que a contraposição de diferentes pensamentos é tão instigante, pois abre a possibilidade de usar um para questionar o outro.

Contudo, isso ainda não é o que estamos chamando de “reflexão intencionalmente original ou autoral”. Cada um chega com seu autor preferido e expõe suas ideias da maneira mais fiel possível. No debate, pode vir a surgir uma contraposição entre eles e até mesmo uma avaliação capaz de indicar que um dos pensamentos é o mais correto. No entanto, a intenção de quem expôs não era defender uma ideia, embora partindo de determinada autoria, mas apenas que ela seria mais bem compreendida daquela maneira.

Em 2019, a ABFR, com o apoio financeiro da Fundação John Templeton,[13] lançou uma chamada de bolsas com vistas a fomentar o pensamento autoral em filosofia da religião. O nome do projeto é Supporting Constructive Research on the Existence of God in Portuguese-Speaking Latin America (Apoiando a Pesquisa Construtiva sobre a Existência de Deus na América Latina de Língua Portuguesa) e seu título já evidencia duas coisas: trata-se de um projeto voltado para o Brasil e se refere à pesquisa sobre a existência de Deus (concebida em sentido amplo de “divindade”, não precisando se restringir ao conceito monoteísta). O que pode não parecer muito claro é o que venha a ser uma “pesquisa construtiva”. Trata-se, na verdade, exatamente do que estamos explicitando aqui: uma investigação que não se concentre na história das ideias e nas concepções dos grandes pensadores, mas que busque pensar essas grandes questões de um modo que contribua com algo a mais para a sua compreensão, que construa algo nesse sentido. Das mais de quarenta propostas enviadas, foram selecionadas onze, as quais receberam entre trinta e oitenta mil reais de bolsa.

Um apoio assim expressivo – especialmente nesses tempos nada favoráveis para a pesquisa filosófica, no Brasil – não viria de graça. Mas não havia uma agenda de defesa de uma visão religiosa específica (mais de um dos bolsistas agraciados é declaradamente ateu) ou de uma linha ou temática específica de filosofia contemporânea (os temas em filosofia da religião são múltiplos e as abordagens variam bastante).[14] O preço era o de fazer algo que rompia um paradigma, em nosso país. Nosso modelo de fazer Filosofia é o da pesquisa histórica. Ivan Domingues, em seu alentado trabalho sobre essa área de estudo, no Brasil, aponta como um dos marcos iniciais da filosofia acadêmica entre nós a chegada da missão francesa à Universidade de São Paulo, a partir dos anos 1930. Esse marco histórico da atividade filosófica profissional aqui tinha as seguintes características, segundo o autor:

Simplesmente, a filosofia está nos textos e a história da filosofia, assim como a exegese, quer dizer retorno aos textos, e antes de mais nada textos dos clássicos, que criaram tudo e o melhor que podemos fazer é aprender com eles. (DOMINGUES, 2017, p. 409).

 

Esse método de leitura e interpretação atenta dos clássicos, trazido pelos professores franceses, era um modelo inovador em relação ao que se tinha antes, no Brasil, restrito ao estudo de manuais destinados especialmente ao preparo seminarístico. Oferecia-se à incipiente vida acadêmica brasileira um modo de fazer filosofia que era amplamente desenvolvido nas melhores universidades europeias. Nessa concepção, filosofar era ler textos de grandes autores e mostrar que se entendera bem essa leitura. Isso supunha o contato com os textos originais, a abertura para tradições filosóficas nem sempre muito bem acolhidas nos seminários católicos e uma dedicação maior do que se tinha antes ao trabalho filosófico, tal como se exige no ambiente acadêmico, não um estudo menos profundo, destinado à preparação para a atividade eclesiástica. Era um modelo inicial de profissionalização da Filosofia entre nós.

Embora, nos últimos cinquenta anos, os modelos tenham se diversificado[15], o paradigma centrado na história da Filosofia é ainda o predominante.[16] Um bom indício que fundamenta esse diagnóstico é que, das seis matrizes identificadas por Domingues, duas são claramente centradas na história da Filosofia: a histórica e a exegética. Além disso, a descrição das outras (epistemológica, metafísica, ético-política e cultural) se dá com grande ênfase na indicação dos autores ou escolas estudados, ao invés de centrada nos problemas ou debates desenvolvidos. Em outras palavras, mesmo nos modelos não explicitamente voltados para a história das ideias filosóficas, a julgar pelo importante trabalho de Domingues[17], o que temos, na Filosofia feita entre nós, é principalmente a descrição e a interpretação das ideias de autores consagrados.

É o desafio de se fazer filosofia autoral em um ambiente filosófico marcado pela questão histórica, o qual justifica o expressivo investimento em projetos voltados para a “pesquisa construtiva” sobre a existência de Deus que a ABFR pôde fazer, com o auxílio da Fundação John Templeton. A ideia é fomentar trabalhos mais criativos que possam contribuir com o debate internacional em filosofia da religião, com novos problemas ou novas respostas a problemas já colocados. Além de seminários nos quais os textos de cada participante são discutidos pelos demais, o projeto inclui a tradução dos artigos finais para o inglês, de sorte a facilitar a publicação em periódicos internacionais e, assim, aumentar a participação brasileira no debate na área, que tem engajado a comunidade filosófica mundo afora.

Não se trata de desmerecer o trabalho com história da Filosofia: o projeto não nega a importância dessa abordagem. O que ele pretende é incentivar algo que parece pouco cultivado entre nós. Propomos que essas ideias de uma maneira criativa de fazer Filosofia e do caráter complementar e não excludente desses modos de produção filosófica podem ser esclarecidos por uma analogia com a Música – esse é o tópico da próxima seção.

 

2 Entendendo Melhor a Relação entre a Filosofia Autoral e a História da Filosofia por meio de uma Analogia com a Música

É uma arte, como tudo.

(Guilherme Arantes. Cuide-se bem, 1976).

 

Na seção anterior, vimos a experiência recente desenvolvida em filosofia da religião, no Brasil, e as iniciativas que vêm sendo tomadas nessa área, no sentido de estimular um pensamento construtivo ou intencionalmente inovador. Nesta parte, por meio de uma analogia com a música, pretendemos entender melhor o que seja pensamento filosófico inovador e argumentar que a defesa de uma maior valorização da filosofia autoral, no Brasil, não significa desvalorizar o trabalho com história da Filosofia – área que aparenta ter maior predominância na filosofia acadêmica, em nosso país, não só na filosofia da religião, mas em geral. Por meio dessa analogia, pretendemos esclarecer melhor a relação entre criatividade inovadora e a produção já estabelecida.

O raciocínio analógico procede pela comparação de pelo menos dois termos. Seu emprego tem em vista a possibilidade de esclarecer propriedades em um dos termos, por meio das semelhanças que ele tem com o outro, o qual é tido como análogo e no qual essas qualidades são mais evidentes. Obviamente, uma vez que semelhança não é identidade, termos análogos vão ter também diferenças, de modo que um raciocínio analógico precisa prestar atenção também nas distinções e justificar por que essas não inviabilizam as afinidades defendidas e com as quais se pretende adquirir uma intelecção superior do termo a ser esclarecido. Assim, vamos começar com a descrição da Música e depois tentar iluminar, com ela, o caso da Filosofia.

 

2.1 O termo da Música na analogia

A analogia com a música proposta aqui se dá, porque nela podemos identificar claramente as funções de compositor e intérprete, mesmo que ocupadas pela mesma pessoa, e essas funções, apesar de distintas, necessitam uma da outra, para que haja o produto final, a própria experiência sonora da música, no sentido do exercício da arte musical. Essa descrição deverá ajudar a entender melhor o que significa, por analogia, “fazer filosofia” e sua relação com o estudo da história da Filosofia. Na Música, pode-se observar claramente um vínculo estreito entre interpretação e composição, ao se considerar que, por exemplo, a composição das Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos é condição necessária para que os intérpretes a possam tocar e que, sem os intérpretes, essa composição igualmente nunca seria ouvida; além disso, essa interdependência é relevante para o objetivo final da produção artística, o de que haja um público que a testemunhe e aprecie.

Em sua dissertação De onde vêm minhas idéias? Estratégias para a delimitação e a resolução de problemas na composição musical, Bernardo Grassi (2008) inicia a análise do processo criativo da composição musical, associando-o ao processo de resolução de problemas, visto que, ao se compor, cria-se algo novo a partir da tradição existente. Com isso, reconhece-se que o conhecimento da base técnica e teórica dos experts, como ele os denomina, auxilia e facilita o processo composicional (GRASSI, 2008, p. 23). No entanto, ao classificar o processo criativo como uma forma de resolução de problemas, incluem-se à base técnica e teórica as experiências pessoais do compositor. “Os fatores pessoais estão intimamente ligados à experiência do sujeito e envolvem estruturas do conhecimento como a memória, a capacidade para fazer analogias e a utilização de estratégias na resolução do problema.” (p. 25). Nesse sentido – e como em outros processos criativos das diversas linguagens artísticas –, o aspecto objetivo das bases técnicas e teóricas se associa ao aspecto subjetivo das experiências pessoais do sujeito, na resolução criativa da composição.

Ao associar o processo composicional à resolução de problemas, percebe-se que Grassi expande a associação objetivo-subjetivo a qualquer situação na qual há um problema a se resolver, ou seja, quando há a necessidade de uma resolução de problema que exige inovação, as abordagens objetivas e subjetivas se conjugam. A isso Grassi acrescenta ainda outro elemento à resolução de problemas: o insight:

Segundo Sternberg (2000), os insights fazem parte de pensamentos comuns que estão associados à reconceituações de um problema ou de uma estratégia, de um modo totalmente novo. Sua ocorrência está ligada à detecção e combinação de informações relevantes (antigas e novas), de modo que o solucionador possa obter uma visão inédita do problema ou de sua solução. Esta visão do insight, também conhecida como “nada-de-especial”, sugere que os conhecimentos prévios cumprem um papel importante na capacidade criativa, já que estes influenciam a maneira como percebemos, entendemos e manipulamos novas informações. Neste sentido, Weisberg (2006) propõe que o pensamento criativo advém de processos de pensamento comuns em que a expertise do solucionador, a influência do meio e a estrutura de nosso pensamento (revelada em etapas através do uso de analogias e da lógica) são suficientes à produção de produtos “extraordinários”. (GRASSI, 2008, p. 37).

 

Conforme o autor, o insight ocorre quando há a convergência de diferentes fatores cognitivos e experienciais, isto é, das vivências pessoais do sujeito e do arcabouço teórico e prático da sua expertise, a fim de proporcionar uma nova perspectiva ao problema posto. Dessa forma, não é possível inovação, sem que haja uma convergência de experiências e saberes, mesmo que tradicionais, a partir de uma perspectiva singular. Dado insight não se repete e possibilita uma inovação, porque é apenas do sujeito produtor daquele insight a convergência ativa de experiências e saberes singulares. É possível também o insight fruto de duas pessoas ou mais, quando há uma ação ativa e colaborativa a favor da resolução de um problema, necessitando de uma partilha de bases epistêmicas e experienciais, de maneira a conjugá-las ativamente. Mesmo no caso de mais pessoas, é apenas a convergência dessas singularidades objetivas e subjetivas que permite determinada resolução criativa a dado problema.

No aspecto objetivo, Grassi (2008, p. 42) afirma a essencialidade da expertise para o processo criativo: “[...]um primeiro indício da importância que a expertise tem na produção criativa é a necessidade que o sujeito tem de desenvolver habilidades específicas junto a uma ‘tradição’, para só depois poder superá-la.” Nesse sentido, o processo criativo não surge do nada, mas, sim, de uma base provocada pelo uso da tradição que se conhece como parte das experiências pessoais. O compositor conjuga livremente as estruturas da tradição às suas experiências, a fim de compor. Entretanto, é a expertise que lhe assegura essa liberdade.

A subjetividade confere à obra sua singularidade, porque cada sujeito possui perspectivas e experiências singulares na vida; já a objetividade da expertise lhe garante seu caráter criativo, porque depende de o compositor delimitar os pontos de partida e de chegada da sua composição. Logo, “[...] é necessário que o compositor domine as técnicas apropriadas ao estilo de composição escolhido, para que possa estabelecer objetivos finais e intermediários que o possibilitem empregar as estratégias mais adequadas para chegar com mais facilidade e eficiência a uma solução.” (GRASSI, 2008, p. 45).

Assim, é a própria expertise que delimita as restrições sobre as quais o compositor empreende criativamente. O autor aponta para possibilidades de estilos composicionais constituídos de tradições e estruturas próprias, as quais se devem seguir para manter certa fidelidade ao estilo. As restrições não tornam as obras menos criativas ou novas, pelo contrário, é o domínio sobre as características próprias de um estilo que torna possível superá-lo. A superação não é a destruição da tradição, todavia, uma contribuição criativa que a inova, a partir da singularidade do sujeito que compõe.

Quanto ao papel do intérprete, Ana Claudia Assis traz uma análise histórica do trabalho do intérprete, no seu artigo “Fazer música, fazer história: indagando o papel do intérprete contemporâneo” (ASSIS, 2018, p. 127-131), apontando que há uma noção flutuante do que é interpretar a música. Mesmo na noção tradicional, na qual o musicista se dedica a interpretar a composição conforme sua escrita, há variações ao longo da história sobre o que significa essa fidelidade, seja de reproduzir as intenções do compositor através da partitura, seja de resgatar o estilo de se tocar do período da composição, seja ainda, com o advento dos avanços tecnológicos, da influência da qualidade técnica trazida pela indústria fonográfica. Na contemporaneidade, Assis (2018, p. 132) percebe que a fidelidade interpretativa da partitura e da técnica está associada à liberdade criadora:

Assim também a interpretação musical, e no caso específico da interpretação de uma obra contemporânea, ao se realizar no decurso do tempo em performance, revela e articula em cada instante do tecido do tempo musical que delineia, memórias, afetos, referências sonoras do passado em permanente crítica e atualização/re-significação de sentidos. Convite à escuta ativa, a interpretação da música contemporânea articula a tensão entre tradição e liberdade criadora através de modos individuais de ler uma determinada partitura/documento, pois a inexistência de um coloquialismo idiomático que regule modos de tradução deste repertório favorece o desenvolvimento constante de interpretações originais (CARVALHO, 2016, p. 50). Daí o surgimento de uma prática comum em nossos dias, na qual determinadas obras passam a ser quase que exclusivas do intérprete que a estreou (e muitas vezes a quem foi dedicada) constituindo, assim, parte de um repertório individual. Na base desta prática está o interesse crescente dos intérpretes da música contemporânea pela realização de obras inéditas, muitas vezes sob encomenda, fomentando a criação de repertórios personalizados.

 

Interessa-nos considerar a historicidade do intérprete, porque, conforme mostra a pesquisa de Assis (2018), a criatividade também está presente na interpretação de uma peça historicamente situada. Assim como o compositor, o intérprete necessita dominar a teoria e a técnica do instrumento que toca e da leitura de partitura. No entanto, a partitura abre brechas para leituras criativas, apesar de sua notação abordar aspectos estruturais da música, como altura, volume, timbre e ritmo. É nessas brechas que se descortinam as discussões quanto a que se deve a fidelidade da interpretação musical, além da própria criatividade interpretativa do musicista. Na contemporaneidade, a liberdade criadora do intérprete alinha-se à do compositor, no sentido de abarcar a objetividade das bases técnicas e teóricas e a subjetividade das experiências pessoais. Nesse sentido, o intérprete não só reproduz a obra, mas insere sua singularidade na sua execução e, com isso, por mais que interprete a obra de outro compositor, o intérprete é capaz de exprimir sua visão e expressão sobre a obra, através de um diálogo ativo com a partitura.

Nota-se que, mesmo havendo certo consenso sobre os papéis ocupados pelo compositor e o intérprete, a singularidade criativa dos sujeitos está presente tanto na composição quanto na interpretação. Essa liberdade criativa do intérprete ocorre ao disponibilizar-se a uma leitura ativa; sem as amarras de uma leitura estritamente técnica que visa aos intentos do compositor, há espaços para o intérprete colocar-se como agente criador junto à partitura:

Parece evidente na criação do compositor a condição dialógica do termo liberdade criadora. Ela só existe em relação a algo que lhe é anterior e, ao mesmo tempo, em constante atualização. Ela só existe em relação à tradição e ao contexto nos quais o compositor (ou o intérprete) se insere. Daí a metáfora da “ponte entre duas margens de um rio”: o passado e o presente. [...] toda obra de arte incide num processo inconcluso em que cada nova obra altera a anterior, cada obra “fecha e abre simultaneamente velhas e novas etapas”, num movimento em espiral sempre aberta. (ASSIS, 2018, p.131-132).

 

Assis (2018) resume os processos criativos, de forma esclarecedora, e compartilha da ideia de Grassi (2008), quanto ao papel constituinte da tradição para novas criações. Evidencia-se, com esses dois autores, que há uma reverência ao que já foi produzido musicalmente, ao longo da história da humanidade, e, apesar disso, a música não é estanque e há espaço para a criação, seja ela como compositor, seja como intérprete, e que ambas as funções se beneficiam uma da outra, a fim de enriquecer o espectro musical para aqueles que o desfrutam.

 

2.2 O termo da Filosofia na analogia

A leitura e interpretação dos textos clássicos da Filosofia são também um modo pelo qual eles permanecem vivos. Se ninguém mais os lesse, por melhores que fossem, eles deixariam de ter importância no momento presente da atividade filosófica, o que seria ruim não apenas para os textos, que seriam esquecidos, mas, talvez principalmente, para o pensamento filosófico do presente, o qual deixaria de tê-los como parte ativa de sua existência atual. Dessa forma, assim como a interpretação das Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos traz presente essa obra e esse autor ao fazer musical de hoje, a leitura da Metafísica de Aristóteles é parte do fazer filosófico do presente.

Certamente, a orquestra que toca as Bachianas está fazendo música, no sentido de “executando a música”, de torná-la presente na vida dos músicos e da plateia. Todavia, a orquestra não está fazendo música no mesmo sentido em que Villa-Lobos fez, ao compor aquela série. Se ninguém mais tivesse executado as Bachianas, isso não alteraria em nada o fato de que Villa-Lobos fez música, ao compô-la. Por outro lado, se ninguém jamais houvesse composto nenhuma peça musical, não haveria como tocar nenhuma música. Isso significa que a atividade de composição é logicamente anterior à de execução. No entanto, são ações interdependentes, porque visam ao objetivo final, como obra artística, da fruição por parte de um público, porque, por mais que exista a composição na sua forma escrita, como partitura, é o intérprete que veicula a experiência sonora ao espectador; a produção final é a experiência sonora, não a escrita. Aqui se coloca uma das primeiras diferenças na analogia entre Música e Filosofia.

Essa tese da anterioridade lógica da composição em relação à interpretação se complica um pouco, no caso da “música aleatória” e mesmo do improviso, que deixam para o intérprete ao menos parte da tarefa de compor, pois neles a composição parece estar acontecendo ao mesmo tempo que a interpretação.[18] Porém, esses casos não enfraquecem a ideia de que a composição e a criatividade são fundamentais para a Música enquanto arte, mas antes a reforçam. Trata-se de uma “invasão” do âmbito da composição criativa na atividade normalmente mais contida da interpretação musical.

Algo análogo pode ser dito de fazer Filosofia como leitura e interpretação dos clássicos: a escrita dos textos que posteriormente se tornaram clássicos é um pressuposto da atividade interpretativa. Assim como, se ninguém compuser, ninguém vai poder tocar uma música, se ninguém escrever, ninguém vai poder interpretar, o que significa que a atividade de escrita filosófica criativa é, para a Filosofia enquanto área do conhecimento, mais fundamental que a de interpretação. Essa tese se justifica, porque a obra escrita, por si, pode ser compreendida como a produção final, enquanto, na Música, a partitura é um meio para a experiência sonora.

Entretanto, assim como o conhecimento das composições consagradas é fundamental para a formação em Música, o conhecimento dos clássicos da história da Filosofia é central, na formação filosófica acadêmica. O exemplo de Villa-Lobos é eloquente, nesse caso, pois ele compôs uma série de obras que pretendiam ser, ao mesmo tempo, originais e evocadoras do gênio consagrado de Bach[19], ou seja, sua composição estava intimamente ligada a uma interpretação. No caso da Filosofia, o estudo dos clássicos dá aos estudantes os modelos acerca dos temas, problemas e possíveis soluções para essas questões, um conjunto de ideias acerca do que constitui essa área. Estudantes de graduação, em um curso acadêmico de Filosofia, precisam estudar os clássicos, com a finalidade de entender a abordagem específica dessa área, a respeito de questões tratadas também por outras áreas, como é o caso da religião.

Além disso, estudar Filosofia na academia é aprender as principais posições tomadas em um debate, de modo que, para conhecer filosofia da religião, se supõe aprender, por exemplo, o debate acerca da existência de Deus, que acontece desde a antiguidade, tomando contato com os diversos argumentos contra e a favor, em suas diferentes versões. Conhecer esse debate o mais profundamente possível – ou, pelo menos, as teses mais recentes envolvidas na discussão – é uma condição para poder contribuir com ele. Assim como Villa-Lobos precisou conhecer profundamente as obras de Bach, para compor as Bachianas Brasileiras e, assim, contribuir internacionalmente com a arte musical, estudantes de filosofia da religião precisam conhecer as cinco vias de Tomás de Aquino, as críticas de Kant à teologia natural e a alternativa probabilística de Richard Swinburne, entre outras contribuições importantes, para poderem trazer algo de novo sobre a argumentação sobre a existência de Deus.

Por outro lado, essa estreita relação não deve nos levar a pensar que fazer história da Filosofia é o mesmo que fazer Filosofia autoral. O historiador da Filosofia, para fazer uma correta interpretação de uma obra, vai se perguntar, por exemplo, acerca do contexto no qual Kant escreveu suas objeções aos argumentos sobre a existência de Deus, na Crítica da Razão Pura, investigar a estrutura de sua argumentação, nesse livro, compará-lo com outros trabalhos nos quais Kant tratou desse assunto, ou com a estrutura argumentativa dos textos que ele levou em conta, na escrita de suas críticas. Uma correta interpretação do que Kant disse vai exigir conhecer o momento histórico, o contexto intelectual, a língua na qual ele escreveu originalmente, as diferentes versões do texto, o debate dos especialistas na obra de Kant, entre outros elementos. Trata-se de um trabalho altamente especializado, que exige anos de formação e tem, sem dúvida, uma função importante na Filosofia acadêmica, tanto na preparação de novas gerações de filósofos quanto em si mesmo, como conhecimento factual a respeito do que pensaram grandes autores da história do pensamento filosófico. Temos, assim, os especialistas em autores ou escolas de pensamento, análogos aos instrumentistas especialistas em determinados compositores. Mas isso é bem diferente de fazer filosofia autoral.

A principal diferença entre fazer história da Filosofia e fazer Filosofia autoral está no propósito, na intenção. Além de maestro e de tocar outros instrumentos, Villa-Lobos era violoncelista e, como tal, havia interpretado várias peças de Bach, como os Concertos de Brandeburgo, por exemplo. Mas, quando tocava Bach, Villa-Lobos visava a um propósito diferente do que se propunha, quando compôs as Bachianas. Embora tivesse um toque pessoal nas suas interpretações dos Concertos de Bach, o objetivo de Villa-Lobos, nesse caso, não era criar uma obra nova, mas, sim, executar bem a peça. Ao compor as Bachianas, porém, ele obviamente se inspirou em Bach, contudo, sua intenção era criar algo novo, algo que acabou sendo uma contribuição para a história da Música.

Assim, a pergunta que faz alguém que se propõe escrever filosofia autoral não é “qual é o melhor modo de interpretar o autor X”, mas, sim, “está certa essa ideia (dita pelo autor X)?”, “em que essa ideia contribui para entender o assunto Y?” Responder à pergunta acerca da verdade ou da correção (ou o objetivo epistêmico, com a concepção de verdade ou falta dela, que se tiver) de uma concepção é algo que pode começar com informações de história da Filosofia. Posso escrever um texto autoral, partindo das teses de Kant sobre a possibilidade de se formularem argumentos sobre a existência de Deus. Meu texto será histórico ou autoral, a depender da questão que eu tiver a intenção de responder.

Certamente, o conteúdo e a forma da minha questão e da minha resposta em filosofia autoral vão dever muito ao que eu já li sobre o assunto. E minha leitura, ainda que seja sobre o debate ocorrido nos últimos vinte anos, vai exigir em algum grau os cuidados típicos de quem quer entender com fidelidade o que foi escrito. Nesse sentido, acontece na Filosofia algo análogo ao que indicamos acima com a Música: a criação é enriquecida e tem como condição o conhecimento daquilo que já foi produzido antes. Mesmo assim, porém, pode-se dizer que são diferentes os problemas a que se voltam a história da Filosofia e a filosofia autoral, assim como são distintas as questões que tratam a interpretação e a composição musical.

Todavia, há uma diferença importante entre os casos da Música e da Filosofia. Um texto filosófico frequentemente se opõe ou se alinha a uma ideia e pode ser criticado quanto à pertinência das ideias, à profundidade da especulação ou da análise e à validade dos argumentos. Uma peça musical se relaciona com outras de maneiras diferentes, podendo ser criticada também de modos distintos. É verdade que podemos usar uma peça ou um compositor como referência para avaliar outro. Mas isso é diferente da pergunta filosófica sobre a verdade ou pertinência de uma tese. Quando me inspiro em outra peça, na minha composição, não estou me opondo a ela, tampouco a defendendo. Essa diferença na forma como pode ser usado o estudo das obras anteriores na autoria em Música e Filosofia é um dissemelhança relevante a ser considerada nessa analogia.

Outra diferença importante é o modo como são relativamente valorizadas a autoria e a interpretação na Música e na Filosofia, no Brasil. Embora se formem muito mais instrumentistas que compositores e seja mais comum se ouvir a interpretação de obras consagradas do que de composições mais recentes, não se questiona a importância de se formarem novos compositores no panorama musical acadêmico brasileiro. No caso da Filosofia acadêmica entre nós, porém, o fato mesmo de se dedicar uma edição de um periódico importante da área para a questão da filosofia autoral já mostra que se trata de algo muito menos pacífico. Talvez isso se deva à forma como teve início o estudo da Filosofia no meio universitário brasileiro e o fato de que, na instituição que nossa área tem como referência principal, a história da Filosofia seja o modo padrão de se trabalhar. Outra hipótese possível é o chamado “complexo de vira-lata”, o qual levaria a pensar que o melhor que podemos fazer em Filosofia é ler o que os outros escreveram, pois não temos talento ou aptidão para propor ideias filosóficas.

Com certeza, podem ser dadas boas explicações para nosso estado de coisas, mas isso não significa que não possamos defender uma mudança em relação a ele, de sorte que tenhamos condições também de formar quem se arrisque a pensar problemas novos, com soluções inovadoras. Não há por que pensar que a Filosofia se resuma apenas a ler os clássicos, pois eles precisaram ter sido escritos um dia para que os leiamos hoje, e não há por que pensar que não possamos (ou mesmo devamos) escrever hoje aqueles que poderão ser os clássicos de amanhã. Na verdade, a filosofia autoral não precisa mirar somente em grandes inovações que vão revolucionar a história da Filosofia. Uma filosofia criativa já se expressa em pequenas contribuições para um debate específico. O importante de uma filosofia com intenção original é tentar entender melhor os conceitos filosóficos em questão, ousar criticar as ideias que estão colocadas e propor um entendimento mais aprofundado. Precisamos valorizar mais a composição filosófica, no Brasil, seja ela análoga a uma grande sinfonia, seja a uma pequena variação ou um improviso a partir de um tema.

Além disso, a formação de autores não é igual à de leitores. Os desafios da preparação para a autoria em Filosofia são diferentes dos que estamos acostumados a enfrentar, no ensino, para formar especialistas nas obras filosóficas clássicas, como bem sabem nossos colegas da Música, quando ensinam composição e interpretação. A analogia desenvolvida nesta parte visava a defender a diferença entre filosofia autoral e interpretação de obras consagradas, a inter-relação entre essas duas maneiras de fazer filosofia e a importância de se desenvolverem os dois modos do fazer filosófico.

A próxima e última seção deste artigo pretende tratar, mesmo brevemente, dos problemas ligados à formação em filosofia autoral.

 

3 Condições de uma Formação para a Filosofia Autoral: Algumas Sugestões com uma Ajuda da Psicanálise

Se você tem uma ideia incrível, é melhor fazer uma canção.

(Caetano Veloso. Língua, 1982).

 

A partir do exemplo da filosofia da religião, defendemos que há ainda caminhos a percorrer, a fim de instaurar na filosofia brasileira produções criativas com intuito autoral, aliadas ao amplo trabalho que vem sendo desenvolvido em história da Filosofia. Considerando a analogia com a Música, argumentamos que, para a autoria criativa em Filosofia, também são imprescindíveis bases teóricas sólidas da tradição filosófica, com a qual se pretende contribuir e daí avançar. Para isso, tal qual na Música ou qualquer outra área do conhecimento, é necessário muita dedicação e estudo até que o estudante se torne um expert ou possa dar sua contribuição.

Em se tratando de formação para a Filosofia autoral, no meio acadêmico, o principal foco da presente seção é a dinâmica em sala de aula, a qual possibilita caminhar em direção à produção criativa, iniciando-se na graduação, até que o agente tenha as bases adequadas para a produção autônoma madura, normalmente a partir do grau de doutoramento. A tese que vamos desenvolver tem como foco não a Filosofia como área do conhecimento objetiva (que se deve aprender em sua história ou em seus debates específicos), mas no modo como ela é aprendida subjetivamente na formação universitária. O objetivo é ajudar a esclarecer pelo menos algumas condições que propiciem o desenvolvimento da criatividade filosófica.

A abordagem psicanalítica é bastante corrente nas ciências da educação, especialmente no tocante a questões que envolvem a formação para a criatividade. Assim, com um compromisso que não precisa ser mais que instrumental, para aprofundar o entendimento da subjetividade na produção filosófica, utilizaremos alguns conceitos psicanalíticos que permitam analisar as dinâmicas subjetivas que operam em sala de aula na tríplice fórmula aluno-professor-conhecimento a fim de proporcionar ou não a produção criativa. O conceito de “transferência” fornece um campo fértil para analisar a dinâmica da produção criativa dentro da universidade. Segundo D. A. Santos, em Afeto e Transferência na Constituição do Sujeito (2015), compreende-se a transferência como um dos conceitos fundantes da psicanálise e diz respeito à atualização das experiências constituintes primárias marcadas pela autoridade e afeto. Segundo ele, já em A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud apontou que as primeiras relações que o sujeito experiencia são com as figuras parentais, constituindo a partir daí as representações que ele internaliza. Ao se integrar gradativamente a círculos sociais cada vez maiores e mais complexos, o sujeito se relaciona com outros, os quais também lhe dão afeto e assumem o lugar de autoridade, como, por exemplo, o analista ou o professor:

Há, impreterivelmente, uma ligação entre a transferência e o desejo: o desejo de quem almeja passar algo e o do “Outro” que anseia receber algo, o que, no caso do ser humano, podemos interpretar como os cuidados iniciados desde a infância com a sua ligação parental até o que constitui o processo de ensino-aprendizagem. (SANTOS, 2015, p. 33).

 

No entanto, o sujeito não simplesmente repete suas experiências parentais, mas a experiência atual permite a ele uma nova vivência de afeto e autoridade que atualiza suas experiências constituintes:

[...] o fenômeno transferencial, que passa a ser compreendido como lugar de acontecimento de experiências. Logo a transferência passa a representar o “lugar” da emergência do novo, lugar da constituição do ser humano, numa compreensão em que o ser humano estaria continuamente no “entre” e sua constituição como ser humano passa então a acontecer a partir do encontro com o “outro”. Dessa maneira, a transferência apropria-se também como experiência intersubjetiva. (SANTOS, 2015, p. 34).

 

À medida que o sujeito envelhece, as relações transferenciais se tornam cada vez mais complexas, por envolverem certas expectativas sobre os afetos e as autoridades pertinentes a determinadas figuras e instituições. Assim, a transferência opera a partir do desejo de que certas expectativas se concretizem e na sua adequação – frustrada ou não – à realidade.

Conforme Colpo, Escobar e Ravasio, em “Reflexões Psicanalíticas sobre a Ação Educativa no Ensino Superior” (2008), a relação transferencial estabelecida pelo aluno se direciona ao saber do professor e à reputação da instituição de ensino superior que o professor integra e representa. Dessa forma, a expetativa transferencial de afeto e autoridade está atrelada à instituição e ao conhecimento, sendo o desejo pelo conhecimento e a relevância desse conhecimento que sustentam a relação entre professor e aluno:

Ao tomar conhecimento do plano de ensino, a comunidade acadêmica poderá interpretar quem é o professor que ministra a disciplina, a que veio, o que sabe da área, qual seu compromisso com os acadêmicos e qual sua relação com a disciplina. A organização do plano de ensino diz quem é o professor, por isso, se dá grande valor a sua estrutura, este plano também pode ser o documento que segue o aluno, e o dirige a uma posição. Desta forma, o plano de ensino também é um documento que apresenta formalmente a instituição, o curso, a disciplina e, consequentemente, o professor universitário. Instaura-se um primeiro traço identificatório no processo de ensino aprendizagem .(COLPO; ESCOBAR; RAVASIO, 2008, p. 101-102).

 

Com isso, os autores apontam que é na formalidade da instituição e na organização da disciplina que se deposita o desejo de conhecimento, e esse traço identificador diz respeito às expectativas postas sobre o professor e suas competências. Dessa maneira, o sujeito passa a se identificar com o ambiente acadêmico, através do ensino-aprendizagem em sala de aula, e é, efetivamente, o professor que o conduz a tal. No entanto, essa condução só é possível, quando as expectativas de aprendizagem são justificadas e se estabelece a transferência. Calcada no desejo de saber e na confiança de que o professor é capaz de suprir esse desejo, a transferência que parte do aluno confere ao professor sua autoridade e o torna receptor e doador de afeto. Ambos, autoridade e afeto, estão ligados ao conhecimento, ou seja, a autoridade só se estabelece, porque há a confiança de que o aluno aprenderá com o professor, e o afeto dirige-se ao reconhecimento dessa aprendizagem do e no aluno.

Além da transferência que parte do aluno, há a contratransferência, a qual parte do professor e das expectativas que são atendidas ou não. Além disso, a contratransferência é uma resposta inconsciente à transferência:

Freud (1910) defende que a transferência é vivida pelo paciente ao mesmo tempo em que a contratransferência é vivida pelo analista. Na escola, o mesmo acontece quando o aluno “confunde” o professor com figuras importantes da sua vida. O docente possivelmente contra-reagirá àquela situação, respondendo de forma inconsciente aos sentimentos do aluno. (BODINI; OLIVEIRA; PASQUALINI, 2011, p. 133 -134).

 

Nesse sentido, alunos e professor estão inseridos em um cenário de ações e reações inconscientes que mobilizam as relações em sala de aula. Conforme o psicanalista David Levisky (1995), percebe-se a transferência e a contratransferência a posteriori, quando as reações escapam, normalmente através da comunicação não verbal, na postura corporal e na entonação da voz. A transferência e a contratransferência estabelecem os laços relacionais em sala de aula, e é partir destes que o desejo pelo conhecimento e pelo momento de aprendizagem se consolidam, ao longo do período de ensino-aprendizagem. O professor, como autoridade epistêmica, outorgado por seu investimento em pesquisa, pela reputação da instituição e pela confiança do aluno, é o responsável por fomentar o pensamento e a produção criativa. Esse fomento à criatividade é possível quando, apesar de seu arcabouço técnico e/ou teórico, o docente se reconhece não todo ou faltante e abre espaço para o diálogo, a fim de que os alunos manifestem suas percepções e insights.

Vejamos um exemplo disso, na área de Filosofia. No artigo “A School for Philosophers” (1957 [1972]), R. M. Hare discorre acerca da formação de graduandos dentro da faculdade de filosofia na Universidade de Oxford, Reino Unido. Um dos pontos fundamentais desse processo é um tipo de atividade chamada tutorial, na qual o estudante deve ler um pequeno texto seu ao professor, em uma reunião semanal geralmente envolvendo apenas os dois. O texto deverá se basear em bibliografia indicada na semana anterior, mas o aluno deverá se posicionar em relação a ela, ou seja, deverá dizer o que pensa daquelas ideias e por quê.  Hare elenca algumas características que os professores adotam, na tutoria de seus alunos e durante as reuniões mais amplas dos grupos de pesquisa: não há campo restrito ou hierarquia impeditiva, todo e qualquer sujeito que deseje participar dos debates ou empreender uma pesquisa tem o aval da instituição sobre o seu posicionamento, contanto que possua bases sólidas suficientes para sustentar-se à avaliação dos pares.

Assim, os alunos se encontram em um ambiente criativo de ensino e aprendizagem, apoiando-se na tradição para sustentar suas posições e, no caso de perceberem incompletos, inconclusos ou insustentáveis seus posicionamentos, retornam à tradição para consolidar seu conhecimento, ou aproveitam as ideias do debate para aperfeiçoar suas ideias. Essa relação estabelecida entre aluno, professor e conhecimento, citada e exercida em Oxford, segundo Hare, aponta para o espaço onde o pensamento criativo se abre, quando se adota uma atitude de saber-se não todo pelo professor:

[...] se o professor se coloca na posição de que tudo sabe, não resta ao aluno desejo algum. Resta-lhe apenas submeter-se à figura do mestre. Dessa maneira, a posição que o professor deve ocupar não é exatamente aquela em que o aluno lhe coloca, melhor dizendo, para que o aluno se constitua enquanto sujeito pensante, o professor deve reconhecer-se castrado, isto é, um ser em falta. Ao mesmo tempo, não deve deixar sua posição de representante do conhecimento, caso contrário, o aluno não pode supor-lhe o saber, não se estabelece, portanto, o dispositivo da ação educativa. (MONTEIRO apud COLPO; ESCOBAR; RAVASIO, 2008, p. 109).

 

Encontra-se, no exemplo de Oxford, uma produção filosófica autoral que ativamente se sustenta sobre a tradição e na colaboração de uma comunidade de investigação, de sorte a iluminar novos conhecimentos. Em seu artigo, Hare ainda ressalta que todos estão submetidos a essa mesma lógica, professores e alunos; assim, os docentes assumem o lugar de não todo a favor de uma filosofia criativa e dinâmica, mas sem abrir mão da função de professores que orientam a favor da ação educativa.

No entanto, vale reconhecer o contexto do professor de Filosofia, no Brasil, onde a profissão de docente e as instituições de ensino são desvalorizadas de vários modos.[20] O que sustenta a busca por essa profissão e por essa área do saber é o desejo de ensino e o desejo de conhecimento compartilhado por alunos e professores, mas frequentemente se busca satisfazer esse desejo de formas menos edificantes. Na sua tese de doutorado O desejo de saber e suas vicissitudes - da escola à universidade: um enfoque psicanalítico (2005), T. Scorsato aborda como o desejo do professor pode se sobrepor ao desejo dos alunos, apoiando-se no respeito à sua autoridade epistêmica encontrada dentro do ambiente acadêmico, nos espaços de pesquisa e na sala de aula. Nesse contexto, é possível ponderar a resistência em assumir-se não todo e abrir espaços para que alunos percebam uma possível precariedade ou falta. Sendo a sala de aula o lugar onde se manifesta algum tipo de reconhecimento e valorização, é possível o professor fechar-se na vaidade de sua autoridade simbólica e expressar apenas o seu desejo sobre o conhecimento, sem abrir espaços para o desejo dos alunos, anulando-os a uma interpretação restritiva do legado filosófico importado e já consolidado. Aprende-se a tradição para repeti-la e se estabelece a autoridade apenas para se manter uma relação de poder:

Transmitir a verdade como preestabelecida impede o outro de produzir uma versão própria sobre o mundo e aí produzir novos saberes. A ciência pedagógica que seja capaz de transmitir o conhecimento sem imperatividade e também sem desorientação deixa aberto o campo dos saberes como um saber a ser produzido e situa o sujeito como agente de seu processo, permitindo a possibilidade de construir aprendizagem via versão própria e produtora de novos conhecimentos. (SCORSATO, 2005, p. 50).

 

A depender da transferência dos alunos, com suas expectativas frustradas ou não, a contratransferência pode trazer estados de criação, vaidade ou ressentimento. Isso significa que, sendo o depositário da confiança de aprendizagem e tido como representante do saber e da instituição, é o aluno que confere ao professor sua autoridade. Juntamente, o professor reconhece seus esforços para ocupar sua função e espera dos alunos o respeito apropriado ao ambiente acadêmico e a dedicação à pesquisa. Quando há o reconhecimento da falta nessa dinâmica de transferência e contratransferência, alunos e professor se encontram em espaços de diálogo a favor da aprendizagem e da produção criativa. Quando o professor assume o lugar de suposto saber desejado pelos alunos, a vaidade se instaura e não há espaço para o diálogo, mas apenas para a reprodução do conhecimento do professor. Quanto ao ressentimento, esse encontra campo fértil, quando nenhuma das expectativas é atendida.[21]

Isso nos leva de volta ao processo criativo composicional, no qual é necessário apoiar-se na tradição e no debate, para criar algo novo; assim também é, pelo menos parcialmente, o percurso para uma filosofia autoral. Na filosofia acadêmica, normalmente, na graduação, os alunos adquirem as bases das tradições filosóficas; no mestrado, consolidam-se na área de sua preferência para, no doutorado, contribuir criativamente. Contudo, para contribuir originalmente, é preciso que haja também incentivos para empreender nesse processo desde o começo, ou seja, saber como abordar criativamente a tradição filosófica. Como qualquer outra prática, essa também precisa ser estimulada junto à consolidação das bases epistêmicas da tradição.

Assim, na formação para uma filosofia criativa, não basta retornar aos clássicos: é preciso lê-los de modo ativo, como interlocutores, como participantes mais experientes de uma coletividade que tem como finalidade o pensamento filosófico crítico. A leitura ativa certamente exige a busca da compreensão a mais fiel possível daquilo que foi escrito, e nisso, entre outras coisas, a história da Filosofia será de imensa utilidade. No entanto, além de compreender bem um texto em seu contexto e suas articulações lógicas internas, ler os clássicos como interlocutores exige guiar essa atividade por questões, buscando no texto eventuais respostas ou um aperfeiçoamento das perguntas. Ler com um propósito crítico significa colocar o texto em crise, ao mesmo tempo que quem lê se dispõe a aprender com ele. O propósito adequado da leitura dos clássicos a uma formação para a filosofia autoral é uma compreensão conceitual mais profunda de um assunto, é pensar melhor sobre um tema e não a correta interpretação apenas, tampouco a apreciação estética do texto.

Tomar as grandes filosofias do passado como interlocutoras para o pensamento crítico significa que a formação para uma filosofia criativa precisa de uma comunidade de investigação, por meio da qual as ideias possam ser aprofundadas pelo debate. A formação filosófica acadêmica não se restringe à sala de aula; a participação em grupos de pesquisa é um meio fundamental de aprendizado, não somente dos conteúdos da área, mas também dos modos como seu tipo específico de conhecimento se desenvolve. O exercício de escrever um texto sobre um assunto e submetê-lo à discussão de um grupo de pesquisa especializado é uma forma particularmente importante de incentivo à educação de filósofos que possam contribuir com a área, originalmente.[22]

Além disso, assim como há técnicas que ajudam na elaboração de um bom trabalho em história da Filosofia, há também recursos que podem ajudar na escrita de um texto filosófico com intenção criativa. Métodos de análise lógica e probabilística podem auxiliar na preparação de argumentos dedutivos, indutivos ou pela melhor explicação. A formulação de experimentos de pensamento ou a proposição de contraexemplos para teses filosóficas consagradas são igualmente exercícios úteis para o propósito da inovação filosófica. Um diálogo com as artes, as tradições religiosas e as ciências empíricas e formais – e não apenas com o debate em Filosofia, como temos na formação filosófica acadêmica, tradicionalmente – pode ser também uma fonte interessante de problemas e soluções inovadoras em Filosofia. Mas esses são apenas alguns instrumentos possíveis e não devem levar a confundir a proposta de filosofia criativa com a defesa da chamada “filosofia analítica” (se é que essa expressão tem um significado unívoco, hoje em dia) ou de um modo de filosofar que se dá predominantemente com o uso de recursos formais de argumentação.

Por fim, a formação para a filosofia criativa precisa de uma dosagem correta de crítica aos erros (de principiante ou não) e estímulo a continuar na busca pelo pensamento inovador. Faz parte do processo de formação para o pensamento criativo a indicação dos defeitos do texto escrito ou da apresentação oral. Isso certamente pode incluir indicar o quanto as suas ideias boas não são originais e o quanto as suas ideias originais não são boas. A atitude de humildade intelectual, no sentido de se dispor a aprender com os interlocutores do passado e do presente, é uma virtude fundamental no processo de formação para a filosofia autoral. Entretanto, a indicação de lacunas no conhecimento do debate filosófico sobre o assunto tratado, da superficialidade da análise ou da reflexão, ou de erros na estrutura da argumentação não deve levar a um desestímulo no desenvolvimento de pensar criativamente. Leva tempo e se exige paciência para se tornar um especialista em um ponto específico da história da Filosofia, e o mesmo acontece com a filosofia autoral. A crítica deve servir para levar adiante, não para exterminar o futuro.

 

Considerações Finais

Conforme o percurso empreendido no presente artigo, apresentam-se algumas considerações finais acerca da pertinência e possibilidade de se incentivar a produção filosófica criativa nacional, tomando-se o caso do desenvolvimento recente da filosofia da religião, no Brasil. Percebeu-se, com a analogia à composição e interpretação musical, que não há o intento em desvalorizar a atual produção filosófica voltada à abordagem histórica, mas acrescentar outras possibilidades de fazer Filosofia. Como o compositor precisa do intérprete e vice-versa, observa-se que há benefício mútuo entre filósofos que se dedicam à escrita de novas ideias e os que se debruçam sobre a interpretação, visto que assim se diversifica a discussão contemporânea da filosofia nacional.

Por fim, compreende-se que uma abordagem criativa à Filosofia se torna profícua, se iniciada junto à aquisição das bases teóricas da tradição e do emprego de técnicas de argumentação e de escrita com propósito crítico, para que haja o exercício de criação de algo novo, a partir do legado existente. Tendo como foco a filosofia enquanto prática concentrada no ambiente acadêmico, discutimos a relação entre professor, aluno e conhecimento, a favor de momentos de diálogos criativos em sala de aula e na pesquisa. Experiências fora do Brasil mostram que é possível uma abordagem de ensino-aprendizagem criativa em Filosofia, a qual se sustenta nos pilares da tradição consolidada. Cabe reconsiderar a prática pedagógica nacional a favor de uma filosofia autoral e criativa.

Assim, quem sabe um dia possamos contribuir para a área de Filosofia (da religião e em geral) como Villa-Lobos contribuiu para a Música, Niemeyer para a Arquitetura e Machado de Assis para a Literatura, ou mesmo ser também capazes de participar com pequenas contribuições nossas, no debate sobre os temas em que se engaja a comunidade filosófica internacional, inclusive sugerindo novos assuntos e novas abordagens.[23]

 

For a Creative Philosophy (of Religion): the Problem of Philosophical Training from an Analogy with Music

Abstract: This article is divided in three parts in order to investigate on the authorial and creative philosophical production in the Brazilian academic environment. In the first part, we show the challenge to authorial production in philosophy in Brazil, starting from the example of recent initiatives in the philosophy of religion. In the second part, by means of an analogy with music, we intend to argue that the plead for a greater promotion of authorial philosophy in Brazil does not mean to devaluate the work with history of philosophy, which seems to be the predominant approach in academic philosophy in our country. The third part addresses the challenges to the formation of philosophical authorship, based on the triplet student-professor-knowledge, and acknowledging objective and subjective aspects of learning.

Keywords: Philosophy as composition. Academic philosophy in Brazil. Training for creativity. Lack. Desire and learning.

 

Referências

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Recebido: 29/08/2022

Aceito: 04/12/2022


 

Comentário a “Por uma filosofia (da religião) Criativa”: o problema da formação filosófica a partir de uma analogia com a música

 

Murilo Rocha Seabra[24]

 

Referência do artigo comentado: Portugal, A. C; Portugal, C. P. Por uma Filosofia (da Religião) Criativa: o Problema da Formação Filosófica a partir de uma Analogia com a Música. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 23- 52, 2023.

 

A Templeton Foundation tem injetado somas vultuosas no Brasil para fortalecer o campo da chamada “filosofia da religião” – que deveria talvez se chamar “filosofia do cristianismo” ou “filosofia da religião judaico-cristã”, não “filosofia da religião” (Seabra, 2021, p. 132). Os investimentos deveriam no mínimo nos deixar com uma pulga atrás da orelha. Segundo Jerry Coyne, professor de biologia da Universidade de Chicago, a Templeton só quer colocar os velhos argumentos da Europa medieval em favor da existência de Deus – não de Yemanjá, não de Omama, não de Quetzalcoatl, não de Allah, não de Shiva, mas apenas da divindade judaico-cristã chamada “Deus” ou “Jeová” – sob uma roupagem que a comunidade científica moderna considere mais tragável (Coyne, 2011). O uso exuberante da estatística e da lógica formal não é mais do que uma manobra de marketing. Ambas servem apenas para trazer um ar de respeitabilidade a uma religião que mostrou sua verdadeira face na era colonial – e que recentemente tem perdido prestígio devido ao seu apoio a figuras como Bolsonaro, ao seu compromisso inveterado com o etnocídio e aos escândalos de pedofilia que ano após ano envergonham o Vaticano.

As coisas não param por aqui. A Templeton também investe em acadêmicos, organizações e think tanks de direita que combatem leis trabalhistas, defendem a privatização de serviços públicos (inclusive de universidades) e vociferam contra mulheres que lutam pelo direito ao aborto (Evans, Lawrence, Pegg, Barr, 2019). A semelhança com o regime militar inaugurado em 1964 com a ajuda de Washington não é mera coincidência. Aliás, o fundador da Templeton já disse em entrevista que se deve comprar ações em tempos de guerra e títulos em tempos de paz (Templeton, Ellis, 1991).

Em última instância, o que a Templeton almeja é marginalizar o pensamento crítico e aumentar o abismo entre os mais pobres e os mais ricos. As duas coisas andam juntas. Do ponto de vista estritamente lógico, os argumentos a favor da privatização de serviços públicos – e de toda agenda neoliberal – são tão coerentes quanto a afirmação de que 1+2=5 ou de que “Ele não nasceu no Brasil, logo ele é carioca”. Eles são frágeis. Eles são deploráveis. Eles são asquerosos. Deixados à própria sorte, tendem a acumular poeira e a ser triturados pelas engrenagens do tempo. Portanto, é necessário (a) construir um exército de ideólogos preparados para defendê-los com unhas e dentes, e (b) fomentar um ambiente intelectual menos crítico e menos politicamente consciente de modo a facilitar o trabalho dos marines do neoliberalismo.

Não é a primeira vez que uma fundação que se apresenta como puramente filantrópica usa seu poderio econômico para interferir no mundo intelectual. Washington já sabe há muito tempo que as universidades possuem uma enorme importância estratégica. Não foi por outro motivo que a Ford Foundation, trabalhando junto com a Central Intelligence Agency (CIA), distribuiu bolsas de estudo pelo mundo inteiro. Antes da derrubada de Allende em 1973, por exemplo, ambas já tinham formado uma horda de economistas chilenos convencidos de que a melhor coisa a fazer era abrir o país ao capital estrangeiro e entregá-lo de bandeja aos Estados Unidos (Seabra, 2022a).

Um pouco de senso crítico não faz mal a ninguém. A religião pode, sim, ser estudada e discutida de maneira séria e rigorosa pela filosofia (até mesmo em sua face judaico-cristã (aliás, o fato de que ela frequentemente contradiz o que prega a torna especialmente apetitosa)). A reflexão filosófica – a reflexão radical, responsável e corajosa – sobre a religião, porém, parece ter sido terminantemente banida da “filosofia da religião”. Ela se ocupa apenas com perguntas anódinas. As perguntas de importância capital – as perguntas verdadeiramente fundamentais – estão excluídas por princípio. Qual é o papel que o cristianismo continua a desempenhar no etnocídio (por exemplo, no etnocídio dos Yanomami que recentemente virou manchete internacional)? Por que os judeus israelenses estão tratando os palestinos como foram tratados pelos nazistas (a ideia de superioridade étnica já latejava em forma embrionária no judaísmo, antes mesmo da mutilação da Palestina e da criação de Israel)? E por que a filosofia da religião qua disciplina acadêmica – que deve ser nitidamente distinguida da filosofia da religião qua atividade intransigente de reflexão sobre os fenômenos religiosos – insiste em fechar os olhos para o cristianismo em seus aspectos mais fulgurantes e sórdidos, limitando-se a tentar provar que Jeová existe por meio de pseudoargumentos lógicos e pseudocálculos matemáticos?

Talvez a resposta não esteja fora do alcance. A Templeton Foundation não tem nenhum interesse em apoiar a filosofia no sentido estrito do termo. Ela não tem nenhum interesse em apoiar a filosofia qua atividade intransigente de reflexão. Por que o faria? O que ela ganharia? E já deveríamos ser maduros o suficiente para saber que, em se tratando dos Estados Unidos, nada vem de graça. Os objetivos de médio e longo prazo da Templeton não são difíceis de entrever. O que ela quer fazer é esvaziar a universidade de todo pensamento crítico e de todo pensamento não alinhado aos interesses dos psicopatas unidos do capitalismo (Seabra, 2022b). Em uma palavra, ela quer esvaziá-la de todo pensamento. Pois o pensamento não aceita nem 1+2=5 nem “Ele não nasceu no Brasil, logo ele é carioca”.

A menos que já esteja fraco e domesticado – e acredite que a existência de Jeová pode ser matematicamente demonstrada, por exemplo –, o pensamento não abaixa a cabeça nem para a trickle-down theory, nem para a ideia de que as universidades devem ser privatizadas, nem para nenhuma outra asneira neoliberal ou neocolonial. Pelo contrário, o pensamento pensa. Portanto, uma estratégia aparentemente paradoxal precisa ser tomada se quisermos avaliar de forma séria a filosofia da religião (e a mesma coisa vale para a filosofia acadêmica de maneira geral). Não podemos examinar apenas o que ela produz, o que ela publica e o que ela fala. Precisamos também – talvez sobretudo – examinar o que ela não produz, o que ela não publica e o que ela não fala.

 

Referências

Coyne, J. Martin Rees and the Templeton travesty. The Guardian, 06 abr. 2011. Disponível em: https://www.theguardian.com/science/blog/2011/apr/06/prize-mug-martin-rees-templeton. Acesso em: 02 jan. 2023.

Evans, R.; LAWRENCE, F.; PEGG, D.; BARR, C. Wealthy US donors gave millions to righting UK groups. The Guardian, 29 nov. 2019. Disponível em:  https://www.theguardian.com/politics/2019/nov/29/wealthy-us-donors-gave-millions-to-rightwing-uk-groups. Acesso em: 02 jan. 2023.

Portugal, A. C; Portugal, C. P. Por uma Filosofia (da Religião) Criativa: o Problema da Formação Filosófica a partir de uma Analogia com a Música. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 23- 52, 2023.

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Seabra, M. Psicopatas Unidos do Capitalismo. Coluna Anpof, 14/11/2022b. Disponível em: https://anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/psicopatas-unidos-do-capitalismo. Acesso em: 02 jan. 2023.

Templeton, J.; Ellis, J. Templeton: Buy stocks in war, buy bonds if there’s peace. Money, vol. 20, N. 2, 1991, p. 177. Disponível em: https://discovery.ebsco.com/c/6kr4lr/viewer/html/emm7mikzoj. Acesso em: 02 jan. 2023.

 

Recebido: 02/03/2023

Aprovado: 10/03/2023


 

Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir

 

Alfredo Pereira Jr.[25]

Vinícius Jonas de Aguiar[26]

 

Resumo: A sentiência, definida como a capacidade inconsciente de se ter experiência consciente do sentir, é um fenômeno psicobiológico, envolvendo padrões dinâmicos de ondas eletroquímicas, em sistemas vivos. O processo de sentir pode ser estudado em duas modalidades: a) identificação empírica e análise dos padrões temporais universais que caracterizam a sentiência, cujo estudo seria a Sentiômica; b) identificação introspectiva e relato da variedade de experiências conscientes, na perspectiva de primeira pessoa, cujo estudo seria a Qualiômica. A Qualiômica é, sem dúvida, um desafio para a ciência convencional, como afirmado no “problema difícil da consciência” (CHALMERS, 1995), pois a perspectiva de primeira pessoa não é acessível aos métodos de medição e às explicações científicas convencionais. A Sentiômica, enfocando padrões dinâmicos que definem a capacidade de sentir, é, portanto, por definição, suscetível de um tratamento empírico e experimental. Neste artigo, propõe-se contextualizar pressupostos e problemas filosóficos da Sentiômica e apresentar algumas das suas diversas aplicações, com foco na sua relação com a música.

 

Palavras-chave: Sentiômica. Qualiômica. Sentiência. Informação. Cognição Musical.

 

INTRODUÇÃO

            “Sentiência” refere-se à capacidade de sentir, ou seja, de se ter experiência consciente de formas qualitativas (qualia). Neste trabalho, definimos sentiência como a capacidade inconsciente de se ter experiência consciente do sentir. Por exemplo, as pessoas têm a capacidade inconsciente de sentir dor, quando afetadas por um estímulo nocivo; entretanto, isso não significa que sintam dor, durante todo o tempo em que estão acordadas e conscientes. Apenas quando a capacidade de sentir se expressa na experiência o sentimento é conscientemente vivenciado.

            Emoções, sensações, percepções e afetos, tais como experienciados por humanos, são expressões da capacidade de sentir. Utilizamos o termo sentimento para nos referir a todos os tipos de experiências qualitativas, em humanos e não humanos.[27] As experiências conscientes, na perspectiva de primeira pessoa, podem ser afetivas/emocionais, cognitivas e/ou relacionadas ao comportamento; em todas essas modalidades, tais experiências comportam estados qualitativos, chamados de qualia.

            Assumimos que podem existir inúmeras nuances e variações da expressão dos padrões da sentiência, em sistemas humanos e não humanos, muitas das quais seriam dificilmente tradutíveis para a linguagem verbal humana. A Sentiômica, enquanto ciência da capacidade de sentir, enfoca os “genes do sentimento”, isto é, os padrões dinâmicos inconscientes capazes de gerar sentimentos conscientes. Faz parte da fundamentação da Sentiômica a suposição de que esses padrões sejam universais e possam, portanto, ser registrados e analisados na perspectiva da terceira pessoa, a qual caracteriza o método científico tradicional. Uma vez que esses padrões se expressam para alguém, eles são experimentados na perspectiva de primeira pessoa.

            As experiências pessoais, por sua vez, não seriam universais, mas singulares, para cada indivíduo, de cada espécie biológica. Isso plausivelmente se deveria ao fato putativo de que, a cada região do espaço e do tempo, em organismos vivos, as combinações dos padrões universais do sentir ocorrem de modo diferente. Isso é possível porque, assim como na linguagem humana, da combinação de um número finito de elementos (alfabeto), pode-se gerar um número infinito de palavras e frases; do mesmo modo, no estudo da sentiência, de um mesmo repertório universal de padrões dinâmicos que geram sentimentos, pode-se gerar uma variedade infinita de combinações, que compõem a perspectiva de cada pessoa.

            Não iremos aqui nos aprofundar na discussão do conceito de consciência, uma vez que a Sentiômica se refere aos padrões inconscientes, instanciados no tecido biológico vivo, que dão suporte à consciência; caso o leitor se interesse por esse tipo de investigação conceitual, sugerimos nossos trabalhos prévios (PEREIRA JR.; RICKE, 2009; PEREIRA JR. et al., 2010: PEREIRA JR., 2013b; PEREIRA JR., 2018; PEREIRA JR., 2021a). O estudo dos qualia, a ser chamado de Qualiômica, é específico para cada espécie, e os padrões que se expressam na experiência consciente são singulares e restritos às respectivas perspectivas de primeira pessoa. A Qualiômica é, sem dúvida, um desafio para a ciência convencional, como afirmado no “problema difícil da consciência” (CHALMERS, 1995), pois a perspectiva de primeira pessoa não é acessível aos métodos de medição e às explicações científicas convencionais. A relação entre a Sentiômica e a Qualiômica constitui uma temática ampla e complexa, a qual aqui iremos apenas sugerir.

            Para os seres humanos, com base em nossa experiência na perspectiva de primeira pessoa, podemos afirmar que há uma conexão das qualidades subjetivas com a história individual; por exemplo, um acorde menor na harmonia de uma música pode estar relacionado a um grau de melancolia, na mente de quem a ouve. No entanto, essa conexão não é suficiente para a identificação de padrões dinâmicos que geram sentimentos em outras espécies. Como esses padrões biológicos não provocam necessariamente os sentimentos correspondentes à experiência humana, precisamos de ferramentas científicas e tecnológicas para registrá-los e analisá-los, como, por exemplo, a eletroencefalografia. Amparados nesses registros e estudos, podemos conjecturar, com base empírica, que as diversas espécies animais, e mesmo plantas, apresentam padrões básicos do sentir, que expressariam algum grau de experiência consciente, por exemplo, relacionados a sensações básicas, como sentir o toque na pele, sentir calor, sentir fome e sede etc. Por outro lado, há grande probabilidade, a partir dos mesmos dados, de que vários tipos de experiências conscientes humanas, no domínio cognitivo, como a autoconsciência (consciência de ser consciente), não estejam presentes em outras espécies biológicas, o que, evidentemente, não exclui a possibilidade de que tais espécies tenham experiências conscientes sensoriais próprias a seu aparato perceptivo, como no caso da ecolocação em morcegos (NAGEL, 1974).

            A Sentiômica interessa-se por qualquer sistema que expresse os padrões dinâmicos do sentir, como plantas, colônias de seres unicelulares e, certamente, indivíduos de todas as espécies animais, sendo que, em cada um desses sistemas, as experiências geradas (qualia) seriam específicas, relativas a suas respectivas estruturas e história de cada indivíduo. As características consideradas exclusivas a determinadas espécies, como, por exemplo, o comportamento moral humano, ou características típicas de outras espécies, como, por exemplo, a capacidade de discriminação olfativa dos cães, que é muito superior à humana, não seriam de interesse. Em suma, os padrões que interessam à Sentiômica seriam aqueles que podemos considerar como universais, a exemplo do código genético, o qual é o mesmo em todos os seres vivos, enquanto as expressões experienciais conscientes seriam não apenas específicas de cada espécie, mas únicas para cada indivíduo, devendo ser estudadas não pela Sentiômica, mas, quando possível, pela Qualiômica.

            A distinção entre essas duas perspectivas é de natureza epistemológica, não implicando necessariamente algum tipo de dualismo ontológico; ao contrário, assumimos aqui uma abordagem monista, em que os objetos de estudo da Sentiômica e Qualiômica se referem a aspectos da mesma realidade. Os padrões que não geram qualia não interessam à Sentiômica, uma vez que esta se caracteriza pela busca, identificação e análise dos padrões dinâmicos universais que geram sentimentos em sistemas vivos, como plantas, fungos, bactérias e animais. Esses padrões podem ser externos (por exemplo, sinais sensoriais originados fora do sistema) ou internos (por exemplo, formas estruturais, ondas eletroquímicas que percorrem os tecidos) aos sistemas. Os padrões internos se formam em processos psicofisiológicos de estimulação, afastamento da homeostase (perturbação) e alostase (reestabilização), nos quais ocorre a formação de estados vibracionais e ondas, no tecido nervoso. Essas ondas se correlacionam com e dão suporte a processos perceptivos, afetivos e enativos, que denotamos com os termos sensação, emoção, humor, desejo e outros.

            Os padrões dinâmicos da sentiência podem ser estudados na perspectiva de terceira pessoa da ciência convencional, por meio de registros empíricos, formalização lógico-matemática, análise computacional e teste experimental. Seu estudo seria, em um segundo momento, importante para se entender melhor os processos conscientes, ou seja, as experiências pessoais, na forma de episódios temporais vividos na perspectiva da primeira pessoa. Entretanto, vale ressaltar, às custas de sermos repetitivos, que a Sentiômica não é o estudo da experiência consciente, pois esse estudo seria a Qualiômica, exigindo métodos de primeira pessoa, como a introspecção, meditação, fenomenologia transcendental ou existencial, os quais são igualmente importantes, porém, não se encaixam no método científico tradicional.

            Há, portanto, um problema filosófico inerente ao estudo do sentir em geral e da consciência em particular, a saber: como articular essas duas perspectivas, no estudo das experiências sentientes? Como conciliar a abordagem empírica com os métodos de primeira pessoa? Em que medida as abordagens “subjetivas” podem ser úteis para os métodos científicos que compõem a perspectiva em terceira pessoa? Ou ainda: até que ponto os métodos científicos “objetivos” podem contribuir para a nossa compreensão do sentir, sem o auxílio de conhecimentos advindos da perspectiva em primeira pessoa?

            Com o advento da Sentiômica, torna-se desnecessário “forçar a barra” nas duas direções, seja para fazer os métodos de primeira pessoa se passarem por científicos, seja para abordar os qualia na perspectiva de terceira pessoa. Ao se enfocar os “genes do sentimento”, pode-se fazer ciência tal como esta é concebida pela comunidade científica, com base nos registros empíricos, modelos formais, análise computacional (inclusive utilizando as ferramentas contemporâneas da tecnologia da informação) e demais métodos chamados de quantitativos, enquanto os estudiosos que utilizam os métodos qualitativos podem desenvolver a Qualiômica com propriedade, sem a necessidade de lhe colocar a roupagem da ciência convencional.

            Portanto, os métodos que se baseiam na perspectiva de primeira pessoa, acima citados, além daqueles que os combinam com relatos da experiência subjetiva de outras pessoas, verbais (por exemplo, entrevistas) e não verbais (por exemplo, registro do comportamento em vídeo), comumente referidos como “pesquisa qualitativa”, se integrariam na Qualiômica. Tendo em vista o significativo desenvolvimento desses métodos, nas últimas décadas, julgamos desnecessário tratar de suas características neste artigo, pois nosso foco está nos padrões inconscientes do sentir, estudados na perspectiva da terceira pessoa. Trabalhos futuros, que procurem fazer uma síntese dos resultados da Sentiômica e Qualiômica, deverão se debruçar nesses métodos, para melhor entender como se dá o processo de expressão consciente dos padrões inconscientes. Porém, isso vai além do escopo deste texto.

            Podemos dizer, a esse respeito, que a distinção entre Sentiômica e Qualiômica é análoga à distinção que se faz, na Biologia, entre genótipo e fenótipo, e, na Linguística, entre a estrutura gramatical e as sentenças que são geradas pela combinação dos elementos estruturais. A Sentiômica se constrói a partir da mesma estratégia científica das outras “ômicas”, como, mais notoriamente, a Genômica, a Proteômica e a Metabolômica, ou seja, disciplinas que visam à caracterização e quantificação de moléculas biológicas presentes na estrutura, função e dinâmica de organismos vivos.[28] Nas Ômicas biológicas, supõe-se que haja uma continuidade entre as estruturas e as funções pelas quais as estruturas se manifestam, na fisiologia e no comportamento dos sistemas vivos. Do mesmo modo, supomos que haja uma continuidade entre os padrões inconscientes estudados pela Sentiômica e as experiências conscientes estudadas na Qualiômica, mas, neste caso, haveria, ao menos no plano epistemológico, uma “lacuna explicativa” que ainda não foi preenchida com explicações convincentes para a comunidade filosófica e científica, motivo pelo qual não poderemos avançar muito nesse terreno.

 

1 PRECURSORES DA SENTIÔMICA

            Diversas linhas de investigação científica anteciparam e realizaram, em parte, os objetivos da Sentiômica, procurando promover a identificação e análise de padrões dinâmicos da natureza que embasam a capacidade de sentir e, portanto, de se ter experiência consciente.

            Em tempos mais recentes, destaca-se a busca por “correlatos neurais da consciência”, na neurociência (DENNETT, 1991; CHALMERS, 1996; FRITH, 2020). Entretanto, nem todos os chamados correlatos neurais seriam adequados à Sentiômica; apenas aqueles que apresentam uma dinâmica temporal são adequados (sobre a questão do papel do tempo nas neurociências cognitiva, afetiva e da ação, vide CARIANI, 1994; PEREIRA JR., 2013a). Os correlatos identificados em termos de regiões ou circuitos cerebrais não servem para a Sentiômica, já que não tratam de padrões dinâmicos (i.e. dynamic patterns, no sentido de KELSO, 1995) e sim de regiões espaciais de um sistema material.

            Os registros eletroencefalográficos de alta resolução temporal são os que mais se aproximam da Sentiômica, ao evidenciarem ondas eletroquímicas moduladas por frequência, amplitude e fase (vide próxima seção). Mesmo que esses registros tenham sido feitos em apenas uma dimensão (uma linha), mas se deslocando, no tempo, em uma segunda dimensão, pode-se generalizar para mais dimensões, como em recentes abordagens que se referem a um vórtice quadridimensional (LIMA et al., 2021) Essa dinâmica foi representada por Bovenkamp (2013), por meio de um vídeo ilustrativo da dinâmica espaço-temporal estruturante da realidade.

            A teoria intitulada Sentics, desenvolvida por Manfred Clynes (1997), consiste em uma abordagem mais ampla, considerando o corpo vivo total como sistema sentiente, o qual gera sentimentos a partir de padrões temporais que acontecem não só no cérebro como também em outros sistemas, como o cardiovascular e o respiratório (ver Figura 1):

 

Figura 1: Sentic Forms

Conceito elaborado por Manfred Clynes

Gráficos: emoções e registros de taxa de respiração e frequência cardíaca

Fonte: https://www.brainpickings.org/2011/09/05/manfred-clynes-sentics/.

 

            Na mesma direção, o estudo de estados vibracionais dinâmicos, como os padrões de Chladni, tem sido feito desde a antiguidade, tendo inspirado uma área de estudos chamada de Cymatics, relacionada à Antroposofia de Rudolf Steiner, o qual, por sua vez, se baseou na Filosofia da Natureza de Goethe (ver JENNY, 1974).  

            Um exemplo atualizado desse tipo de abordagem pode ser encontrado na obra de Alwyn C. Scott (SCOTT, 2007) — um dos fundadores do Centro para Estudo da Consciência da Universidade do Arizona, que organizou a série de encontros bianuais chamada Towards a Science of Consciousness. Seu trabalho em ondas não lineares, como bem sintetiza Scott Jr.,

[...] mostrou uma amplitude incomum de visão, variando de experimentos e a teoria dos pulsos nervosos a ondas conservadoras de energia (solitons) em dispositivos eletrônicos e macromoléculas. Esses vários tipos de ondas desempenham conceitualmente o papel de “partículas elementares” em uma série de fenômenos físicos e biológicos: “De certa forma, um impulso nervoso pode ser visto como uma partícula elementar de pensamento, assim como um elétron é visto como uma partícula elementar de matéria”.[29]

 

            Uma das áreas que mais se desenvolveu recentemente é a chamada Sonificação, na qual microestruturas biológicas e mesmo eventos físicos de grande escala e complexidade são traduzidos em sons.[30] Nessa abordagem, a representação acústica torna-se símbolo sensível e temporal de padrões dinâmicos da natureza, permitindo-nos identificar, classificar e analisar aspectos desses padrões não disponíveis em representações visuais dos mesmos (ver exemplos em WORRALL, 2019; PONOMARENKO et al., 2017).

            Outra fonte interessante para a Sentiômica, e que recentemente tem sido explorada sobretudo na musicologia e na semiótica cognitiva, é o estudo dos gestos (gesture studies) que exprimem ou induzem sensações, sentimentos e emoções (ver, por exemplo GODØY; LEMAN, 2010; MÜLLER, 2014). O objetivo, nesse caso, é captar e sistematizar, através de diferentes instrumentos metodológicos, padrões gestuais objetivos que acompanham, sugerem, indicam, induzem ou representam algum tipo de experiência sentiente subjetiva. Por exemplo, na musicologia matemática de Mazzola (ver MAZZOLA et al., 2017), em vez de analisar somente as relações presentes no “texto” musical anotado na partitura, pretende-se aprofundar a compreensão do sentido musical por meio da análise matemática da dimensão gestual que objetivamente movimenta a notação no tempo (e.g. MAZZOLA et al., 2017, p. 950-960). Outro método, recentemente desenvolvido, por exemplo, por Mittelberg (2014), utiliza modelos da semiótica cognitiva para classificar as diferentes modalidades de sentidos gestuais. Citaríamos ainda, por fim, o método proposto por Basbaum (2020), inspirado na fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty, o qual pretende “[...] interpretar o problema da semântica em termos de seu enraizamento no corpo” (BASBAUM, 2020, p. 321, grifos no original) por meio da elaboração de “glossários” de gestos.

            Neste ponto, uma discussão que emerge é sobre a relação entre Sentiômica e Semiótica. Seria a Sentiômica uma parte da Semiótica voltada à sentiência? Ou a Sentiômica lidaria também com padrões da natureza anteriores aos signos? Podemos considerar (ao menos alguns) signos artísticos como representações de padrões dinâmicos de experiências sentientes? Lembremos os exemplos teóricos e artísticos dos projetos Amazing Amazon, de José Wagner Garcia (ver GARCIA, 2002; ver também os ensaios sobre o rio Amazonas, em SILVEIRA, 2014), e a música holofractal, de Eufrasio Prates (PRATES, 2011), nos quais nos são revelados padrões biossemióticos e físicos através de signos artísticos — seriam exemplos de aproximação entre Sentiômica e Semiótica?

            Evidentemente, essas questões fogem do escopo deste artigo. Seja como for, a relação entre a Sentiômica e a Semiótica nos remete, por fim, às teses, de grande valor para o tema em pauta, da filósofa Susanne Langer (1971). A densa articulação entre símbolos, artes, fisiologia cerebral e sentimentos (feelings) proposta pela autora aproxima-se da Sentiômica, em ao menos dois pontos. Primeiro, quando Langer, seguindo uma linhagem de críticas à filosofia cartesiana, propõe re-ligar mente e corpo através dos sentimentos (feelings), entendendo-os como um caso limítrofe entre fisiologia e pensamento — dois aspectos de um mesmo ente (cf. LANGER, 1971, p. 13-31). Segundo, quando a autora defende que as artes são formas sensíveis que objetivam o sentimento humano, tal como experienciado em primeira pessoa (LANGER, 1971, p. 81-90). Em uma passagem que sintetiza ambos os pontos mencionados, Langer (1971, p. 85-86) afirma que

[…] [o] sentimento humano […] é uma trama e não uma massa vaga. Possui um intrincado padrão dinâmico […] É um padrão de tensões e resoluções indeterminadas e organicamente interdependentes […] Creio que é esse padrão dinâmico que encontra expressão formal nas artes.

 

            Temos aqui, portanto, duas possibilidades de medição empírica dos substratos materiais da sentiência: uma, típica dos métodos científicos, volta-se aos padrões fisiológicos do corpo sentiente; outra, típica das artes, volta-se à “formalização” dos elementos geradores do sentimento. Nesse sentido, uma hipótese a ser investigada posteriormente é a de que as artes e a música, enquanto formas sensíveis que objetivam experiências do sentir, fazem a mediação epistemológica entre a Sentiômica e a Qualiômica.

 

2 SENTIÔMICA, ONDAS DE ÁUDIO E MÚSICA

            Vejamos a relevância das formas musicais para uma ciência do sentir. A Sentiômica se faz na perspectiva de terceira pessoa, do observador científico, que é externo ao sistema estudado; registra e analisa as formas dinâmicas (dynamic patterns) do sentir. Por conseguinte, padrões sonoros, bem como padrões de composição e de execução musical, são de interesse da Sentiômica. Já o estudo da experiência musical (percepção e sentimentos vividos) ocorre na perspectiva da primeira pessoa, vindo a compor outra área de estudos, a ser chamada de Qualiômica.

            Sublinhemos que as formas do sentir, em geral, e da cognição musical, em particular, se explicitam no tempo. Podemos, então, aludir a uma continuidade entre padrões temporais universais no Cosmos e padrões temporais em sistemas específicos, como na fisiologia do corpo humano, enquanto encarna padrões temporais, ou nos sons, cujas relações temporais estabelecem uma composição musical capaz de induzir sentimentos em seres humanos. Conclui-se, portanto, que permanece atual a antiga tese pitagórica da Música das Esferas. Tomando como referência a obra neoplatônica de Boécio, podemos dizer que hoje, através do conceito de onda, e não mais tanto pelo conceito de razão ou proporção (aritmética), há uma musicalidade que perpassa o universo (musica mundana), o ser humano (musica humana) e a música, em sentido estrito (musica instrumentalis). Uma versão atualizada dessa tríade aparece em Meijer et al. (2019, 2021), em sua “biofísica da consciência”, ainda que os autores não façam referência à obra de Boécio.

            No estudo da cognição musical, a Sentiômica pode abordar, por meio de representações de diversos tipos (simbólicas, verbais, sonoras, gestuais, imagéticas), (i) as formas dinâmicas do som (propriedades das ondas de áudio), (ii) as formas da fisiologia do ouvinte enquanto corpo que sente as formas dinâmicas do som e (iii) as categorias específicas da música (dos elementos mais atomísticos, como melodia, harmonia, ritmo, timbre, até formas temporais mais complexas). Vejamos isto com mais detalhes.

            Comecemos a nossa ilustração pelos conceitos de onda carregadora e moduladora. Onda carregadora é a que contém a energia necessária para a propagação do sinal no espaço (por exemplo, por meio de antenas de transmissão de rádios AM ou FM); está na faixa de frequências não audíveis, é redundante e, portanto, carrega pouca informação. Onda moduladora é a que gera diferenças na onda carregadora, as quais geram diferenças no receptor. A onda moduladora “recorta” a onda carregadora, “esculpindo” uma forma de onda (waveform) temporal. A modulação pode ser por amplitude, frequência ou fase (Figuras 2, 3, 4). O último tipo é relevante, quando o sinal é transmitido por múltiplos canais, que podem se sincronizar (casamento de fase) ou não.

 

Figura 2 – Modulação por Amplitude

Fonte: https://www.quora.com/How-does- amplitude-modulation-work.

 

Figura 3 – Modulação por Frequência

Fonte: https://www.elprocus.com/frequency-modulation-and-its-applications/

 

Figura 4 – Modulação por Fase

Considerar o casamento de fase em múltiplas ondas.

Fonte: https://www.elprocus.com/what-is-phase-modulation-advantages-disadvantages-and- applications/

 

            Da física acústica, passamos às propriedades fisiológicas da escuta, em geral, e da escuta musical, em particular. Com efeito, conforme bem definiu o filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser, em seu ensaio sobre a escuta musical (FLUSSER, 2014, p. 111-117), em nenhuma outra arte a relação entre a mensagem física (i.e., a música) e o corpo receptor (i.e., o ouvinte) é tão próxima, a ponto de o corpo-ouvinte ser literalmente afetado pelo corpo-ressonante. E, não obstante, o modo como o corpo-ouvinte ressoa com a mensagem sonora é extremamente intrincado, como atesta o fato de que “[...] verbos como sentir, desejar, sonhar e pensar, substantivos como alegria, amor, saudade e beleza são as palavras que nomeiam essa complexa experiência […]” (FLUSSER, 2014, p. 115, tradução nossa, grifos no original).

            As abordagens empíricas da escuta musical remontam pelo menos até o trabalho pioneiro de Hermann von Helmholtz. Em sua obra paradigmática, A doutrina das sensações tonais como uma base fisiológica para uma teoria da música (título traduzido por SILVA, 2017), de certo modo, encontra-se condensado o programa científico da psicoacústica, entendida enquanto fundamento da capacidade humana de perceber relações musicais, em particular os intervalos consonantes e dissonantes (mais sobre a obra de Helmholtz, ver SILVA, 2017). Isso inclui não apenas os sucessos da abordagem naturalista ou empírica da escuta musical, mas também as suas dificuldades. Com efeito, na obra de Helmholtz, podemos encontrar todas as tensões dessa abordagem: como articular a fisiologia da escuta, a sensação dos tons e a sua “compreensão” musical (ver, por exemplo, o §123 de Das Causas Fisiológicas da Harmonia Musical em SILVA, 2017, p. 310)?

            Porém, diferentemente do mapeamento de mecanismos fisiológicos da escuta musical, o qual tem sido realizado sistematicamente ao menos desde Helmholtz, à Sentiômica interessam apenas os padrões dinâmicos que, de alguma forma, dão suporte à experiência sentiente, e não as partes ou mecanismos envolvidos na apreensão de informações. Pode-se dizer que um caminho possível para a Sentiômica da escuta musical seria partir dos mecanismos identificados no âmbito da psicoacústica, a fim de identificar padrões temporais subjacentes aos mesmos, e que poderiam esclarecer a passagem do ouvido puramente fisiológico para o sentido da audição e, deste, para o sentido da musicalidade.

            Outra fonte de medição científica da experiência sentiente da música, a qual avançou significativamente, nas últimas décadas, é a neurociência cognitiva da música (ver PERETZ; ZATORRE, 2003; HODGES;  THAUT, 2019). O foco, agora, não é mais a fisiologia da escuta musical, tão bem estudada por Helmholtz, mas sim o cérebro. Podemos sustentar que o surgimento desse novo campo de pesquisa alargou as fronteiras das abordagens científicas da escuta musical. Utilizando ainda o exemplo de Helmholtz, vemos que o cientista alemão encerra a sua ciência da escuta musical, quando esta deixa de versar sobre os mecanismos da escuta de materiais básicos da música — tons e intervalos simples —, e o objeto passa a ser o modo pelo qual esses mecanismos básicos se tornam “imagens” de “concepções” e “temperamentos” que a “mente vê” (apud SILVA,  2017, p. 310). A neurociência cognitiva da música almeja adentrar exatamente nesses domínios mais abstratos que caracterizam o sentido musical.

            Apontamos anteriormente que nem toda medição de atividade cerebral é relevante para a Sentiômica, já que, em muitos casos, o objetivo é identificar áreas ou mecanismos, mas não padrões dinâmicos holísticos do funcionamento cerebral. O mesmo se aplica à neurociência cognitiva da música. O volume editado por Peretz e Zatorre (2013), ainda que já ligeiramente desatualizado, em termos de dados, ilustra a predominância de abordagens “localizacionistas” (cf. BECHTEL, 2014), nas abordagens neurocientíficas da música. Em uma compilação mais recente, editada por Hodges e Thaut (2019), o cenário não é muito diferente. Com efeito, nas considerações finais, os editores defendem a importância de pesquisarmos as bases cerebrais da música para além das áreas e mecanismos, focando, por exemplo, no funcionamento de redes cerebrais dinâmicas e fluxos de neurotransmissores.

            Nota-se aí, por conseguinte, a importância de uma neurociência cognitiva da música de viés sentiômico. Assim como a fisiologia da escuta por si só é incapaz de explicar a integração da informação acústica em uma unidade sentiente (e.g. um tom, uma melodia etc.), também os mecanismos cerebrais, estudados isoladamente, não poderão constituir o substrato cerebral da escuta musical, tal como sentida em primeira pessoa. É necessário, portanto, avaliar (i) até que ponto essas áreas e mecanismos são coordenados temporalmente, no exercício da escuta musical, e (ii) se há — e quais seriam os — padrões dinâmicos mensuráveis relacionados a sentimentos (feelings) musicais específicos, incluindo, nos processos neurais ondulatórios, possíveis interações astrócito-neuronais (ver modelos desse tipo de análise em PEREIRA JR.; FURLAN, 2009; PEREIRA JR., 2014).

            Além de ser um campo de promissora aplicação para a Sentiômica, o estudo da música, enquanto fenômeno temporal que produz sentimentos, também se revela um repositório de modelos e conceitos que podem ser aplicados no estudo da sentiência em outros domínios. Nesse contexto, Dan Lloyd (2011, 2020) tem realizado um trabalho pioneiro. Após décadas de metáforas espaciais e de natureza linguística — como atestam, por exemplo, os modelos “localizacionistas” (cf. BECHTEL, 2014) e a famosa teoria “Linguagem do Pensamento”, de Jerry Fodor (1975) — Lloyd (2011) introduz a seguinte hipótese: dados sobre o funcionamento cerebral, coletados por meio de Ressonância Magnética Funcional, podem conter informações importantes, quando analisados em sua dimensão temporal (e.g. padrões dinâmicos, sequências de ativação etc.). Para estruturar sua hipótese, Lloyd (2020) propõe utilizar conceitos e metáforas da música como ferramentas para interpretar dados de RMF (e.g. temas, motivos, intervalos, ritmos, frequências, harmonias). Os resultados são ainda incipientes, mas promissores.

            Essa hipótese, que vem sendo desenvolvida por Lloyd, vai ao encontro, por exemplo, da tese de Pereira Jr. (2014, 2017), segundo a qual o substrato cerebral da experiência consciente nos humanos depende sobretudo da presença de ondas hidroiônicas no cérebro, como será apresentado abaixo. Nesse caso, além da dimensão temporal do cérebro, interpretada enquanto parte constituinte da atividade mental, tal como propõe Lloyd (2011, 2020), o conceito de onda hidroiônica, introduzido por Pereira Jr. (2014, 2017), aproxima-se da música, também, ao sugerir que o próprio substrato cerebral da consciência tem a forma de onda e, por conseguinte, pode funcionar, em seus padrões dinâmicos, de modo análogo à música (ver PONOMARENKO et al., 2017).

            Evidentemente, a complexidade dos padrões dinâmicos da música é maior que a complexidade do som; o que hoje conseguimos medir da escuta musical ainda está muito aquém da riqueza de variações que constituem essa experiência. Com efeito, compositores e intérpretes empregam vários tipos de padrões temporais para gerar diversos e infinitamente sutis tipos de sentimentos nos ouvintes, como: (i) intervalo entre frequências (harmonia); (ii) timbre; (iii) volume; (iv) silêncio; (v) ruído; (vi) ritmo; (vii) andamento; (viii) gesto; (ix) contraponto; (x) melodia; e (xi) ambientação. Vilém Flusser sintetiza isso muito bem, quando descreve a música como “vibrações” em forma de input que afetam o corpo do ouvinte como uma caixa-preta e “[...] têm amor e lógica como outputs” (FLUSSER, 2014, p. 116, tradução nossa). Dada essa complexidade, a Sentiômica da música e a transferência de modelos musicais para o estudo de outros domínios guardam ainda inúmeras possibilidades para a investigação científica.

            Seja como for, há diversas evidências empíricas de que a abordagem sentiômica das formas sonoras, musicais (e.g. harmonia, ritmo etc.) e fisiológicas (e.g. ritmo cardíaco, respiração, padrões dinâmicos cerebrais etc.) é de interesse científico. Citamos, como exemplo, o fato de que computadores, capazes de lidar apenas com o aspecto informacional dos sentimentos musicais e humanos, podem ser utilizados, com relativo sucesso, no cálculo-composição de paisagens sonoras, de sorte a obter efeitos sentientes específicos em humanos, como aumentar o foco ou induzir o sono. Dois exemplos comerciais são o aplicativo Endel (ver HARUVI et al., 2021) e a tecnologia Music Genome Project, empregada pelo serviço de streaming Pandora Radio.

           

3 PADRÕES DINÂMICOS DO SENTIR NA NEUROBIOLOGIA: A ONDA HIDROIÔNICA

            A identificação de padrões é mais fácil nas comunicações humanas, pois emissor e receptor têm a mesma estrutura psicobiológica. A identificação dos padrões (“diferenças nos sinais que causam diferenças”) que geram sentimentos no ouvinte, em animais não humanos e plantas, é mais difícil. Esta é a razão pela qual se usa inteligência artificial e aprendizagem de máquina para analisar registros de sinais da natureza (por exemplo, sons gravados na floresta amazônica), a fim de detectar padrões que expressam/suscitam sentimentos nos ouvintes não humanos (PEREIRA JR.; GARCIA, 2020), e, eventualmente, também em nós. Por exemplo, as partes redundantes de um som do grilo provavelmente não provocam nenhuma variação no sentimento no ouvinte grilo, mas as variações sobre o padrão básico devem ter funções comunicativas. Apenas por meio da pesquisa empírica/experimental podemos testar hipóteses a esse respeito. Podemos fazer composições de padrões, apresentar o resultado para os seres em questão e observar seu comportamento. Podemos também, no futuro próximo, “educar” sistemas naturais ou artificiais — os quais operem com padrões dinâmicos — em laboratório, e estudar seu comportamento (PEREIRA JR.; GARCIA; MUOTRI, 2023).

            Sabemos, além disso, que plantas e animais apresentam ondas de cálcio semelhantes (PEREIRA JR.; ALVES, 2021), como resposta à estimulação e também, no tecido neural, na transição entre sono e vigília. O conceito de onda hidroiônica (LIMA; PEREIRA JR.; OLIVEIRA, 2021) consiste em uma generalização baseada no fenômeno de ondas iônicas nos tecidos neurais, dando suporte à capacidade de sentir. Como essas ondas ocorrem em sistemas vivos nos quais o hidrogênio e diferentes configurações da água desempenham papel central na comunicação celular, especialmente na interação neuroastrocitária, propusemos considerar que tais ondas comportam complexas interações entre cátions biológicos (cálcio, sódio, potássio) e configurações negativas da água, formando dipolos funcionais (Figura 5).

 

Figura 5 – Onda Hidroiônica

Fonte: Figura de autoria de APJ, cuja primeira versão foi apresentada em um congresso em Lugano, em 2016, e publicada em Pereira Jr. (2017).

 

Transmissores e moduladores liberados pelo neurônio ligam-se aos receptores metabotrópicos astrogliais, ativando as vias de transdução de sinais que levam à liberação de Ca2+ do retículo endoplasmático do astrócito. Os íons liberados são atraídos pela água negativa gerada pela passagem na aquaporina, mas também se repelem entre si e repelem outros cátions presentes nos compartimentos e processos intracelulares dos astrócitos. A pequena onda formada dentro de um astrócito pode propagar-se para outros astrócitos, através das gap junctions (junções comunicantes), interferindo com as ondas de outros astrócitos e formando ondas maiores, ou se propagar para o meio extracelular, vindo a interagir com sítios (microrregiões moleculares) negativos da matriz extracelular. Outra ação da onda de cálcio astroglial intracelular é estimular a liberação de gliotransmissores no espaço extracelular, por intermédio de vesículas liberadas por hemicanais ou por transportadores moleculares. Os gliotransmissores controlam a atividade neuronal e o desenrolar temporal (timing) das sequências de disparos (spike trains) dos neurônios, pelo controle do fluxo de íons de cálcio, sódio, potássio e cloro (este último, não representado na figura) que atravessam os canais iônicos dos neurônios, despolarizando as células e gerando os potenciais de ação. O próton (H+) liberado na passagem da água pela aquaporina fica disponível para facilitar processos interativos, no meio extracelular.

 

4 DA SENTIÊNCIA À CONSCIÊNCIA, E VICE-VERSA

            A interação dinâmica de padrões pré-conscientes e conscientes é consequência do Princípio da Capacidade Limitada de processamento consciente, formulado por Baars (1988). Note-se que, embora esses conceitos sejam plenamente compatíveis com a psicanálise freudiana, devem ser aqui interpretados no quadro conceitual da Sentiômica, a saber, o inconsciente se refere aos padrões dinâmicos psicofísicos no tecido neural vivo, enquanto abordados na perspectiva da terceira pessoa (por exemplo, registros eletroencefalográficos); os padrões pré-conscientes concernem ao subconjunto dos padrões inconscientes que estão no limbo da consciência, e os padrões conscientes correspondem àqueles que são vivenciados na experiência.

            O que está sob o holofote da consciência está sempre mudando, conforme realçado na expressão clássica de William James: “o fluxo da consciência”. Os padrões pré-conscientes dinâmicos (plano de fundo) e consciência experiencial (primeiro plano) podem mudar sua posição, no processamento. O que está no fundo pré-consciente (e pertence à sentiência) pode vir para o primeiro plano e ser experimentado conscientemente, e vice-versa: o que é experienciado conscientemente pode ser retido em um engrama de memória inconsciente, o qual pode ou não ser lembrado no futuro. Esse processo foi descrito na Analogia do Estádio, formulada por Carrara-Augustenborg e Pereira Jr. (2012, p. 41-41, tradução nossa):

Imagine um estádio de futebol lotado. Espalhados por diversos nós focais, agentes especializados são responsáveis pelo monitoramento das arquibancadas. Como cada figura que compõe a multidão se move constantemente ao redor, os agentes especializados fixam o amplo ambiente sem cessar, prontos para detectar qualquer anomalia, para reconhecer uma figura conhecida, para antecipar uma situação previsível ou apenas para captar qualquer informação contextualmente detectável. No entanto, a complexidade do ambiente aberto e a multiplicidade de alvos não permitem que os agentes especializados façam um acompanhamento automático de cada entrada. Portanto, por meio de uma porta constantemente aberta, eles codificam em tempo real sua carga de informações em um dispositivo de transmissão global. Embora não seja capaz de extrair informações diretamente da multidão, tal dispositivo de transmissão global é responsável por fazer circular as relações contínuas dos agentes especializados, e, portanto, para transmitir através do estádio o status quo de cada nó a qualquer momento. Desta forma, é possível para cada agente especializado ser alertado se um evento ocorreu em um nó focal diferente, para antecipar uma situação que se aproxima e para coordenar ações conjuntas quando necessário. Contudo, dentro de um ambiente tão dinâmico, ainda será difícil isolar dados: elementos específicos podem, portanto, ser destacados ao serem colocados no campo de atenção comum aos agentes. Cada agente especializado será então capaz de inspecioná-lo com facilidade e, consequentemente, relatar os resultados de sua avaliação no dispositivo de transmissão global com maior clareza e riqueza de detalhes. Todavia, a capacidade dos agentes especializados de inspecionar adequadamente também a multidão durante os exames de campo mais detalhados provavelmente serão prejudicados e, eventualmente, alguns números - provavelmente aqueles pouco relevantes - podem escapar da atenção. Um detalhe crucial em nossa analogia com o estádio deve ser sublinhado. Assim que os agentes especializados completarem seu relacionamento, seu foco mudará para uma nova entrada, e eles não mais se preocuparão com seu elemento de interesse anterior. No entanto, suas relações - mais ainda se contiverem dados de relevância contextual ou eventual futura - permanecerão (por períodos variáveis de tempo) no conteúdo da transmissão global. Esse recurso implica que novas informações sejam adicionadas a um conjunto existente de dados, que são construídos e mantidos dinamicamente com base na relevância contextual das informações, em sua frequência de recuperação e em seu valor adaptativo. Dentro de tal rede plástica, a entrada relacionada irá se agrupar, novos “arquivos” serão criados (se a informação de entrada tiver relevância potencial), “arquivos” antigos serão apagados (se eles se tornaram obsoletos) ou irão aumentar de tamanho (se novos dados relevantes adicionarem ao seu significado). Além disso, se o conhecimento pré-existente for investigado por novas informações que chegam, o agrupamento relativo pode ser recuperado e trazido à atenção conjunta dentro do campo comum de atenção dos agentes, onde será submetido a uma nova avaliação.

 

            Essa dinâmica complexa, na qual determinados padrões dinâmicos são atendidos e participam da experiência consciente, enquanto outros permanecem não conscientes ou no limbo (estados pré-conscientes), mudando de status (não consciente, pré-consciente ou consciente) ao longo do tempo, leva-nos a enfatizar que tanto a sentiência quanto a experiência consciente não são estados da matéria que correspondem a pontos no espaço de estados do sistema (para os detalhes desta abordagem, ver FELL, 2004), mas processos temporais nos quais os padrões que se tornam conteúdos da experiência consciente emergem dos padrões dinâmicos não conscientes encarnados no tecido neural, e vice-versa (PEREIRA JR., 2021a).

            Nesse processo, há uma oscilação de padrões, inconscientes, pré-conscientes e conscientes. As potencialidades do sistema tornam-se reais, por meio de um processo temporal no qual ele se afasta do equilíbrio homeostático e (se bem-sucedido) retorna a um estado estável no equilíbrio homeostático (sistemas elásticos) ou em processo alostático, atingindo um estado estável fora do equilíbrio (sistemas flexíveis e/ou plásticos). Esse movimento da mente incorporada — da estabilidade à instabilidade e vice-versa — é o “gatilho” que muda os padrões dinâmicos pré-conscientes em padrões experienciais conscientes e vice-versa. Por que é assim, ninguém sabe, mas estamos começando a entender como é que tal processo temporal acontece (PEREIRA JR., 2021b).

 

5 SENTIÔMICA E ONTOLOGIA MONISTA

            Epistemologicamente, os métodos usados para estudar Sentiência e consciência são diferentes; ontologicamente, eles são duas fases do mesmo processo temporal em indivíduos vivos (PEREIRA JR., 2021a, b), gerando experiências conscientes “fenomenais”. Há um continuum entre os padrões dinâmicos e sua expressão consciente.

            Na abordagem protopampsíquica do Monismo de Triplo Aspecto (MTA; PEREIRA JR., 2013b), aqui adotada, os padrões dinâmicos de sentiência não devem ser reduzidos ou identificados com as partículas materiais que compõem a estrutura dos sistemas sentientes. Os padrões dinâmicos acontecem no espaço e no tempo, onde e quando as formas estruturais se combinam e concretizam suas potencialidades. No caso dos sistemas vivos, várias combinações de hidrogênio com oxigênio, bem como vários íons metálicos, constituem a “sinfonia” da sentiência. Reduzir a sinfonia à atividade de apenas um jogador (por exemplo, hidrogênio) não faz sentido. É necessário considerar não apenas os outros músicos da orquestra, mas também a melodia, o ritmo, a harmonia (acordes) e os timbres dos padrões dinâmicos que estão sendo tocados pela orquestra. Conforme o MTA, se houver experiência consciente, haverá Matéria, Informação e Sentimento juntos. Se um desses aspectos estiver faltando, não há consciência. Segundo a mesma teoria filosófica, os três aspectos, devidamente integrados, geram a experiência consciente, sem a necessidade de novos ingredientes.

            Esta não é a única teoria da consciência existente, pois se sabe que há outras, as quais reduzem a experiência consciente a apenas um ou dois dos aspectos acima, ou que alegam a necessidade de mais componentes, como no caso da hipótese da Consciência Universal (KASTRUP, 2017). Na teoria filosófica aqui adotada, para um pedaço de matéria em equilíbrio termodinâmico (uma pedra), não há sentimento e, portanto, não há consciência; para um espírito ou alma desencarnados, não há matéria e, portanto, não há consciência — eles podem perfeitamente existir como entidades puramente informacionais e inconscientes; para máquinas materiais que apenas processam a informação, não há sentimento e, por conseguinte, não há consciência; para Ideias Platônicas ou abstrações matemáticas, não há matéria e nem sentimento e, pois, não há consciência.

            A Psicologia Clínica e também a Psicanálise abordam um fenômeno central da mente, que consiste na alternância das fases inconsciente e consciente, na experiência pessoal. A mente individual corresponde a um processo temporal em que padrões do sentir ocorrem de modo consciente ou inconsciente, deixando traços que transitam de um a outro modo. Realizando uma comparação com o movimento pendular (PEREIRA JR., 2021b), os padrões inconscientes são as potencialidades do sentir consciente (“energia potencial”), enquanto os padrões conscientes são as qualidades (qualia) atuais da experiência (“energia cinética”), as quais, uma vez vivenciadas, podem deixar marcas no inconsciente. Desse modo, em cada pessoa se estabelece uma complexa dinâmica que perpassa os dois modos da experiência, inconsciente e consciente, formando uma identidade a posteriori, o Eu, que persiste existindo enquanto há experiência e memória.

            Com base nos pressupostos acima, podemos argumentar pela impossibilidade de um “Eu Consciente” universal, ou seja, da Consciência Universal assumida em filosofias indianas (em particular, pela filosofia hindu e suas versões atuais – por exemplo, KASTRUP, 2017), ao mesmo tempo defendendo a existência de padrões de informação universais inconscientes, os quais conferem ao cosmos a possibilidade de emergência de seres conscientes em qualquer lugar e tempo. O estudo desses padrões caberia justamente à Sentiômica (como inicialmente proposto em PEREIRA JR., 2021b), que poderia se beneficiar de uma interação construtiva com a Psicanálise.

            Dessa maneira, as consequências de nossa proposta para as áreas de Cosmologia Filosófica e Filosofia da Mente seriam as seguintes. Recusamos certas teorias filosóficas, como o Monismo Idealista e o Pampsiquismo, para as quais a consciência seria uma realidade primitiva, e adotamos uma perspectiva Protopampsiquista, que sustenta que a consciência seria uma possibilidade universal do Cosmos, em todas as suas regiões espaço-temporais; entretanto, tal possibilidade só se atualiza na presença de determinadas condições – estruturais e funcionais – que tornam possível a experiência do sentir, isto é, só há efetivamente consciência, quando há o processo temporal de sentir (PEREIRA JR:, 2021a), e o sentir só existe enquanto é vivido, em uma duração temporal. Desse modo, uma consciência universal atual seria uma impossibilidade conceitual, uma vez que o Cosmos contém uma infinidade de padrões e processos não sentientes e, mesmo para sistemas sentientes, há fases temporais, como o sono sem sonhos para humanos, nas quais o sentir está recessivo.

            Com base em nossos conhecimentos atuais de Astrofísica, podemos dizer que a maior parte do Cosmos conhecido não apresentaria sinais de sentiência e, portanto, não poderia ser consciente. Essa proposta é consistente, por exemplo, com a ontologia de Hegel, que era uma filosofia idealista dialética não pampsiquista, pois considerava a necessidade de um processo temporal para a atualização da consciência. Tal processo temporal seria, para ele, tanto lógico (como descrito na Enciclopédia) quanto histórico (como descrito na Fenomenologia do Espírito), requerendo que a Ideia se negue na Natureza, para se superar como Espírito Consciente (PEREIRA JR., 1994, 2013b). Havendo interesse, pode-se comparar a proposta conceitual da Sentiômica com as várias correntes da ontologia filosófica, consolidando, assim, as bases conceituais desse novo ramo da ciência.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS: ENTRE A SENTIÔMICA E A QUALIÔMICA

            A Sentiômica trata de padrões estruturados temporalmente que geram sentimentos (qualia) em agentes capazes de senti-los e usá-los, para controlar sua própria fisiologia e interagir, com diferentes graus de autonomia, com o ambiente. Um dispositivo físico como o termostato é capaz de detectar mudanças na temperatura, mas não é capaz de controlar sua homeostase com base nelas. A homeostase do termostato obedece a pontos de ajuste mecânicos e não tem sentimentos (qualia) ligados ao processo de controle.

            A distinção entre Sentiômica e Qualiômica não implica um dualismo mente-corpo. O hiato entre as perspectivas de primeira e terceira pessoa é apenas metodológico, não ontológico. Ademais, cabe enfatizar que são duas modalidades de conhecimento válidas e necessárias para a compreensão do sentir.

            Assim, sem deixarmos de reconhecer a validade epistemológica da Sentiômica enquanto ciência do sentir, cabe indagar sobre os seus limites epistemológicos. Sabemos que o estudo da sentiência, em geral, tal como vivida pelo ser sentiente, exige outro tipo de abordagem, nomeadamente a Qualiômica. Mas como articular essas duas abordagens? Seriam dois modos de conhecimento absolutamente distintos? Ou haveria algum tipo de complementaridade entre ambos? Haveria uma modalidade de conhecimento intermediária entre a generalidade da medição científica e a singularidade do sentimento vivido?

            Sobre o entrelaçamento entre Sentiômica e Qualiômica, diríamos, de forma preliminar, que não só é possível, porém, uma vez feita a distinção analítica, é também necessária a síntese final. Com efeito, métodos subjetivos de investigação do sentir (e.g. meditação, introspecção, fenomenologia etc.), mesmo se considerados não científicos, ainda assim produzem um tipo de conhecimento. Sem esse conhecimento gerado pela perspectiva em primeira pessoa, os métodos e análises feitos em terceira pessoa perderão do horizonte o próprio referente da medição, isto é, o sentir, em toda sua complexidade. Se, por um lado, a Sentiômica nos aproxima daquilo que é universal na geração dos sentimentos, por outro, a Qualiômica nos dá acesso, ainda que parcial, àquilo que caracteriza cada experiência sentiente.

            Logo, a Qualiômica pode fornecer critérios para avaliação do sucesso e das limitações da Sentiômica, pois aquilo que distinguimos no nível da Qualiômica nos permitirá refinar as medições da Sentiômica. Quanto mais profunda for a nossa sensibilidade vivida, mais clareza teremos no âmbito dos experimentos em terceira pessoa, bem como na interpretação dos seus dados. Sem um rico fundo obtido pela Qualiômica, a ciência do sentir tenderá a ficar restrita a concepções e modalidades de sentimentos rudimentares ou genéricas.[31]

            Uma hipótese a ser desenvolvida é se caberia à arte fazer a mediação entre Sentiômica e Qualiômica. De certa forma, pode-se dizer que as artes constituem a ponte entre aqueles dois quadros epistêmicos, se adotarmos a definição de Langer (1971, p. 82): arte como criação de “[..] formas perceptíveis expressivas do sentimento humano.” Ora, se um objeto ou fenômeno dá forma — e, portanto, alguma estabilidade — ao sentimento humano (mesmo que a forma esteja restrita a alguns aspectos de alguns sentimentos), tornando-se uma espécie de símbolo natural daquilo que temporalmente se sente em primeira pessoa, logo, a feitura (i.e. poiesis) desse objeto ou fenômeno, bem como a sua análise, ou interpretação, podem gerar algum tipo de conhecimento sobre os sentimentos. A música tem a peculiaridade de ser uma forma ondular temporal, o que a torna um caso intermediário exemplar.

            Como vimos, a Sentiômica da música se ocupará da medição de padrões físicos que acompanham os sentimentos em, ao menos, três níveis: a física dos sons, os padrões musicais complexos e a fisiologia da escuta/cognição musical. A Qualiômica da música, por seu turno, está voltada a métodos tipicamente fenomenológicos de introspecção sobre a experiência vivida. Porém, quando pensamos no exercício de compor música, não podemos negar que está aí implicada alguma modalidade de medição temporal “objetiva” daquilo que se passa no universo dos sentimentos. Afinal, compor é também atualizar essas qualidades em uma forma temporal, dinâmica e relativamente estável (i.e. a composição propriamente dita). Porém, é igualmente verdade que o exercício da composição não se limita à manipulação de formas e símbolos materiais objetivos, contudo, compreende também algo da introspecção, ou melhor, da experiência em primeira pessoa dos sentimentos e qualidades associadas àquelas formas sonoras objetivas. Nesse sentido, no ato de compor, podem ser mobilizados aspectos da Sentiômica e da Qualiômica, sem os quais a composição pode não funcionar, por assim dizer.

            A redução da música à manipulação formal, agenda com a qual a tradição ocidental flertou muitas vezes (e.g. Descartes; Ramaeu; Hanslick), tenderá a perder do seu horizonte o engajamento, não só estético, mas também crítico, com novas formas de sensibilidade — engajamento este que a Qualiômica reforça. Não obstante, a apreensão subjetiva de qualidades, sentimentos, sensações e afins, sem uma contrapartida formal adequada para apreendê-los, objetivamente também inviabiliza a composição musical. Assim, parece-nos acertado dizer que o ato de compor exige tanto uma apreensão da epistemologia da Sentiômica quanto a formalização da epistemologia da Qualiômica, constituindo um exemplar modo intermediário de conhecer o sentir, o qual e se mostra pertinente tanto para a Sentiômica quanto para a Qualiômica[32] da música e da sentiência em geral.

            Por fim, diríamos que o estudo das ondas hidroiônicas pode ser um ponto de partida adequado para identificar e formalizar a estrutura espacial e temporal das formas de onda que tornam a consciência possível, usando matemática e computação. Como vimos, as formas de onda são moduladas em frequência, amplitude e fase. Uma investigação da dinâmica dessas ondas in vivo pode permitir a descoberta de sua estrutura dinâmica, seus padrões de modulação de frequência, amplitude e fase. Ao mesmo tempo, a experiência consciente pode e deve ser sondada por métodos da Qualiômica (e.g. a neurofenomenologia) e por determinadas estratégias intermediárias, como, por exemplo, a música, contribuindo para trazer à tona aquilo que, emprestando as palavras de T. S. Eliot (2018, p. 244), podemos chamar de uma “música ouvida tão a fundo/que nem mais se escuta”; afinal, “você é a música/enquanto dura a música.”

 

Agradecimentos (APJ): à FAPESP, por financiar parte desta pesquisa; aos colegas que discutiram o assunto e contribuíram para que este trabalho se realizasse: Karina Linnell, José Wagner Garcia, Eufrasio Prates, Sérgio Basbaum, Maira Fróes e Manuel Moreira da Silva; a Alberto Foletti, por me convidar para um congresso em Lugano, em 2016, onde elaborei e apresentei pela primeira vez essas ideias; a Luís Felipe Oliveira, por me convidar para evento, em 2021, no qual apresentei os resultados atuais da pesquisa; aos organizadores deste número especial, Marcos Antonio Alves e Gustavo Leal Toledo, pela oportunidade de publicação em periódico de alto nível, e aos pareceristas anônimos, pelos comentários e críticas construtivas.

 

Agradecimentos (VJA): Ao CFCUL, que, desde 2016, apoia institucionalmente a minha pesquisa; ao Alfredo Pereira Jr., que gentilmente aceitou minha sugestão de revisitar o tema da minha Dissertação de Mestrado, por ele orientada entre 2013-2015, na UNESP/Marília; aos organizadores deste número especial, Marcos Antonio Alves e Gustavo Leal Toledo, pela oportunidade de publicação da proposta em periódico de alto nível; e aos pareceristas anônimos, pelos comentários e críticas construtivas.

 

Foundations and Applications of Sentiomics: the Science of the Feeling Capacity

 

Abstract: Sentience, defined as the unconscious capacity of having conscious feeling experiences, is a psychobiological phenomenon involving dynamic patterns of electrochemical waves in living systems. The process of feeling can be studied in two ways: a) Empirical identification and analysis of the universal temporal patterns that characterize feeling, forming a science to be called Sentiomics; b) Introspective identification and report of the variety of qualitative conscious experiences, from a first-person perspective, a study that could be called Qualiomics. Qualiomics is undoubtedly a challenge to conventional science, as stated in the “hard problem of consciousness” (Chalmers, 1995), as the first-person perspective is not accessible to conventional scientific measurement methods and explanations. Sentiomics, focusing on dynamic patterns that define the capacity to feel, is therefore susceptible to empirical and experimental treatment. In this article, we propose to contextualize the philosophical assumptions and problems of Sentiomics and present some of its various applications, focusing on its the relation with music.

 

Keywords: Sentiomics. Qualiomics. Sentience. Information. Music Cognition.

 

Referências

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Recebido: 11/08/2022

Aceito: 14/02/2023


 

Comentário a “Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir”

 

Juliana de Orione Arraes Fagundes[33]

Referência do artigo comentado: Pereira Jr., A.; Aguiar, V. J. de. Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 57- 86, 2023.

 

Pereira Jr. e Aguiar (2023) propõem-se estabelecer bases conceituais para o desenvolvimento da Sentiômica, um estudo científico dos padrões dinâmicos que determinam a capacidade de sentir. Além disso, pretendem desenvolver uma aplicação dessa proposta ao caso da música. Eles aceitam o argumento de Chalmers (1996) de que há um problema difícil em relação à consciência, mas entendem que a Sentiômica pode avançar em estudos empíricos relevantes acerca dos problemas fáceis. O foco do trabalho é a relação temporal entre padrões fisiológicos e frequências sonoras, na experiência musical, como estudo de caso para examinar alguns pressupostos e problemas filosóficos relativos à Sentiômica. A Sentiômica não busca locais no sistema nervoso onde a sentiência[34] ocorra, mas é temporal, voltada para uma dinâmica complexa que envolve relações simultâneas entre indivíduo e mundo.

A Sentiômica se ocupa, a partir de uma perspectiva de terceira pessoa, de padrões dinâmicos na natureza que geram os sentimentos, os quais são experienciados a partir de uma perspectiva de primeira pessoa. Esses padrões se dão tanto internamente aos seres sentientes quanto no ambiente externo. Trata-se, portanto, das diversas dinâmicas naturais que permitem a experiência sensível, envolvendo eventos químicos corporais e cerebrais, padrões anatômicos, frequências de ondas luminosas e sonoras etc. Como a Sentiômica se propõe estudar os padrões inconscientes que determinam as experiências conscientes, ela necessita também da Qualiômica, a qual se volta para os aspectos contextuais e individuais da experiência, aquilo que é consciente.

A Sentiômica é apresentada pelos autores como uma abordagem de terceira pessoa, tendo a característica de estudar padrões fisiológicos universais, ao passo que a Qualiômica observa cada experiência sentiente, de um ponto de vista de primeira pessoa, conforme os autores, podendo assim servir de parâmetro avaliativo acerca do alcance da Sentiômica. Na medida em que a Qualiômica é capaz de fornecer critérios para o avanço ou recuo da Sentiômica, os autores compreendem que as perspectivas de primeira e de terceira pessoa se complementam, para que uma pesquisa acerca da consciência possa avançar.

Note-se que, para isso ser possível, a perspectiva de primeira pessoa não pode ser compreendida no sentido de uma perspectiva estritamente subjetiva a propósito de estados mentais não relacionais – como em Chalmers (1996), Nagel (1974) ou Putnam (1981). Em outras palavras, apesar de compreender uma diferença entre as perspectivas de primeira e de terceira pessoas, o artigo não é levado a uma cisão entre os aspectos objetivo e subjetivo da realidade. Afinal, a perspectiva de primeira pessoa é abordada de um ponto de vista linguístico, ainda que individual[35]; caso contrário, não poderia complementar uma disciplina científica como é a proposta da Sentiômica.

Assim, embora eles tentem manter uma lacuna epistêmica entre as perspectivas de primeira e de terceira pessoa, o estudo da Sentiômica precisará sempre da Qualiômica para regular os resultados das pesquisas, a partir de uma metodologia própria. Segundo Pereira Jr. e Aguiar, a metodologia da Qualiômica não se classifica como ciência: eles propõem métodos como introspecção, meditação e fenomenologia. Defenderemos que é possível compreender a relação entre Sentiômica e Qualiômica, sem a pressuposição de uma lacuna epistêmica. Entre perspectivas epistêmicas diferentes não é necessário haver uma lacuna. Procuraremos sinalizar aqui dois caminhos para isso.

Algumas perguntas relevantes emergem da leitura do artigo: como os estudos a respeito da Qualiômica podem iluminar a pesquisa científica acerca da consciência, em coordenação com os estudos sobre a Sentiômica? Quais são os diversos padrões internos e externos ao indivíduo envolvidos nas experiências de sensibilidade? Até que ponto os aspectos individuais das experiências revelam padrões passíveis de um estudo que almeja a universalidade?

O estudo da música aparece de forma bastante ilustrativa para o leitor esclarecer essa espécie de calibragem entre Sentiômica e Qualiômica, o que vale para as artes em geral. Diante da experiência estética, como ao escutar uma música, uma complexidade de sentimentos será fruída pelo sujeito. Essa complexidade reflete uma história de vida individual em um contexto específico que compõe a experiência consciente daquele sujeito, como uma dinâmica temporal. Simultaneamente, há padrões fisiológicos no corpo e diversas dinâmicas que podem ser estudadas com instrumentos científicos. A música atravessa o corpo humano sob certos padrões fisiológicos de sentimentos que ela provoca. Como a Sentiômica não está voltada para estudar padrões locais no cérebro, ela tem a ver com o estudo de uma coordenação temporal entre fisiologia (incluindo a fisiologia cerebral) e escuta temporal, gerando determinados padrões de sentimentos musicais.

            Em trabalho anterior, Pereira Jr. (2021) trata da relação entre consciência fenomênica e sentiência. Para ele, a sentiência é um requisito para que possa haver consciência. Ali, é possível encontrar uma discussão conceitual sobre consciência e sentiência que acaba por nos permitir uma melhor compreensão do artigo-alvo deste comentário. Conforme o autor, a ciência pode medir os padrões fisiológicos subjacentes à capacidade de sentir, de modo a explicar os correlatos físicos da sentiência. A sentiência engloba uma variedade desestruturada de situações inconscientes, no aqui e agora, que, uma vez estruturadas, formarão a experiência consciente.

            Essa relação entre sentiência e experiências conscientes talvez contraste com a relação entre Sentiômica e Qualiômica. Por um lado, as experiências conscientes parecem emergir de um conjunto desestruturado de padrões dinâmicos dentro e fora dos organismos vivos. Por outro lado, essas experiências poderão ser investigadas a partir de métodos apropriados a um estudo de primeira pessoa e servirão como regulagem para que uma ciência da Sentiômica possa avançar. A experiência subjetiva, uma vez estruturada, poderá se voltar para uma compreensão de algo que é inconsciente e subjacente a ela. Os caminhos pelos quais essa ideia pode prosseguir não estão definidos, é difícil visualizá-los.

Uma boa pista que aparece em Pereira Jr. (2021) é que a geração de sentimentos conscientes, com base na capacidade sentiente, tem razões de adaptação evolutiva. O comportamento adaptativo, segundo ele, é guiado pelos sentimentos, conforme um movimento de buscar o prazer e evitar a dor. Aqui, vemos que a subjetividade gera padrões pelos quais a ciência pode estudá-la. Faz muito sentido pensar a experiência dessa forma. De fato, o que guia o comportamento dos organismos são suas experiências. As perspectivas de primeira e de terceira pessoas, por esse ponto de vista, acabam por se mostrar apenas dois lados da mesma moeda: não é possível abrir mão de nenhuma delas.

A noção de affordance talvez possa ajudar a compreender essa discussão. As affordances do organismo são aspectos do ambiente que se tornam relevantes para aquele organismo. O termo foi usado primeiramente por Gibson: “As ‘affordances’ do ambiente são o que ele oferece ao animal, o que ele provê ou fornece, para o bem ou para o mal.” (1979, p. 127). A noção de affordance permite uma conexão entre as perspectivas de primeira e de terceira pessoas, pois ela carrega consigo uma ideia simples: a de que determinados padrões do mundo objetivo – esses que se dispõem a um estudo científico e de terceira pessoa – se disponibilizam para o organismo, de acordo com as suas capacidades, tornando-se relevantes para ele, de um ponto de vista de primeira pessoa.

Aqui, parece não mais fazer sentido falar em lacuna epistêmica entre primeira e terceira pessoa. O organismo lida com o que se torna relevante e isso está estreitamente ligado à sua história evolutiva. Nesse sentido, se há um “como é ser” um organismo, esse “como é ser” traz informações sobre a realidade externa que podem ajudar em sua missão de sobreviver e se reproduzir em um ambiente hostil. Os organismos vivos, por essa abordagem, são compreendidos por meio de sua relação direta com o ambiente, construída principalmente por seus ancestrais, ao longo de uma história evolutiva.

Há outra ideia que talvez também possa nos ajudar a esclarecer essa regulagem entre Qualiômica e Sentiômica: a distinção de Sellars (1962) entre imagem manifesta e imagem de ciência. Em nosso quotidiano, nossa linguagem se refere às experiências diretas que temos, às coisas que reconhecemos no mundo e das quais temos experiências diretas, conforme nossas capacidades fisiológicas, ou seja, à imagem manifesta que temos. A imagem de ciência depende de uma educação científica, envolve termos teóricos, coisas das quais não temos experiência direta.

Assim, será que não podemos compreender a Qualiômica como uma regulagem, a partir da nossa imagem manifesta, de uma imagem de ciência desenvolvida pela Sentiômica? Note-se que não há qualquer ruptura entre imagem manifesta e imagem de ciência: a segunda é derivada da primeira e apenas esta se relaciona às nossas experiências diretas. Se esse for um caminho possível, a Sentiômica pode ser compreendida como uma sofisticação da Qualiômica, sendo que a segunda não prescinde da primeira. Aqui, deve-se considerar que nem tudo que constitui a sentiência está disponível conscientemente. Olhando por essa perspectiva, o problema da lacuna epistêmica entre primeira e terceira pessoas também deixa de existir.

Pereira Jr. e Aguiar nos oferecem alguns estudos da ciência da Sentiômica, argumentando que não podemos prescindir dela, nos estudos acerca da consciência. A noção de sentiência é de grande relevância, pois esses padrões dinâmicos e desestruturados compõem a consciência e podem servir de material para o desenvolvimento de estudos em todas as áreas científicas que lidam com a noção de consciência. Os autores também argumentam pela importância da Qualiômica como algo que, embora não se sujeite a uma pesquisa a partir dos métodos científicos tradicionais, precisa ser considerado como meio de avaliação e regulagem dos desenvolvimentos em Sentiômica.

Propomos que a Qualiômica não pode se desenvolver, se considerarmos a existência de lacunas intransponíveis entre as perspectivas de primeira e de terceira pessoas, ainda que se trate de uma lacuna epistêmica e não ontológica. Assim, sinalizamos dois caminhos para que essa suposta lacuna possa ser preenchida: a noção de affordance de Gibson e a distinção entre imagem manifesta e imagem de ciência de Sellars.

 

Referências

CHALMERS, D. The Conscious Mind. Oxford: Oxford University Press, 1996.

DENNETT, D. Intuition Pumps and Other Tools for Thinking. New York; London: Norton & Company, 2013.

GIBSON, J. J. The Theory of Affordances. In: GIBSON, J. J. The Ecological Approach to Visual Perception. Boston: Houghton Mifflin, 1979. P. 127-137.

NAGEL, T. What is it like to be a bat? Philosophical Review, v. 83, p. 435-450, 1974.

Pereira Jr., A.; Aguiar, V. J. de. Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 57- 86, 2023.

PEREIRA JR., A. The Role of Sentience in the Theory of Consciousness and Medical Practice. Jornal of Consciousness Studies, v. 28, n. 7-8, p. 22-50, 2021.

PUTNAM, H. Reason, Truth and History. Cambridge: Cambridge University Press, 1981.

SELLARS, W. Philosophy and the Scientific Image of Man. In: COLODNY, R. (ed.). Frontiers of Science and Philosophy. Pittsburg: University of Pittsburgh Press, 1962. p. 35-78.

Recebido: 17/04/2023

Aprovado: 20/04/2023


Comentário a “Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir”: o lugar e a função dos afetos e das emoções: uma crítica psicanalítica dos fundamentos e aplicações da sentiômica

 

Manuel Moreira da Silva[36]

 

Referência do artigo comentado: Pereira Jr., A.; Aguiar, V. J. de. Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 57- 86, 2023.

 

I Posição do Problema

É sempre um acontecimento alvissareiro, quando companheiros de caminhada trazem à luz os resultados de suas investigações científicas, sobretudo enquanto estes se mostram sob a proposição de uma nova ciência. Esta é a Sentiômica, apresentada como tal, em sua diferença em relação à Qualiômica, no artigo “Fundamentos e aplicações da Sentiômica: a ciência da capacidade de sentir”[37], de Alfredo Pereira Júnior e Vinícius Jonas de Aguiar, publicado neste número da Trans/Form/Ação. Nas palavras dos autores, a Sentiômica teria por tarefa a “[...] identificação e análise dos padrões temporais universais que caracterizam a sentiência”, razão pela qual essa ciência “[...] poderia se beneficiar de uma interação construtiva com a Psicanálise.”

Este artigo, porém, se limita a um brevíssimo comentário sobre a proposição de uma interação construtiva entre a Sentiômica e a Psicanálise. Os autores referem-se a essa interação na seção V de seu trabalho, intitulada “Sentiômica e ontologia monista”, mais precisamente quando assumem como pressupostos da Sentiômica a “[...] existência de padrões de informação universais inconscientes.” Tais padrões seriam “potencialidades do sentir consciente” e se distinguiriam dos padrões conscientes porquanto estes, como objeto da Qualiômica, constituiriam as “qualidades (qualia) atuais da experiência”, as quais, porque atuais, uma vez vivenciadas, poderiam deixar marcas no inconsciente. Assim, para os autores, “[...] em cada pessoa se estabelece uma complexa dinâmica que perpassa os dois modos da experiência, inconsciente e consciente, formando uma identidade a posteriori, o Eu, que persiste existindo apenas enquanto há experiência.” Desses pressupostos, os autores chegam às seguintes conclusões:

1. Impossibilidade de um “Eu Consciente” universal;

2. Existência de padrões de informação universais inconscientes, que conferem ao cosmos a possibilidade de emergência de seres conscientes em qualquer lugar e tempo. (grifos dos autores).

A respeito dessas duas conclusões, este artigo se debruça unicamente sobre a segunda. Questiona, portanto, a proposição da existência de padrões de informação universais inconscientes, tomada pelos autores como fundamento da Sentiômica, e, no caso da confirmação de tal existência, questiona ainda a proposição dela decorrente, a saber, de que padrões de informação universais inconscientes conferem ao cosmos a possibilidade de emergência de seres conscientes em qualquer lugar e tempo. No caso de uma única dessas proposições não se sustentar, sua fundamentação se mostrará falsa ou pelo menos falha ou insuficiente.

Nessa perspectiva, o presente artigo assume a forma de uma crítica psicanalítica dos fundamentos e aplicações da Sentiômica, de modo mais preciso, das duas proposições supracitadas, constituintes da segunda conclusão dos autores, mais acima enumerada. A crítica em tela, no entanto, consiste em um discernimento da questão ela mesma – em rigor, da assim chamada experiência inconsciente –, quando esclarece em que medida a Psicanálise pode contribuir assertivamente para a fundamentação e a aplicabilidade da Sentiômica. Isso implica, porém, a exigência de a Sentiômica se depurar de todos os seus outros pressupostos, os quais, porventura, estejam em conflito com o aqui explicitado.

 

II Sobre a existência de padrões de informação universais inconscientes

Quando os autores se referem à “existência de padrões de informação universais inconscientes”, eles como que apenas invertem a proposição pretensamente refutada, a de que um “Eu Consciente” universal ou uma Consciência universal seria possível. Isso porque se mantém o discurso e, portanto, a pressuposição de que há padrões de medida universais passíveis de fazer emergir seres conscientes em qualquer lugar e tempo, embora tais padrões universais sejam negados precisamente a um “Eu Consciente” universal ou a uma Consciência universal. Quanto a isso, nunca é demais lembrar-se das palavras de Hegel (1807/2002), em sua Fenomenologia do Espírito, segundo as quais a consciência se faz para si o seu próprio padrão de medida; assim como do homem-medida de todas as coisas de Protágoras ou, ainda, do Deus-medida de Platão.

Além disso, a proposição que afirma a “existência de padrões de informação universais inconscientes” contém nela mesma uma contradição de termos; porque, se tais padrões são inconscientes, eles não podem ser universais. O universal, em qualquer sentido que se lhe tome, é ele mesmo uma qualidade (um quale) e, portanto, pertence aos padrões conscientes ou às qualidades (qualia) atuais da experiência; se, para estes, é possível estabelecer uma forma universal abstrata, essa possibilidade não se aplica aos padrões inconscientes. Disso se depreende que os autores assumem, de saída, sub-repticiamente, a pressuposição segundo a qual “padrões de informação universais inconscientes” são eles mesmos qualia ou se constituem de um modo ou de outro como qualidades; isso se comprova, quando afirmam que “os padrões inconscientes consistem em potencialidades do sentir consciente”. Se isso é precisamente assim, então padrões inconscientes são ou, antes disso, têm que ser apenas qualidades indeterminadas, qualia que ainda não se apresentaram como tais, mas que necessariamente se apresentarão “em qualquer lugar e tempo”. Se isso é precisamente assim, há que se repetir, então: a Sentiômica ora proposta permanece refém da concepção hegeliana do ser.

Na Grande Lógica, em rigor, no início da seção Qualidade, embora aceda à percepção do ser sem reflexão e sem qualidade, Hegel (1812/2021, p. 121) perde-o de vista, porquanto o designa como ser indeterminado; a saber, como o ser que ainda não recebeu uma determinação, sendo a indeterminação, para aquele filósofo, em oposição ao determinado e ao qualitativo, a sua determinidade imediata. Ora, a concepção do ser sem reflexão e sem qualidade em Hegel e a concepção dos “padrões de informação universais inconscientes” da Sentiômica em tela possuem um ponto de partida comum, cujo início, pura e simplesmente pressuposto, permanecera impensado em ambas, tal como em seu ponto de partida comum.

Este consiste na concepção aristotélica da forma e da matéria, ou do ato e da potência, como constituintes da substância sensível; caso em que a potência ou a matéria contém dentro de si a forma ou o ato da coisa mesma – isto é, da essência – que lhe plasma e conforma, donde a concepção estoica do universal in re, assim como, posteriormente, as respectivas concepções pré-moderna e moderna do Conceito formal do ente, em Francisco Suárez, a de Realidade formal da ideia, em Descartes, ou a de Conceito subjetivo, em Hegel. Todavia, convém perguntar: e aquilo que se constitui como o Início – a Arché – dessas concepções, que dele partem, mas que o ignoram por completo?

Ao que tudo indica, em nenhum momento da história conhecido até aqui, nem a filosofia nem as ciências particulares experienciaram a coisa mesma, isto é, o ser sem reflexão e sem qualidade, sem lhe apor uma forma ou determinação qualitativa externa a ele. Se, em algum momento, uma experiência originária com a coisa mesma se mostrou o caso, este foi esquecido na medida mesma em que se lhe apusera um quale, mesmo sendo aquele a origem – ou, antes –, o Início propriamente dito deste.

Ora, desde seus inícios, a Psicanálise investiga os processos psíquicos inconscientes, logo, primários, que estruturam a experiência originária com a coisa mesma, sem lhe apor qualquer forma abstrata, mas antes, de modo a verificar a ruptura ou a dissociação da forma concreta do ser e do ser ele mesmo. Em vista disso, para se compreender algo como a capacidade de sentir, assim como até que ponto uma experiência se torna consciente, é necessário assumir como campo de investigação um âmbito ainda mais básico que o do sentir, esse que se mostra, ora como o âmbito dos afetos, ora como o âmbito das emoções, ora como o das experiências afetivas, ora o das experiências emocionais.

Os autores intuem esses âmbitos mais básicos que o do sentir, quando, no início da seção IV, intitulada “Da sentiência à consciência, e vice-versa”, afirmam:

Os padrões pré-conscientes dinâmicos (plano de fundo) e consciência experiencial (primeiro plano) podem mudar sua posição no processamento. O que está no fundo pré-consciente (e pertence à sentiência) pode vir para o primeiro plano e ser experimentado conscientemente, e vice-versa: o que é experienciado conscientemente pode ser retido em um engrama de memória inconsciente, que pode ou não ser lembrado no futuro.

 

O trecho acima traduz de maneira assaz adequada, embora tão só em um nível fenomenológico-formal, o funcionamento do aparelho psíquico formulado por Freud, na assim chamada Primeira Tópica. Essa descrição representa uma relação intrínseca de figura e fundo, respectivamente, entre a consciência experiencial e os padrões pré-conscientes dinâmicos; quando o “fundo pré-consciente” é corretamente identificado com a sentiência e o inconsciente é dado a conhecer apenas indiretamente, quando algo “[...] experienciado conscientemente pode ser retido [a saber, reprimido, recalcado ou ainda encravado][38] em um engrama de memória inconsciente, que pode ou não ser lembrado no futuro.”

Se isso é precisamente assim, se o inconsciente se forma por via de uma retenção do que, em princípio, seria experienciado conscientemente – mas retido de modo inconsciente –, dado que essa retenção não segue um padrão universal, não é adequado afirmar, sem mais, a “existência de padrões de informação universais inconscientes”. Porém, há que se descobrir como e por que ocorre tal retenção e em que medida ela implica um funcionamento distinto do aparelho psíquico em cada indivíduo humano, em especial, no concernente às suas respectivas experiências emocionais. Estas, uma vez que ainda não foram elaboradas e, portanto, ainda não passaram ao âmbito do pensamento, mesmo em seu nível mais elementar, sentiente, esse que os autores também designam o fundo pré-consciente.

Em vista do exposto até aqui, é possível conceder aos autores a “existência de padrões de informação universais pré-conscientes”, contudo, de modo algum, a “existência de padrões de informação universais inconscientes”. Isso devido à natureza mesma do sistema pré-consciente e do sistema inconsciente, respectivamente, em sua relação com o sistema consciente e em seu desligamento completo em relação a este último sistema, quando, o que vem à tona do inconsciente ao consciente, só o vem por intermédio do pré-consciente e, de certa forma, traduzido ou elaborado por este. Se o pré-consciente falha em seu trabalho de tradução, experiências emocionais são impossibilitadas de se transformarem em pensamentos, e pensamentos podem se cristalizar, o que interrompe justamente a fluidez da sentiência e a dinâmica entre os sistemas acima referidos.

 

III Padrões universais inconscientes versus emergência de seres conscientes

Do exposto na seção anterior resultaram duas conclusões. A primeira consiste no fato de a proposição que afirma a “existência de padrões de informação universais inconscientes” conter nela mesma uma contradição de termos; porque, se tais padrões são inconscientes, eles não podem ser universais. A segunda, acrescida a esta, mostrou que a proposição de padrões de informação universais inconscientes é incompatível com a afirmação segundo a qual tais padrões “[...] conferem ao cosmos a possibilidade de emergência de seres conscientes em qualquer lugar e tempo.” Isso porque, conforme assumido pelos próprios autores, no início da seção IV, intitulada “Da sentiência à consciência, e vice-versa”, “[...] o que é experienciado conscientemente pode ser retido em um engrama de memória inconsciente, que pode ou não ser lembrado no futuro.” Donde a comprovação de que a emergência de seres conscientes não está atrelada a padrões de informação universais inconscientes.

Se “[...] o que é experienciado conscientemente pode ser retido em um engrama de memória inconsciente, que pode ou não ser lembrado no futuro”, a proposição que sustenta a possibilidade de emergência de seres conscientes, a partir de padrões de informação universais inconscientes, não se constitui senão como um círculo vicioso. Da mesma forma, se a proposição que afirma a “existência de padrões de informação universais inconscientes” contém nela mesma uma contradição de termos – porque, se tais padrões são inconscientes, eles não podem ser universais –, então, além de um círculo vicioso, a proposição que pressupõe a possibilidade de emergência de seres conscientes, a partir de padrões de informação universais inconscientes, se baseia em um fundamento inconsistente. Porém, não há inconsistência em se afirmar a emergência de seres conscientes, a partir de séries paralelas de padrões de informação singulares inconscientes, o que é compatível tanto com as diversas teorias da consciência quanto com as teorias psicanalíticas do inconsciente.

Desde Kant (1798/2006, § 3), três elementos se mostram como os constituintes fundamentais da consciência, a saber: a atenção (attentio), a abstração (abstractio) e a universalização. Os dois últimos elementos, porém, se fundam eles mesmos no primeiro e, assim, se apresentam como sua formalização; daí a necessidade de uma consideração mais adequada da própria atenção, no tocante à sua natureza. Como não é possível estender-se aqui, devido aos limites deste trabalho, considere-se apenas o significado etimológico da palavra attentio, de attendere, literalmente “tender para”, formado por “ad”, que se assimila a “at”, e por “tendere”, que se associa à raiz “ten” (tender, esticar, tensionar), também presente no grego “tonos” (tensão, tono).

Nesse sentido, mais do que uma função da consciência ou do Eu, a atenção figura como o elemento mais fundamental destes, mas também como o da própria memória, a qual registra as “tensões” experimentadas pelo indivíduo e as aloca nos sistemas inconsciente, pré-consciente ou consciente, segundo a intensidade das tensões – ou dos conflitos psíquicos – em jogo e a suportabilidade do indivíduo em cada caso em questão. Em vista disso, há que se reconhecer, na chamada “capacidade de sentir”, não apenas a faculdade biologicamente determinada ou determinável da sentiência, mas, antes, também o poder suportar uma tensão psíquica extraordinária e, desse modo, organizá-la mediante as instâncias do inconsciente, do pré-consciente ou do consciente, bem como nos respectivos sistemas assim designados. Mas de onde vêm as tensões acima aludidas?

No que diz respeito aos organismos vivos complexos, quaisquer que sejam eles, toda tensão implica uma carga que, em dado momento, precisa ser descarregada. De outra forma, o indivíduo mostra-se incapaz de manter a constância de seu meio interno, o assim chamado equilíbrio homeostático; este é lembrado pelos autores, em pelo menos três momentos, todavia, não investigado em profundidade para além sua apresentação como um mecanismo de regulação biológica. Tanto o carregamento quanto o descarregamento de uma tensão consiste antes de tudo em eventos afetivos e emocionais que sempre se dão no contexto de uma “tempestade emocional”, para usar aqui um termo de Bion (1979/1987, p. 322), a qual, por sua vez, se evidencia quando do encontro de dois indivíduos igualmente incertos um em relação ao outro. No âmbito de uma tempestade emocional assim descrita, não há elaboração possível e, portanto, nem passagem à consciência; em rigor, à linguagem e ao pensamento.

No entanto, isso ainda não é tudo. Emoções e sentimentos consistem na interpretação de afetos, caso em que estes – em sentido próprio – dificilmente passam do inconsciente ao consciente, se não transformados em emoção, assim como esta também não passa, se não traduzida (via pré-consciente) em algum sentimento. Isso pode ser exemplificado na medida em que, quando alguém sente algo, geralmente se diz que sente alegria, tristeza, medo, raiva ou nojo etc. – estas, por exemplo, as chamadas cinco emoções básicas –, razão pela qual se pode afirmar que todo sentimento é, de algum modo, sentimento de uma emoção, por si mesma refratária à interpretação e à simbolização. O mesmo ocorre com os afetos – em especial a angústia, o amor e o ódio, o prazer e o desprazer, o gozo e a dor, o amparo e o desamparo etc. –, os quais só se dão a conhecer mediante a mudança de sua forma por intermédio das emoções, que, então, se lhes sobrepõem. Por isso, Green (1973/1975, p. 16) se perguntou se seria possível falar do afeto em sentido próprio, isto é, de seu centro, o qual, tal como o inconsciente, nos permanece de fato desconhecido.

Em contraste, o afeto também é reconhecido – pela Filosofia e pela Psicanálise – igualmente como memória. O que, tal como acontece com o inconsciente, permite sua investigação por si mesmo e sua distinção em relação à emoção e ao sentimento, de sorte a se poder chegar às suas camadas mais profundas, propriamente pulsionais, nas quais o psíquico e o somático permanecem indistintos, e, assim, fazer emergir uma ciência da capacidade de sentir fundada em um solo adequado e consistente com o que tal ciência se põe como fim. Nesse caso, porém, as pesquisas das mais diversas ciências, inclusas a Sentiômica e a Psicanálise, devem convergir para a memória, âmbito mais amplo que o da consciência e que, certamente, poderá contribuir de modo auspicioso na explicação de sua emergência. Sentiômica e Psicanálise têm aqui seu ponto de partida comum, o experienciado retido em um engrama de memória inconsciente.

 

Conclusão

A proposição da Sentiômica como ciência da “capacidade de sentir” e sua fundação no que os autores designam “genes do sentimento”, isto é, “[...] padrões dinâmicos inconscientes capazes de gerar sentimentos conscientes”, mostra-se um acontecimento alvissareiro. Embora os autores apresentem a Sentiômica nos limites da linguagem da concepção tradicional, moderna, da ciência – exemplificada na perspectiva da terceira pessoa –, ao buscarem a mediação entre essa perspectiva e a da primeira pessoa, a qual se volta para o estudo dos qualia, pressupõem um tipo novo de fundamento, que possa levar a termo a referida mediação. Se tal fundamento consiste nos “padrões dinâmicos inconscientes capazes de gerar sentimentos conscientes”, por conseguinte, a Psicanálise se constitui como um modelo epistêmico essencial para a fundamentação da ciência ora proposta.

Infelizmente, não há espaço, neste brevíssimo comentário para que se possa explicitar adequadamente a Psicanálise como modelo epistêmico da Sentiômica. Não obstante, assim como a Psicanálise já se mostrou como uma abertura para a proposição de uma metafísica pós-moderna, no caso, em Yannaras (1993/2004, 2004/2011) e Silva (2017; 2019), bem como se revela um elemento constitutivo fundamental para as mais diversas disciplinas – a exemplo da Antropologia –, a assunção dos chamados “genes do sentimento”, ou de “padrões dinâmicos inconscientes capazes de gerar sentimentos conscientes” pela Sentiômica, faz da Psicanálise e de seu regime epistêmico o modelo e o fundamento adequados daquela ciência. Para isso, entretanto, a Sentiômica tem que assumir, igualmente, não apenas o bônus, mas também o ônus de seu empreendimento.

Isso implica a necessidade de ocupar-se dos “genes do sentimento” – objeto da Sentiômica –, antes que se gerem sentimentos conscientes e que estes se mostrem na experiência consciente como qualia – objeto da Qualiômica –, os quais constituem tais sentimentos. É necessário, pois, ocupar-se de um âmbito do real – isto é, do ser, mas não já da realidade, que é sua representação ou qualidade – no qual os próprios qualia ainda não existem; o que só é possível, na medida em que se assume a existência de séries paralelas de padrões de informação singulares inconscientes, em suma, de afetos e de emoções, enquanto estes ainda não passaram por um processo de qualificação. Algo inteiramente compatível com a tarefa de “[...] identificação empírica e análise dos padrões temporais universais que caracterizam a sentiência” própria da Sentiômica.

 

Referências

BION, W. R. (1979). Making the best of a bad job. In: BION, W. R. Clinical seminars and others works. London: Karnac Books, 1987. p. 321-331.

GREEN, A. (1973). La concepción psicoanalítica del afecto. Mexico; Madrid; Buenos Aires: Siglo XXI, 1975.

HEGEL, G. W. F. (1807). Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: USF, 2002.

HEGEL, G. W. F. (1812). Ciência da Lógica. O Ser. Edição de 1812. Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Edição de Manuel Moreira da Silva. São Paulo: Loyola, 2021.

KANT, I. (1798). Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução de Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.

Pereira Jr., A.; Aguiar, V. J. de. Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 57- 86, 2023.

PEREIRA JÚNIOR, A.; VINÍCIUS, V. J. de. Fundamentos e aplicações da Sentiômica: a ciência da capacidade de sentir. Work in Progress. 2023. (Versão manuscrita).

SILVA, M. M. da. A Psicanálise como Abertura à Metafísica Pós-Moderna. Observações preliminares em torno da apropriação ontológico-relacional da psicanálise lacaniana pela metafísica pós-moderna de Christos Yannaras. In: COLÓQUIO ONTOLOGIA E PSICANÁLISE, 2017, Campinas. Caderno de resumos. Campinas: IBPW, 2017, v. 1, p. 52-53.

SILVA, M. M. da. Pensar em imagens, pensar no Abrangente. Introdução ao pensar na pós-modernidade, ao pensar do Abrangente, ao pensar pré-consciente. Eleuthería, v. 4, p. 112, 2019.

YANNARAS, C. (1993). Postmodern Metaphysics. Translated by Norman Russel. Massachusetts: Holy Cross Orthodox Press, 2004.

YANNARAS, C. (2004). Relational Ontology. Translated by Norman Russel. Massachusetts: Holy Cross Orthodox Press, 2011.

 

Recebido: 05/03/2023

Aprovado: 10/03/2023

Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético[39]

 

André J. Abath[40]

Resumo: Neste artigo, apresenta-se uma posição a que se chama de aprimoramento erotético, segundo a qual devemos avaliar e, eventualmente, aprimorar nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?”. O foco será em casos em que x captura uma categoria fortemente social, como o casamento. Tal posição é oferecida enquanto alternativa à ideia — por vezes denominada engenharia conceitual — de acordo com a qual devemos avaliar e, eventualmente, buscar uma melhoria de nossos conceitos. Uma vez introduzida a ideia de aprimoramento erotético, será buscado mostrar como pode ser mobilizada para lidar com o que se chama de desafio da preservação de tópico, e que vantagens possui em relação a uma posição semelhante disponível na literatura, nomeadamente, o Quadro Austero, defendido por Cappelen (2018).

Palavras-chave: Aprimoramento erotético. Engenharia conceitual. Conceitos. Projetos de melhoria.

 

Introdução

Nos últimos anos, várias pessoas na filosofia voltaram sua atenção para o estudo da avaliação e melhoria de nossos conceitos, à luz de certos objetivos. Haslanger (2000, p. 33) coloca bem a ideia:

Nessa abordagem, a tarefa não é explicar nossos conceitos comuns; nem é investigar o tipo (kind) que podemos ou não estar rastreando com nosso aparato conceitual cotidiano; em vez disso, começamos considerando mais amplamente a pragmática de nosso discurso que emprega os termos em questão. Qual é o sentido de ter esses conceitos? Que tarefa cognitiva ou prática eles nos capacitam (ou deveriam nos capacitar) a realizar? Eles são ferramentas eficazes para cumprir nossos propósitos (legítimos); se não, quais conceitos serviriam melhor a esses propósitos?[41]

 

A ideia, então, é que não devemos apenas compreender ou analisar os conceitos que possuímos. Devemos perguntar se esses conceitos são ferramentas eficazes para cumprir metas importantes que temos. Por exemplo, uma de nossas metas é ou pelo menos deveria ser a promoção da justiça social. Alguns de nossos conceitos, como o de raça ou o de gênero, devem servir como ferramentas que nos possam ser de auxílio no alcance desse objetivo. Mas, para isso, esses conceitos podem ter que ser melhorados. Assim, Haslanger (2000, 2006, 2012) defende a visão de que o conceito de mulher, por exemplo, deve ser aprimorado, para que possa ser uma ferramenta eficaz na luta contra o sexismo e a opressão.[42]

O campo de pesquisa em que questões nessa vizinhança vêm sendo debatidas aparece sob diferentes nomes: engenharia conceitual (SCHARP, 2013; EKLUND, 2017; CAPPELEN, 2018; CHALMERS, 2020), projetos de melhoria (HASLANGER, 2006, 2012; DIÁZ-LEON, 2020) ou ética conceitual (BURGESS; PLUNKETT, 2013a, 2013b). Neste artigo, busco introduzir uma nova posição nesse campo, a que chamarei de aprimoramento erotético.[43] Grosso modo, a ideia é oferecer uma posição na qual melhorias sejam pensadas não em termos da avaliação e aprimoramento de conceitos, mas em termos da avaliação e busca por aprimoramento de nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?”.

Meu foco neste artigo, no entanto, será no aprimoramento de respostas a um tipo específico de questões da forma “O que é x?”. Mais especificamente, meu interesse aqui é no aprimoramento erotético aplicado a questões da forma “O que é x?”, em que x captura uma categoria social e, mais especificamente, uma categoria fortemente social, como o casamento. Por uma categoria, entenderei não um conceito seja um conceito concebido como uma representação, ou como uma entidade de alguma outra espécie , mas um tipo de coisa no mundo. Assim, pressuporei que, no mundo, há categorias naturais, como gatos e pérolas, e também categorias sociais, como o casamento e o dinheiro. Em ambos os casos, pressuporei que categorias possuem instâncias específicas, como um gato de nome Belchior, ou um casamento particular, e que diversas instâncias de uma dada categoria c (gatos diversos, casamentos diversos) possuem semelhanças relevantes e suficientes, de maneira a pertencerem a c.

Para os meus propósitos, essa concepção mínima de categorias será o bastante, e permanecerei neutro em relação a inúmeros debates metafísicos (se categorias devem ser compreendidas enquanto universais ou enquanto conjuntos de particulares, por exemplo).[44] Ademais, tomarei uma categoria c como fortemente social se, e somente se, o que c é, em grande parte, é determinado pelas atitudes dos sujeitos em relação a c.[45] [AA1] O casamento parece ser uma categoria fortemente social, nesse sentido. O que é o casamento, em um determinado cenário institucional, é amplamente determinado por certas instituições. Particularmente, o que é o casamento, em um determinado ambiente institucional, é amplamente determinado pela lei.[46]

Por que voltar a nossa atenção, neste artigo, para categorias fortemente sociais? Na verdade, quando se trata de tais categorias, pode ser que as visões oferecidas pelas instituições relevantes sobre o que é uma determinada categoria estejam longe de ser consensuais. Na verdade, pode ser que as opiniões oferecidas pelas instituições relevantes sobre o que é uma determinada categoria nos pareçam simplesmente erradas. Tome-se o caso do casamento.[47] Se, em um determinado cenário institucional, o casamento é legalmente entendido em termos conservadores — como, por exemplo, a união legal ou formalmente reconhecida de um homem e uma mulher como parceiros em um relacionamento interpessoal —, tal visão do casamento pode (e deve) nos parecer claramente errada. Em tal caso, respostas à pergunta “O que é o casamento?” podem necessitar de uma urgente melhoria. O mesmo vale para categorias como raça e gênero, que têm sido objeto de intensa discussão na literatura sobre engenharia conceitual e áreas adjacentes. Assim, justifica-se o foco em tais casos.[48]

Feita essa introdução, a estrutura do artigo será como se segue. Na seção 1, apresento algumas das visões discutidas no campo da engenharia conceitual (projetos de melhoria ou ética conceitual). Na seção 2, enfatizo como essas visões variam em suas suposições básicas sobre o que conceitos são, e sugiro que a discordância aqui pode atrapalhar o progresso nesse campo de pesquisa. Na seção 3, faço uma caracterização inicial do aprimoramento erotético, a partir de ideias encontradas no trabalho de Haslanger (2006, 2012). Na seção 4, discuto como essa visão pode lidar com um desafio frequentemente levantado nesse campo, o da preservação de tópico. Na seção 5, reflito sobre o Quadro Austero de Cappelen (2018) e argumento que a visão exposta neste artigo tem uma vantagem importante em relação a essa posição.

 

1 Engenharia Conceitual

Um número considerável de filósofas e filósofos vêm desenvolvendo projetos semelhantes ao de Haslanger, mencionado acima, embora com rótulos distintos e, às vezes, com objetivos diferentes que aquele da justiça social em mente. Scharp (2013), por exemplo, argumenta que nosso conceito comum de verdade é defeituoso; envolve inconsistências, as quais, por sua vez, levam a paradoxos, como o paradoxo do mentiroso. Para evitar esses paradoxos e progredir na obtenção de uma semântica para a linguagem natural, devemos substituir o conceito comum de verdade por outros conceitos, de forma que tais inconsistências sejam dissipadas. Scharp considera seu projeto como sendo um de engenharia conceitual. Recentemente, ele apresentou o projeto da seguinte forma:

Acho que a engenharia conceitual está mudando ativamente alguns aspectos de nossos conceitos—eliminando os ruins, decidindo quais devemos usar e qual palavra deve expressá-los ... A ideia de engenharia conceitual é, realmente, a de termos um papel ativo em relação aos nosso esquema conceitual e mudá-lo quando se encontram defeitos nesses conceitos. (SCHARP, 2020, p. 396-397).

 

A partir desta breve apresentação, deve estar claro que Haslanger e Scharp têm objetivos diferentes em mente — Haslanger está engajada em um trabalho teórico que busca facilitar a justiça social, enquanto Sharp está empenhado em um projeto que visa a pavimentar o caminho de uma semântica para a linguagem natural —, mas há uma preocupação em comum aqui: ambos estão engajados em um projeto de avaliar e melhorar conceitos que são considerados defeituosos, atendendo a determinados objetivos. Essa preocupação envolve uma dimensão normativa: Haslanger e Scharp estão procurando encontrar os conceitos que devemos usar em nossas relações com o mundo. Assim, não é impróprio dizer que estão envolvidos em um projeto de ética conceitual, para usar a expressão introduzida por Burgess e Plunkett (2013a, 2013b).

A terminologia pode ser confusa nessa área, com as expressões "engenharia conceitual", "melhoria" (ou “projetos de melhoria”) e "ética conceitual", muitas vezes usadas de forma intercambiável[49]; por isso, para os propósitos desta seção, utilizarei apenas engenharia conceitual — mais adiante, ao expor minha própria posição, usarei aprimoramento erotético. Por engenharia conceitual, entenderei, grosso modo, o projeto de avaliação e eventual melhoria de nossos conceitos. Mas isso deve ser tomado de forma ampla, como envolvendo diferentes possibilidades de melhoria: substituir certos conceitos por outros, mudar o conteúdo dos conceitos, eliminar conceitos, e outras formas de “termos um papel ativo em relação ao nosso esquema conceitual”, como colocado por Scharp, na passagem acima. A ideia de engenharia é útil por sugerir que devemos nos preocupar não apenas em avaliar nossos conceitos e apresentar ideias para melhorá-los; como sugerido por pessoas como Cappelen (2018), Burgess e Plunkett (2020) e Chalmers (2020), devemos levar em conta a implementação desses projetos de melhoria — como na engenharia, onde a preocupação não deve ser somente com a elaboração e reelaboração de projetos, mas também com sua implementação no mundo real.[50] Conforme ressaltado por Burgess e Plunkett (2020, p. 5), a implementação conceitual

[...] envolve uma categoria da advocacia, na qual se tenta fazer com que algumas pessoas (variando de um indivíduo solitário a uma grande população) realmente adotem e usem os conceitos que alguém defende. Em outras palavras, isso envolve uma tentativa de implementação real das mudanças conceituais que se pensa que devem ser feitas [...]

 

Assim, se alguém pensa que os conceitos de gênero e raça devem ser aprimorados e propõe uma maneira de fazê-lo, como Haslanger (2000, 2006, 2012), é uma parte relevante do projeto que as pessoas — e aqui podemos pensar em um grande população e, talvez mais importante, em pessoas que ocupam certos papéis institucionais — possam chegar a usar esses conceitos em sua versão melhorada. Como fazer com que as pessoas façam isso é certamente uma questão complicada, mas o sucesso da engenharia conceitual parece depender, pelo menos até certo ponto, do sucesso de seu estágio de implementação. Portanto, as visões sobre como melhorar os conceitos devem abrir espaço para implementações bem-sucedidas.

 

2 Conceitos

Até o momento, introduzi a ideia de engenharia conceitual sem explicitar que conceitos são. Na verdade, não há consenso no campo da engenharia conceitual sobre o que são essas entidades (se é que conceitos são entidades) que devem ser melhoradas. Isso não é surpreendente. Conceitos são ferramentas filosóficas — e psicológicas — notoriamente elusivas. O desacordo na literatura no que tange à ontologia de conceitos, por exemplo, é generalizado: alguns consideram que conceitos são objetos abstratos (PEACOCKE, 1992; ZALTA, 2001), enquanto outros os tomam como representações mentais (a visão dominante na filosofia da psicologia e na própria psicologia), e outros ainda os tomam como habilidades de algum tipo (DUMMETT, 1993; MILLIKAN, 2000), ou itens linguísticos (JOHNSTON; LESLIE, 2012).[51] Em psicologia, onde os conceitos são tidos principalmente como representações mentais, também abunda a discordância sobre qual é a estrutura dessas representações — se são estruturadas, por exemplo, em termos de protótipos, exemplares ou teorias.[52]

Diante de tal desacordo, era de se esperar que várias posições acerca do que conceitos são estivessem disponíveis na literatura sobre engenharia conceitual. Isso é, de fato, o que ocorre. Ontologicamente, essas visões estão inseridas no leque de opções que acabamos de considerar: em tal literatura, ou conceitos são tomados como objetos abstratos de algum tipo (como significados), ou como representações mentais, ou como habilidades (ou capacidades), ou ainda como itens linguísticos. Mais especificamente, no campo da engenharia conceitual, os conceitos às vezes são tidos como: significados dos termos (PLUNKETT, 2015), representações mentais que são constituintes dos pensamentos (SAWYER, 2020), representações mentais com conteúdos duais (KOCH, 2020), corpos de informações sobre um referente armazenado na memória de longo prazo (ISAAC, 2020), entidades linguísticas (BRUN, 2016), capacidades para acessar partições do espaço lógico (HASLANGER, 2020a), para citar algumas das posições recentemente apresentadas na literatura.

Conforme colocado por Haslanger (2020b), essas diferentes suposições básicas sobre o que os conceitos são tornam o campo da engenharia conceitual confuso.[53] Penso que pelo menos parte da confusão decorre do fato de que, dadas essas várias visões sobre conceitos, não há acordo quando se trata do que, afinal, deve ser melhorado. Devemos melhorar significados, representações mentais, itens linguísticos ou capacidades para acessar partições do espaço lógico (para citar algumas das opções disponíveis)? Evidentemente, pode ser necessário melhorar vários desses itens de uma só vez, independentemente de serem chamados de “conceitos”, ou não. Isso significaria que o campo da engenharia conceitual não é unificado — no sentido de que quem trabalha na área não busca melhorar um único item, mas itens diferentes. Isso não precisa ser um problema. Temos um problema, se a falta de acordo quando se trata de suposições básicas —  especialmente no que diz respeito ao que conceitos são — venha a impedir o progresso que aqueles que trabalham na engenharia conceitual almejam, seja o progresso na justiça social, seja em fornecer uma semântica para a linguagem natural, seja ainda alguma outra forma de progresso. Uma maneira pela qual a discordância a esse respeito poderia levar a um resultado tão indesejado seria em caso de termos uma dificuldade de comunicação entre as pessoas envolvidas na pesquisa em engenharia conceitual, uma vez que as suas suposições de fundo podem diferir consideravelmente.

Essas são difíceis questões metateóricas, e não tentarei argumentar aqui que o campo da engenharia conceitual está em maus lençóis, devido a divergências sobre a noção de conceito. Com as observações acima, quero apenas enfatizar que essas divergências podem impedir o progresso na área. Se assim for, uma posição que evite se referir a conceitos e que aborde as principais preocupações que aqueles que trabalham na área possuem — e, assim, evite o desacordo generalizado sobre o que conceitos são — pode facilitar a comunicação entre aqueles que nela trabalham e permitir um maior progresso, quando se trata de atingir os objetivos da engenharia conceitual.[54] O que proponho fazer a seguir é expor uma tal posição, a que chamo de aprimoramento erotético.

Minha sugestão, por conseguinte, é de que o aprimoramento erotético, ao evitar lidar  com as elusivas entidades que são os conceitos, e ao se envolver com preocupações que movem aqueles trabalhando na área da engenharia conceitual — concebida como lidando, por vias que podem ser diversas, com a melhoria de nossos conceitos — pode ser visto como tendo vantagens em relação à engenharia conceitual e, portanto, como um possível substituto a esse programa de investigação. Isso não significa, contudo, que o aprimoramento erotético seja incompatível com a engenharia conceitual. Com efeito, é viável uma posição segundo a qual devemos melhorar tanto conceitos quanto respostas a certas perguntas. Por exemplo, é viável uma posição para a qual devemos melhorar tanto o conceito de casamento (entendido como uma representação mental, digamos), quanto nossas respostas à pergunta “O que é o casamento?”. Assim, aqueles que desejam manter-se comprometidos com conceitos enquanto entidades em suas teorias não precisam, necessariamente, rejeitar o aprimoramento erotético e podem, eventualmente, encontrar elementos, no que se segue, que seja de utilidade para suas próprias investigações.[55]

Em vista disso, começo discutindo algumas posições de Haslanger, pois a visão que defenderei aqui busca fazer justiça ao que considero ser alguns de seus importantes insights.

 

3 Aprimoramento Erotético

Haslanger (2000, 2006) distingue três formas diferentes de se responder a questões da forma “O que é x?”. A primeira é o que se toma mais tradicionalmente como sendo um projeto de análise conceitual. Aqui, em um primeiro momento, reformula-se uma questão com essa forma em termos dos nossos conceitos — “Qual é o nosso conceito de conhecimento?”, por exemplo. Em seguida, tenta-se responder à nova pergunta, a partir do uso de métodos a priori. Isso poderia ser uma questão de — verificadas nossas intuições a respeito de vários casos — desvendarmos as condições necessárias e suficientes para algo ser x — para termos um caso de conhecimento, por exemplo. Mas também poderia ser uma questão de buscarmos uma descrição do papel desempenhado pelo conceito em nossas teorias do senso comum sobre o assunto em questão — tal como uma descrição do papel desempenhado pelo conceito de conhecimento, em nossas teorias epistêmicas do senso comum.

A segunda maneira de se responder a perguntas da forma “O que é x?” — denominada por Haslanger como a abordagem descritiva, e exemplificada pelo trabalho de filósofos como Kripke (1980) e Putnam (1975) — sugere que uma resposta a tal questão deve apresentar uma propriedade P que é essencial de x, uma propriedade que x possui em todos os mundos possíveis, e que é identificada não pelo uso de métodos a priori, mas por pesquisas científicas sobre o assunto. Por exemplo, se a pergunta em causa for “O que é água?”, a resposta adequada é “Água é H20”.

A terceira maneira de se responder a perguntas da forma "O que é x?" — nomeada por Haslanger (2006) de projetos de melhoria (ameliorative projects) — é descrita por ela da seguinte forma:

Os projetos de melhoria, ao contrário, começam perguntando: Qual é o sentido de se ter o conceito em questão; por exemplo, por que temos um conceito de conhecimento ou um conceito de crença? Qual conceito (se houver) funcionaria melhor? No caso limite, um conceito teórico é introduzido pela estipulação do significado de um novo termo, e seu conteúdo é determinado inteiramente pelo papel que desempenha na teoria. Se permitirmos que nossos vocabulários cotidianos sirvam a propósitos cognitivos e práticos que podem ser bem servidos por nossa teorização, então aqueles que buscam uma abordagem de melhoria podem razoavelmente se apresentar como fornecendo uma explicação de nosso conceito—ou talvez do conceito que estamos buscando — melhorando nossos recursos conceituais para servir aos nossos propósitos (examinados criticamente) [...] (HASLANGER, 2006, p. 95-96).

 

Haslanger mudou um pouco sua compreensão dos projetos de melhoria, ao longo dos anos, e a passagem acima revela algumas dessas mudanças. Em um trabalho anterior — “Gender and Race: “(What) Are They? (What) Do We Want Them to Be?” (2000) —, sua abordagem dos projetos de melhoria (então chamada de abordagem analítica) é mais explicitamente revisionista: “Minha prioridade nesta investigação não é capturar o que queremos dizer, mas como podemos revisar de forma útil o que queremos dizer para certos propósitos teóricos e políticos.” (2000, p. 34). Em se tratando do conceito de mulher, por exemplo, a ideia seria que, ao introduzirmos uma definição melhorada do conceito, estaríamos revisando o conceito de mulher; ou, para ser mais preciso, estaríamos mudando o conteúdo do conceito, com o objetivo de combater o sexismo e a opressão.

A posição de Haslanger (2006) sobre a melhoria, no entanto, é menos revisionista, quando concerne ao conteúdo de conceitos como os de gênero e raça.[56] A ideia, nesse texto, é que as definições propostas em seus trabalhos anteriores são mais bem vistas como nos permitindo entender melhor o conteúdo de nossos conceitos. Deixe-me examinar essa posição em um pouco mais de detalhe, pois será importante para a visão que estou prestes a apresentar. A base teórica de Haslanger é o externismo semântico aplicado ao conteúdo dos conceitos. É bem sabido que, de acordo com o externismo semântico desenvolvido por Putnam (1975), um termo para uma categoria natural, como “água”, tem seu significado — ou valor semântico — parcialmente determinado por fatos relativos ao nosso ambiente. Dado que água é H20 — uma descoberta científica a respeito da natureza do categoria —, e que a referência de termos para categorias naturais é fixada pela ostensão de um paradigma, “água” se refere a H20. Aplicada a conceitos, a visão é que o conceito de água tem como extensão H2O, de forma que o conteúdo do conceito é, pelo menos parte, determinado por fatos relativos ao nosso meio ambiente.

Burge (1979) estende o externismo semântico ao domínio social, pois, de acordo com sua posição, o conteúdo de nossos conceitos pode ser determinado não apenas por fatos relativos ao nosso ambiente, mas também por fatos referentes à comunidade linguística de que fazemos parte. Mais especificamente, a ideia é que o conteúdo de um conceito, como o de artrite, é parcialmente determinado pelo uso linguístico padrão. Se, em nossa comunidade, “artrite” captura uma enfermidade que atinge apenas as articulações e não os músculos, faz parte do conteúdo expresso pelo termo — o conceito de artrite — que assim seja. O conteúdo dos conceitos é, pois, parcialmente determinado por fatos sobre como nossos termos são caracterizados — ou usados — em uma dada comunidade linguística.

De acordo com o externismo semântico, pode-se possuir o conceito de água, sem que se  saiba que água é H2O, ou pode-se possuir o conceito de artrite, sem que se saiba que é uma doença que aflige apenas as articulações — pode-se, portanto, possuir conceitos que são apenas parcialmente compreendidos (BURGE, 1979).[57] Suponha-se que Joaquim está nessa posição, sem saber que a água é H2O e que a artrite é uma doença que atinge apenas as articulações — apesar disso, ele pode possuir os conceitos de água e artrite, mas sua compreensão desses será, inevitavelmente, parcial. Quando Joaquim passa a saber que a água é H2O e que a artrite afeta apenas as articulações, ele passa a entender melhor o conteúdo dos conceitos de água e artrite. Ou seja, ele passa a ter um melhor entendimento de conceitos que já possuía.

Haslanger (2006, p.106) acredita que “[...] os insights externistas devem ser aplicados ao nosso pensamento e linguagem sobre o social, bem como o natural.” Teóricos sociais investigam o mundo social, e um tópico central de interesse é o estudo de categorias que podem ser plausivelmente consideradas como sociais, bem como conceitos que capturam essas categorias, como conceitos de gênero e o conceito de raça. Quando os teóricos sociais investigam esses conceitos, podem ajudar a esclarecer seu conteúdo (HASLANGER, 2012, p. 5). Assim como ocorre com conceitos para categorias naturais, podemos não apenas estar inconscientes de aspectos do conteúdo de nossos conceitos para categorias sociais, mas também podemos ter crenças equivocadas a respeito desses conteúdos. Segundo Haslanger, isso é de se esperar: “A falha de compreensão que o teórico social pretende corrigir não é uma falta que apenas alguns de nós temos; trata-se de parte do que é ser um agente comum, vivendo em uma cultura em cujas práticas nos engajamos, muitas vezes ‘sem pensar’, assim como falamos nossa língua nativa.” (HASLANGER, 2012, p. 16).

Portanto, a visão de Haslanger é de que as definições de raça e gênero por ela propostas podem ser vistas como parte de um projeto de teoria social que nos revela melhor o que a raça e os gêneros são. Essa investigação evidenciaria aspectos do conteúdo de nossos conceitos de raça e gênero. O foco aqui, portanto, não é tanto em mudar o conteúdo desses conceitos — como parece ser o caso, em Haslanger (2000) — mas em esclarecer (e assim nos ajudar a ter uma melhor compreensão) desses conteúdos. O paralelo com a investigação sobre categorias naturais e sobre os conceitos que as capturam é claro. Ao descobrir que a água é H2O, a investigação científica revela melhor o que a água é, e, ao fazê-lo, explicita aspectos do conteúdo do nosso conceito de água e, assim, nos ajuda a ter uma melhor compreensão do conteúdo do conceito. Obviamente, existem diferenças substanciais entre esses projetos. Que as categorias naturais sejam reais e as categorias sociais não o sejam, contudo, não é uma delas, pois “[...] as categorias sociais não são menos reais por serem sociais.” (HASLANGER, 2012, p.15). Existem diferenças que decorrem imediatamente de uma investigação ser focada em aspectos naturais do mundo, e outra ser focada em seus aspectos sociais. Essas diferenças não precisam ser listadas. Mas se deve notar que a investigação científica sobre as propriedades químicas subjacentes à água pode ser vista como não tendo nenhum objetivo além de revelar qual é a natureza física da água. A investigação na teoria social procura mostrar o que categorias sociais são, tendo a justiça social em mente (HASLANGER, 2012, p. 15).

Meu objetivo aqui não é discutir se a extensão de Haslanger do externismo semântico para o conteúdo de conceitos para categorias sociais é bem-sucedida ou não. Independentemente das mudanças nas visões de Haslanger, projetos de melhoria, segundo ela, devem ser vistos como uma maneira de responder a perguntas da forma "O que é x?" — uma maneira de fazê-lo que difere da análise conceitual tradicional e das abordagens descritivas. Acredito que ela está certa, nesse ponto, e que esse é um insight importante, o qual deve ser preservado. Suporei que ela também está certa, ao pensar que a teoria social desempenha um papel em relação às categorias sociais que é semelhante ao papel exercido pela ciência natural em relação às categorias naturais: o papel de fornecer uma melhor compreensão do que as categorias em jogo são.

Assim, a teoria social nos ajuda a entender melhor o que são categorias sociais, como categorias de gênero e raça, assim como a química e a física nos ajudam a entender melhor o que a água é. Esse também é um insight importante, o qual deve ser preservado. No entanto, ambos os insights de Haslanger podem ser preservados em uma teoria que não considera a melhoria como uma questão de melhorar conceitos — quer entendamos a melhoria conceitual como sendo mais ou menos revisionista. Uma maneira alternativa e natural de fazer justiça aos insights de Haslanger pode ser introduzida nos seguintes termos: em um projeto de melhoria, devemos avaliar e, eventualmente, buscar melhorar nossas respostas a perguntas da forma "O que é x?". Esse é um primeiro passo na introdução da visão que eu gostaria de chamar de aprimoramento erotético.

Na verdade, o que faz com que uma resposta a uma questão da forma “O que é x?” seja aprimorada em relação a uma resposta anterior? E como devemos proceder, para fornecer respostas aprimoradas a questões com tal forma?  No que se segue, buscarei lidar com tais questões, tendo como foco casos em que x, tal como ocorre em perguntas da forma “O que é x?”, captura uma categoria fortemente social.

Haslanger (2012) também está certa, creio, ao insistir que as investigações sobre categorias sociais — ela tem em mente investigações feitas por teóricos sociais — devem visar parcialmente a uma crítica social. Ela descreve a ideia de crítica social do seguinte modo:

A crítica social é um empreendimento interdisciplinar que toma muitas formas. Uma de suas formas centrais visa instituições, leis e práticas sociais existentes, por exemplo, políticas de saúde, distribuição de gênero do trabalho familiar, perfil racial, e argumenta que são ruins ou injustas. Vamos chamar isso de crítica institucional (permitindo que a noção de “instituição” seja muito ampla). É tentador ver essa crítica como envolvendo duas etapas. Um passo envolve descrever a prática social em questão de uma forma que destaque as características que são relevantes para a avaliação normativa. Outra etapa invoca conceitos explicitamente normativos para avaliar a prática como justa, razoável, útil, boa ou não. (HASLANGER, 2012, p. 16, grifos da autora).

 

Assim, uma investigação de um teórico social sobre uma categoria fortemente social como o casamento deve envolver uma descrição da prática do casamento, uma descrição que destaque características relevantes para a sua avaliação, assim como deve pressupor uma avaliação sobre se a prática – como ocorre em um determinado cenário institucional – é “justa, razoável, útil, boa ou não”. Se a investigação for mais específica, no sentido de que procura responder à questão do que é o casamento, podemos pensar o segundo passo da crítica social como incluindo uma avaliação de se as respostas dadas à pergunta “O que é o casamento?”, em um determinado cenário institucional, são tais que contribuem para a justiça social; se são razoáveis, úteis, boas ou não. Se não o forem, é parte do trabalho do teórico social apresentar uma resposta melhorada à questão em causa, uma que promova a justiça social, que seja razoável etc. De fato, este último passo é fundamental para a crítica social. Afinal, como coloca Haslanger (2012, p. 29), “[...] a tarefa é nos situarmos diferentemente no mundo, e não apenas descrevê-lo com mais precisão.”

Logo, uma resposta melhorada à questão do que é uma categoria fortemente social deve satisfazer três condições: (i) a resposta deve ser apoiada por um descrição da prática, em determinado cenário institucional; (ii) a resposta deve ser apoiada por uma avaliação adequada da prática, cujo resultado seja que respostas anteriores à pergunta são consideradas injustas, irrazoáveis etc.; (iii) a nova resposta proposta para a pergunta em causa deve corrigir as falhas de respostas anteriores, ou seja, deve promover a justiça social, ser razoável etc.

 Ilustremos a ideia com o exemplo do casamento. Teóricos sociais empenhados em uma investigação sobre o que é o casamento, em um determinado cenário institucional, devem começar descrevendo a prática tal como ocorre em tal cenário. Suponha-se que estamos diante de um cenário em que a resposta institucionalmente aceita para a pergunta “O que é o casamento?” é a seguinte (ou resposta semelhante):

 

(1)   O casamento é a união legal ou formalmente reconhecida de um homem e uma mulher como parceiros em um relacionamento pessoal.

 

Se este for o caso, uma descrição da prática deve destacar as características que nos permitem avaliá-la como injusta e irrazoável, por exemplo. Afinal, é uma resposta que, dadas suas implicações institucionais, impede que casais do mesmo sexo[58] possam participar da instituição do casamento. Dada tal avaliação, parte do trabalho do teórico social é experimentar “[...] novas respostas ao mundo no lugar das velhas respostas que vieram a parecer problemáticas.” (HASLANGER, 2012, p. 29). O que seria uma resposta melhorada para a questão “O que é o casamento?”, uma resposta que satisfaça as condições (i)-(iii)? Certamente, (2) pode funcionar em muitos cenários:[59]

 

(2)   O casamento é a união legal ou formalmente reconhecida de duas pessoas como parceiras em um relacionamento pessoal.

 

Essa é uma resposta que contribui para práticas mais justas, inclusivas e razoáveis. Tal como quero entendê-la, neste artigo, diz respeito não ao conceito de casamento. Diz respeito a uma nova, e melhorada, forma de compreender um tipo de coisa no mundo, um tipo social ou categoria social, a instituição do casamento. De maneira semelhante, respostas melhoradas a uma pergunta sobre o que é uma categoria natural, como respostas melhoradas à pergunta “O que é a luz?”, entendida como sendo acerca da constituição física da luz, dizem respeito a uma nova forma de compreender um tipo de coisa no mundo, um tipo ou categoria natural. Contudo, há uma diferença importante entre esses dois casos. Por certo, que tenhamos chegado a uma resposta melhorada acerca do que é a luz, compreendida como sendo acerca de sua constituição física e, portanto, a uma melhor compreensão da categoria, não implica que o que a luz é tenha sido modificado. Simplesmente, melhor compreendemos a constituição física da luz; constituição essa que, evidentemente, não é alterada por nossas respostas.[60]

Já quando se trata de respostas melhoradas a perguntas da forma “O que é x?”, em que x captura uma categoria fortemente social, como o casamento, tais respostas podem alterar o que a categoria é. Afinal, o que categorias fortemente sociais são é, em grande parte, determinado por nossas atitudes em relação a tais categorias. Ao modificarmos nossas respostas acerca do que o casamento é, a própria categoria do casamento é modificada. Ou, para colocar o ponto de outra maneira, a própria instituição do casamento é modificada.[61]

Quando da discussão da engenharia conceitual, salientei a importância da implementação no mundo das alterações conceituais propostas. Naturalmente, o mesmo vale para o aprimoramento erotético. Tais projetos terão sucesso apenas se as novas respostas propostas para perguntas da forma “O que é x?”, em que x captura uma categoria fortemente social, vierem a ser dadas por indivíduos, no cenário ou contexto que for relevante. Ademais, parece claro que só devemos supor que houve uma alteração na categoria ela própria caso um número suficiente de indivíduos e, possivelmente, um número suficiente de indivíduos em posições institucionais estratégicas, venha a adotar tais respostas. Mas de que número estamos tratando? E quais seriam essas posições institucionais estratégias? Sem dúvida, tais perguntas não precisam, e não podem, ser respondidas aqui. Apenas a discussão detalhada de casos particulares de aprimoramento erotético pode relevar as condições para uma implementação exitosa de tais projetos. Em casos como o do casamento, uma instituição regida legalmente, somente a discussão detalhada de tal caso, em suas várias dimensões, pode revelar as condições para uma modificação exitosa da lei, em cenários nos quais essa modificação até o momento não ocorreu.

            Esta é uma caracterização inicial de como o aprimoramento erotético poderia ser aplicado a uma pergunta da forma “O que é x?”, em que x captura uma categoria fortemente social.[62] O aprimoramento erotético pode ser visto como decorrente de uma crítica social, no sentido de Haslanger. Por ora, discuti o aprimoramento erotético, em linhas bastante gerais, aplicado ao caso do casamento. Mas a lista de categorias fortemente sociais que precisam de respostas aprimoradas em relação ao que são pode ser longa.[63]

Na sequência, passemos a detalhamentos da posição. Deixe-me começar considerando um desafio que muitas vezes é levantado contra projetos de engenharia conceitual, um desafio que concerne à suposta dificuldade que esses projetos têm — uma vez postos em prática — de preservar o tópico em discussão, de sorte que não haja um desacordo verbal generalizado entre os usuários da língua. Chamarei a esse desafio de desafio da preservação de tópico.

 

4 O Desafio da Preservação de Tópico

Tal desafio é frequentemente introduzido por meio da apresentação de uma objeção levantada por Strawson (1963, p. 506) ao projeto de explicação de Carnap (1962):[64]

Oferecer explicações formais de termos-chave de teorias científicas para quem busca iluminação filosófica de conceitos essenciais do discurso não-científico, é fazer algo totalmente irrelevante—é um puro mal-entendido, como oferecer um livro de fisiologia a alguém que diz (com um suspiro) que gostaria de entender o funcionamento do coração humano...problemas filosóficos típicos sobre os conceitos usados ​​no discurso não-científico não podem ser resolvidos estabelecendo as regras de conceitos exatos e frutíferos na ciência. Fazer isso não é resolver o problema filosófico típico, mas sim mudar de assunto.

 

A preocupação de Strawson é legítima. Conforme posta aqui, a questão é que a substituição de conceitos que têm sido o foco do trabalho filosófico por outros mais cientificamente respeitáveis não resolve os problemas com os quais os filósofos se preocupavam originalmente. Temos, simplesmente, uma mudança do assunto. Uma forma de desenvolver o ponto destacado por Strawson é através da ideia de continuidade da investigação. Cappelen (2018, p.101-102) escreve:

Suponha que alguém tente melhorar o significado de 'crença' ou 'mulher' e, como resultado, mude a extensão da palavra. Agora, suponha que tentemos responder às perguntas que formulamos usando essas palavras pré-melhoramento usando as palavras com novas extensões, ou seja, respondemos com frases como “mulheres são ...” e “crença é ...”. A objeção é que as respostas que empregam termos com as novas extensões não respondem às perguntas originais. Essas respostas dizem respeito a algo novo—não ao que estávamos falando originalmente quando usamos as expressões “mulher” e “crença”. Temos a ilusão de uma resposta, mas é uma ilusão puramente verbal. Há uma falta de continuidade da investigação: as velhas perguntas não estão sendo respondidas. Estamos respondendo a novas perguntas.

 

Deixe-me ilustrar o ponto que Cappelen está levantando aqui, de modo tal que claramente represente um desafio a projetos de aprimoramento erotético. Considere-se mais uma vez a questão do que é o casamento. A preocupação é que uma resposta a essa questão, em termos de (2) — uma resposta aprimorada — pode ser tomada como não respondendo, de maneira alguma, à questão original. A ideia é que (2) dá ao termo “casamento” um novo significado. Se for assim, então a pergunta original — o que é o casamento? — não está, de forma alguma, sendo respondida, pois, na velha pergunta, “casamento” tem um significado pré-aprimoramento. Com efeito, (2) responde a uma pergunta diferente, que usa a palavra “casamento” com seu novo significado. Há, portanto, a ilusão de que a velha questão está sendo respondida, mas se trata de uma ilusão verbal, conforme colocado por Cappelen. E, dado que a velha questão não está sendo respondida, não há continuidade da investigação. A pergunta “O que é o casamento?”, feita uma vez que o aprimoramento erotético tenha sido posto em ação, na verdade introduz uma nova indagação e um novo tópico ou assunto em discussão.

As respostas ao desafio da preservação de tópico apelam, muitas vezes, à metassemântica, e procuram fornecer posições segundo as quais o conteúdo dos conceitos pode mudar — ou a intensão e extensão das palavras, no caso de Cappelen (2018) — sem que haja uma mudança de tópico, de modo a permitir a continuidade da investigação.[65] Não me engajarei com tais posições, neste texto. Gostaria, ao invés, de enfrentar o desafio em termos da pragmática de perguntas e respostas.

Nós fazemos perguntas — sejam ou não da forma “O que é x?” — com certos propósitos em mente. Esses propósitos são o objetivo da investigação do inquisidor. Se meu propósito, ao fazer certas perguntas a João, é saber o paradeiro de José, então, saber o paradeiro de José é o objetivo de minha investigação. Minha sugestão é que o objetivo da investigação nos permite identificar o tópico em discussão. Mais precisamente, o tópico em discussão deve ser identificado com o que as partes engajadas em uma conversação procuram saber — caso ambas estejam buscando conhecimento —, ou com o que uma das partes procura saber, com base no testemunho de outrem. Assim, no presente exemplo, o tópico em discussão entre mim e João é o paradeiro de José.[66]

Se assim for, temos, pois, uma clara maneira de entender a preservação de tópico: preservar um tópico em discussão é preservar o objetivo da investigação. Contudo, é importante notar  que os objetivos da investigação, como aqui entendidos, podem ser preservados em casos de aprimoramento erotético. Considere-se, novamente, o aprimoramento erotético aplicado ao caso do casamento. A resposta melhorada à pergunta “O que é o casamento?” — expressa por (2) — pode ser claramente apresentada, dada uma investigação que possui o mesmo objetivo que aquela na qual (1) é posta como uma resposta à pergunta em causa: ou seja, ambas as investigações podem ter como objetivo a obtenção de conhecimento sobre a natureza de uma categoria social, a categoria do casamento. Assim, ambas as investigações podem ter como tópico em discussão a natureza social do casamento. Da mesma forma, a resposta melhorada proposta por Haslanger à questão do que é a mulher pode ser explicitada a partir de uma investigação que tem o mesmo objetivo de uma na qual uma resposta pré-aprimoramento é fornecida: ambas as investigações podem ter como objetivo a obtenção de conhecimento acerca do que a mulher é. Logo, ambas as investigações podem ter como tema em discussão o que a mulher é.

Mas isso ainda não nos livra completamente do problema da preservação de tópico. Por vezes, as partes envolvidas em discussões veem a si próprias como compartilhando um objetivo de investigação — e, por conseguinte, como discutindo o mesmo tópico — quando, na verdade, não o estão fazendo. Isso certamente pode também ocorrer quando o aprimoramento erotético é posto em prática. Deixe-me ilustrar a ideia, tendo em vista a definição aprimorada de Haslanger (2000, p. 44) para o conceito de raça:

Um grupo é racializado se e somente se seus membros são socialmente posicionados como subordinados ou privilegiados em alguma dimensão (econômica, política, legal, social, etc.), e o grupo é “marcado” como alvo para este tratamento por características corporais observadas ou imaginadas presumidas como sendo evidência de vínculos ancestrais com uma determinada região geográfica.

 

Agora, imagine-se que, após ler o trabalho de Haslanger, Liana esteja convencida de que essa é a maneira certa de se pensar sobre raças. Ela discute a questão com Marcela, cuja investigação visa a descobrir o que raças são, se biologicamente entendidas, e somente assim entendidas. Marcela imediatamente rejeita a posição fornecida por Haslanger. Mas imagine que, ao fazê-lo, ela ignore o objetivo da investigação de Liana, a qual é descobrir o que raças são se socialmente entendidas, e somente assim entendidas. Apesar das aparências em contrário — pois, se perguntadas sobre o que estão falando, Liana e Marcela diriam que estão falando sobre o que raças são — as investigações de Liana e Marcela possuem objetivos distintos. Portanto, não há um único tópico em discussão. Ou seja, em outras palavras, a conversa aqui sofre de uma descontinuidade de tópico.

Como podemos evitar que disputas de tal tipo ocorram, depois que o aprimoramento erotético for posto em prática? Certamente, há uma tentação neste ponto de introduzir conceitos em nosso arcabouço teórico — poder-se-ia dizer, por exemplo, que é preciso garantir que o aprimoramento erotético preserve o conteúdo dos conceitos. Mas aqui resistirei a essa tentação, pois não precisamos bloquear a possibilidade de que o aprimoramento erotético leve à descontinuidade de tópico. Afinal, a descontinuidade de tópico é um fenômeno comum na linguagem. Se mudarmos um pouco o caso envolvendo a conversa entre mim e João, podemos dar um exemplo cotidiano de descontinuidade de tópico, um caso que não envolve aprimoramento erotético. Posso perguntar a João onde José está, tendo como objetivo descobrir sua localização na cidade de São Paulo. João pode responder que não tem certeza, mas que acha que, ou bem José está em São Paulo, ou bem José está em Salvador, e que tentará descobrir exatamente onde ele está. Naturalmente, João e eu diferimos em nossos objetivos de investigação. O objetivo da investigação de João é descobrir em que cidade está José. Mas isso eu já sei: José está em São Paulo. Meu objetivo é descobrir onde ele está na cidade em que está — São Paulo. Portanto, não há um único tópico em discussão. Ainda assim, tanto eu quanto João podemos erroneamente pensar que nossa conversa tem um único tópico, embora essa confusão tenha vida curta.

Mal-entendidos como esse são muito comuns, e não há necessidade de evitar que aconteçam. O que precisamos são maneiras de identificar e dissipar mal-entendidos — tenham esses origem na descontinuidade de tópico, ou não. Nos campos da engenharia conceitual e da metafilosofia, maneiras de identificar e dissipar mal-entendidos relacionados ao significado linguístico já foram discutidos. Chalmers (2011), por exemplo, apresenta um método para identificar mal-entendidos dessa natureza — disputas verbais —, que podem surgir quando as partes tentam responder a perguntas da forma “O que é x?”.[67] Ele chama tal método de “gambito da subscrição” (subscript gambit), e o explica da seguinte forma:

Suponha que duas partes estejam discutindo sobre a resposta para “O que é X?”. Um diz 'X é tal e tal', enquanto a outra diz 'X é assim e assado'. Para aplicar o gambito da subscrição, barramos o termo X e introduzimos dois novos termos, X1 e X2, que são estipulados como equivalentes aos dois lados direitos. Podemos então perguntar: as partes têm desacordos não-verbais envolvendo X1 e X2, de uma categoria tal que a resolução desses desacordos resolverá, pelo menos parcialmente, a disputa original? Se sim, então a disputa original não é verbal e a divergência residual pode servir como o foco de uma disputa esclarecida. Se não, isso sugere que a disputa original foi verbal [...] (CHALMERS, 2011, p. 532).

 

O gambito da subscrição de Chalmers é, certamente, um bom método para identificar disputas verbais que surgem, quando as partes envolvidas respondem a perguntas da forma “O que é x?” e, possivelmente sem sabê-lo, atribuem significados diferentes ao termo x. Assim, conforme ilustrado pelo próprio Chalmers, uma disputa filosófica sobre como responder a uma pergunta como “O que é liberdade?” pode ser simplesmente verbal. Suponha-se que uma parte diz que "liberdade é tal e tal", enquanto a outra parte diz que "liberdade é assim e assado”. Será verbal a disputa entre as partes? Isso pode ser descoberto pelo uso do gambito da subscrição. Proibimos o termo “liberdade” e, em vez disso, usamos os termos “liberdade1” e “liberdade2”. Esses termos são estipulados de sorte a tomarem como seus significados os dois lados direitos das respostas anteriormente dadas à questão em causa. Em seguida, avaliamos se as partes têm desacordos não verbais envolvendo liberdade1 e liberdade2. Em caso afirmativo, a disputa original era não verbal, e está agora esclarecida. Em caso negativo, isso sugere que a disputa era verbal desde o início.

Neste ponto, tendo em mente o aprimoramento erotético, o que sugiro é que mal-entendidos podem surgir em um estágio anterior, quando, ao fazer perguntas da forma “O que é x?”, as partes envolvidas na conversação — que pode ou não ser uma disputa — possuem objetivos diferentes de investigação. Contudo, como podemos identificar esses diferentes objetivos? Uma maneira de fazê-lo é propor, simplesmente, que, por terem diferentes objetivos de investigação, as partes podem ser consideradas como tendo diferentes questões em mente. Essas questões podem, por conseguinte, ser trazidas à tona e distinguidas, de modo a deixar claro que os objetivos da investigação de fato diferem. Obviamente, podemos assim proceder não apenas no que tange a perguntas da forma “O que é x?” — que são o foco do aprimoramento erotético —, mas no que concerne a perguntas em geral. Veja-se, por exemplo, o caso acima, no qual João e eu estamos interessados ​​em descobrir onde José está, mas em que temos distintas questões em mente. (Q1) abaixo captura o que eu tenho em mente, quando questiono sobre o paradeiro de José, e (Q2) captura o que João tem em mente:

 

(Q1) Onde está José, na cidade de São Paulo?

(Q2) Em que cidade está José, São Paulo ou Salvador?

 

Uma vez que distingamos as questões dessa maneira, torna-se claro que as partes têm objetivos diferentes em suas investigações e que, de fato, não há um único tópico em discussão. Caso acreditássemos que estávamos falando sobre a mesma coisa — no sentido de haver um único tópico em discussão —, João e eu estaríamos envolvidos em um mal-entendido linguístico, um mal-entendido que poderia ser remediado a partir da distinção feita em (Q1) e (Q2).

Vejamos como a ideia pode ser aplicada, em um caso de aprimoramento erotético. No caso apresentado acima, Liana e Marcela estão envolvidas em uma disputa sobre o que raças são. Liana está convencida de que a definição do conceito de raça fornecida por Haslanger é correta. Marcela nega tal definição. Contudo, embora ambas estejam interessadas em descobrir o que raças são, o objetivo de Liana é descobrir o que raças são, se entendidas socialmente, e somente assim entendidas, enquanto o objetivo de Marcela é descobrir o que raças são, se biologicamente entendidas, e somente assim entendidas. Logo, Liana e Marcela podem ser consideradas como tendo diferentes questões em mente, a saber:

 

(Q3) O que são raças, socialmente falando?

(Q4) O que são raças, biologicamente falando?

 

Novamente, uma vez distinguidas as questões dessa maneira, fica evidente que Liana e Marcela possuem objetivos diferentes, em suas investigações, e que não há um único tópico em discussão. Por acreditarem que estavam falando sobre a mesma coisa, elas estiveram envolvidas em um mal-entendido. A proposta aqui é que esse mal-entendido pode ser remediado, se fizermos a distinção entre (Q3) e (Q4), abrindo caminho para uma disputa mais frutífera. Sem dúvida, Marcela pode não ser convencida pela definição de Haslanger, mesmo que agora compartilhe o objetivo de Liana de descobrir o que raças são, se socialmente compreendidas, e Liana pode pensar que (Q4) não é uma boa pergunta, pois ela pode pensar que há não tal coisa como raças, em um sentido biológico.[68] Seja como for, a disputa entre elas não mais será baseada em um mal-entendido.

Devemos, portanto, concluir que, embora haja um risco de descontinuidade de tópico, à medida que o aprimoramento erotético é colocado em prática — um risco que, de fato, está presente, dada qualquer interação linguística, pois as partes envolvidas na interação podem ter diferentes objetivos de investigação —, o importante é que existam maneiras de identificar tais descontinuidades, caso ocorram. Aqui, fiz uma sugestão de uma maneira de fazê-lo, com base em questões distintas que os sujeitos podem ter em mente. Outras maneiras podem estar disponíveis. Minimizar as consequências da descontinuidade de tópico, identificando-a, caso aconteça, é necessário para que possamos aplicar o aprimoramento erotético com sucesso.

 

5 O Quadro Austero de Cappelen

Os leitores familiarizados com a literatura sobre engenharia conceitual terão notado que o aprimoramento erotético está, até certo ponto, de acordo com o Quadro Austero (Austerity Framework), posição defendida por Cappelen (2018), na medida em que ambas as posições discutem questões de aprimoramento, sem introduzir conceitos em seu arcabouço teórico. Ademais, como salientado acima (nota 18), ambas as posições estão de acordo com a ideia de que melhoramentos direcionados a categorias podem alterar o que as categorias elas próprias são, ao menos em certos casos, ou no que tange a certas categorias. Nesta última seção, compararei brevemente as duas visões, enfatizando que o aprimoramento erotético não sofre de um resultado indesejável da visão de Cappelen, a saber, que a perspectiva de projetos de aprimoramento ou melhoria serem implementados com sucesso não é das melhores.

Conforme o Quadro Austero de Cappelen, a melhoria (ou engenharia) opera no significado das expressões linguísticas; mais especificamente, opera nas intensões e extensões das expressões linguísticas (CAPPELEN, 2018, p.61). Assim, enquanto alguns consideram que a  engenharia, tal como concebida nessa área, trata da avaliação e melhoria de conceitos, Cappelen a toma como se referindo, fundamentalmente, à avaliação e à alteração, caso necessário, da intensão e extensão de uma expressão linguística, tal como “casamento”.

O Quadro Austero adota uma visão sobre intensões e extensões de expressões que é amplamente aceita. As intensões são compreendidas em termos de uma função de circunstâncias de avaliação (mundo, ou pares mundo/tempo) para extensões, em que as últimas são entendidas em termos das coisas no mundo que a expressão seleciona em cada circunstância. Além disso, Cappelen adota o externismo semântico enquanto metassemântica — enquanto uma teoria que explica por que as expressões linguísticas têm os significados que têm. Desse modo, as intensões e extensões de expressões linguísticas são consideradas como parcialmente determinadas por aspectos do ambiente externo, sendo que, como colocado por Cappelen (2018, p. 63), “[...] os elementos relevantes do ambiente externo incluem especialistas na comunidade, a história de uso retornando até à introdução de um termo, padrões complexos de uso ao longo tempo, e como o mundo é (independentemente de como os falantes acreditem que o mundo é).”

Se assim for, como a melhoria deve ser posta em ação? Bem, o externismo semântico certamente permite mudanças no que diz respeito à intensão e extensão de uma expressão. Mudanças desse tipo podem ocorrer de diferentes maneiras. Por exemplo, especialistas podem começar a usar um termo T em seu campo de atuação, de uma maneira diferente, e isso pode levar a uma mudança na intensão e extensão de T. Mas, para Cappelen, isso é certamente uma simplificação, pois os mecanismos subjacentes à mudança no significado de uma expressão são, de fato, “[...] muito complexos, confusos, não-sistemáticos, amorfos e instáveis para serem completamente apreendidos ou compreendidos.” (CAPPELEN, 2018, p.72). O problema não é apenas epistêmico, porque temos pouco controle sobre os mecanismos aqui em causa. Mesmo que fossem devidamente compreendidos, isso não significaria que seríamos capazes de controlar o processo de mudança de significado. No entanto, nada disso significa, é claro, que não possamos tentar mudar e melhorar as intensões e extensões das expressões linguísticas. Para Cappelen, devemos, sim, continuar tentando. Se esses projetos terão sucesso, contudo, é algo que não pode ser previsto.

Conforme realçado por Nado (2020, p.7), as implicações do Quadro Austero “[...] para a nossa capacidade de realmente fazer engenharia são, com certeza, deprimentes.” Afinal, os mecanismos de mudança de significado são amplamente desconhecidos, de sorte que não há muito a se fazer para interferir positivamente neles. Isso não significa, evidentemente, que a visão seja um fracasso. Significa apenas que tem um resultado indesejável — pelo menos para aqueles que esperam construir uma sociedade mais justa, com a ajuda (não importa quão pequena) da engenharia conceitual.

Já o aprimoramento erotético possui uma perspectiva menos pessimista, quando se trata do sucesso de seus projetos. Lembre-se de que o aprimoramento erotético concerne à avaliação e eventual busca por melhoria de nossas respostas a questões da forma “O que é x?”. Os mecanismos subjacentes a melhorias desse tipo são muito menos misteriosos do que os envolvidos na mudança da intensão e extensão das expressões linguísticas, dado o externismo semântico. Estamos dispostos a dar certas respostas a perguntas da forma “O que é x?”.  Contudo, talvez essas respostas não funcionem mais; talvez não mais sejam boas respostas (ou talvez jamais o tenham sido). Ao colocar o aprimoramento erotético em ação, melhores respostas são propostas, as quais possam combater a injustiça social, por exemplo. Em seguida, temos a fase de implementação. Essas respostas melhoradas são apresentadas de modo a serem fornecidas em contextos de conversação no mundo real.

Evidentemente, se estaremos dispostos a dar essas respostas nos contextos em que se propõe que sejam dadas não é uma questão simples. Todavia, os mecanismos em jogo aqui não são semânticos, mas sim epistêmicos/psicológicos, e não são particularmente misteriosos. Mudar as respostas que as pessoas estão dispostas a dar a certas perguntas requer, no caso típico, convencê-las de que as presentes respostas não mais são boas, ou mesmo que jamais o tenham sido. Sem dúvida, as pessoas podem se recusar a alterar o rumo de suas respostas. Podem, por exemplo, não estar convencidas, devido à ideologia ou preconceito. Ou, então, podem mesmo ser convencidas de que deveriam alterar suas respostas, estar dispostas a fazê-lo, mas, de fato, não chegarem a tal ponto, dado que as velhas respostas ainda são dominantes em sua comunidade, e que novas respostas não são bem-vindas. Todas essas questões são interessantes — e imensamente importantes — e precisam ser discutidas tanto na literatura especializada quanto em fóruns públicos. Porém, novamente, os mecanismos em jogo aqui não são particularmente misteriosos. O que leva as pessoas a alterarem suas respostas a perguntas da forma "O que é x?", ou a deixar de fazê-lo, pode estar ao alcance de nossa compreensão.[69]

Ao contrário do Quadro Austero, isso significa que, de fato, sabemos como colocar o aprimoramento erotético em prática: devemos operar em pelo menos alguns dos mecanismos conhecidos, por estarem subjacentes às disposições das pessoas para darem certas respostas. Dado que o convencimento é um importante fator para provocar mudanças nessas disposições, convencer as pessoas de que as respostas propostas pelo aprimoramento erotético são, de fato, melhores do que as anteriores é uma parte importante do estágio de implementação de tais projetos. Certamente, não temos completo controle sobre o resultado final dessas tentativas. No entanto, podemos prever que as propostas segundo as quais as pessoas devem mudar suas respostas em relação a uma pergunta da forma “O que é x?” podem ser de mais fácil implementação, em certos contextos do que em outros. Assim, pode ser mais fácil levar as pessoas a alterarem suas respostas a uma pergunta como “O que é raça?” em certos contextos institucionais e políticos, por exemplo, do que em contextos cotidianos. Isso não significa, porém, que uma mudança mais abrangente esteja fora do alcance.

Deixe-me considerar uma última objeção. Ao mudar as nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?”, não estamos mudando o significado dos termos, sua intensão e extensão? Por exemplo, ao propor (2) como a melhor resposta à questão do que é o casamento, e supondo que a proposta seja aceita por um número suficientemente grande de pessoas, não estamos mudando o significado do termo “casamento”? Permanecendo o mais neutro possível em questões acerca do significado de expressões linguísticas, podemos dizer que o aprimoramento erotético, se bem-sucedido, pode de fato levar a uma mudança no significado de certas expressões — no presente exemplo, a extensão de “casamento” certamente mudaria. Mas isso não quer dizer que o aprimoramento deva ser entendido como operando em significados de expressões. A mudança nos significados das expressões pode ser uma consequência do aprimoramento erotético. Como sugerido por Cappelen, dado o externismo semântico, há uma série de fatores em ação na produção da mudança de significados. A mudança de nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?” pode ser considerada como sendo um desses fatores.

 

Considerações Finais

Neste artigo, apresentei a posição a que chamo de aprimoramento erotético, segundo a qual devemos buscar avaliar e, eventualmente, aprimorar nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?”, em que x captura uma categoria fortemente social. Argumentei que a posição tem sucesso em lidar com o desafio da preservação de tópico — que, compreensivelmente, preocupa pessoas engajadas em projetos de engenharia conceitual —, e que possui vantagens em relação ao Quadro Austero de Cappelen (2018), uma posição com a qual compartilha uma rejeição de um aparato teórico que faça apelo a conceitos. Naturalmente, ainda há muito a ser dito. Não discuti o aprimoramento erotético, quando aplicado a perguntas e respostas que dizem respeito a categorias não sociais, por exemplo. E mesmo para categorias fortemente sociais, que foram o foco deste artigo, o trabalho mais árduo está em identificar, para casos específicos de perguntas da forma “O que é x?”, quais são as melhores respostas a serem dadas, e como podem ser implementadas de maneira exitosa. Esse trabalho é, em grande parte, uma crítica social, no sentido de Haslanger, e exige a cuidadosa consideração e avaliação de práticas relacionadas à categoria que estiver em jogo.[70]

 

For Old Questions, New and Better Answers: From Conceptual Engineering to Erotetic Amelioration

Abstract: In this paper, I present a position that I call erotetic amelioration, according to which we must evaluate and, eventually, improve our answers to questions of the form “What is x?”. My focus will be on cases where x stands for a strongly social kind, such as marriage. Such a position is offered as an alternative to the ideasometimes called conceptual engineering—according to which we should evaluate and, eventually, seek to improve our concepts. After introducing the idea of erotetic amelioration, I will show how it can be put into work to deal with what I call the topic preservation challenge, and what advantages it has in relation to a similar position available in the literature, namely, Cappelen’s (2018) Austerity Framework.

Keywords: Erotetic amelioration. Conceptual engineering. Concepts. Projects of amelioration.

 

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Recebido: 22/08/2022

Aceito: 16/01/2023


Comentário a “Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético”

 

Felipe G. A. Moreira[71]

 

Referência do artigo comentado: ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023.

 

Como abordar questões da forma “O que é x?”, e.g., “O que é o casamento”? Violência “sutil” pseudo-não dogmática é como pode ser chamada a ação de x de lidar com disputas, feito essa, como se x não tivesse nenhum outro.[72] Um outro de x, pressuponhamos, é uma pessoa que tem uma visão diferente e uma sensibilidade radicalmente distinta da de x acerca de uma disputa. Isso ocorre, por exemplo, quando esse outro desafia o logos de x, ao rejeitar, ignorar, violar ou interpretar diferentemente os pressupostos ou os critérios de x para lidar com uma disputa. Eu sou menos simpático do que André J. Abath (2023) em relação à bibliografia da assim chamada “engenharia conceitual” que ele considera, no seu artigo. A razão é que eu tendo a achar que os autores – sobretudo, anglo-americanos – que constituem essa bibliografia recorrentemente expressam a violência “sutil” pseudo-não dogmática, ao abordar disputas.

Consideremos uma das representantes dessa bibliografia, Sally Haslanger, uma autora em relação à qual Abath não exatamente tem uma motivação conflitual, mas apenas aquela de “fazer justiça” ao que ele acredita serem “alguns de seus importantes insights” (ABATH, 2023, p. 111).[73] “Para começo de conversa”, Haslanger (2000a, p.108, tradução nossa) explicitamente disse uma vez: “[...] eu devo deixar claro que a minha discussão vai focar exclusivamente na metafísica anglo-americana e no feminismo anglo-americano.” Esse foco restrito também é o de Abath (2023) e o de praticamente todos os trabalhos de Haslanger.

Imaginemos, então, um outro de Haslanger: Hasloutro, uma pessoa de qualquer gênero, sexo, cor de pele ou inclinação sexual que não nasceu e presentemente não estuda ou trabalha nas universidades de países como os EUA, a Inglaterra, a Austrália, a Nova Zelândia e o Canadá, onde a metafísica e o feminismo anglo-americano têm sido articulados. Suponhamos que Hasloutro tem outras trezes características, C-1 a C-13:

C-1: Hasloutro considera a presença do mencionado foco restrito uma indicação de que Haslanger expressa a violência “sutil” pseudo-não dogmática.

C-2: Hasloutro acha relevante enfatizar que não começou no nosso século, mas, ao menos, há mais de 2500 anos, atrás a disputa sobre como abordar questões da forma “O que é x?”.

C-3: Hasloutro sabe que como Gilles Deleuze (1962, p. 86-88) indica já os sofistas apontavam para a tese que Abath (2023, p. 104) considera característica da “engenharia conceitual”; a tese de que devemos perguntar se certos conceitos, como o de “casamento”, são “ferramentas eficazes para cumprir metas importantes” (ABATH, 2023, p. 104).[74]

C-4: Hasloutro crê que aqueles que não enfatizam esse ponto correm o risco de fazer a posição de Haslanger parecer mais nova do que ela realmente é.

C-5: Hasloutro não acha interessante dizer que “[...] uma das nossas metas é — ou pelo menos deveria ser — a promoção da justiça social” (ABATH, 2023, p. 104), porque falar assim é excessivamente impreciso, quando não se determina explicitamente quem seria a referência desse nós implícito que teria tais metas.

C-6: Hasloutro sabe que uma plausível referência desse nós são aqueles que estudam ou trabalham nas nomeadas universidades e/ou os que, de modo mais ou menos direto, se beneficiam do que pode ser chamado de imperialismo de vanguarda.

C-7: Hasloutro entende que esse imperialismo, promovido pelos EUA, com a ajuda dos demais nomeados países, é caracterizado tanto por intervenções militares (e.g., a guerra do Afeganistão), quanto por intervenções mais “sutis”, tipo a de financiar golpes de Estado, como os que ocorreram no Brasil, em 1964 e, provavelmente, em 2016. O que faz esse imperialismo ser de vanguarda, Hasloutro crê, é o fato de que alguns de seus líderes promoveram o uso de toda sorte de violência não “sutil” e, ainda assim, se descreverem como defensores de “minorias”.

C-8: Hasloutro acha importante enfatizar que esse parece ser o caso do atual presidente dos EUA, Joe Biden. No dia 4 de maio de 2012, ele concedeu uma entrevista para o programa da NBC, “Meet the Press”, quando ele problematizou uma resposta tradicional e sugeriu uma resposta alternativa para a questão, “O que é o casamento?” A resposta tradicional é que o casamento é “[...] a união legal ou formalmente reconhecida de um homem e uma mulher como parceiros em um relacionamento interpessoal.” (ABATH, 2023, p. 106). A resposta alternativa é que “[...] o casamento é a união legal ou formalmente reconhecida de duas pessoas como parceiras em um relacionamento pessoal.” (ABATH, 2023, p. 118).[75]

C-9: Hasloutro é antipático à resposta tradicional e simpático à resposta alternativa, mas crê que, para que uma defesa persuasiva dessa última seja feita, é preciso reconhecer o seguinte: embora a rejeição da resposta tradicional e a aceitação da resposta alternativa possam beneficiar certas pessoas (e.g., a nomeada plausível referência do nomeado nós), não é claro como essa atitude seria pertinente em relação a outras pessoas. Tipo: as do Afeganistão ou mesmo certas pessoas do Brasil que se engajam em práticas sexuais não majoritárias e não estão interessadas em “casamento”, mas em não sofrer violência.[76]

C-10: Hasloutro concorda com Abath quando esse diz que existem “sociedades (reais ou possíveis)”, onde a resposta alternativa falha “em promover justiça social”. Mas Hasloutro acredita que sociedades reais são conflituais, no sentido que, para todo x tal que x é um membro dessa sociedade, existe um y tal que y é um outro de x.

C-11: Hasloutro, então, não acredita que “progresso” filosófico possa ser medido em termos de criação de consenso (ABATH, 2023). Mais: Hasloutro não acha interessante a sugestão de que, ao pensar o casamento, não como um conceito, mas como uma “categoria fortemente social”, alguma espécie de consenso possa ser atingido (ABATH, 2023). Isso, diz Hasloutro, é improvável. Também é improvável que o consenso seja atingido acerca do “aprimoramento erotético” (ABATH, 2023). Logo, Hasloutro não acha interessante a sugestão de que essa visão traria consenso, ao satisfazer dois critérios que não poderão ser debatidos em detalhe, aqui: poder de lidar com o desafio da “preservação de tópico” e vantagem em relação ao “Quadro Austero” de Herman Cappelen (2018), outro filósofo que possui o mencionado foco restrito (ABATH, 2023).

C-12: Hasloutro concede que as sugestões acima podem até apelar para o nomeado nós.

C-13: Hasloutro, porém, não faz parte da referência desse nós e gostaria que sua existência fosse reconhecida por esses autores da “engenharia conceitual”, cujos trabalhos, Hasloutro está convencido, expressam a violência “sutil” pseudo-não dogmática.

Não tenho muita fé que o apelo de Hasloutro será ouvido por autores como Haslanger ou Cappelen. Afinal, tendo a crer que as obras desses autores estão alicerçadas na violência “sutil” de não reconhecer a existência desse tipo de pessoa. Na verdade, tendo mesmo a achar que muita dessa bibliografia da “engenharia conceitual” ecoa “sutilmente” os discursos dos líderes do imperialismo de vanguarda, esses que sugerem que as formas de vida dos mencionados países são um parâmetro que todas as outras pessoas devem procurar satisfazer e que as que assim não o fazem são “homofóbicas”, “sexistas” etc.

Mas eu tenho, no entanto, outra fé: a de que, ao reconhecer a existência de Hasloutro, André J. Abath se coloque uma motivação mais explicitamente conflitual em relação a Haslanger, no futuro. Caso ele esteja disposto a assim o fazer, penso que ele poderia articular uma perspectiva mais interessante em relação à disputa que abre esse texto: como abordar questões da forma “O que é x?”, e.g., “O que é o casamento”?

 

Referências

ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023.

BUTTERMAN, S. Queering and Querying the Paradise of Paradox: LGBT Language, New Media, and Visual Cultures in Modern-Day Brazil. Maryland: The Rowman & Littlefield Publishing Group, 2021.

CAPPELEN, H. Fixing language: An essay on conceptual engineering. New York: Oxford University Press, 2018.

DELEUZE, G. Nietzsche et la Philosophie. Paris: Presses Universitaires de France, 1962.

HASLANGER, S. Feminism in Metaphysics: Negotiating the Natural. In: MIRANDA, F.; HORNSBY, J. (ed.). The Cambridge Companion to Feminism in Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2000a. p. 107-126.

Moreira, F. G. A. The Politics of Metaphysics. Cham: Palgrave MacMillan, 2022a.

Moreira, F. G. A. To be or not to be ‘Subtly’ Philosophically Colonized. Kriterion: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, n. 151, p. 121-142, abr. 2022b.

 

Recebido: 12/02/2023

Aprovado: 20/02/2023


 

Comentário a “Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético”: de conceitos a perguntas, de perguntas a conceitos[77]

 

Cesar Schirmer dos Santos[78]

 

Referência do artigo comentado: ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023.

 

Em “Para Velhas Perguntas, Novas e Melhores Respostas: da Engenharia Conceitual ao Aprimoramento Erotético”, André J. Abath propõe que devemos melhorar nossas respostas a questões do tipo “O que é um F?” Com tal proposta, Abath busca “[i]ntroduzir uma nova proposta no campo de pesquisa da ética conceitual.” A ética conceitual, enquanto campo de pesquisa, diz respeito às maneiras de os filósofos irem além da mera exposição daquilo que Goldman (1989) chama de ontologia folk, rumo a maneiras de avaliar e melhorar nossas representações do mundo e de nós mesmos – aquilo que Goldman denomina metafísica prescritiva, um campo de pesquisa que tem florescido nos últimos anos (THOMASSON, 2020). Nas propostas usuais desse campo de pesquisa, os objetos a serem aprimorados são nossos dispositivos representacionais, sejam estes tomados por conceitos ou por palavras. Na proposta de Abath, são nossas respostas a perguntas do tipo o-que-é.

Abath focaliza o campo de pesquisa da ética conceitual, o qual envolve a avaliação dos nossos dispositivos representacionais (as palavras e os conceitos), mas também a intervenção, quando esses dispositivos não se adequam a nossos objetivos (coletivos e individuais) legítimos. Essa apresentação é valiosa, pois introduz os novatos ao tema, e está em conformidade com a compreensão-padrão e correta das pesquisas sobre ética conceitual e engenharia conceitual.

Abath motiva sua proposta de focar na melhoria de respostas a perguntas do tipo o-que-é no fato de que não há consenso, entre os pesquisadores da área da ética conceitual, sobre o que são conceitos. São abstracta? São significados? Representações mentais? Palavras? Essa falta de consenso é uma ameaça à área de pesquisa da avaliação e melhoria de dispositivos representacionais (a ética conceitual), pois não deixa claro o que é para ser melhorado.

Proponho, aqui, algumas questões:

 

  Sobre a metafísica dos conceitos. Sem dúvida, há divergências nítidas e notáveis sobre a natureza dos conceitos. No entanto, é de se admitir que divergências sobre a metafísica dos conceitos não têm impedido os pesquisadores do campo da ética conceitual de ter conversas substantivas uns com os outros. Isso indica, creio, que a área de pesquisa da avaliação e melhoria de dispositivos representacionais lida bem com o pluralismo sobre a natureza dos conceitos.

  Mudança de assunto? Além disso, poderia se objetar que trocar conceitos por respostas a perguntas do tipo o-que-é piora a situação, pois não diminui a babel em torno do conceito de conceito, mas diminui o foco nos dispositivos representacionais, o que pode vir a ser um risco para a área. Não seria interessante endereçar essa objeção para não enfraquecer a motivação para a proposta?

  Uma questão verbal? Por fim, se a proposta de Abath está certa, então, a “ética conceitual” é misnamed, dado que não diz respeito a conceitos. Esta é uma dificuldade substantiva ou meramente verbal?

 

Outra questão é que o elemento reflexivo, ao se pensar sobre as respostas possíveis a perguntas do tipo o-que-é, naturalmente passa por conversas sobre conceitos. O próprio apelo de Abath à jogada da subscrição (CHALMERS, 2017) revela isso. Logo, considere-se o seguinte diálogo:

“Onde fica o banco?”

“Fica na praça.”

“Mas, peraí, o que você quer dizer com ‘banco’? De sentar ou de pagar boleto?”

 

No exemplo acima, a melhoria da resposta à pergunta “Onde fica o banco?” passa pela questão do conceito empregado. Não creio que a conversa acima seja atípica. Meu ponto é que o aprimoramento erotético é uma alternativa, no sentido não exclusivo, à avaliação e melhoria de conceitos.

Abath compara a facilidade de mudar significados à facilidade de mudar respostas. Sem dúvida alguma, é mais claro o que é mudar (e melhorar) uma resposta do que mudar (e melhorar!) um conceito. Por um lado, não é claro como se faria para mudar o significado (extensão ou intensão) de um conceito, pois mecanismos semânticos são complexos. Por outro lado, é relativamente fácil detectar quando uma resposta deixa de responder a uma pergunta, quiçá porque mecanismos epistêmicos e psicológicos são mais fáceis de entender e manipular do que mecanismos semânticos. Este é, sem dúvida, um ponto a favor do aprimoramento erotético. Contudo, não se poderia usar melhores respostas para aprimorar conceitos? Pense-se no caso das baleias:

 

A pergunta. O que é uma baleia?

A melhor resposta. Uma baleia é um mamífero.

 

Essa resposta melhora o conceito de baleia. 

De qualquer forma, o foco no jogo do perguntar e do responder é o elemento mais original e mais frutífero da proposta de Abath. Abath se propõe resgatar o projeto clássico de investigar o que as coisas são. Este é um projeto de Sócrates, o qual não cansava de pedir que as pessoas que têm posições firmes sobre algum F (a justiça, a virtude etc.) explicitassem o que elas entendiam sobre F. Esse projeto, que para Sócrates se limitava às coisas da moral, foi estendido por Platão para tudo, inclusive o ser. Não é claro, no entanto, de que tipo de projeto se trata. Qual o foco do aprimoramento erotético? Creio que é possível focar:

 

      Em questões metafísicas, como “O que é um F?”

      Em questões ontológicas, como “Como os Fs são conceitualizados na ontologia da população S?” (metafísica descritiva), ou “Como deveríamos conceitualizar os Fs (as baleias, por exemplo), à luz da biologia?” (metafísica prescritiva, como diria Goldman) 

      Em questões cognitivas, como “Como a população S conceitua os Fs?”

      Em questões epistêmicas, como “Como um indivíduo da população S pode vir a saber o que é um F?”

 

No livro, Abath explora, antes de tudo, a via epistêmica. Abath (2022, p. 3) afirma que saber o que um tipo de coisa é saber responder (habilmente, legitimamente) à questão “O que é um F?” O foco no epistêmico tem sua razão de ser na importância de saber o que as coisas são. Nossa geração viu de perto as consequências de se ignorar o que é a COVID – e o quanto a negação do pouco que se sabia foi mortal. Este é um caso extremo, mas, mesmo para interagir bem com um gato, você tem que saber o que é um gato (ABATH, 2022, p. 1).

No livro, Abath defende que a proposta do aprimoramento erotético só funciona para os conceitos sociais não disputados, pois não é claro o que é conhecer um ente social, tal como o casamento, não é saber responder à pergunta “O que é o casamento?” apenas dizendo “Casamento é…” (ABATH, 2022, p. 77).  Aqui se revela o ponto fraco da proposta do aprimoramento erotético. Eis minha crítica:

 

Por se apoiar no conhecimento (epistemologia), em vez de se apoiar no esquema conceitual que usamos para lidar com a realidade (ontologia), o aprimoramento não dá conta de uma parte significativa das perguntas do tipo o-que-é. 

 

Aqui se mostra mais aguda a proposta de Thomasson (2020), o qual propõe que se faça metafísica prescritiva sobre os aspectos da realidade que nos interessam, incluindo os aspectos sociais. Nessa proposta, o importante é avaliar se nossos conceitos estão de acordo com nossos interesses legítimos. A partir daí, avaliam-se as respostas às perguntas do tipo o-que-é.

Minha crítica, aqui, é que restringir a aplicação do esquema explicativo do aprimoramento erotético a espécies naturais é ad hoc. Abath sustenta que, no caso de certos entes sociais, as respostas às perguntas do tipo o-que-é podem nos parecer muitíssimo erradas (ABATH, 2022, p. 98). No entanto, este é o caso também para espécies naturais. A tese de que um átomo pode ser partido pareceu totalmente errada a vários cientistas de primeira linha, assim como a tese de que baleias são mamíferos.

A proposta de aprimoramento erotético para respostas a perguntas do tipo o-que-é relacionadas a entes sociais parece desmotivada, portanto. Melhor seria seguir o caminho de Thomasson e de tantos que reconhecem que o trabalho do metafísico prescritivo se dá no envolvimento em negociações metalinguísticas.

 

Referências

ABATH, A. J. Knowing what things are: an inquiry-based approach. Cham: Springer, 2022.

ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103 - 134, 2023.

BELLERI, D. Ontological disputes and the phenomenon of metalinguistic negotiation: Charting the territory. Philosophy Compass, v. 15, n. 7, jul. 2020.

CHALMERS, D. J. Disputas verbais. Sképsis, v. 15, p. 57, 2017.

GOLDMAN, A. I. Metaphysics, Mind, and Mental Science. Philosophical Topics, v. 17, n. 1, p. 131-145, 1989.

THOMASSON, A. L. A pragmatic method for normative conceptual work. In: BURGESS, A.; CAPPELEN, H.; PLUNKETT, D. (ed.). Conceptual engineering and conceptual ethics. Oxford: Oxford University Press, 2020. p. 435-458.

 

Recebido: 19/04/2023

Aprovado: 22/04/2023


 

O disjuntivismo ecológico e o argumento causal[79]

 

Eros Moreira de Carvalho[80]

 

Resumo: Neste artigo, argumenta-se que a abordagem ecológica da percepção oferece recursos para desarmar o argumento causal contra o disjuntivismo. Segundo o argumento causal, como os estados cerebrais que proximamente antecedem a experiência perceptiva e a experiência alucinatória correspondente podem ser do mesmo tipo, não haveria, portanto, uma boa razão para rejeitar que a experiência perceptiva e a experiência alucinatória correspondente tenham fundamentalmente a mesma natureza. O disjuntivismo com respeito à natureza da experiência seria, assim, falso. Identificam-se três suposições que apoiam o argumento causal: a suposição da indistinguibilidade, a suposição da linearidade e a suposição da duplicação. De acordo com a abordagem ecológica da percepção, essas suposições não se sustentam, abrindo espaço para a defesa de uma versão ecológica do disjuntivismo. Episódios perceptivos se estendem ao longo do tempo e são supervenientes ao sistema organismo-ambiente. Eles também podem ser distinguidos dos “correspondentes” episódios de alucinação, por serem o resultado de um processo controlado de sintonização, ao passo que as alucinações são passivas e refratárias às atividades de exploração e sintonização. Por fim, o disjuntivismo ecológico, na medida em que é imune ao argumento causal, se mostra vantajoso em relação aos disjuntivismos negativo e positivo.

Palavras-chave: Disjuntivismo ecológico. Argumento causal. Indistinguibilidade. Retroalimentação dinâmica. Psicologia ecológica.

 

Introdução

O argumento causal é um argumento célebre a favor da concepção conjuntiva da percepção. Segundo essa concepção, episódios perceptivos e os correspondentes episódios de alucinação comungam fundamentalmente o mesmo tipo de experiência. O argumento causal justifica essa tese a partir de considerações sobre o processo causal que subjaz à produção desses episódios. Basicamente, se os eventos cerebrais que antecedem os episódios de percepção e de alucinação são do mesmo tipo, e há razões para pensar que poderiam ser, então, o episódio de percepção e o correspondente episódio de alucinação devem compartilhar um elemento psicológico comum. De causas similares, esperam-se efeitos similares. A suposição, normalmente aceita, de que esses episódios possam ser indistinguíveis reforça essa conclusão.

Na literatura, disjuntivistas resistem a essa conclusão. Disjuntivistas caracterizados como “positivos” sustentam que há espaço para introduzir um evento psicológico adicional, a consciência direta do objeto distal, para introduzir uma diferença fundamental entre episódios perceptivos e alucinatórios, ainda que indistinguíveis introspectivamente. Disjuntivistas caracterizados como “negativos” sustentam que a indistinguibilidade entre os episódios perceptivos e os correspondentes episódios de alucinação não deve ser explicada pela suposição de um elemento psicológico comum. A indistinguibilidade é um fenômeno epistêmico básico e não carece de explicação ulterior. Esse movimento abre espaço para tratar a alucinação negativamente, a partir da indistinguibilidade; na verdade, essa é a sua única característica: ela é introspectivamente indistinguível do episódio perceptivo correspondente. Ambas as respostas são instáveis, no entanto. Por um lado, tornamos a alucinação misteriosa, se a sua única característica é epistêmica; por outro, a consciência direta do objeto distal não parece ter um papel na explicação da fenomenologia do episódio perceptivo.

Para contornar essas dificuldades, proponho a formulação de uma posição disjuntivista que desarma o argumento causal. Chamo essa posição de disjuntivismo ecológico, pois ela se apoia na abordagem ecológica da percepção. Identifico três suposições subjacentes ao argumento causal e que são aceitas pelos disjuntivistas positivos e negativos: a suposição da indistinguibilidade, a suposição da linearidade e a suposição da duplicação. Argumento que não há razões para sustentar essas suposições, se adotamos a abordagem ecológica da percepção. Dessa maneira, o argumento causal é desarmado e a versão do disjuntivismo defendida se mostra mais fecunda que os disjuntivismos positivo e negativo.

Este artigo está estruturado da seguinte maneira. Na Seção 2, apresento o argumento causal e saliento as dificuldades que ele coloca para o disjuntivismo. Deixo claras também as suposições implícitas do argumento. Na Seção 3, discuto as reações do disjuntivismo positivo e negativo ao argumento causal. Essa discussão propicia também um contexto para a introdução do disjuntivismo ecológico. Na Seção 4, articulo o disjuntivismo ecológico e explico como ele distingue percepção de alucinação. Na Seção 5, retomo as suposições do argumento causal e argumento que, se a abordagem ecológica da percepção estiver correta, essas suposições não se sustentam. Concluo que o argumento causal não é uma ameaça para o disjuntivismo ecológico.

 

1 O argumento causal

As teorias conjuntivas da percepção afirmam que casos de percepção verídica e os correspondentes casos de alucinação envolvem fundamentalmente[81] um mesmo tipo de experiência, independentemente de como esse tipo de experiência venha a ser caracterizado, seja por um conteúdo intencional, no caso das teorias representacionalistas, seja por dados dos sentidos, no caso das teorias dos dados dos sentidos. Assim, ver a adaga de Macbeth e alucinar a adaga de Macbeth envolvem o mesmo tipo de experiência, o qual responde pelas qualidades fenomenológicas do episódio de visão e do episódio de alucinação, explicando, assim, por que esses episódios parecem indistinguíveis para o percebedor. A diferença entre um episódio de percepção e o seu correspondente episódio de alucinação é externa ou extrínseca ao tipo comum de experiência que constitui esses episódios. No episódio perceptivo, há um objeto externo com o qual o percebedor está relacionado causalmente, de modo apropriado, mas não no episódio alucinatório. Um argumento célebre para as teorias conjuntivas é o da alucinação[82]. Basicamente, argumenta-se primeiro que um caso de alucinação requer a introdução de um tipo de experiência cujas qualidades são dependentes apenas do sujeito, para explicar como é que algo aparece para um sujeito como sendo de uma determinada maneira. Em seguida, a partir da concessão de pares de casos de percepção e alucinação indistinguíveis, argumenta-se que a melhor explicação para a indistinguibilidade é que o caso de percepção envolve o mesmo tipo de experiência que constitui a alucinação. O argumento causal, o qual será o foco da nossa discussão, tem uma estrutura um pouco diferente. No lugar de uma inferência pela melhor explicação, ele busca tirar proveito da concepção linear de causação que parece ser assumida pela absoluta maioria das teorias da percepção. Ele tem a vantagem de parecer ser um argumento perfeitamente compatível e até apoiado por teorias empíricas da percepção.O argumento causal[83] parte da consideração de que, em uma situação normal de percepção, digamos, a percepção do objeto O, o processo causal relevante para a ocorrência desse episódio perceptivo é o seguinte: o objeto distal O e as condições ambientais de fundo C impactam os nossos órgãos sensoriais, os quais, por sua vez, disparam uma série de eventos cerebrais, no caso da visão, eventos no córtex visual primário, eventos estes que se propagam até gerar o evento E proximal, que, por fim, causa a experiência perceptiva consciente do objeto O. Como se vê, o processo causal que começa com o objeto distal O e termina com a percepção do objeto O é linear. A próxima alegação é a de que a experiência alucinatória correspondente poderia ser produzida na ausência do objeto distal O, bastando produzir o evento proximal E, por meio de alguma intervenção direta sobre o cérebro do agente. Como as causas distais externas estão ausentes, nesse caso, é razoável afirmar também que o episódio alucinatório é superveniente ao evento proximal E. Assim, o evento E é suficiente para a produção do estado experiencial que constitui o episódio alucinatório. Como o evento E também é a causa proximal da percepção do objeto O, devemos concluir que, no episódio de percepção, o evento E é igualmente suficiente para a produção de um estado experiencial que constitui o episódio perceptivo e que em nada difere do estado experiencial que o estado E produz, na situação de alucinação. Desse modo, a percepção e a alucinação têm um estado experiencial fundamentalmente comum.

Para negar que haja esse estado experiencial comum, teríamos que sustentar que o estado E, de alguma maneira, rastreia os seus antecedentes causais, para produzir diferentes estados experienciais. Se, na cadeia causal, há o objeto distal O, então, o estado cerebral E produz um tipo de experiência. Se o objeto distal O está ausente, logo, o estado cerebral E produz um outro tipo de experiência. Mas isso significa que haveria uma espécie de ação à distância do objeto distal O sobre o estado E ou que E “olha para trás” e detecta os seus antecedentes causais (JOHNSTON, 2004, p. 116). Essas suposições são muito contraintuitivas para serem aceitáveis.

Contudo, mesmo que não se possa negar que haja um estado experiencial comum entre o episódio perceptivo e a alucinação correspondente, há espaço para rejeitar que esse estado comum seja fundamental para o episódio perceptivo, no sentido de constituí-lo por completo. Em um caso normal de percepção, o objeto distal O e as condições ambientais de fundo C podem causar não apenas o estado comum E, mas também um outro estado cerebral F, o qual, por sua vez, causa o estado psicológico de estar perceptivamente ciente do objeto O. Assim, o episódio perceptivo é constituído não só pelo estado experiencial que ele compartilha com a alucinação correspondente, mas também pela consciência perceptiva do objeto O, em que essa consciência é uma relação direta entre o percebedor e o objeto O. Essa qualificação é importante, para que se tenha uma posição que se afasta da concepção conjuntiva, já que, como vimos, esta última acomoda a diferença entre percepção e alucinação em termos de relações causais que são extrínsecas aos estados experienciais, os quais, fundamentalmente, constituem episódios de percepção e de alucinação.

O defensor da concepção conjuntiva, contudo, tem ainda uma carta na manga. Ele ou ela poderá argumentar que a possibilidade que acabamos de levantar é instável. Essa instabilidade pode ser apreciada, ao se considerar a seguinte pergunta: no caso do episódio perceptivo, o que explica a sua fenomenologia? Por um lado, se se supuser que a consciência perceptiva do objeto O responde preponderantemente pela fenomenologia do episódio perceptivo, então, o estado experiencial que o episódio perceptivo comunga com a alucinação correspondente terá um papel secundário ou nenhum papel, na explicação da fenomenologia do episódio perceptivo. Por conseguinte, também não será suficiente para explicar a fenomenologia do episódio alucinatório. O problema é que a alucinação não é constituída por outro estado psicológico além deste que ela comunga com o episódio perceptivo.

Desse modo, a fenomenologia da alucinação ficará sem explicação, o que é inusitado, uma vez que os episódios perceptivo e alucinatório são, como foi concedido, introspectivamente indistinguíveis. Por outro lado, se se supuser que o estado experiencial que o episódio perceptivo comunga com o episódio alucinatório é suficiente para explicar a fenomenologia da alucinação, logo, será forçoso reconhecer que ele tem um papel preponderante na explicação da fenomenologia do episódio perceptivo também, já que estes episódios são indistinguíveis. O problema, então, é que parecerá que a consciência perceptiva do objeto O desempenha um papel secundário ou nenhum papel, na explicação da fenomenologia do episódio perceptivo.

Em comparação com a concepção conjuntiva, a suposição desse estado psicológico extra no episódio perceptivo parecerá gratuita. Além disso, é estranho que a consciência do objeto O não venha ela mesma acompanhada de uma rica fenomenologia. Mas é o que se deve concluir, se todo ou quase todo o trabalho explicativo é realizado pelo estado experiencial que o episódio perceptivo comunga com o episódio alucinatório. Dessa maneira, o oponente da concepção conjuntiva ou tem uma motivação para introduzir a consciência perceptiva do objeto O, porém, não explica a fenomenologia da alucinação, ou explica a fenomenologia da alucinação, mas não tem justificativa para introduzir esse estado psicológico extra. Dialeticamente, parece que o defensor da concepção conjuntiva se encontra mais bem posicionado.

O argumento causal, como acabamos de ver, apoia-se em uma série de suposições que podem ser contestadas: (1) a causação subjacente ao episódio perceptivo é linear; (2) episódios perceptivos são supervenientes a estados cerebrais apenas — na nossa discussão, o episódio de visão é superveniente aos estados cerebrais E e F —, o que implica que os episódios perceptivos poderiam ser duplicados em diferentes ambientes, desde que as causas cerebrais internas permanecessem as mesmas, e (3) o episódio perceptivo e o correspondente episódio alucinatório são introspectivamente indistinguíveis. Chamo essas suposições respectivamente de “suposição da linearidade”, “suposição da duplicação” e “suposição da indistinguibilidade”. Irei questionar cada uma dessas suposições. Todavia, para ter uma base para esses questionamentos, eu vou antes apresentar algumas posições disjuntivistas e introduzir e situar o disjuntivismo ecológico.

 

2 Disjuntivismos

O disjuntivismo pode ser entendido como a negação da visão conjuntiva. Assim, ele nega que haja um estado experiencial fundamentalmente comum a um episódio de percepção e ao seu correspondente episódio de alucinação. Suponha-se que Macbeth esteja vendo uma adaga num certo momento e, em outro, esteja a alucinar uma adaga. Embora ambos os episódios possam ser descritos por uma frase como “é como se Macbeth estivesse vendo uma adaga adiante”, essa frase, para o disjuntivista, não captura um estado experiencial fundamentalmente comum e, portanto, ela deve ser lida disjuntivamente: ou Macbeth vê uma adaga adiante, ou Macbeth alucina como se houvesse uma adaga adiante. A estratégia de negar que episódios experienciais alegadamente indistinguíveis podem, no entanto, ser fundamentalmente distintos foi explicitamente introduzida por Hinton (1967), embora se possa dizer que foi preconizada implicitamente por Austin (1962, p. 52).

Há vários tipos de disjuntivismo. O que acabamos de mencionar abarca uma família de posições que pode ser qualificada como disjuntivismo metafísico ou experiencial (HADDOCK; MACPHERSON, 2008, p. 2-4; PRITCHARD, 2012, p. 23). Essa família de posições deve ser distinguida de uma outra, que é normalmente rotulada de “disjuntivismo epistemológico”. Nesse caso, a visão conjuntiva que serve de contraste é a que afirma que o episódio de percepção e o correspondente episódio de alucinação oferecem para o agente a mesma evidência experiencial. Assim, a evidência disponível a um sujeito encubado e cujas experiências são manipuladas para serem indistinguíveis das que ele teria se não estivesse encubado é exatamente a mesma que ele teria se não estivesse encubado. O disjuntivismo epistemológico nega que a evidência disponível seja a mesma em ambos os casos (MCDOWELL, 1983, p. 475-476; PRITCHARD, 2012, p. 15). O suporte epistêmico que o sujeito tem na situação em que está encubado é pior do que na situação em que ele não está encubado. Consequentemente, as suas crenças empíricas não estão igualmente justificadas em ambas as situações. Embora o disjuntivismo epistemológico possa se apoiar no disjuntivismo metafísico, ele não depende deste último e pode ser defendido de modo independente. Neste artigo, estou interessado no disjuntivismo metafísico ou experiencial.

O disjuntivismo experiencial, como já dito, compreende uma família de posições. Vou destacar duas que podem ser encaradas como diferentes reações ao argumento causal: o disjuntivismo positivo e o disjuntivismo negativo. O primeiro parte da consideração de que duas coisas qualitativamente idênticas possam ser, no entanto, genericamente distintas. Um limão e um pedaço de sabão podem parecer qualitativamente idênticos, ainda que sejam genericamente distintos (AUSTIN, 1962, p. 50). Ao aplicar essa ideia ao episódio perceptivo e ao correspondente episódio alucinatório, temos o seguinte: embora sejam qualitativamente idênticos, o que explica a fenomenologia de um episódio não é o que explica a fenomenologia do outro. A fenomenologia do episódio de ilusão pode ser explicada por uma relação direta com dados dos sentidos ou por características intrínsecas do veículo representacional, conforme se defenda uma visão relacional ou representacional da experiência, enquanto a fenomenologia do episódio perceptivo é explicada pela relação direta com objetos externos. Esse disjuntivismo é caracterizado como positivo, pois oferece uma explicação positiva da fenomenologia do episódio de alucinação.

Entretanto, como já vimos, o argumento causal coloca um problema genuíno para essa posição na medida em que o estado cerebral proximal E, o qual antecede tanto o episódio de percepção quanto o seu correspondente episódio de alucinação, torna implausível a ideia de que dois estados psicológicos genericamente distintos resultem do mesmo tipo de estado cerebral. A comparação com o caso do limão e o pedaço de sabão é inadequada, pois eles têm estruturas internas muito distintas, ainda que possam ter aparências semelhantes ou, em certas condições, até mesmo idênticas. Porém, é de se esperar que duas coisas com estruturas internas idênticas tenham a mesma aparência, todo o resto permanecendo o mesmo. De causas similares, esperam-se efeitos similares. Assim, o argumento causal força o reconhecimento de um efeito psicológico comum que constitui, pelo menos em parte, tanto o episódio de percepção quanto o correspondente episódio de alucinação. Por conseguinte, a afirmação de que a fenomenologia do episódio verídico é explicada por uma suposta relação direta com objetos externos fica comprometida.

O disjuntivismo negativo tenta se esquivar dessa consequência do argumento causal, negando que a indistinguibilidade entre o episódio perceptivo e o correspondente episódio de alucinação deva ser explicada pela posse de uma propriedade comum. Como Michael Martin (2008, p. 91) argumenta, o princípio de que “[...] se duas experiências perceptivas são indistinguíveis para o sujeito delas, então as duas experiências têm o mesmo caráter consciente” não é mandatório e que podemos obter um tipo de disjuntivismo pela negação desse princípio. A ideia central é que alucinações não têm uma caracterização positiva. Elas são negativamente caracterizadas como um tipo de experiência que é indistinguível da sua correspondente experiência verídica. Assim, a única afirmação substantiva que podemos fazer acerca de uma alucinação é que o sujeito que a tem é incapaz de discriminá-la da sua correspondente experiência verídica. Além disso, a propriedade epistêmica da indistinguibilidade é o que explica a fenomenologia da alucinação. Martin, dessa maneira, inverte a ordem explicativa habitual: em vez de dizer que um episódio de alucinação e o correspondente episódio verídico são indistinguíveis, porque têm a mesma fenomenologia, ele afirma que o episódio de alucinação tem a mesma fenomenologia do episódio verídico, porque é indistinguível deste último.

O episódio verídico, por sua vez, tem a fenomenologia que tem em virtude dos objetos com os quais ele nos coloca em contato. Por fim, o fato de a alucinação ser indistinguível do correspondente episódio verídico deve ser tomado como um fato epistemológico bruto, o qual não carece de explicação ulterior (MARTIN, 2004, p. 72). Esse passo atenua a pressão pelo reconhecimento de um evento psicológico comum em virtude apenas do estado cerebral comum E, afinal, a não ser que se adote uma teoria da identidade tipo-tipo, diferentes estados psicológicos podem estar associados a uma mesma base neuronal. Contudo, a posição como um todo é sensível à acusação de que é misterioso como a propriedade epistemológica de ser incapaz de distinguir a alucinação do correspondente episódio verídico explica a fenomenologia da alucinação.

Como já havia anunciado, o disjuntivismo anda em um campo minado: ou, como no caso do disjuntivismo negativo, ele tem uma motivação para introduzir a consciência perceptiva do objeto O, mas não explica a fenomenologia da alucinação, ou, como no caso do disjuntivismo positivo, ele explica a fenomenologia da alucinação, todavia, não tem justificativa para introduzir esse estado psicológico extra. Para evitar essa funesta disjunção, é preciso que o disjuntivismo seja erguido sobre uma base bem diferente.

 

3 O disjuntivismo ecológico

O disjuntivismo ecológico, tal como eu o articulei (CARVALHO, 2021), recebe esse nome por se apoiar na abordagem ecológica da percepção. Embora James Gibson não tenha se envolvido diretamente com as querelas filosóficas em torno do realismo ingênuo e do disjuntivismo[84], ele claramente desenvolveu uma abordagem da percepção com muitas afinidades com essas posições. A tese de que percebemos affordances diretamente ao capturar informação ambiental é muito difundida, e Gibson foi bastante explícito sobre o seu realismo (GIBSON, 1967). Eu irei ainda mais longe e vou sustentar que a abordagem de Gibson oferece as bases científicas para uma versão do disjuntivismo que é imune ao argumento causal. Na passagem seguinte, nota-se o aceno para algo que pode ser muito bem incorporado em uma versão do disjuntivismo:Há consciência direta ou imediata de objetos ou eventos quando os sistemas perceptivos ressoam para capturar informação e pode haver um tipo de consciência direta ou imediata de estados psicológicos dos nossos órgãos dos sentidos quando os nervos sensórios estão excitados. Mas estes dois tipos de experiência não podem ser confundidos, pois eles estão em polos opostos, objetivo e subjetivo. Apenas a primeira deve ser chamada experiência perceptiva. (GIBSON, 1967, p. 168).

 

Gibson não está apenas a fazer a distinção nominal entre experiência perceptiva e alucinação, o que é trivial e aceito por todos; ele está sobretudo afirmando que essas experiências têm naturezas distintas e que os tipos de consciência que as constituem também são diferentes. Na sua visão, não há um elemento fundamentalmente comum entre percepções e alucinações. Para entender melhor por que a psicologia ecológica é oportuna para a articulação de uma versão do disjuntivismo, precisamos introduzir as suas principais ideias.

Segundo Chemero, a psicologia ecológica pode ser articulada em torno de três princípios: (1) a percepção é ativa e direta; (2) a percepção é para guiar a ação e (3) a percepção é de affordances (CHEMERO, 2009, p. 98). O primeiro princípio deixa bem clara a oposição da abordagem ecológica em relação às teorias que Gibson chamou de teorias instantâneas da percepção (2015, xiii). Essas teorias supõem que o estímulo para a percepção é pobre, proximal e pontual. Por conseguinte, para obter a percepção de um objeto no espaço tridimensional, esse estímulo precisa ser enriquecido pela mediação de representações, inferências e possivelmente conhecimento de fundo. Também se supõe que esse processamento ocorre de modo automático. A abordagem ecológica rejeita essas suposições. Para os psicólogos ecológicos, há rica informação ecológica no ambiente. Esse tipo de informação é constituído por padrões de energia no espaço e/ou no tempo que estão correlacionados nomicamente com as suas fontes distais. O organismo percebe, ao se sintonizar e capturar ativamente essa informação. Como a informação se encontra espalhada no espaço e no tempo, o organismo precisa mover os olhos, a cabeça ou o corpo para capturá-la.

Além disso, informação sobre o próprio organismo e a sua relação com o ambiente só se torna disponível pela sua locomoção no ambiente. Assim, a percepção é ativa, porque o organismo procura ativamente informação ecológica no ambiente. A metáfora mais adequada para compreender o processo perceptivo é a do rádio (GIBSON, 1968, p. 269-271). O organismo se sintoniza à informação ecológica, ao modular o seu fluxo de estimulação ao padrão de energia que constitui essa informação. Esse processo dispensa representações e inferências e, por isso, a percepção é também direta. O organismo fica diretamente consciente de objetos ou eventos distais, ao se sintonizar e capturar a informação ambiental que especifica unicamente estes objetos ou eventos.[85]O segundo princípio, em conformidade com a teoria da seleção natural, avança a hipótese de que os sistemas perceptivos foram selecionados pela sua utilidade em guiar a ação. Por fim, o terceiro princípio da abordagem ecológica afirma que percebemos affordances ou possibilidades de ações. Como a função da percepção é guiar a ação, é desejável que percebamos diretamente o que podemos fazer com as coisas, em vez de propriedades categoriais dos objetos, tais como cor e forma. Por exemplo, não percebemos uma maçã ou um tomate maduros primeiramente como tendo a propriedade de ser vermelho e depois raciocinamos que ele é comestível. Já os percebemos diretamente como comestíveis. Caso contrário, precisaríamos ainda de um passo intermediário que transformasse a percepção de propriedades categoriais em algo que sirva para guiar a ação. A hipótese de Gibson é que percebemos primeira e diretamente possibilidades de ações (GIBSON, 2015, p. 126).

A percepção é, assim, uma atividade dinâmica e contínua, por meio da qual o organismo “[...] mantém contato com o mundo.” (GIBSON, 2015, p. 228). Ela ocorre ao longo do tempo, incessantemente, e envolve atividades exploratórias e ajustes dos órgãos sensoriais. A percepção não busca representar o mundo, mas nos manter sintonizados a ele, para cumprir a sua função de guiar a ação. Por meio de movimentos, o agente controla o fluxo sensorial, de sorte que ele ressoe a informação ambiental que especifica as affordances do ambiente. Segundo essa concepção de percepção, o ato de perceber não é algo que ocorre entre o estímulo e a ação, como é suposto pelas concepções lineares, mas resulta de um processo dinâmico de sintonização entre o organismo e o ambiente. Os estados de um organismo sintonizado ao seu ambiente exibem um grau elevado de simetria aos estados do seu ambiente, pois o organismo controla o seu fluxo sensorial para que ele ressoe a estrutura da informação ambiental.[86] Pela mesma razão, o ato de perceber não é superveniente aos estados cerebrais apenas: ele é, antes, um evento do sistema organismo-ambiente como um todo, concernente à sintonização do organismo ao seu ambiente. Quando o organismo é bem-sucedido nessa tarefa de sintonização, diz-se que ele capturou a informação ambiental.Nessa perspectiva, percepção e alucinação são episódios fundamentalmente distintos, segundo a abordagem ecológica. Um episódio de percepção envolve o ambiente, ele é um ato de captura de informação ambiental, ao passo que um episódio de alucinação, embora seja acompanhado de sensações, não envolve a captura de informação ambiental. O disjuntivismo ecológico funda-se sobre essa diferença. O próprio Gibson, em linha com essa diferença fundamental entre episódios perceptivos e episódios não perceptivos, a alucinação aí englobada, afirma que os episódios não perceptivos devem ser explicados por princípios próprios, diferentes daqueles que são empregados para explicar a percepção: “[...] uma teoria da percepção deve certamente permitir o erro perceptivo, mas ela dificilmente pode ser ao mesmo tempo uma teoria do erro perceptivo.” (GIBSON, 1968, p. 287). O erro perceptivo ocorre justamente quando o organismo não captura informação ambiental, e isto pode se dar ou porque a informação disponível é inadequada, ou porque o organismo falha em capturar a informação adequada.[87] Em qualquer caso, temos um episódio que não pode ser caracterizado pela consciência de algo que é especificado por informação ambiental, nem que resultou de um processo de sintonização entre organismo e ambiente, que permite a captura de informação ambiental. A natureza desse episódio é, portanto, diferente da natureza do episódio perceptivo.

 

4 Desarmando o argumento causal

Eu disse que o argumento causal faz uma série de suposições que podem ser questionadas. Com base no disjuntivismo ecológico, vou questionar agora cada uma dessas suposições.

 

5 A suposição da indistinguibilidade

A maioria dos disjuntivistas concedem a possibilidade da indistinguibilidade. Como vimos, tanto o disjuntivismo negativo quanto o positivo fazem essa concessão e se enredam em dificuldades. Por causa dela, o disjuntivismo positivo não consegue explicar como a consciência do objeto contribui para a fenomenologia da experiência perceptiva, tornando aquela dispensável, e o disjuntivismo negativo se vê forçado a dar uma caracterização puramente epistemológica da alucinação, tornando esta misteriosa. Ambos teriam mais espaço de manobra, se rejeitassem a suposição da indistinguibilidade. Normalmente, essa suposição é defendida com base na afirmação de que ela é muito barata, pois se requer apenas que se conceda que a alucinação indistinguível a um episódio perceptivo seja possível, não que ela de fato ocorra.

No entanto, precisamos distinguir a possibilidade conceitual ou metafísica da natural. A primeira é normalmente constrangida apenas pela ausência de contradição, de modo que as leis físicas, biológicas e psicológicas conhecidas não colocam uma limitação para o que se pode conceber como possível. De fato, se entendemos a possibilidade, nesses termos, parece difícil negar que, para qualquer experiência perceptiva, possamos conceber uma experiência alucinatória que é indistinguível da primeira. Nenhuma contradição parece estar envolvida na concepção dessa possibilidade. Porém, se temos no horizonte a possibilidade natural, isto é, aquela que é constrangida pelas leis naturais que prevalecem no nosso mundo atual, então, não é tão claro que a concessão de indistinguibilidade seja tão barata. Na verdade, pode muito bem ser o caso que ela não seja viável em função das leis psicológicas, biológicas e fisiológicas que regem o funcionamento do nosso sistema perceptivo. Ao trabalhar com a possibilidade natural, temos de ter em mente que podemos nos enganar mais facilmente ao julgar o que é possível ou não, pois o nosso conhecimento de quais leis naturais prevalecem no nosso mundo atual é passível de revisão. De toda forma, neste texto, eu me comprometo com a possibilidade natural, não com a conceitual ou metafísica. Como o argumento causal normalmente é apresentado em contextos não céticos, exigindo do interlocutor o comprometimento com a coerência com a ciência, parece-me razoável que o que esteja em discussão seja a possibilidade natural.

O disjuntivismo ecológico, ao se basear na psicologia ecológica, abre espaço para a recusa da indistinguibilidade. Como vimos, episódios de percepção e episódios de alucinação têm naturezas distintas. Teoricamente, são distinguíveis. Claro que a questão é se são distinguíveis na perspectiva da primeira pessoa, não na perspectiva da terceira pessoa. Antes de avançar nesse ponto, gostaria de fazer um comentário sobre a possível acusação de que cometo petição de princípio, ao rejeitar a indistinguibilidade com base na psicologia ecológica, já que não vou e não me cabe sustentar empiricamente a cogência desse programa de pesquisa. Sim, estou supondo a psicologia ecológica e refletindo quão longe podemos ir com o disjuntivismo a partir dela. Se cometo petição de princípio, eu o faço tanto quanto os demais disjuntivistas, positivos ou negativos, os quais supõem concepções lineares da percepção.[88] Como não estamos em terreno cético, essas suposições são inofensivas, embora obviamente eu não espere convencer o meu interlocutor da verdade da psicologia ecológica, apenas que uma versão interessante do disjuntivismo pode ser erguida com base nela.Quando avaliamos se uma experiência alucinatória é indistinguível da experiência perceptiva correspondente, temos de levar em consideração toda a informação disponível ao agente. A respeito do bastão que parece torto, quando imerso na água, Austin enfaticamente salienta que, se se negligencia a água, a mudança de um meio para outro etc., o bastão imerso na água parecerá indistinguível de um bastão realmente torto (AUSTIN, 1962, p. 42), mas não há qualquer razão para o percebedor negligenciar esses aspectos, que estão inclusive presentes em sua experiência.

Na perspectiva ecológica, os recursos disponíveis ao sujeito são ainda mais ricos e amplos que na concepção passiva e linear da percepção. Supõe-se um agente que move os olhos, a cabeça e o corpo, na busca de informação ambiental. Normalmente, a percepção ocorre ao longo do tempo, pois depende das atividades exploratórias do agente ou porque a própria informação ambiental está espalhada temporalmente, como tipicamente é o caso da informação sobre eventos. A informação sobre o tamanho de um objeto em relação ao terreno, por exemplo, é capturada aproximando-se ou afastando-se do objeto (GIBSON, 2015, p. 154). Trivialmente, muitas alucinações que seriam indistinguíveis das suas correspondentes experiências perceptivas para sujeitos imóveis não o serão para sujeitos que se locomovem e podem explorar o seu ambiente. Pelo movimento, trarão à tona diferenças que não estavam salientes e que poderão distinguir uma experiência perceptiva de uma alucinatória. Conforme salienta Gibson, “[...] pode-se enganar um olho imóvel, mas não um sistema visual ativo.” (GIBSON, 1970, p. 427).

Pode-se argumentar que essas considerações são insuficientes para bloquear a possibilidade natural de alucinações indistinguíveis. O defensor da concepção linear não precisa defender que a percepção tem de ser instantânea. Os módulos perceptivos podem muito bem receber uma série de estímulos proximais, ao longo de um intervalo de tempo, antes de processar uma percepção resultante. O processo não deixaria de ser linear por isso. E a consideração central do defensor da concepção linear continuaria a mesma: a causa proximal que antecede a percepção resultante poderia ser simulada por intervenção direta sobre o sistema perceptivo, produzindo uma alucinação indistinguível da percepção que teríamos, em condições normais.

Além disso, ainda que em situações normais possamos distinguir uma experiência como perceptiva ou verossímil, em função da sua coerência com uma série de experiências sucessivas, nada impede que essa série de experiências seja obtida por uma série de intervenções diretas sobre o sistema perceptivo. Assim, embora pareça à primeira vista que eu possa perceber um celeiro real ao me locomover lateralmente a ele, para detectar que não se trata de uma fachada de celeiro, a alucinação indistinguível de um celeiro poderia ser produzida ao longo do tempo por uma sequência de intervenções diretas sobre o sistema perceptivo. Se a locomoção e o movimento significam apenas se submeter a mais estímulos, não é claro que a concepção linear da percepção não possa acomodá-los e manter aberta a possibilidade da indistinguibilidade natural.

 

6 A suposição da linearidade

Para contornar essa dificuldade, temos de deixar mais claro como a psicologia ecológica deixa de lado a suposição da linearidade. A concepção linear, recordemos, é a de que a percepção resulta de uma entrada sensorial e, sozinha ou em conjunto com operações cognitivas adicionais, pode ser a causa de saídas motoras. Se, no entanto, aceitamos que a saída motora retroalimenta o sistema perceptivo, não apenas porque ela indiretamente afeta os estímulos que chegam do ambiente, mas principalmente porque ela traz informação motora que poderá compor em conjunto com as entradas sensoriais informação relevante para o sistema perceptivo, então, a suposição da linearidade foi abandonada. A causalidade por trás da percepção assim entendida dinamicamente é circular. A saída motora é tanto efeito quanto causa da percepção (HURLEY, 2002, p. 419). A concepção ecológica da percepção é francamente dinâmica. Isso fica ainda mais explícito na discussão de Gibson sobre o critério para distinguir percepções de alucinações.

De acordo com Gibson, as experiências que são insensíveis à locomoção ou ao movimento dos olhos não são perceptivas, pois, nesses casos, não estamos diante de algo que pode ser explorado, focado, determinado mais precisamente etc. É o caso, por exemplo, das imagens residuais: para onde quer que olhemos, elas permanecem na mesma região do nosso campo visual, de sorte que não conseguimos nos aproximar ou nos afastar delas, nem focar ou ampliar os seus detalhes. Simplesmente não há, nesse caso, informação ambiental para ser explorada, e as saídas motoras não retroalimentam a percepção, não tendo qualquer efeito sobre a experiência da imagem residual. Essas considerações apontam para um bom critério para distinguir experiências perceptivas de experiências não perceptivas:

Sempre que o ajuste dos órgãos perceptivos produz uma mudança correspondente na estimulação, há uma fonte externa de estimulação e o agente está percebendo. Sempre que o ajuste dos órgãos perceptivos não produz nenhuma mudança correspondente na estimulação, não há uma fonte externa de estimulação e o agente está imaginando, sonhando ou alucinando. (GIBSON, 1970, p. 426).

 

Note-se que a afirmação de Gibson não é que o ajuste dos órgãos perceptivos tenha algum impacto na estimulação. Isso a concepção linear pode acomodar, já que qualquer ajuste dos órgãos perceptivos implicará que o agente assume uma nova perspectiva em relação ao ambiente e, portanto, receberá estímulos diferentes. A sua afirmação é que os ajustes produzem mudanças correspondentes na estimulação, que as variações serão equivalentes. As variações podem inclusive ser revertidas, se os ajustes ou movimentos são revertidos (1970, p. 426). Essa variação concomitante ou não é de grande importância. A variação motora junto com a variação da entrada visual, ou de outra modalidade, fornece a informação de complexidade elevada de que a variação da entrada visual se deve à variação motora, e não, por exemplo, a mudanças no ambiente.

Essa informação é vital, por exemplo, para distinguir um objeto que se move em direção do agente do movimento do agente em direção ao objeto, bem como para a percepção da localização dos objetos no espaço egocêntrico. Nesse sentido, a retroalimentação motora pode constituir em parte a percepção de um objeto se movendo ou a percepção de onde se encontra um objeto. A retroalimentação não precisa ser apenas motora e de índole proprioceptiva – ela pode ser e, em muitos casos, ela é visual, isto é, a visão dos próprios movimentos retroalimenta o sistema perceptivo (GIBSON, 2015, p. 173), e relações complexas entre ela e outras entradas podem constituir novas percepções. Em virtude dessa retroalimentação dinâmica entre diversos sistemas perceptivos e proprioceptivos, Gibson (2015, p. 133) assevera que perceber o mundo envolve perceber a si mesmo.

Se voltarmos ao caso do celeiro, podemos ver agora que há uma diferença, discriminável pelo agente, entre perceber um celeiro enquanto se se locomove ao redor de um e simplesmente receber uma sucessão de estímulos visuais que poderiam dar a impressão de um celeiro que se move. No primeiro caso, temos um fluxo de estimulação que é controlado pelo agente, enquanto ele se sintoniza à informação ambiental, um processo, o qual, como acabamos de explicar, envolve a retroalimentação motora e/ou visual. Ademais, o celeiro pode ser explorado de diferentes maneiras pelo agente, gerando alterações correspondentes no fluxo de estimulação. No segundo caso, temos um fluxo de estimulação passivo, não controlado e, por conseguinte, na melhor das hipóteses, uma imagem mental de um celeiro que não responde aos movimentos do agente. A experiência perceptiva e a experiência alucinatória “correspondente” podem ser similares em vários aspectos, entretanto, além de terem naturezas distintas, elas são perfeitamente distinguíveis.

A contrapartida fenomenológica da retroalimentação dinâmica e da causalidade circular que esta última implica, como já mencionado quando falamos do processo de sintonização para a captura de informação ecológica, é que o ato perceptivo não é instantâneo, ele não se limita ao instante presente mas ocorre ao longo do tempo. Na verdade, a percepção é um ato contínuo (GIBSON, 2015, p. 229), uma atividade incessante para a manutenção do contato do organismo com o mundo. Isto é ainda mais saliente na percepção de eventos, em diferentes escalas temporais, como a percepção de um objeto saindo do campo de visão, das folhas de uma árvore caindo ou até mesmo da mudança do clima no planeta Terra (WITHAGEN, 2022, p. 37). Em todos esses casos, o organismo controladamente se sintoniza à informação ecológica que está espalhada no tempo, e se abre perceptivamente ao passado. Contrariamente ao que é suposto pela concepção linear, a percepção não está confinada a um instante (GIBSON, 2015, p. 300), ela pode se estender retrospectiva e prospectivamente. A sensação normalmente cessa quando a estimulação cessa, mas a percepção não se interrompe por isso (2015, p. 242), pois ela é a detecção de padrões ou invariantes ao longo do tempo através de um processo de sintonização que envolve ciclos de ação e estimulação, isto é, contínuo ajuste dos órgãos sensoriais e exploração do ambiente. Percepção envolve uma causalidade circular, ela não é o efeito instantâneo de estimulações ou de sensações instantâneas.

Por fim, a rejeição da suposição da linearidade torna mais difícil a defesa da tese de que a percepção é superveniente a processos cerebrais apenas, uma vez que saídas motoras e visuais podem constituir novos episódios perceptivos. Os ciclos de percepção-ação envolvem o corpo e o ambiente do agente. Como a psicologia ecológica procura deixar claro, um episódio perceptivo, na medida em que resulta de um processo ativo e dinâmico de sintonização do agente à informação ambiental — informação que, em muitos casos, só emerge através da locomoção e da retroalimentação motora —, não é um evento do cérebro apenas, mas do sistema organismo-ambiente.

 

7 A suposição da duplicação

Se supomos que a percepção é um processo de sintonização entre organismo e ambiente em que o primeiro controla o fluxo de estimulação para capturar informação ambiental, então, organismo e ambiente estão acoplados e, como já mencionado, há uma simetria entre os estados físicos do organismo e do ambiente. Em outras palavras, organismo e ambiente não são separáveis, sem drásticas consequências para os estados físicos internos do organismo. Segundo enfatiza Costall (1984, p. 113), Gibson esforçou-se para negar “[...] a ideia de que o organismo pode ser tomado como se ele pudesse existir fora de qualquer tipo de coordenação com um ambiente.” Se alterarmos o ambiente, alteramos os estados físicos do organismo e, por conseguinte, os estados perceptivos que, na abordagem ecológica, são supervenientes ao sistema organismo-ambiente.

A concepção linear, contudo, dá suporte à suposição de que os estados físicos internos do organismo poderiam ser os mesmos, embora em ambientes bem distintos, bastando manter as causas proximais as mesmas. Susan Hurley chama essa suposição de “suposição da duplicação” (HURLEY, 2002, p. 294). Trata-se de uma suposição comum nos debates entre externistas e internistas acerca do conteúdo mental. Nos experimentos de pensamento envolvendo Terras Gêmeas, somos convidados a imaginar um mundo que, na aparência, é idêntico ou muito semelhante ao nosso, contudo, que possui alguma substância, como o equivalente deles para a água, cuja estrutura física ou química mais profunda é diferente da estrutura da substância correspondente no nosso mundo.

Supõe-se ainda que um humano na Terra e o seu doppelgänger nesse mundo imaginário têm os mesmos estados físicos internos. A disputa é sobre se as diferenças ambientais importam para a fixação do conteúdo dos estados mentais desses indivíduos. Internistas sustentam que não, enquanto externistas sustentam que sim. Curiosamente, conjuntivistas e disjuntivistas, tanto negativos quanto positivos, na medida em que aceitam a suposição da indistinguibilidade e a da linearidade, parecem acatar também algo muito próximo da suposição da duplicação: desde que as causas proximais sejam as mesmas, os estados físicos internos do percebedor serão os mesmos. A disputa é sobre se as diferenças ambientais — a presença e a ausência do objeto distal O, em diferentes situações — importam constitutivamente para a natureza do estado experiencial do percebedor. Conjuntivistas sustentam que não e disjuntivistas (não ecológicos) sustentam que sim. O disjuntivista ecológico rejeita a suposição da duplicação e, portanto, rejeita a questão colocada nesses termos, embora concorde com os disjuntivistas não ecológicos em que a percepção envolve o mundo. A rejeição da suposição da duplicação é um caminho alternativo para negar a concepção da mente como interna (HURLEY, 2002, p. 297).

A suposição da duplicação até parece trivial, quando consideramos um percebedor parado, recebendo estímulos num instante particular. Mas já vimos que o percebedor típico, segundo a psicologia ecológica, é um que se move e cujo sistema perceptivo é equipado com retroalimentação dinâmica. Segundo Susan Hurley, a retroalimentação dinâmica coloca um desafio difícil para a suposição da duplicação, o que já era de se esperar, visto que ela ataca também a suposição da linearidade. Hurley nos convida a imaginar em detalhes alguns casos de inversão, para explicitar as dificuldades de duplicação que normalmente são ignoradas em muitos experimentos de pensamento do tipo Terra Gêmea. Uma inversão mais simples seria o caso da Terra Invertida Verde-Vermelho, onde tudo que é verde na Terra é vermelho na Terra Invertida e vice-versa (HURLEY, 2002, p. 299).

Além disso, os habitantes da Terra Invertida chamam as coisas verdes de “vermelhas” e as coisas vermelhas de “verdes”. Imaginemos agora a Maria e a Maria Invertida e que elas interagem normalmente com os seus ambientes, em uma série de atividades cotidianas. O caso de “agentes” estáticos não nos interessa. Poderão Maria e Maria Invertida ter os mesmos estados físicos internos? Certamente que não. Quando Maria estiver olhando para algo vermelho na Terra, Maria Invertida estará olhando para algo verde na Terra Invertida. Ondas eletromagnéticas de diferentes comprimentos atingirão as retinas de Maria e Maria Invertida e, por conta disso, elas terão estados físicos internos distintos. Contudo, nesse caso, não é difícil conceber um dispositivo para viabilizar a duplicação. Maria Invertida poderia ser equipada com lentes que revertem a luz verde para a vermelha e vice-versa. Desde que se suponha que os estados físicos da lente não façam parte dos estados internos da Maria Invertida, os estados físicos internos de Maria e Maria Invertida podem ser duplicados, ao longo de suas interações com os seus respectivos ambientes.

Outros mundos invertidos geram dificuldades maiores, como é o caso da Terra Invertida Esquerda-Direita (HURLEY, 2002, p. 302). Para diferenciá-lo do caso anterior, chamemos esse mundo de “Terra Espelho”. Imagine-se que tudo que está à esquerda de Maria está à direita da Maria Espelho e vice-versa. O que precisaríamos fazer para tornar a duplicação possível? Certamente, Maria Espelho precisaria usar lentes que revertem raios luminosos que vêm da esquerda, para que alcancem a sua retina, como se viessem da direita e vice-versa. Todavia, isso só vai funcionar enquanto Maria e Maria Espelho estiverem com os olhos fixos e não se moverem. Imagine-se que haja uma bola à esquerda de Maria e que ela mova a sua mão para a esquerda, na direção da bola. Como a bola na Terra Espelho está à direita de Maria Espelho, ela vai mover a sua mão esquerda para uma direção onde não há bola alguma. Além disso, devido às lentes inversoras, ela verá a sua mão esquerda do lado direito e movendo-se para a direita. As relações normais, em relação a Maria, entre saída motora e retroalimentação visual, foram alteradas.

De modo semelhante, as relações entre a retroalimentação visual e a retroalimentação proprioceptiva foram igualmente alteradas. Maria Espelho vê sua mão se movendo para a direita, mas sente que ela se move para a esquerda. Para contornar essas dificuldades e tornar a duplicação possível, precisamos de mais dois dispositivos. Maria Espelho tem de ser equipada com um reversor motor, o qual reverta os sinais acerca de qual mão Maria Espelho vai mover, mas também em que direção. Assim, o mesmo sinal motor que acompanha a mão esquerda de Maria se movendo para a esquerda deverá acompanhar a mão direita de Maria Espelho se movendo para a direita.

Mas isso ainda não é suficiente: também precisamos de um reversor proprioceptivo. Maria Espelho, devido ao reversor motor, estará movendo a sua mão direita para a direita, enquanto Maria estará movendo a sua mão esquerda para a esquerda. Os sinais proprioceptivos de Maria e Maria Espelho serão, portanto, distintos. O reversor proprioceptivo deve reverter esses sinais. Ao mover a sua mão direita para a direita, Maria precisa sentir que a mão que ela vê à sua esquerda (devido às lentes reversoras) se move para a esquerda também. Parece que agora obtivemos a duplicação.

No entanto, a introdução destes dois últimos dispositivos, sem entrar nos detalhes de como seriam realmente viáveis, força um recuo quanto ao que constitui os limites internos de Maria e Maria Espelho. Os músculos e nervos motores terão de ficar de fora, já que seus estados serão diferentes em Maria e em Maria Espelho. Para manter a possibilidade da duplicação, será preciso, na melhor das hipóteses, recuar até o sistema nervoso central, supondo que os dispositivos mencionados possam ser implementados alterando apenas os sistemas neuronais periféricos, o que não é óbvio (HURLEY, 2002, p. 312).

Susan Hurley concebe em detalhes mais um caso de mundo adulterado, a Terra Esticada, em que os objetos nesse mundo sofrem uma distorção na vertical, isto é, eles são esticados para ter o dobro da altura dos seus correspondentes na Terra (2002, p. 314-318). Apenas o sistema nervoso central dos seus habitantes não sofre essa distorção. Deixo os detalhes acerca dos ajustes necessários para a duplicação para o leitor; o ponto central de Hurley é que, nesse caso e em muitos outros, fica cada vez mais difícil preservar mesmo o sistema nervoso central para fazer justiça às complexas relações entre saídas motoras, sinais visuais e proprioceptivos, em um sistema perceptivo dinâmico. A parcela de estados físicos internos que podem ser preservados como os mesmos é cada vez menor, o que levanta a forte suspeita de que a mente não deve ser superveniente aos limites do corpo, ao sistema nervoso central ou a um conjunto ainda mais estreito de neurônios, para não mencionar o caráter cada vez mais artificial de como vamos, nesses recuos, traçando os limites entre o interno e o externo. Assim, a estratégia de recuo parece fadada ao fracasso.

Ao contrário, devemos ir na direção oposta. A mente, como preconiza a abordagem ecológica, é superveniente ao sistema organismo-ambiente, no qual ambos são vistos como complementares.[89] Na mesma linha, Susan Hurley sugere que a mente esteja centrada no que ela chama de singularidade dinâmica: “[...] um sistema dinâmico contínuo e complexo centrado em um organismo ativo, com ciclos de retroalimentação que podem ter órbitas tanto externas quanto internas.” (2002, p. 333). A fronteira do que é interno e externo à mente pode, assim, envolver elementos que estão fora do corpo, na medida em que a retroalimentação dinâmica envolve porções do ambiente. Essa fronteira é também fluida, podendo se alterar com o tempo. De acordo com a abordagem ecológica, os elementos fora do corpo que compõem o ambiente do organismo e que, por conseguinte, fazem parte da base material da sua mente são aquelas parcelas do mundo físico ao qual o organismo está sintonizado. Como vimos, há uma estreita simetria entre os estados do organismo e os estados do ambiente ao qual o primeiro está sintonizado. Não é à toa, portanto, que seja inviável desacoplar uma organismo do seu ambiente para acoplá-lo a um outro bem diferente e mantê-lo como tendo a mesma mente ou como tendo os mesmos estados internos que teria, no ambiente original. E, se é assim, não parece haver razões para se pensar que os episódios de percepção e as alucinações “correspondentes” sejam indistinguíveis, pois elas terão dinâmicas e marcas motoras e proprioceptivas bem distintas, embora possam ter alguns elementos sensoriais em comum.

 

8 E o cérebro numa cuba?

A possibilidade de sermos cérebros encubados não vai de encontro a tudo o que eu disse até agora? Não parece perfeitamente concebível que um cérebro encubado fosse estimulado para ter as mesmas experiências que temos, vindicando, assim, as suposições da indistinguibilidade, da linearidade e da duplicação? Como afirmei na Seção 5.1, estou interessado em possibilidades naturais, não em possibilidades conceptuais ou metafísicas. Logo, o que temos de avaliar é se poderíamos mesmo encubar um cérebro ou em que circunstâncias ele poderia ser encubado. Novamente, os detalhes fazem toda a diferença.

Essa questão foi abordada por Evan Thompson e Diego Cosmelli (2011), cuja conclusão é que dificilmente podemos encubar um cérebro, a não ser que o façamos através de um corpo substituto o qual emule a intrincada dinâmica de interações que o cérebro tem com o nosso corpo habitual. Para início de conversa, precisamos de um líquido que envolva o cérebro e que possa absorver os subprodutos das suas reações químicas. Precisamos também de sangue e um sistema vascular por meio do qual nutrientes chegam a diversas partes do cérebro. Não há como fazer circular o sangue sem alguma bomba, algo que cumpra o papel do coração. Além disso, é necessário acoplar um sistema de reciclagem para manter o nível de oxigênio e açúcar no sangue e para eliminar outros resíduos. O próprio sistema circulatório deve estar acoplado ao cérebro, já que a quantidade de sangue a ser enviada para diferentes regiões do cérebro depende da própria atividade intrínseca do cérebro, isto é, do que ele está fazendo no momento.

Essas são as condições mínimas para manter o cérebro vivo. Ademais, queremos que ele tenha uma atividade normal. Sabemos que o cérebro é um sistema dinâmico autônomo, isto é, ele tem atividade intrínseca. O cérebro não age apenas em resposta a estímulos, ele está continuamente ativo. Para manter a sua atividade interna intrínseca e a sua homeostase, as conexões com os demais sistemas precisam ser finas. O cérebro precisa ter mapas desses sistemas, a fim de regular a sua atividade, e também deve poder ter algum controle sobre esses sistemas, conforme já vimos, no caso do sistema vascular. Em conjunto, esses sistemas formam um emaranhado dinâmico.

Quanto aos estímulos sensoriais, eles têm de ser do mesmo tipo e da mesma complexidade dos estímulos que o nosso cérebro tem, em virtude da sua fina conexão com o nosso corpo. Imagine-se a variedade de configurações que o nosso corpo assume e como elas afetam continuamente o cérebro. Tudo isso precisa ser emulado pela cuba, por meio de encaixes neuroquímicos perfeitos. Não só essas entradas, mas, como vimos, as saídas do cérebro que retroalimentam os sistemas perceptivos também têm de ser contempladas. Visto que o sistema responsável pelos estímulos afeta a atividade do cérebro, ele precisa estar bem integrado ao cérebro e aos demais sistemas, para não atrapalhar ou até mesmo inviabilizar o cérebro, na manutenção da sua atividade interna. A sobrecarga de estímulo pode ser fatal para o cérebro. Como nos demais casos, o cérebro precisa controlar como será estimulado. Ou seja, a cuba deverá ser equipada com sistemas sensoriomotores. Assim, o nosso cérebro numa cuba se parece agora com um agente sensoriomotor autônomo e que interage com o seu entorno.

Essas considerações levaram os autores a concluir que “[...] qualquer ‘cuba’ adequadamente funcional será um corpo substituto. Não queremos dizer que será um corpo como o nosso na sua composição material, mas um suficientemente semelhante ao nosso na sua organização funcional.” (THOMPSON; COSMELLI, 2011, p. 172). Dessa maneira, o mínimo para se ter uma criatura consciente não é apenas o cérebro, porém, um organismo, compreendido como um sistema que se autorregula e que é composto por subsistemas neurais e extraneurais fortemente entrelaçados. E, retomando a minha conclusão da seção anterior, para continuar a ter os mesmos estados mentais que tinha antes, esse novo organismo terá de habitar o mesmo ambiente que era habitado pelo corpo anterior ou um muito semelhante a ele.

 

Considerações Finais

O argumento causal depende de uma série de suposições que não parecem resistir a um exame mais detalhado. Os sistemas perceptivos são dinâmicos, especialmente se supomos um percebedor que se move no seu ambiente. Ao considerar a retroalimentação dinâmica, somos levados à conclusão de que os estados perceptivos envolvem o ambiente. Essa conclusão também é apoiada pela abordagem ecológica. Organismo e ambiente são complementares. A imagem que emerge da mente é a de uma singularidade dinâmica centrada no organismo e permeada pelo ambiente no qual ele habita. Estados mentais são estados do sistema organismo-ambiente e, portanto, têm uma base material mais ampla que a do corpo ou a do cérebro apenas. Um cérebro encubado e mentalmente vivo é uma quimera.

O argumento causal é um problema para disjuntivistas que assumem a concepção linear da percepção. Esses disjuntivistas, por aceitarem a suposição da indistinguibilidade, se veem pressionados ou a fornecer uma explicação misteriosa para a alucinação, ou a assumir uma relação de contato direto que não parece ter qualquer papel na explicação da fenomenologia da experiência perceptiva. O disjuntivismo ecológico está livre dessas dificuldades, pois rejeita a concepção linear da percepção. Episódios de percepção são distintos dos “correspondentes” episódios de alucinação: os primeiros, mas não os segundos, envolvem a captura de informação ambiental. Percepção e alucinação podem ser distinguidos pelo percebedor. A percepção é uma experiência controlada de sintonização à informação, enquanto a alucinação é passiva e refratária às atividades de exploração e sintonização. A abordagem ecológica se limita à possibilidade natural. Para além desse limiar, o que encontramos é uma intensa neblina conceitual. Nessas condições, ainda que despertos e alertas, não há nada que consigamos ver com clareza.

 

Ecological disjunctivism and the causal argument

Abstract: In this paper, I argue that the ecological approach to perception provides resources to overcome the causal argument against disjunctivism. According to the causal argument, since the brain states that proximally cause the perceptual experience and the corresponding hallucinatory one can be of the same type, there would be no good reason to reject that the perceptual experience and the corresponding hallucinatory experience have fundamentally the same nature. Disjunctivism concerning the nature of the experience would then be false. I identify three assumptions that support the causal argument: the indistinguishability assumption, the linearity assumption, and the duplication assumption. According to the ecological approach to disjunctivism, these assumptions should be rejected, opening up room for a version of disjunctivism that I call 'Ecological Disjunctivism'. Perceptual episodes are extended over time and are supervenient to the organism-environment system. They can be distinguished from the 'corresponding' hallucinations because the former results from a controlled process of attunement to the environment, whereas hallucinations are passive and insensible to the exploratory activities of the perceptual system. Finally, ecological disjunctivism, since it is immune to the causal argument, is more advantageous than negative and positive disjunctivism.

Keywords: Ecological disjunctivism. Causal argument. Indistinguishability. Dynamical feedback. Ecological psychology.

 

Referências

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Recebido: 15/08/2022

Aceito: 07/02/2023


Comentário a “O disjuntivismo ecológico e o argumento causal”

 

Sabrina Balthazar Ramos Ferreira[90]

 

Referência do artigo comentado: CARVALHO, E. M. O disjuntivismo ecológico e o argumento causal. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 147- 174 2023.

 

Em meio aos debates na Filosofia Ecológica, concebida por James Jerome Gibson (1979), estão presentes divergências pontuais quanto ao conceito mais apropriado de affordance. Todavia, as convergências teóricas superam possíveis desacordos, sobretudo quando abordagens ecológicas compartilham o interesse em desenvolver seus pressupostos. É a esse intuito que os últimos esforços do professor Eros Moreira de Carvalho têm se dedicado. Seus trabalhos mais recentes têm transitado por vários aspectos da filosofia ecológica, desde affordances afetivas (CARVALHO, 2022a), passando pela relação entre psicologia ecológica e cognição social (CARVALHO, 2022b, p. 367-393), até, principalmente para o que nos interessa no momento, sobre um espinhoso aspecto das teorias da percepção – o disjuntivismo.

De fato, o problema do disjuntivismo impõe significativo desafio para qualquer teoria que busque explicar amplamente a constituição dos processos perceptivos. No entanto, para aqueles que se debruçam sobre pesquisas ecológicas, tal desafio é mais do que esperado, devido a um dos pontos mais questionados da abordagem ecológica da percepção – o problema do erro perceptual. Se o problema do erro perceptual discute a natureza de percepções equivocadas, ou até mesmo suas condições de existência, o problema do disjuntivismo se detém na diferenciação entre estas e percepções verídicas. Tanto o problema do erro perceptual quanto o problema do disjuntivismo acabam por impor os mesmos desafios ao caráter direto da percepção: se a percepção é direta, sem processos inferenciais, em casos de erro perceptual, o equívoco estaria no mundo? Ou nos órgãos perceptuais daquele que percebe? Se o percebedor capta diretamente informação significativa no mundo, pela percepção, como ele consegue diferenciar tal experiência de episódios de alucinação, cuja característica marcante é sua aparente indistinguibilidade dos episódios perceptivos correspondentes?

Ao longo do tempo, algumas saídas interessantes foram propostas, sobretudo com relação ao problema do erro perceptual (Turvey et al., 1981). Quanto ao disjuntivismo, Carvalho (2023) se lança em sua abordagem denominada disjuntivismo ecológico, proposta no artigo em questão. Anteriormente, no artigo “An ecological approach to disjunctivism”, Carvalho (2021) já flertava com o assunto, analisando o disjuntivismo ancorado em alguns pressupostos da filosofia ecológica, apontando para uma frutífera compatibilidade entre Filosofia ecológica e disjuntivismo. Na ocasião, sua ênfase recaiu sobre a atividade exploratória dos organismos no ambiente, no processo perceptivo, a sintonização organismo-ambiente que se efetiva por habilidades discriminatórias (CARVALHO, 2021, p. 290) desenvolvidas no decorrer do tempo, invariantes e, não menos importante, em alguns dos possíveis entendimentos sobre possibilidades de ação. Na oportunidade, Carvalho (2021) acenara para o problema da distinguibilidade e o desafio em acomodá-lo em uma teoria da percepção robusta.

Prosseguindo em sua empreitada de oferecer camadas de inteligibilidade à abordagem ecológica da percepção, observa-se, no artigo atual, uma alteração do alvo investigativo por parte de Carvalho (2023), ao se deter, dessa vez, nos argumentos que fundamentam teorias tradicionais da percepção que se contrapõem à abordagem ecológica. Nesse sentido, críticas bem-fundamentadas são tecidas a alguns dos pressupostos das abordagens inferenciais e representacionalistas da percepção, e às saídas propostas por teorias disjuntivistas que buscam refutar uma indistinguibilidade entre percepção e alucinação. Conforme Carvalho (2023) bem salienta, os caminhos tentados pelos disjuntivistas (tanto positivos, quanto negativos) recaem em comprometimentos problemáticos, os quais, conforme defendido, não afetam o disjuntivismo ecológico proposto.

Ainda que os dois textos de Carvalho (2021, 2023) visem a uma defesa do disjuntivismo ecológico, cada um envolve uma estratégia argumentativa distinta, o que me leva a sugerir a leitura de ambos, para uma visão mais completa da proposta do autor. Não obstante, vale destacar o ganho teórico do artigo presente com respeito ao anterior, devido à introdução de novos elementos em sua argumentação.

Conforme o próprio título ressalta, é na articulação entre abordagem ecológica da percepção e argumento causal que o presente artigo se destaca, cuja estrutura corresponde à defesa do primeiro, ao identificar as problemáticas do segundo. Não obstante, é bem salientado no artigo que a indistinguibilidade entre percepção e alucinação, defendida por teorias conjuntivas, pode residir no fato de ambas corresponderem a um mesmo tipo de experiência (seja um conteúdo intencional, sejam dados dos sentidos). Para tanto, conjuntivistas, além dos disjuntivistas, recorrem ao argumento causal para sustentar sua posição, pois, tanto alucinação quanto percepção envolveriam os mesmos antecedentes causais, a saber, eventos cerebrais. Nesse sentido, Carvalho (2023) destrincha a estrutura do argumento causal, identificando e discutindo suas principais suposições: indistinguibilidade, linearidade e duplicação, intrinsecamente conectadas entre si.

De fato, o tipo de causalidade implicada em cada teoria perceptual esboça o modo como é entendida a relação indivíduo-ambiente. E é justamente fundamentada nesse entendimento que a teoria ecológica ganha força, ao revelar uma visão sistêmica de mundo que, logo de início, pode desbancar a linearidade envolvida no argumento causal, sustentada por teorias tradicionais da percepção. Quero salientar que a sustentação teórica do artigo atual esboça uma avanço, o qual reside no papel fundamental que a atividade exploratória exerce nos processos perceptuais, segundo a filosofia ecológica.

Nesse sentido, o papel ativo do agente corresponde a um componente significativo da percepção, podendo contribuir para que o agente diferencie percepção e alucinação. Nas palavras de Carvalho (2021, p. 305): “Essa diferença motora também pode ser a base para uma habilidade introspectiva de discriminar entre recursos de episódios de percepção e recursos de episódios de alucinação.” Ou seja, as ações motoras do agente atuam de maneira efetiva na percepção, esboçando um processo retroalimentativo que contribui para a diferenciação entre percepção e alucinação. A consciência de sua movimentação e exploração do ambiente colabora para que o agente se veja em meio a um processo perceptivo e não de alucinação, cuja habilidade exploratória não é possibilitada do mesmo modo como na percepção. Dessa forma, a habilidade exploratória, para captura de informação significativa para ação, envolve sintonização do sistema organismo-ambiente, contrapondo-se à linearidade – uma das suposições do argumento causal – e ao caráter estático/receptivo do agente na percepção, segundo teorias tradicionais que se fundamentam em dinâmicas perceptivas de estímulo-resposta.

Dito isto, proponho-me discutir brevemente, devido ao espaço que me cabe, a efetividade da habilidade exploratória para o caráter direto da percepção e para o disjuntivismo, bem como para manutenção dos pressupostos ecológicos, ao longo do tempo. Essa discussão decorre da acentuada transformação sociocultural que as sociedades vivenciam com a introdução (e ampliação) massiva da tecnologia no cotidiano das pessoas – com a qual Gibson, quando da concepção dos principais pressupostos da filosofia ecológica, nos anos finais do século XX, não se deparava. Desse modo, minha proposta serve mais como uma provocação filosófica, a qual objetiva instigar, repensar e atualizar a abordagem ecológica da percepção para os novos cenários sociais que se apresentam, do que propriamente uma crítica à percepção direta ecológica.

A tecnologia faz parte do cotidiano de grande parte das pessoas, impelindo gerações de distintas faixas etárias a lidarem, cada qual a sua maneira, com os avanços tecnológicos que constantemente se atualizam. Gerações mais novas já nascem e crescem em meio a ambientes informacionais que são descritos como nichos tecnológicos, constituídos coevolutivamente por dinâmicas de percepção-ação que englobam a presença de tecnologias. Nas dinâmicas de percepção-ação, agentes captam informação significativa que, nesse caso, corresponde às affordances tecnológicas.[91] Em nichos tecnológicos, agentes interagem com diversos tipos de dispositivos, para além de interagirem entre si. A própria interação entre os agentes é, a depender do nicho tecnológico, mediada por TIC’s (Tecnologias informacionais de comunicação).[92] Nesse sentido, empresas de tecnologia têm se esforçado para aprimorar seus produtos, atentas às interações sociais esboçadas por dinâmicas de percepção-ação.

Um exemplo de avanço tecnológico é a criação de jogos de realidade virtual 3D.[93] Visando a oferecer ao usuário uma experiência fenomenológica cada vez mais próxima da realidade, esses jogos incorporam dispositivos que propiciam ao jogador se movimentar com o uso de equipamentos que, juntamente com capacetes de estímulos visuais e sonoros, propiciam uma experiência de realidade que imita a realidade. Com os avanços tecnológicos, esses jogos ampliaram a possibilidade de movimentação do jogador, bem como melhoraram a sincronização entre os movimentos realizados pelo jogador e as imagens projetadas em seu capacete sensorial. Tal sincronização propicia situações nas quais o jogador, isolado dos estímulos do ambiente em que se encontra e recebendo apenas estímulos gerados no jogo, experiencia episódios emocionais que envolvem alterações fisiológicas marcantes, tais como aceleração dos batimentos cardíacos, decorrentes das experiências virtuais vivenciadas no jogo. O usuário pode vivenciar uma experiência fenomenológica que cada vez mais se aproxima da realidade, embora se trate de imagens fabricadas, ou seja, percepções ilusórias.

Nesse sentido, podemos questionar: em que medida a habilidade exploratória, o papel ativo da percepção em conexão com a ação e a captação de possibilidades de ação via percepção direta ainda podem se sustentar em situações de jogos como esse? Pode ser argumentado que os usuários estão cientes de sua condição enquanto jogadores e que, dessa maneira, podem distinguir percepções e ilusões. No entanto, é importante considerar o papel que as emoções desempenham nessas situações, pois, ainda que os usuários tenham consciência de sua condição de jogadores, as alterações fisiológicas vivenciadas esboçam uma proximidade com o real até então não cogitada.

O ponto em questão reside no caráter ativo da percepção do jogador, a possibilidade de explorar o ambiente virtual com relativo grau de liberdade e a reprodução cada vez mais fiel da realidade, por parte da tecnologia, que ainda se limita, em grande medida, ao âmbito do entretenimento. Afinal, o que caracteriza uma ilusão/alucinação é o grau elevado de similaridade que estas possuem com seus episódios perceptivos correspondentes, seja devido à cadeia causal envolvida, seja pela existência de algum elemento em comum compartilhado.

No entanto, ao salientar que “[...] uma experiência alucinatória duradoura é distinguível de uma experiência perceptiva correspondente porque a primeira não resulta de um fluxo controlado de estimulação, ao passo que a segunda sim” (CARVALHO, 2021, p. 305), voltamos novamente para a evolução da tecnologia que cada vez mais considera a habilidade exploratória dos jogadores na concepção dos dispositivos. Conforme salienta Carvalho (2021), se “[a] percepção é uma experiência controlada de sintonização à informação, enquanto a alucinação é passiva e refratária às atividades de exploração e sintonização”, como podemos vislumbrar o futuro da filosofia ecológica em meio ao contínuo avanço tecnológico com o qual as gerações futuras coevoluirão? Nesse cenário, a percepção direta sobreviverá? O disjuntivismo ecológico ainda se sustentará sobre as bases aqui formuladas?

Sim, é possível que estejamos extrapolando a experiência dos jogos para outros âmbitos de nossa experiência. Contudo, tal exemplo esboça um movimento pervasivo da tecnologia em nossas dinâmicas de percepção-ação, possivelmente não imaginado no passado por Gibson. Para além de entretenimento, a tecnologia já faz parte de nossas vidas, em diversas áreas (casas inteligentes, carros autômatos etc.), propiciando novas formas de relação com o ambiente. Dessa maneira, a discussão sobre disjuntivismo se torna cada vez mais relevante para os dias atuais, não somente em função dos casos alucinatórios, mas pela presença cada vez mais massiva de tecnologias em nosso cotidiano e a coevolução de gerações mais novas com elas.

Nesse sentido, como ficariam as discussões sobre disjuntivismo, nesse novo cenário? Pressupostos ecológicos ainda se sustentariam? Tais questões assinalam desafios que ainda fomentarão muitas investigações filosóficas, as quais, por sua vez, terão um papel significativo para o desenvolvimento da Filosofia ecológica.

 

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Recebido: 11/01/2023

Aprovado: 21/01/2023

Qual o papel das experiências subjetivas na crítica social? Distinguindo entre justiça de primeira e de segunda ordem[94]

 

Filipe Campello[95]

 

Resumo: Nas últimas décadas, diferentes abordagens ligadas à tradição de(s)colonial têm movido o pêndulo da crítica de pretensões de universalidade para relatos e experiências particulares. Contudo, nisso que podemos chamar de virada narrativa, não são sempre evidentes as justificativas morais de perspectivas em primeira pessoa. A questão que se gostaria de explorar neste artigo é se seria possível encontrar relevância epistêmica de relatos e experiências subjetivas na crítica de injustiça. Começa-se por inverter a questão, partindo do problema da objetividade na crítica, diante da particularidade das experiências. A questão, nesse caso, é de onde fala o filósofo ou a filósofa, na sua intenção de descrever experiências de sofrimento de outras pessoas. Se falamos sempre em primeira pessoa, e se existe algum limite cognitivo ou epistêmico de experiências, de onde viria a capacidade de criticar experiências que não são as nossas? Afinal, como podemos compartilhar experiências de injustiça? Em seguida, defende-se que podemos avançar, se distinguirmos duas dimensões de justiça. Seguindo distinções conhecidas de teorias de primeira e segunda ordem, defende-se que reivindicações ligadas à virada narrativa se referem a demandas de justiça de primeira ordem: trata-se de reconhecer moralmente a pretensão epistêmica dos sujeitos, vendo-se ali a possibilidade de confrontar noções falhas de universalidade e pontos cegos em teorias da justiça. Contudo, essas pretensões não possuem em si próprias critérios de justificação, requerendo dependências normativas, as quais são externas às próprias experiências – essas, sim, situadas em justiça de segunda ordem. Propõe-se que esse modelo tem a vantagem de incorporar as vantagens teóricas de teorias de(s)coloniais, sem negligenciar os potenciais da crítica da injustiça.

Palavras-chave: Narrativas. Experiências. Crítica. De(s)colonialidade.

 

Mas como não ia ter pena? O que demasia na gente é a força feia do sofrimento, própria, não é a qualidade do sofrente. […]

Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá [...]

O mais bonito do mundo é isso: as pessoas não são sempre iguais, elas ‘inda não foram terminadas.

(Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas).

 

Introdução

Quando tentamos encontrar uma característica que liga diferentes teorias associadas à tradição liberal, vemos a de propor critérios de justiça que, ao invés de obstruir a pluralidade de visões de mundo, permitissem conciliá-los. Diante da tensão entre preferências particulares, a solução encontrada por teorias liberais foi a aparentemente mais simples: abster-se de criticá-las, porque, se a crítica se orientasse por imperativos morais vinculados a noções como autenticidade ou vida boa, ela acabaria por colocar em risco uma suposta objetividade e imparcialidade pretendida por critérios de justiça. Seguindo de perto o sentido do que, na clássica formulação de Isaiah Berlin, ficou conhecido por liberdade negativa, não caberia a teorias normativas se aventurar na seara de definições particulares, devendo abster-se de determinar os conteúdos de preferências individuais. Teorias políticas alinhadas a esse raciocínio deveriam, então, focar apenas naquilo que supostamente lhe cabem: a universalidade de demandas da justiça, voltando seus esforços, de um modo ou de outro, a critérios que transcendam a parcialidade e contingência de visões particulares de mundo. O espectador imparcial de Adam Smith ou o véu da ignorância de John Rawls são soluções teóricas que tentam desobstruir teorias de toda particularidade que, por assim dizer, atrapalharia encontrar critérios imparciais para a justiça.

Ao se pôr uma clara linha divisória entre o que concerne à razão pública e o que se delimita à esfera privada, experiências subjetivas enquanto autodescrição e narrativas singulares passaram a ser restritas a esta última esfera. A consequência dessa separação mais rígida entre público e privado foi a tendência por escamotear a relevância que relatos e narrativas singulares poderiam assumir, na elaboração de uma teoria da justiça. Enquanto particulares, experiências seriam como peças que não mais conseguem se encaixar no quebra-cabeça de uma suposta universalidade, o que faz com que aquela noção de razão que subjaz a esse potencial de universalização acabe por revelar-se restritivo ou mesmo excludente.

Diante desse contexto, a questão que gostaria de explorar, neste artigo, é se seria possível encontrar relevância epistêmica de relatos e experiências subjetivas na crítica de injustiça. Antes de enfrentar essa questão, contudo, gostaria de inverter o problema da objetividade na crítica em face da particularidade das experiências. A questão, nesse caso, seria de onde fala o filósofo ou a filósofa, na sua intenção de descrever experiências de sofrimento de outras pessoas. Também aqui nos movemos em um plano sobretudo epistêmico, isto é, sobre em que medida podemos falar a respeito de experiências que não são nossas. Significa perguntar como podemos transferir uma perspectiva de primeira pessoa para a de terceira pessoa (como em teorias e suas pretensões normativas), ou, em um sentido mais próximo do que estou discutindo, em acessar experiências particulares de outra pessoa – o que é chamado de second-person standpoint. Se falamos sempre em primeira pessoa e se existe algum limite cognitivo ou epistêmico de experiências, de onde viria a capacidade de criticar desejos, escolhas ou experiências que não os nossos? Afinal, como podemos compartilhar experiências de injustiça?

 

1 O pêndulo entre particular e universal: compartilhando experiências de injustiça

Pode ser útil, em um primeiro momento, lembrarmos a distinção que Peter Strawson propôs entre ressentimento e indignação moral: enquanto o ressentimento seria uma reação à ofensa ou indiferença direcionada a si mesmo, a indignação moral seria uma atitude compreensiva, impessoal e desinteressada. Ao contrário do ressentimento, atitudes de indignação seriam “[...] reações à qualidade das vontades dos demais, não a nós mesmos.” (STRAWSON, 2016, p. 258). Strawson distingue, então, atitudes reativas pessoais do que ele chama de atitudes vicárias:  aquelas em que, apesar de a ofensa não ser dirigida a mim mesmo, eu me coloco lugar do outro. Em outras palavras, posso ser tomado por um sentimento de indignação diante de uma experiência de injustiça, independentemente de ela ser dirigida a mim. Afirma Strawson:

O que temos aqui, por assim dizer, é o ressentimento em nome de outro, onde nem o interesse próprio nem a própria dignidade estão implicados; e é esse caráter impessoal ou recíproco da atitude, somado aos demais, o que lhe outorga a qualificação de “moral”. (Strawson, 2016, p. 258).

 

Não está claro, contudo, quais critérios nos permitem identificar uma atitude vicária (ou indireta) como sendo moral. Apesar de Strawson contribuir para distinguirmos entre, por um lado, o ressentimento enquanto atitude reativa direta, e, por outro, a indignação como sentimento de quem observa e percebe uma experiência de injustiça, isso não deve nos levar a assumir que todo sentimento de indignação seja per se moralmente legítimo. Posso me indignar com uma atitude dirigida a alguém próximo a mim ou com o qual eu tenha algum vínculo afetivo, sem que esse sentimento possa discernir sobre a legitimidade moral da ação. Também nesses casos as emoções são sobretudo ambivalentes: neles, eu posso tomar parte apenas motivado pelo laço de proximidade afetiva que tenho, não sendo suficientemente neutro para oferecer um juízo moral adequado.

Tal dificuldade pode ser em parte explicada pelo fato de que o esforço teórico de Strawson já assume como ponto de partida a intenção de trazer a discussão sobre emoções para o debate de viés analítico – mais especificamente, em torno do problema do determinismo moral (como ele reconhece, “[...] é uma pena que falar em sentimentos morais tenha caído em desuso.” (2016, p. 268).[96] Mais do que o estranhamento que esse desuso poderia causar, gostaria de me deter na questão em torno da relevância da perspectiva em primeira pessoa. Qual é exatamente a diferença entre as experiências que sinto em primeira pessoa e a que me é oferecida sob a forma de relato? Mais precisamente: a experiência é uma condição para a crítica de injustiça?

Vejamos este relato de Joaquim Nabuco. Nascido no Engenho Massangana, próximo ao Recife, em uma família branca e abastada da aristocracia rural pernambucana, Nabuco narra suas memórias da infância passada no Engenho. Uma de suas lembranças mais marcantes desse período é a ruptura de quando a condição de escravidão deixa de ser algo familiar, sentida através de um acrítico laço afetivo, e passa a ser questionada:

Eu estava em uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi esse o traço inesperado que me descobriu a natureza a instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava. Nada mostra melhor do que a própria escravidão o poder das primeiras vibrações do sentimento. [...] Assim eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência. (Nabuco, 2012, p. 190).

 

A questão epistêmica da percepção de injustiça de Nabuco, que evidentemente não sente a mesma experiência do escravo que vai ao seu encontro, é um caso de passagem entre primeira e segunda pessoa. Qual é a diferença entre os dois relatos? O que permite compartilhar essa experiência, senão enquanto sofrimento, como percepção de injustiça?

Um primeiro modo de abordar essa questão, e mais recorrente no debate, consiste no que podemos chamar de privilégio epistêmico da experiência. A posição crítica e reativa de Joaquim Nabuco não resulta de sentir em primeira pessoa a condição de escravidão, senão de uma experiência de um relato: ao deparar-se com o jovem negro, na condição de escravo clamando por ser comprado, Nabuco narra “sentir” a dor que o afligia. Sentir, nesse caso, não significa, e isso é claro, uma experiência em primeira pessoa (como veremos mais adiante, em relação ao conceito de experiência vivida), mas perceber, ou seja, poder compartilhar em segunda pessoa experiências que intersubjetivamente podem ser criticadas como injustas.

As questões que vemos nesse relato não são, contudo, inerentes apenas ao lugar das experiências vividas como critério de crítica a injustiças. Em um passo anterior, devemos nos perguntar por um significado da injustiça que não se refira aos problemas epistêmicos de sua percepção, pois a posição privilegiada de Nabuco, que é de onde ele narra a sua percepção ainda criança da injustiça intrínseca à condição de escravidão, não apenas torna sua narrativa um exemplo do problema da perspectiva em segunda pessoa, mas faz com que seu relato seja relevante enquanto relato. Ainda que também tivesse destaque na luta abolicionista o papel de intelectuais negros, como Luiz Gama, ou de personagens importantes na resistência quilombola, como Tereza de Benguela, o relato de Nabuco é o que é ouvido e resiste ao tempo.[97]

Do ponto de vista da injustiça epistêmica, a questão da injustiça não se refere apenas à capacidade reflexiva da injustiça. Mais do que sua percepção em segunda pessoa (ou seja, a percepção por um outro que não sofre diretamente a experiência da injustiça), o que é injusto aqui é o fato de que a perspectiva em primeira pessoa não possua relevância.[98] A narrativa da experiência vivida em primeira pessoa – ouvir o que têm a dizer aqueles que sentem a experiência de injustiça – adquire pesos distintos no recorte da justiça, quando ela já distingue de antemão quais delas importam. Essa ausência ou desequilíbrio entre a percepção da injustiça de quem fala em nome desse outro e os próprios relatos em primeira pessoa, e sobretudo o seu apagamento, são problemas de justiça: Enquanto uns têm voz, outros têm silenciada sua capacidade de oferecer relatos; uns são lembrados, outros esquecidos.

Quando Frantz Fanon escreve Pele negra, máscaras brancas, ele alerta para o que está por trás das pretensões de universalidade epistêmica – intimamente ligadas, nesse caso, ao discurso colonial. Fanon articula, ali, uma densa conexão entre sua experiência como médico psiquiatra e sua prática em um contexto de dissonâncias culturais que tem lugar na Argélia, sob o domínio colonial francês. Do ponto de vista da prática psiquiátrica, as pretensões de universalidade da subjetividade tornam-se ainda mais latentes, pois assumem um modelo totalizante da categoria de sujeito e seus sintomas. Esse tipo de resistência tinha como motivação certas questões, como: quem pode falar em nome do universal? Qual universalismo? E por que alguns discursos valem como universais, enquanto outros, apenas como particulares?

Essas foram questões que, de um modo ou de outro, mobilizaram diferentes vertentes do pensamento decolonial. Fanon argumenta que, por trás do que nomeamos como “universal”, se escondem disputas de narrativas que excluem perspectivas impedidas de serem reconhecidas, em sua pretensão epistêmica. Ao trazer luz para essa questão, o que é válido e consolidado como centro do discurso canônico contrasta com o que Fanon chama de “a experiência vivida do negro”, que dá título a um dos capítulos da obra. Ao narrá-la em primeira pessoa, ele descreve a experiência de não se reconhecer naquela suposta universalidade do conhecimento no colonizador francês, na Argélia: um tipo de recorte racial e colonial que provoca um estranhamento vertiginoso – uma espécie de desidentificação epistemológica. A escolha de Fanon pela narrativa em primeira pessoa traz uma força epistêmica enquanto luta por reconhecimento de uma subjetividade vetada à categoria do universal. Enquanto se dirige à teoria, a crítica não é particular, tampouco quer afirmar sua visão como “outro universal”, mas reivindica que sua experiência vivida não está incluída naquele discurso colonizador que, como tal, quer valer como universal. Ele está dizendo, de maneira contundente: “eu não me reconheço nessa teoria”.

É o caso da categoria “homem”, especialmente enquanto ligada aos seus desejos – questão que Fanon elabora, a partir de sua vivência profissional como psiquiatra. “Que quer o homem? Que quer o homem negro?” – pergunta, deslocando a ênfase da universalidade da categoria “homem” para uma particularidade identitária que não se reconhece nela. O desejo do homem negro é questionado como uma esfera volitiva que não adentra a categoria “desejos do homem”, pois o padrão “universal” de reconhecimento do homem negro martinicano – segue Fanon – é o do francês branco. O particular torna-se, então, refratário a seu encapsulamento por uma categoria estranha a ele, mas ela só lhe é estranha na medida em que exclui de si outros particulares. É o universal, não o particular, que é alienado de si, reduzindo-se a uma razão autorreferencial e, portanto, excludente. A conclusão de Fanon é taxativa: “O negro não é um homem” (FANON, 2008, p. 26).

O mesmo vale para a linguagem: ao se perguntar sobre a construção de identidade do negro, Fanon traz o exemplo do uso do petit-nègre como incorporação da linguagem colonial: enquanto indica apenas uma versão simplificada do francês, o falante de petit-nègre se “autossubalterniza” frente ao linguajar colonialista, de modo que “[...] responder em petit-nègre é enclausurar o negro com corpos estranhos extremamente tóxicos.” (FANON, 2008, p.48). Isso significa sobretudo que a sujeição colonial é também uma sujeição psíquica. Dessa ideia decorre que, para Fanon, os modos de vida coloniais e racializados são formas específicas de sofrimento, que, como tais, devem ser enfrentadas sob modelos reativos de ação política.

Um sentido análogo de estranhamento da linguagem é relatado por Kwame Appiah, em Na casa de meu pai. No que chama de “a invenção da África”, Appiah menciona os subterfúgios de violência semântica do discurso de Alexander Cummel, padre episcopal norte-americano, que defende a ideia de que, apesar da escravidão, com a colonização, a “divina providência” tinha deixado como herança a posse da língua anglo-saxônica, “[...] uma língua superior tanto em eufonia como em recursos conceituais para expressar as ‘verdades mais elevadas’ do cristianismo.” (APPIAH, 1997, p. 19). O tipo de violência epistêmica que Appiah relata é resultado de um sentido excludente de universal que só consegue lidar com a diferença, eliminando-a. Nesse recorte entre universal e particular, a questão permanece sendo quais discursos valem como universais, e, principalmente, quem pode falar em nome do universal. Appiah conclui, em tom irônico:

Agora, decorrido mais de um século, mais de metade da população da África negra vive em países em que o inglês é língua oficial; e a mesma providência decretou que quase todo o restante da África fosse governado em francês, árabe ou português. (Appiah, 1997, p. 19).

 

2 Razão de quem? Entre relato particular e pretensões de universalidade

Ao confrontar o lugar de fala da razão, críticas decoloniais abriram o caminho para o descolamento do pêndulo do universal para o particular, questionando o que passa a ser visto como modelos defectíveis e excludentes de racionalidade. Acontece que, se as críticas antes estavam voltadas para uma ampliação epistêmica daqueles discursos que importavam para a legitimação de teorias e visões de mundo, elas passaram a assumir um lugar de autovalidação em que não mais ficava claro em que medida suas pretensões de validade iam além de sua dimensão particular. O resultado disso foi que, da centralidade da luta por reconhecimento de diferentes narrativas, essas abordagens deslocaram seu foco do que seria uma crítica epistêmica para uma espécie de autovalidação normativa baseada na experiência. Narrativas em primeira pessoa que poderiam ter um potencial de crítica passaram a ser autorreferenciais, ou seja, ao invés de pressionar e corrigir pretensões teóricas, permaneceriam apenas como relatos singulares.

No entanto, o potencial de ampliação das narrativas encontrava seu significado epistêmico justamente enquanto estava em condições de transcender o caráter particular dos relatos em primeira pessoa. Ou seja, o problema da falta de reconhecimento epistêmico se dá enquanto, embora relatos fossem ouvidos, eles não eram vistos em seu potencial de contribuição epistêmica para além de uma mera história particular. Em Memórias da plantação, Grada Kilomba se queixa de ser criticada por um excesso de emotivismo, de um descrédito, pois sua análise seria carregada de sentimentalismo, pouco objetiva, pouco científica (“você interpreta demais”), em que se encontram maneiras de descreditar seu discurso ou de a tentar calar – o “[...] controle interminável sobre a voz do sujeito negro e o anseio de governar e comandar como nós nos aproximamos e interpretamos a realidade.” (KILOMBA, 2019, p. 34).

Como acadêmica, por exemplo, é comum dizerem que meu trabalho acerca do racismo cotidiano é muito interessante, porém não muito científico. Tal observação ilustra a ordem colonial na qual intelectuais negras/os residem: “Você tem uma perspectiva demasiado subjetiva”, “muito pessoal”; “muito emocional”; “muito específica”; “Esses são fatos objetivos?”. Tais comentários funcionam como uma máscara que silencia nossas vozes assim que falamos. Eles permitem que o sujeito branco posicione nossos discursos de volta nas margens, como conhecimento desviante, enquanto seus discursos se conservam no centro, como a norma. Quando elas/eles falam é científico, quando nós falamos é acientífico.

universal / específico;

objetivo / subjetivo;

neutro / pessoal;

racional / emocional;

imparcial / parcial;

elas/eles têm fatos / nós temos opiniões;

elas/eles têm conhecimento / nós temos experiências.

Essas não são simples categorizações semânticas; elas possuem uma dimensão de poder que mantém posições hierárquicas e preservam a supremacia branca. Não estamos lidando aqui com uma “coexistência pacífica de palavras”, como Jacques Derrida (1981, p. 41) enfatiza, mas sim com uma hierarquia violenta que determina quem pode falar. (KILOMBA, 2019, p. 51-52).[99]

 

A reivindicação de Kilomba é a de que seu discurso não deve valer apenas como meramente particular, mas que pode ser reconhecido em suas pretensões de legitimidade teórica que justamente transcendam o sentido exclusivamente subjetivo de suas experiências singulares. Ou seja, quando ela reivindica reconhecimento da perspectiva de pessoas e grupos identitários cujos discursos são epistemicamente invisibilizados, isso não se restringe às suas experiências particulares. Pelo contrário, ela quer dizer que suas posições devem também valer como discursos com pretensões de ganhos teóricos que transcendam a particularidade de suas narrativas. Não se trata apenas da experiência particular, porém, novamente, de uma questão de justiça: a exclusão ou invisibilização no modo de tratamento epistemicamente distinto desses discursos é injusta. Reivindicações desse tipo se referem, portanto, não a uma pretensão de particularidade (característica da pluralidade de formas de vida), mas a um universalismo concernente a demandas de justiça. Elas trazem, em suma, o potencial moral de luta por igualdade de reconhecimento epistêmico.

Como vemos, a reivindicação de Grada Kiloma é por ter seus discursos reconhecidos como atinentes a conteúdos que falam mais do que as próprias experiências, isto é, cujas pretensões de validade transcendam a mera particularidade, e que faz com que alguns discursos valham como particulares enquanto outros universais, alguns centrais e outros periféricos; trata-se do recorte de validação epistêmica que, em si, pode ser considerado como um problema de justiça. Entretanto, o alcance teórico dessas narrativas deve justamente estar em condições de ultrapassar sua relevância enquanto restritas a seu caráter particular: se não trouxerem a pretensão epistêmica de transcender a particularidade, relatos em primeira pessoa continuarão sendo apenas relatos.

Os potenciais normativos de relatos orientados por uma lógica identitária não são imunes a essas mesmas ambiguidades. No exemplo mencionado por Appiah, ele argumenta que o que leva Alexander Crummel a se ver autorizado a fazer a declaração de superioridade semântica da língua inglesa é sua condição de afro-americano. Ele não fala – assim acredita – da perspectiva de um branco colonizador, mas enquanto negro – um recorte identitário que, para Appiah, pode também levar a distorções em suas pretensões de legitimidade discursiva. Essa mesma opção por uma análise focada na vivência subjetiva – todavia, que pretende ser ao mesmo tempo compartilhada identitariamente – leva Fanon a, por vezes, reduzir a complexidade de uma cultura a uma construção quase que arquetípica do homem pós-colonial. Significa perguntar se Fanon, ao reivindicar uma posição identitária no seu discurso, pode falar em nome de todos os sujeitos negros, ou, ainda, se homens negros nascidos em Martinica podem falar por mulheres negras estudantes em Paris, o que é compartilhado e o que não é entre negros retintos do subúrbio de Paris de origem senegalesa recém-imigrados e negros de pele clara de origem diaspórica no Rio de Janeiro, e assim por diante. No limite: quem pode falar em nome da “negritude”?

A questão posta por Fanon, no início de seu livro – o que quer o homem negro – se demarca então por um tipo de constituição do desejo que não se encaixa no discurso “o que quer o homem?” (o que acaba por significar “o que quer o homem branco”), tampouco demarca necessariamente uma constituição válida para todos os homens negros. Ainda mais por se voltar para um objeto de reflexão fortemente contingente e particular, como é o caso do desejo, qualquer discurso com pretensão de universalidade pode se revelar paradoxal. Embora o discurso de Fanon em primeira pessoa, que fala a partir da experiência vivida do negro, traga o potencial de cissura e tensionamento, ele não pode ser dissociado de sua experiência, a qual pode possuir traços compartilhados com outras experiências vividas, mas que não consegue facilmente transcender o pêndulo entre experiência particular e uma categoria identitária que se pretende mais alargada. Em suma, qualquer discurso que se assuma falando em nome de experiências compartilhadas pode se revelar paradoxal.

Além disso, o potencial das experiências na constituição do sujeito não se refere apenas a um ponto de partida como que estático – de onde fala o sujeito – mas da possibilidade de refletir sobre esse lugar e de questioná-lo, ou seja, de se viver outras experiências. Isso faz com que experiências sejam um horizonte de aprendizado. Mais do que isso: como sujeitos, não nos situamos somente no limiar das experiências já vividas, mas também na abertura do que ainda podemos viver. Experiências que ainda podem ser vividas, outros desejos que ainda podem ser desejados.

            Como se vê, deslocar o pêndulo da crítica para a experiência não nos leva a romper tão facilmente com os problemas anteriores que a virada narrativa pretendia confrontar. A tensão entre particular e universal como o horizonte de constituição do sujeito, a partir de uma noção de afetos como propriedade, persiste de maneira paradoxal: o particular assume o lugar do universal, depositando na experiência do indivíduo o que antes poderia ser encontrado no horizonte do vocabulário social que a antecede.

Entretanto, a reflexão de Fanon traz uma importante contribuição para questionar a colonização do discurso supostamente baseado em uma racionalidade universal, cuja pretensão de universalidade se sustenta apenas enquanto exclui. Embora a contribuição epistêmica da experiência vivida não conceda automaticamente o critério moral que transcenda sua imanência fenomenológica, ela tem uma força de pressão e correção de noções falhas da justiça. Nesses casos, falar em primeira pessoa é relevante, porque demonstra que a suposta impessoalidade da razão universal é, na verdade, igualmente concreta e particular, com a diferença de que uma se impõe mais coercitivamente do que a outra.

Nem toda tradução de diferentes narrativas significa falar pelo outro como negação da diferença, nem toda representação deve assumir a forma de substituição. Representações podem significar, como propôs Spivak, em referência ao seu significado, no vocábulo alemão, não somente a substituição de um outro (Vertretung), mas uma exibição, apresentação (Darstellung) – um outro que fala por si mesmo, mitigando formas de violência epistêmica.[100] O diálogo entre o Xamã Yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert, cujas intensas conversas resultaram na obra monumental A Queda do céu, é exemplo desses esforços de tradução na qual a disposição teórica sai de um falar por para um deixar ouvir. Sem negar o risco de um confronto reducionista de perspectivas, inerente à própria linguagem, Albert passou quatro décadas convivendo com Davi Kopenawa, numa postura de mediador que tece um laço de confiança mútua.

Somente a partir desse compromisso se tornou possível ir ao encontro de novas ferramentas conceituais e de tradução de visões de mundo(s) (ou mundos de visões, para usar uma expressão de Viveiros de Castro), apoiada em ontologias radicalmente distintas. Um encontro que ecoa de algum modo o potencial de tradução assumido pela própria entidade xamânica.[101] “Gosto de explicar essas coisas para os brancos, para eles poderem saber.”[102] Os verbos que Kopenawa usa nessa declaração têm força própria: explicar e saber trazem uma inquietante e consciente pretensão de verdade, que arroga, aliás, uma superioridade epistêmica. Como Kopenawa tem consciência de para quem está falando, a frase é menos arrogante e mais irônica. O tom é desconcertante, provocador. E Kopenawa sabe disso.

Relatos como os de Kilomba, Fanon, Appiah e Kopenawa reivindicam, de maneiras distintas, um processo de luta por reconhecimento epistêmico, não só enquanto representatividade – ao se fazerem ver e ouvir –, mas ao dizerem que a maneira como se constitui a construção “universal” de categorias epistêmicas exclui outros relatos invisibilizados nesse processo. Sua pressão é sobretudo metacrítica, uma vez que essas reivindicações não estão propriamente disputando o conteúdo da crítica, porém, o reconhecimento de que suas pretensões de crítica sejam igualmente ouvidas. Quando essas reivindicações pressionam o cânone, elas não o fazem apenas com base em um estatuto de particularidade – uma experiência vivida em particular –, mas a partir de um processo de retificação de injustiça epistêmica. Ao dizer “eu não me reconheço no seu universal”, perspectivas particulares não se reduzem nem à sua particularidade, nem se impõem como novo universal, contudo, pressionam teorias em direção à correção e ampliação. Enfatiza Spivak:

Não se trata de uma descrição de “como as coisas realmente eram” ou de privilegiar a narrativa da história como imperialismo como a melhor versão da história. Trata-se, ao contrário, de oferecer um relato de como uma explicação e uma narrativa da realidade foram estabelecidas como normativas. (Spivak, 2010, p. 48).

 

3 Reconhecimento epistêmico e justificação moral: distinguindo injustiça de primeira e segunda ordem

Se, por um lado, a inclusão dessas perspectivas permite criar um vocabulário teórico já disposto de maneira imanente nas demandas por justiça, seus critérios de justificação dependem, contudo, de uma constante tensão entre perspectivas particulares e normas sociais. Nenhuma delas reúne critérios de justificação a priori, mas expressam uma função sobretudo negativa de crítica e correção, de questionar a suposta neutralidade normativa da “narrativa da realidade”. Na medida em que essas narrativas se dirigem a pretensões descritivas, a questão epistêmica consiste em trabalhos de tradução etnográficos ou culturais, isto é, dos limites e esforços em se debruçar sobre uma cultura diferente da do teórico ou teórica.[103] Sem perder de vista esse conjunto de críticas em torno dessa questão do etnocentrismo, o problema que particularmente me interessa é, contudo, o impacto que elas têm no âmbito de teorias normativas. A disputa por critérios para questões de justiça não estão, certamente, no mesmo plano de narrar perspectivas antropológicas, e, no caso de teorias normativas, tais critérios se referem, como tenho insistido, ao potencial que relatos particulares baseados na experiência oferecem para essas teorias.

Em vista do que vimos até aqui, gostaria de sugerir que a força normativa dos relatos singulares se liga sobretudo a duas questões distintas. A primeira delas concerne à injustiça epistêmica. Teorias hermeticamente enclausuradas em seu próprio discurso, ouvindo apenas sua própria voz, falham ao tomar seus pressupostos de universalidade como incorrigíveis. Em nome da racionalidade que dizem assumir, alguns discursos validam a si próprios como universais, enquanto outros foram considerados periféricos, por supostamente não assumirem o lugar de fala da razão. Falar pelo outro significa, às vezes de maneira sutil, em outras mais explicitamente violenta, assumir que a outra pessoa não pode falar por si e que não teria boas razões – ou, no extremo, “razão” – que merecessem ser ouvidas.

Nesses casos, estamos diante de relações de injustiça que não são derivadas de disputas por critérios racionais em torno da justiça, mas de quem é reconhecido como falando em nome da razão, cujas razões merecem ser ouvidas. Nesse deslocamento de perspectiva de o que se anuncia para quem anuncia, a crítica deixa de ser balizada por bons argumentos – e no seu potencial de universalização – e passa a ter maior ou menor relevância, dependendo de quem fala. O problema epistêmico não se refere, em suma, ao acesso privilegiado a um conjunto de experiências, senão ao fato de que tais demandas não tenham sido historicamente contempladas de maneira equitativamente justa.

Denomino esse problema de justiça de primeira ordem.[104] Nesses casos, não temos ainda a disputa pelos conteúdos que devem ou não encontrar boas razões para serem justificados, contudo, a possibilidade de assegurar que as pessoas afetadas possam ser reconhecidas em suas pretensões epistêmicas, em um discurso livre de coerção.[105] Além de trazer atenção para problemas de injustiça epistêmica, relatos têm o potencial de tornar visíveis falhas nas teorias normativas com pretensões de universalidade. Essa segunda dimensão normativa dos relatos, que podemos chamar de pretensões de legitimidade, consiste na sua pressão em face de supostos saberes universais, mostrando que são defectíveis, ou seja, que o vocabulário que utilizamos para delimitar noções como universalidade e racionalidade é falho. Experiências, relatos e narrativas possuem, por conseguinte, relevância crítica não somente porque contam outras histórias, senão também porque essas histórias nos oferecem novos conceitos e imagens, permitindo que o sujeito possa ampliar seu vocabulário, fazendo ver o que antes não tinha razão para ser visto.[106]

O fato de algumas narrativas terem sido chamadas de “grandes” decorre de apostas e pretensões assumidamente indefectíveis de universalização. Entretanto, outras narrativas também ofereciam historicamente o potencial de serem “grandes”. Tal grau de relevância dependia não apenas do seu potencial de universalização – se conseguem explicar melhor fenômenos estruturais, ideologias etc. (o que, do ponto de vista teórico, poder ser justificável) –, mas de outros critérios alheios ao seu potencial semântico, como nos casos anteriormente mencionados de injustiça de primeira ordem. Esses critérios que estão além de uma teoria, digamos, moralmente neutra, definem quem está dentro e quem está fora, quais narrativas contam como sendo universais e quais como periféricas. E não é por acaso que esse recorte universal vs. particular coincida com teorias que historicamente se situavam no centro e na periferia do espectro geopolítico. Além disso, narrativas passadas são irretrocedíveis enquanto estruturalmente constituem nosso atual horizonte de visões de mundo. Ainda que seja possível criticar retroativamente as razões que as fizeram ser credenciadas como canônicas, seu efeito performático constitui o vocabulário a partir do qual pensamos e agimos, no presente.

É devido a essa falsa simetria que teorias da justiça devem ser sensíveis a relatos que historicamente conseguiram encontrar pouco espaço na constituição dos modos canônicos de compreensão da justiça, abrindo-se constantemente à corrigibilidade e revisão de seus princípios. Enquanto o trabalho teórico se situa em uma constante tensão entre diferentes pretensões de legitimidade de visões de mundo(s) particulares, narrativas e experiências subjetivas continuam a confrontar pretensões de universalidade que passam a ser continuamente retificadas.[107] As críticas latentes servem, então, como termômetros e como formas de pressão entre o particular e o universal. A depender dos pressupostos – e, em última análise, dos sentidos de razão assumidos –, tais críticas indicam que pretensões de universalidade são falhas enquanto não conseguem incorporar outras narrativas. É o que assevera Judith Shklar (1998, p. 17), autora que se insere na tradição liberal, quando se refere ao que chama de “justiça normal”:

[...] justiça normal é um conjunto de regras e princípios básicos que governam a distribuição de benefícios e responsabilidades dentro de uma comunidade, e isso demanda o estabelecimento de instituições efetivas e imparciais para garantir a aplicação destas regras e princípios básicos. Esta abordagem geral e regida por regras é necessária para a justiça ser institucionalizada como leis e práticas organizacionais. Mas como resultado, a “justiça normal” frequentemente possui pontos cegos, lacunas e consequências não intencionais.[108]

 

Tendo em vista esses pontos cegos do sistema da justiça, Shklar propõe que a filosofia política deveria considerar seriamente a perspectiva das vítimas de injustiça. Ela defende que o “sentimento de injustiça” das vítimas, enquanto perspectiva do diretamente afetado, pode contribuir para corrigir teorias e instituições, permitindo que o filósofo ou a filósofa possa igualmente rever suas posições teóricas. Para mostrar as falhas e ruídos na percepção de injustiça, Shklar descreve como relações que historicamente eram descritas como meros infortúnios (misfortunes) passaram a ser percebidas e descritas como injustas. Muito dessa ampliação da percepção da injustiça se deveu, conclui Shklar, às contribuições trazidas pelas narrativas e relatos de sofrimento por parte das vítimas de injustiça.

Em resumo: injustiça de primeira ordem refere-se a práticas desiguais de reconhecimento epistêmico. Isso significa que narrativas e experiências podem exercer um papel de ampliação e correção no alcance epistêmico de teorias normativas, contudo, ainda não está claro como experiências vividas podem fornecer os critérios de crítica de injustiça. Embora reconheçamos o potencial normativo dos discursos, no que concerne à injustiça de primeira ordem, disso não decorre que esses discursos revelam em si o conteúdo da justiça. Em outras palavras, ainda que todos os discursos possam ser normativamente justificados, não significa que devam ser justificados.

É em relação a essas disputas sobre critérios de justificação moral dos discursos que encontramos o que entendo por justiça de segunda ordem, porque a maneira como nos referimos às nossas próprias experiências, especialmente em sua dimensão afetiva, é ambígua: não há tradução imediata entre o que sentimos e o que se sejam boas razões para justificarmos essas experiências. Em meio a um amplo leque de ambivalências em que se situam nossos afetos, sobretudo quando aludimos a experiências de sofrimento, nem sempre temos boas razões para encontrar nelas critérios de justificação.

Desde as contribuições teóricas da psicanálise, não apenas o controle e a reflexão do sujeito sobre o que sente e deseja foram postos sob suspeita, como também a contingência e a vulnerabilidade constitutivas do processo de subjetivação passaram a ser analisadas como uma forma de sofrimento que escapa ao escopo de teorias normativas da sociedade. Tal sentido de sofrimento pretende indicar que, independentemente dos arranjos conquistados socialmente, sempre haverá fissuras inerentes à constituição da subjetividade.[109] Diferentes desse tipo de sofrimento – que podemos entender como mais radicalmente contingente e idiossincrático –, as tarefas de teorias normativas devem ser dirigidas ao que chamamos de sofrimento social, isto é, a instituições e práticas sociais que poderiam oferecer um significado terapêutico, diante de causas sociais do sofrimento.

Gostaria de sugerir que sofrimentos podem ser sociais não somente no sentido mais estrito de como podem ser confrontados, no âmbito de uma teoria das instituições, mas também em dois sentidos mais imanentes à normatividade social: por um lado, em relação às normas que constituem os imperativos de realização dos sujeitos; e, por outro, nos limites dados pela gramática social, impedindo que as formas de vida disponíveis ao sujeito possam ser ampliadas. Nos dois casos, o horizonte de realização da liberdade – em outras palavras, de como a liberdade pode ser efetivada – precede o próprio sujeito. Diferentemente de sofrimentos resultantes de contingências da subjetivação, esse horizonte socialmente compartilhado pode ser objeto da crítica social. Nesse sentido, trazer narrativas ao âmbito da crítica não significa criticá-las de maneira isolada, como escolhas individuais, mas inseri-las em um horizonte semântico compartilhado.

Contudo, quando a crítica toma os afetos como propriedades individuais, ela perde de vista os padrões normativos que antecedem o horizonte no qual se inscreve a fenomenologia das experiências subjetivas. Com isso, ele deixa de oferecer um potencial crítico ao vocabulário que antecede o modo como experiências subjetivas são articuladas. Mais do que isso: se experiências e relatos são propriedades individuais intangíveis, eles deixam de ser um problema de justiça. A partir dessa perspectiva unilateral dos relatos, experiências singulares de sofrimento não mais podem ser enfrentadas naquilo que poderiam ser suas causas sociais. Se digo “[...] isto que eu sinto é propriedade exclusivamente minha”, esses sentimentos não mais teriam qualquer relevância do ponto de vista da crítica social. O resultado seria um conjunto de escafandros epistêmicos: mônadas que não mais poderiam se comunicar, bloqueando o conflito inerente ao próprio pluralismo democrático sobre o grau de relevância normativa dos afetos para questões de justiça.

Na perspectiva pública de acomodar a pluralidade de visões de mundo, percepções particulares sempre encontrarão divergências e eventualmente estarão em conflito com outras narrativas, as quais poderão ou não ser legítimas, do ponto de vista de seu valor moral. Na perspectiva de teorias procedimentais ou mais próximas ao construtivismo moral, cabe ao próprio discurso entre as pessoas diretamente afetadas, e não ao filósofo moral, encontrar a validade de suas demandas. Apesar de seu aparente deflacionamento normativo, por trás de pressupostos de racionalidade e universalidade podem esconder-se categorias pouco abrangentes, nas quais, por conta dos critérios que são tomados de antemão como racionalmente válidos, acabam por excluir a relevância epistêmica de outras narrativas. A teoria empobrece-se, reduzindo-se a um ventrículo que apenas repete a si própria. Para sair desse imbróglio autorreferencial, a teoria precisa continuamente abrir-se à revisão do que toma como critérios abrangentes. Se reduzimos a crítica ao potencial epistêmico dos relatos, enredamo-nos em dificuldades de legitimação, uma vez que tais perspectivas singulares integram um quadro plural de visões de mundo.

O conteúdo semântico das experiências refere-se, em suma, às próprias experiências; relatos permanecem apenas como relatos, se neles não é reconhecido o potencial epistêmico de transcender seu horizonte narrativo. Enquanto fala a partir da sua própria experiência particular, não concerne ao sujeito a autoridade epistêmica para, com base nela, discernir entre o horizonte de justificações de suas preferências a ponto de pô-las como régua moral alargada à sociedade. Nesses casos, a reinvindicação por justiça não deriva apenas de um conjunto privilegiado de experiências exclusivamente particulares, porém, é compartilhada por outros sujeitos. O rol de nossas experiências, por mais particulares que possam ser, inscrevem-se em um vocabulário que transcende a nossa singularidade. Abdicar disso nos faria recair no que podemos chamar de escafandro epistêmico: relatos e experiências particulares aos quais ninguém pode ter acesso. Teorias normativas, portanto, não podem se arrogar o direito de conceder aos relatos subjetivos, pelo fato de eles tenham autoridade sobre suas próprias visões de mundo, a autoridade epistêmica da crítica. Assim como pretensões de universalidade são permanentemente retificadas, pouco avançamos, se assumimos que teorias normativas concernem apenas ao particular.

Nem sempre temos à disposição o vocabulário necessário para justificarmos nossas escolhas. Quando não temos o espaço de razões, para usar a expressão de Willfried Sellars, não temos à disposição a distância semântica necessária para criticar o rol singular do que sentimos. Logo, podemos chamar o esforço de imparcialidade de perspectiva da teoria: ela consiste na contínua tradução em critérios normativos de um quadro plural e frequentemente conflituoso de narrativas singulares. Teorias normativas e o próprio sentido epistêmico atribuído à filosofia – naquilo que lhe resta, enquanto tentativa de crítica – não podem se reduzir a biografias. Se bastassem relatos, não precisaríamos mais do que literatura.

Contudo, nem a filosofia nem a literatura se restringem a relatos biográficos. A força imagética de novos vocabulários constitui-se como heterônoma enquanto tenciona relatar um outro de si. Se seguirmos de perto e mais atentamente relatos autobiográficos, veremos que raramente conseguem ser encapsulados em identidades rígidas; são como câmaras escuras da identidade, invertendo imagens.

Quando teorias se reduzem a experiências, elas assumem a premissa de autorreferencialidade dos relatos, os quais, encerrados em si próprios, acabam por obstruir a percepção de outras formas de injustiça. Inversamente, é o descentramento da perspectiva particular que permite ampliar sua capacidade de ouvir e incorporar continuamente outros relatos. O que se percebe é uma mudança de perspectiva de onde fala o filósofo ou a filósofa: ao invés de tomar como norte sua própria teoria, toma-se a posição de ouvinte, ou seja, alguém que não somente fala, como também escuta narrativas e percepções de injustiça. Significa assumir que a visão do teórico ou teórica é enraizada em um determinado contexto. Reconhecer essa situabilidade da teoria nos coloca numa posição de escuta: ser sensível a narrativas que antes não encontravam razão para serem ouvidas; ouvir como discurso o que antes era ouvido como ruído. Esse pêndulo da cooperação recíproca se mostra num esquema simples, como este a seguir:

 

Teoria                    Narrativas

 

Além desse pêndulo entre narrativa e teoria, o qual nos leva a buscar critérios da crítica além das narrativas, perspectivas ligadas à virada narrativa reduzem-se a um horizonte semântico de vocabulários que aparentemente são propriedades nossas. Trata-se, aqui, de perguntar quais afetos são possíveis, o que podemos (e devemos) sentir? É por isso que, mais do que continuar insistindo na tensão entre perspectiva em primeira pessoa e teoria, devemos nos perguntar como afetos são vividos e narrados, não apenas singularmente, mas sobretudo no horizonte de uma gramática socialmente partilhada.

What is the role of subjective experiences in social criticism? Distinguishing between first and second order justice

Abstract: Over the last decades, different approaches linked to decolonial tradition have shifted the pendulum of critique from claims of universality towards individual accounts and experiences. However, in what we can call “narrative turn”, the moral justifications for first-person perspectives are not always evident. In this paper, I explore the boundaries of epistemic relevance regarding the role that subjective accounts and experiences play in the critique of injustice. For that, I start by inverting the question of objectivity in the critique considering the particularity of different experiences. The issue, in this case, is the position from where philosophers speak in their attempts to describe experiences of suffering. With regards to first-person standpoint, the question that is at stake is whether philosophers are capable of describing others’ experiences. In these terms, how can we share experiences of injustice after all? Next, I argue that there ought to be, in the debate, a distinction between two dimensions of justice. According to usual distinctions of “first- and second-order” approaches, I insist that theoretical claims related to the narrative turn refer to demands of first-order justice: it is about moral recognition of individuals’ epistemic claims, opening to the possibility to confront defective notions of universality and blind spots in theories of justice. However, these claims do not have justification criteria themselves, requiring, thus, normative dependencies which are external to experiences – these are situated in second-order justice. I argue, then, that this model has the advantage of incorporating the insights of decolonial theories without neglecting the potential for the critique of injustice.

 

Keywords: Narratives. Experience. Critique. Decoloniality.

 

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Recebido: 01/09/2022

Aceito: 16/01/2023


 

Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo

 

Giovanni Rolla[110]

 

Resumo: No artigo “Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão” (neste volume), Pereira e colaboradores levantam uma bateria de críticas ao enativismo, que é uma família de abordagens nas ciências cognitivas que confere centralidade ao corpo e à ação autônoma dos organismos nas explicações dos seus processos cognitivos. As investidas dos autores miram alguns conceitos centrais da proposta enativista, como conhecimento prático, corporificação (ou corporeidade) e regularidades sensório-motoras. Eu argumento que as críticas de Pereira et al. não procedem por razões diversas: algumas assumem o que querem provar, outras conferem peso excessivo a intuições sobre cenários ficcionais e, por fim, outras atacam espantalhos que não representam as posições enativistas. Nenhum dos pontos que levanto em defesa o enativismo são novos, mas considero importantes explicitá-los para tornar o debate sobre filosofia das ciências cognitivas mais claro.

Palavras-chave: Enativismo. Cognitivismo. Representações Mentais. Falácias.

 

 

Introdução

O artigo “Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão”, escrito por Roberto Horácio Sá Pereira, Sérgio Farias de Souza Filho e Victor Machado Barcellos, traz uma bateria de críticas à concepção enativa de cognição apresentada originalmente por Varela et al. (1991/2016). Algumas das críticas são totalmente novas, outras ecoam problemas já enfrentados por enativistas e por outros teóricos da cognição corporificada. De qualquer modo, são pontos que merecem esclarecimento, por parte dos próprios enativistas — os quais, por estarem preocupados em avançar sua tradição de pesquisa, às vezes perdem de vista questões mais básicas. O artigo de Pereira et al. é, portanto, absolutamente meritório em levantar essas questões, e eu considero essa uma excelente ocasião para fazer os devidos esclarecimentos.

No entanto, as críticas apresentadas no artigo alvo são muito menos contundentes do que a retórica dos autores faz parecer. Com efeito, eu mostrarei aqui que todas elas são absoluta e inequivocamente improcedentes. Entre os problemas que eu identifico nos argumentos do artigo de Pereira et al., estão sobretudo petições de princípio, confusões metodológicas e argumentos comprometedoramente entimemáticos. O meu ponto fundamental será reiterar que não é garantida a suposição, da qual se valem os autores, de que as conexões básicas entre mente mundo forjadas biologicamente devam ser caracterizadas em termos semânticos, isto é, envolvendo conteúdo representacional—o assim chamado Problema Duro do Conteúdo.[111] Para mostrar as falhas do artigo-alvo, eu comentarei cada seção separadamente. Desse modo, este texto espelhará em estrutura o texto dos autores (embora eu acrescente algumas subseções). Meu objetivo principal aqui é apenas desfazer confusões e desmontar os espantalhos ardilosamente levantados pelos autores. Assim, eu defenderei o enativismo—mas farei isso de um modo minimamente propositivo, pois eu não apresentarei aqui nenhuma tese positiva que já não tenha sido exposta e mais bem fundamentada em outros lugares.

 

1 Enativismo: uma breve desintrodução

 

1.1 Que enativismo?

Na seção introdutória do artigo-alvo, a caracterização do enativismo é feita a partir do trabalho recente de Gallagher e Bower (2014), o qual divide o enativismo em três fases: o enativismo precoce de Varela et al. (1991/2016), o suposto enativismo sobre consciência perceptual de Alva Noë (2004) e o enativismo radical de Hutto e Myin (2013). Os autores estão corretos na compreensão de que todos os enativistas sustentam que “[...] a percepção seria constituída por forma de agir corporificado [ou incorporado] de um organismo” e que isto “[...] dispensaria por completo a noção de representação”, o que, por sua vez, consiste na rejeição da tese segundo a qual “[...] percepção é uma mera recepção passiva do mundo”. Ademais, é consenso entre enativistas que fenômenos cognitivos, como a consciência (mas não apenas) não residem no cérebro, pois envolvem o acoplamento entre sujeito e ambiente. Assim, explicações desses fenômenos exigem considerar a “[...] interação do organismo com os aspectos ambientais.” (PEREIRA et al., p. 519). É a partir desse consenso que os autores apresentam suas malfadadas críticas.

Antes de respondê-las, notemos que um ponto que os autores deveriam destacar—e que Hutto e Myin (2013), Chemero (2009) e Di Paolo et al. (2017) deixam abundantemente claro—é que teóricos da cognição radicalmente corporificada modelam a cognição a partir de técnicas que dispensam conteúdos representacionais. Nesse contexto, ‘conteúdos representacionais’ ou simplesmente ‘representações mentais’ são entendidas como estados internos com condições de acurácia, portadores de informação semântica sobre fontes distais de estímulo (voltaremos a isso na subseção 1.3). Uma ferramenta usada para mostrar a dispensabilidade de conteúdos representacionais é a teoria de sistemas dinâmicos. De acordo com essa teoria, a descrição diacrônica do comportamento de um agente cognitivo através dos seus estados possíveis é complementada pela descrição das variações do ambiente que constituem atratores e repelentes para as variações de estados do agente. Por isso, a situação do agente, ou contexto ambiental, é indispensável para o entendimento de como ação e percepção dão origem a estados cognitivos não representacionais. Além disso, modelos dessa natureza não atribuem um processador central de informação que seria responsável por interpretar estímulos e oferecer respostas motoras de acordo com regras simbólicas (GELDER, 1995). Portanto, não é necessário postular conteúdo representacional para explicar toda cognição—ou seja, a representação mental não é a marca da cognição. É possível, ainda assim, que haja cognição com conteúdo? Sim. Mas toda cognição seria carregada de conteúdo—isto é, seria a cognição necessariamente representacional? Veementemente não.[112] Um exemplo de cognição sem conteúdo representacional é o nosso acesso ao ambiente imediato, a chamada cognição básica. De acordo com o enativismo, estados cognitivos básicos (como ação e percepção) emergem de exercícios de habilidades sensório-motoras, isto é, habilidades que correlacionam padrões de movimento com padrões de sensação. Enquanto movimento e sensação não possuem intencionalidade, ação e percepção possuem, de modo que as características que emergem na dinâmica sensório-motora não podem ser reduzidas às suas bases emergenciais (sensação e movimento separadamente).

 

1.2 Que construtivismo?

Ainda na seção de apresentação do enativismo, os autores comentam como essa teoria parece ‘abraçar um antirrealismo ingênuo [pois] sujeito e mundo se constituiriam pelas ações incorporadas do primeiro (sujeito) sobre o segundo (mundo)’ (PEREIRA et al.). Ou seja, ao rejeitar que a cognição envolva o acesso a um mundo pré-dado (‘pregiven’, na expressão de Varela et al. (2016), ou simplesmente dado, o enativismo estaria apenas repetindo o construtitivismo antirrealista presente na fenomenologia de Merleau-Ponty. Isso é falso.

Esse erro do artigo alvo é parcialmente justificado, pois o trabalho inovador de Varela e colaboradores em The Embodied Mind por vezes é demasiado programático. Leitores de primeira viagem podem não perceber o vínculo entre alguns posicionamentos que tipicamente são considerados completamente independentes na filosofia analítica tradicional. Um exemplo é a relação entre os frameworks cognitivista e adaptacionista nas ciências cognitivas e biologia evolutiva, respectivamente. Com efeito, a ideia enativista de codeterminação entre organismo e ambiente só é adequadamente explorada em conjunção com a discussão sobre biologia evolutiva que toma por base os trabalhos de Susan Oyama (2000) e de Stephen Jay Gould e Richard Lewontin (1979) contra a ortodoxia daquela disciplina. Recentemente, essa discussão foi extensivamente mais bem elaborada por Evan Thompson (2007), que aprofunda a relação entre a visão enativista de evolução e a teoria dos sistemas desenvolvimentais. A ausência desse debate no artigo de Pereira et al., refletida no modo como os autores descartam o suposto construtivismo enativista, é sintomática de um atalho que, ao invés de levar à terra prometida da “refutação cabal do enativismo”, conduz à total inocuidade dessa crítica pelos autores.

Para desfazer esse engano temerário, consideremos o seguinte. Caso a proposta enativista fosse apenas de avançar uma codeterminação mental (em que o conceito de mente é interpretado internalisticamente) entre agente e mundo, então os enativistas estariam comprometidos com a tese excêntrica de que um sujeito constrói um mundo internamente ao percebê-lo. Ou seja, se aquele fosse ocaso, o enativismo seria de fato uma variação de construtivismo antirrealista. Isso, no entanto, violaria a própria proposta de Varela et al. (1991/2016, capítulo 8) de evitar tanto o realismo quanto o antirrealismo. Ambas as visões exerciam certo repuxo na primeira geração das ciências cognitivas. O realismo estaria presente na ideia de que a cognição é o acesso parcial a um mundo externamente dado, e o antirrealismo estaria presente na ideia de que a cognição consiste na projeção de operações cognitivas internamente dadas. Ambas ideias, de viés realista e antirrealista, eram (e ainda são) persuasivas a muitos cientistas cognitivos do lado de fora da tradição enativa.

Para entender como o enativismo de Varela et al. se distancia tanto do realismo quanto do antirrealismo, é imprescindível interpretar o argumento contra o acesso a um mundo dado em conjunção com as observações dos autores de The Embodied Mind a respeito de biologia evolutiva. Como Nara Figueiredo e eu demonstramos recentemente (ROLLA; FIGUEIREDO, 2021), a ideia de que organismos realizam seu mundo (no original, ‘bring forth their world’) deve ser lida literalmente. Em resumo, as relações metabólicas entre organismo e ambiente causam mudanças em ambos os sistemas e, se as mudanças ambientais são estáveis o suficiente, elas se configuram como heranças ecológicas (não-genéticas) para as gerações seguintes. Nesse caso, a atividade organísmica contínua gera novas pressões ambientais e dirige (indireta e não-teleologicamente) o curso evolutivo dos organismos na medida em que estes realizam seus mundos.

O ponto acima é melhor entendido se atentarmos que, em The Embodied Mind (capítulo 9), os autores argumentam extensivamente contra a teoria então predominante na biologia evolutiva, o adaptacionismo. Segundo essa teoria, o único fator capaz de direcionar a evolução é a adaptação do organismo a pressões externas. (Notemos que essa concepção é análoga ao mantra cognitivista segundo o qual a cognição consiste no ajuste das representações de um organismo a um mundo externamente dado.) Juntos, adaptacionismo e genética mendeliana configuram as bases da assim chamada síntese evolucionária moderna. Embora a síntese evolucionária moderna tenha se tornado predominante na biologia evolutiva, a partir de 1930, atualmente, o fértil programa de pesquisa conhecido como síntese evolucionária estendida (REIS; ARAÚJO, 2020; LALAND et al., 2015) é uma alternativa de maior relevância no panorama teórico.

Como Figueiredo e eu demostramos (2021), a concepção enativista de evolução é perfeitamente contemplada por uma das vertentes mais produtivas da síntese evolucionária estendida, a teoria da construção de nicho (LALAND; MATTHEWS; FELDMAN, 2016; LALAND; ODLING-SMEE; FELDMAN, 2000; LEWONTIN, 1983, 2000; ODLING-SMEE; LALAND; FELDMAN, 2003; STERELNY, 2011). Nessa perspectiva, há uma codeterminação em escala filogenética entre organismo e ambiente. Ou seja, não há mundo externamente dado (tampouco há capacidades cognitivas internamente dadas), pois organismos literalmente constroem seus mundos através de gerações. Basta olhar para a janela para notar que todo o nosso ambiente é construído pela ação de outros seres. Até mesmo a atmosfera terrestre só possui as propriedades que possui por causa de uma longa história de interações biológicas na Terra que antecede o surgimento dos H. sapiens em bilhões de anos. É sem dúvidas um curioso devaneio filosófico pensar o contrário—que o mundo existe lá fora, isto é, dado, antes de qualquer coisa.

 

1.3 Representações mentais: o planeta Vulcano das ciências cognitivas[113]

Em seguida, os autores discutem a crítica enativista ao conceito de representação mental. Eles apontam que Varela et al. (1991/2016) cometem uma ambiguidade ao interpretar a representação ora como uma imagem mental (análogo ao sense data), ora como um conteúdo que transmite informação. Se essa ambiguidade existe, então o apelo ao representacionalismo (como um dos pilares do cognitivismo junto ao computacionalismo) seria vindicado diante das críticas enativistas.

Enquanto pode muito bem ser o caso que o enativismo precoce de Varela e colaboradores (1991/2016) vale-se de uma ambiguidade sobre o conceito de representação para tecer suas críticas, há uma objeção muito mais contundente no mercado que é devida ao enativismo radical de Dan Hutto e Erik Myin (HUTTO; MYIN, 2013, capítulo 4). Embora Pereira e colegas citem diversas vezes o trabalho de Hutto e Myin, os autores do artigo alvo convenientemente esquecem de endereçar a crítica do enativismo radical contra a possibilidade de naturalização de representações mentais. É importante notar que, de acordo com essa crítica, representações são entendidas exatamente ao modo do cognitivismo corrente—sem, portanto, aproximar indevidamente as representações mentais dos sense data. O fato de que, no artigo alvo, não encontramos nenhuma resposta ao problema levantado por Hutto e Myin (porque provavelmente não é possível respondê-lo, como mostro nos parágrafos seguintes), evidencia que qualquer explicação representacionalista oferecida por Pereira e colaboradores saiu suspeitamente barata demais.

O argumento de Hutto e Myin, conhecido como Problema Duro do Conteúdo, é simples: de acordo com cognitivistas, representações mentais são portadoras de informação semanticamente carregada, isto é, informação sobre as fontes distais de estímulos sensoriais. Porém, o único tipo de informação encontrada na natureza é a covariação. Estados naturais covariam confiável ou nomicamente. Pensemos na relação de covariação entre a idade da árvore e o número de anéis no seu tronco, ou entre a presença de fumaça e a presença de fogo etc. Não podemos inferir que um dos termos em uma relação de covariação representa o outro. Números de anéis no tronco da árvore não representam a sua idade—a representação aqui é imputada por nós uma vez que estamos situados em um contexto sociocultural amplo. Por si só, estados naturais são piamente quietistas e não dizem nada sobre ninguém. Ou seja, covariação não implica conteúdo semântico. Agora: por que seriam os estados cerebrais diferentes dos demais estados naturais? Por que um padrão de atividade neuronal seria a representação (ou o veículo de uma representação) sobre uma fonte distal de estímulo, e não simplesmente a covariação confiável (dada uma longa história evolutiva) entre performance cognitiva e objeto de cognição?  Ou o cognitivista aceita que existe cognição sem conteúdo (acarretando o enativismo) ou ele nos passa um cheque sem fundo com a promessa de que um dia a física do futuro vai descobrir conteúdos semânticos em estados naturais. A segunda via é naturalisticamente temerosa. Donde se segue que o cognitivista deve dar o braço a torcer e abdicar da representação como a marca da cognição.

Notemos que os enativistas radicais não estão sozinhos nessa objeção: um ponto semelhante foi feito, de dentro do campo cognitivista, por William Ramsey (2007), segundo o qual o que se chama hoje de ‘representação’ nas ciências cognitivas não satisfaz a tarefa de descrição do trabalho, isto é, não desempenha a função explanatória desejada. Um exemplo de como o conceito de representação mental não executa uma função explanatoriamente imprescindível pode ser encontrado no trabalho do aclamado neurocientista Stanislas Dehaene sobre leitura. Ao contrapor o modelo de processamento paralelo massivo do cérebro ao modelo clássico de processamento linear de informação (duas ideias de fundamento cognitivista), ele escreve que:

Hoje, a visão “arbustosa” [bushy] do cérebro, com várias funções operando em paralelo, substituiu o antigo modelo serial. Pois nós hoje sabemos, depois de termos tentado programar o reconhecimento de formas visuais em computadores, que a visão é complexa e que não pode ser reduzida a uma simples cadeia de “imagens” cerebrais. Várias operações intrincadas são necessárias para o reconhecimento de um único caractere. A análise visual é apenas o primeiro passo da leitura. Subsequentemente, uma variedade de representações distintas deve ser posta em contato: as raízes das palavras, os seus significados, os seus padrões de som, a articulação dos seus esquemas motores. Cada uma dessas operações tipicamente demanda a ativação de simultânea de várias áreas corticais separadas em que as conexões não são organizadas em cadeias lineares. (DEHAENE, 2009, p. 64, grifo nosso).

 

Agora: o que quer dizer “representações”, na passagem acima? A frase seguinte dá a entender que seriam operações do cérebro. Mas, se esse for o caso, não passam de sinais em covariação, isto é, padrões de atividade neuronal ocorrendo de modo ordenado. Isso é insuficiente para caracterizar um estado como representacional. Tendo isso em mente, podemos responder aos autores, quando eles escrevem que “[...] não entendemos como poderíamos prescindir do conceito de conteúdo representacional uma vez que temos que assumir como um fato a possibilidade de erros anti-predicativos se quisermos entender o fracasso das nossas ações.” (PEREIRA et al., p. 521).

Se a colocação em questão não for interpretada como uma falácia de apelo à ignorância, o modo óbvio de respondê-la é que a falta de uma covariação entre estados internos, ações do organismo e disposições ambientais (ou “erro anti-predicativo”, para usar o vocabulário dos autores) não é suficiente para estabelecer conteúdo representacional—assim como a existência de uma covariação também não o é. O ponto é que a possibilidade de erro, que é um desencontro entre sistema cognitivo e mundo, pode ser explicado pela falta de covariação, não necessitando a introdução de capacidades representacionais (para um aprofundamento nessa questão, veja KIRCHHOFF; ROBERTSON, 2018)[114].

Importantemente, nada disso quer dizer que o enativista deveria se desfazer de todas as magníficas descobertas das ciências cognitivas e da neurociência. Isso seria jogar o bebê proverbial fora junto com a água do banho. O que o enativismo sucede em fazer é rejeitar que essas descobertas impliquem conteúdo representacional, apesar do vocabulário representacionalista herdado da primeira geração das ciências cognitivas. Ou seja, mesmo que as nossas técnicas de modelagem envolvam uma linguagem computacional, não podemos projetar a linguagem dessas técnicas para o objeto-alvo dos nossos modelos. Posto de outro modo, o cérebro não é um cientista homuncular fazendo cálculos e previsões sobre o mundo (BRUINEBERG; KIVERSTEIN; RIETVELD, 2018), mas uma parte de um sistema que opera, quando tudo vai bem, em sintonia com o resto do corpo e com o ambiente distal. Em relação a isso, a crítica enativista mostra a inviabilidade do projeto de naturalizar representações mentais (a não ser, é claro, que aquela física do futuro se concretize, de modo a mostrar-nos como um estado natural possa vir a ter propriedades semânticas).

Esse último ponto pode ser pensado nos termos da seguinte analogia: representações mentais são como o planeta hipotético Vulcano. Como se sabe, a observação de perturbações na órbita de Urano por Urbain Le Verrier levou-o a postular a presença do planeta Netuno, cuja existência só foi observada posteriormente. Mais tarde, a constatação da precessão do periélio de Mercúrio promoveu o mesmo tipo de reação nos astrônomos. Sob a suposição de que as perturbações observadas só poderiam ser causadas por um planeta até então não observado e situado entre Mercúrio e o Sol, deu-se início a uma caçada por um planeta hipotético, Vulcano. Essa caçada acabou quando Einstein mostrou que as distorções observadas deviam-se a um corpo massivo (o Sol) cuja magnitude seria capaz de curvar ondas eletromagnéticas viajando no espaço. De modo semelhante, a primeira geração das ciências cognitivas modelou a cognição de cima para baixo, começando com performances típicas da cognição superior, como a linguagem e o raciocínio. Esse ponto de partida parece autorizar a suposição de que toda cognição é marcada por representações, o que ensejou a busca pela representação mental dentro do paradigma naturalista. Mas assim como a busca por Vulcano acabou com a descoberta de Einstein, a busca pela naturalização das representações mentais deveria ter acabado quando foi demonstrado que não é preciso postular representações para explicar toda a qualquer cognição.[115]

 

2 Se minha vó tivesse rodas, ela seria uma bicicleta

 

2.1 Por que “não cognitivo”?

Ao fim da primeira seção, os autores fazem um anúncio da crítica a ser desenvolvida na seção seguinte. O alvo é a epistemologia enativista, que é centrada na noção de know-how (MYIN; VAN DEN HERIK, 2020; ROLLA; HUFFERMANN, 2021)[116]. Segundo o enativismo, o comportamento de um agente na exploração ativa do ambiente em que está inserido pode ser entendido como um saber fazer ou um saber como. Esse tipo de conhecimento é inteiramente prático e envolve apenas o exercício de habilidades sensório-motoras. Portanto, não envolve representar como o ambiente está disposto, tampouco ter crenças verdadeiras justificadas sobre o ambiente. Pereira et al. tratam esse tipo de conhecimento como ‘destituído de sentido cognitivo’ (minha ênfase). Mas isto é interessante: qual o sentido de ‘cognitivo’ está em jogo aqui? Neste ponto os autores cometem uma flagrante petição de princípio. Vejamos.

Um ponto fundamental que não é explicitado em nenhum momento no artigo alvo é que o conceito de cognição para enativistas é diferente do conceito de cognição para cognitivistas, dado que o enativismo rejeita que representações sejam a marca do mental.  Enquanto cognitivistas defendem que a cognição é o processamento de informações pela articulação de representações, enativistas entendem que a cognição é uma ação exploratória autônoma do organismo acerca do seu ambiente. Essa ideia pode ser interpretada através do conceito de meta-metabolismo (MORENO; UMEREZ; IBAÑEZ, 1997; WERNER, 2020). A ideia é que organismos com sistema nervoso suficientemente desenvolvidos são capazes de ajustar, adaptar e facilitar seus processos metabólicos pela exploração ativa do ambiente, e por isso a cognição é evolutivamente adaptativa. Desse modo, percepção e ação são performances inegavelmente cognitivas, pois sem elas o organismo ficaria a mercê de recursos ambientais (como as criaturas da biota Ediacarana antes da explosão Cambriana).

Então por que o know-how (saber fazer) seria de “desprovido de sentido cognitivo”? Não seria cognitivo, é claro, se estivéssemos pensando a cognição como exclusivamente o que hoje se chama de ‘cognição superior’: pensar, raciocinar, descrever etc., pois todas essas performances envolvem a manipulação de símbolos. Mas é perfeitamente cabível tratar a interação de um agente com o mundo em termos de cognição básica, isto é, a exploração ativa do ambiente imediato sem o intermédio de conteúdo representacional. Tratar o conhecimento prático (sem representações e proposições) como nãocognitivo é pressupor resolvida, a favor do cognitivismo, a questão sobre o que é ou não cognição. Mas isso é exatamente que está em disputa, e por isso os autores cometem uma petição de princípio.

 

2.2 Quanto vale uma intuição?

Mas isso não vem ao caso, até porque Pereira e colaboradores provavelmente sustentariam que, por ‘cognitivo’, devemos entender ‘proposicional’—e que talvez percepção e ação sejam cognitivas apenas em um sentido menos interessante do termo. Ainda assim, há problemas notáveis nessa segunda bateria de argumentos. Eu identifico, em especial, um grave erro metodológico: os autores insistem que as nossas ‘intuições pré-teóricas’ (PEREIRA et al.) sobre casos ficcionais ou parcialmente ficcionais nos mostrariam que as teses enativistas são, nas palavras dos autores, ‘nonsense’ (PEREIRA et al.

Antes de apresentar esses argumentos e respondê-los detalhadamente, eu gostaria de discutir algo que os autores colocam para debaixo do tapete: qual o valor das nossas “intuições pré-teóricas” sobre casos contrafactuais quando elas são aplicadas para o mundo real? Nossas intuições podem nos dizer uma coisa ou outra sobre conceitos que habitam o reino cristalino do a priori. Mas elas são de pouco valor na decisão acerca da plausibilidade de teses empíricas, como as que estão em jogo. Como uma analogia, consideremos o que dizem nossas intuições sobre a constituição de objetos físicos, como a mesa em que me apoio enquanto escrevo ou a tela em que você está lendo este paper, ou até você mesmo, em toda sua beleza. Todas essas coisas parecem majoritariamente objetos sólidos e impenetráveis, não é? Aliás, seria sem dúvidas “intuitivo” do ponto de vista “pré-teórico” dizer que esses objetos são compostos mais de matéria do que de qualquer outra coisa. Mas isso está errado, pois todos os objetos são compostos majoritariamente de espaços vazios entre átomos—malgrado nossas intuições do contrário.

Meu ponto aqui é que, do ponto de vista empírico, o que nós diríamos se as coisas fossem radicalmente diferentes do que são não é evidência a favor (nem contra) nada. Os autores ignoram isso ao seguirem uma tradição argumentativa distintiva de maior parte da epistemologia pós-Gettier. Tipicamente, nessa tradição, um filósofo A propõe uma teoria T para cobrir alguns casos de atribuição de conhecimento (ou outros estados epistêmicos), ao que um filósofo B rebate que T não dá a resposta intuitivamente correta sobre outros casos contrafactuais remotos, ao que A responde com T*, ao que B responde com uma objeção de que T* não dá a resposta intuitivamente correta sobre ainda outros casos contrafactuais remotos, e assim por diante. O problema é que nossas intuições—aqui entendidas como disposições para reconhecer a presença de certos conceitos—têm sua confiabilidade ancorada às condições normais em que conceitos ocorrem (para um argumento mais cuidadoso sobre esses pontos, ver ROLLA, 2021b). Se sairmos do reino das condições normais e adentramos as especulações características da filosofia de poltrona, em que os únicos limites são as possibilidades lógicas e a nossa criatividade, nossas intuições apontam para qualquer lado como um ponteiro maluco. Por isso, eu chamo argumentos que se baseiam em especulações selvagens de argumentos do tipo “se minha vó tivesse rodas, ela seria uma bicicleta”. Como veremos, esse é precisamente o tipo de argumento que os autores mobilizam contra o enativismo.

 

2.3. Sobre pianistas e conhecimentos

Parte importante da primeira seção do artigo consiste em recontar a história trágica do pianista João Carlos Martins.[117] Resumidamente, Martins é um renomado pianista brasileiro que perdeu a capacidade de tocar piano por conta de lesões (algumas relacionadas à prática do piano). O ponto com essa narrativa é que, mesmo com todas as dificuldades e todos os acidentes que impedem a João Carlos o comportamento motor mais fino necessário para de fato tocar piano, o músico ainda saberia como tocar piano. Essa conclusão seria reforçada pelo fato de que, se um dia um tratamento milagroso lhe restituísse a capacidade motora, ele seria capaz de fazer o que há muito tempo já sabia como fazer. De fato, embora os autores não contem a parte mais recente da história, a capacidade de João Carlos para tocar piano foi ao menos parcialmente restituída em 2020 pelo uso de luvas biônicas feitas sob medida pelo designer Ubiratã Bizarro Costa. Isso supostamente mostraria que o pianista voltou a ser capaz de fazer algo que ele sempre soube como fazer.

Em resposta, devemos notar que, em condições normais, a atribuição de conhecimento prático depende da execução bem-sucedida de uma tarefa de modo regular e constante. É nesse sentido que enativistas enfatizam o conhecimento prático, por exemplo, na navegação bem-sucedida do ambiente sem representar a disposição desse ambiente e os seus objetos. Nesse tipo de cenário, só faz sentido dizer que o agente possui conhecimento prático se a tarefa é realizada com sucesso e estabilidade (ROLLA; HUFFERMANN, 2021). A ideia de fundo aqui é que saber como fazer algo (possuir um determinado conhecimento prático) mobiliza uma rede de capacidades que foram recorrentemente treinadas para serem executadas em condições específicas. Isso significa que uma pessoa sabe como fazer algo porque é capaz de fazer algo em condições ambientais favoráveis. Mesmo que eventuais erros sejam possíveis, ela ainda saberia como realizar a performance se normalmente o exercício das capacidades pertinentes obtém sucesso.[118] Posto de outro modo, em condições normais, se o sujeito não é capaz de (não possui as habilidades relevantes para) executar uma tarefa, não faz sentido dizer que ele sabe como fazer a tarefa em questão. Eu não sei como cozinhar um boeuf bourguignon, como escalar uma montanha, como desmontar o motor de um fusca nem como manejar um submarino. Se você me pedir para fazer qualquer uma dessas coisas, eu não serei capaz de fazê-las—mesmo que em um sentido filosoficamente muito desinteressante eu poderia fazê-las (com muito incentivo e esforço). Mas o fato é que eu não tenho o saber prático relevante porque não tenho as habilidades relevantes suficientemente bem treinadas.  Semelhantemente, eu sei como andar de bicicleta, e em condições ambientais favoráveis continuo sabendo. Se o pneu da minha bicicleta furar ou se ela for furtada, eu não perco o meu conhecimento prático—pois esses cenários são desfavoráveis para o exercício das habilidades em questão. Só faz sentido dizer que eu não sei como andar de bicicleta se, em condições ambientais favoráveis (e sem outras interferências, como lesões ou embriaguez), eu não consiga me manter equilibrado e me deslocar de um ponto a outro.[119]

Voltando ao caso do pianista. Pensar que João Carlos Martins (quando ainda era incapaz de movimentar ambas as mãos) sabia tocar mesmo que não pudesse tocar piano é uma visão por demasiado ingênua sobre como funciona uma performance. Qualquer um que se preste para estudar um instrumento musical sabe que, para saber tocar determinada peça, o treino deve ser diário, exaustivo e repetitivo. Esta pode ser considerada uma evidência anedótica, mas eu considero o caso da minha companheira bastante ilustrativo: ela é uma pianista amadora talentosa e já tocou peças de alta dificuldade, como Liebestraum n. 3 de Franz Liszt. Sem praticar essa obra há muitos anos (sua preferência atualmente é pelos chorinhos de Ernesto Nazareth), ela não hesita em dizer que não sabe como tocar Liebestraum n. 3, embora reconheça que, com um pouco de atenção à partitura e bastante prática, reaprenda a tocar mais rapidamente do que da primeira vez. A explicação enativista é que as muitas horas de prática modificaram suas capacidades motoras (este é o aprendizado corporificado adquirido pela repetição) e, embora essas capacidades tenham sido majoritariamente perdidas, a plasticidade humana garante a sua re-aquisição com treino e esforço.

De um modo geral, o ponto aqui é: sem a execução de fato da peça em questão, o sujeito não sabe como tocá-la, mesmo que tenha decorado cada compasso da partitura. Ou seja, João Carlos Martins talvez ainda soubesse que se toca uma composição pressionando uma sequência de notas específica em determinado tempo, com um dedilhado específico, mas (enquanto estava lesionado ou impedido) não sabia como pressionar essa sequência de notas, pelo simples fato de que não podia fazê-lo. Seguramente ele sabia que se toca piano assim-e-assado, mas não sabia mais como tocar. Confundir esses dois tipos de atribuição de conhecimento representa supor, circularmente, que o conhecimento prático é uma variedade de conhecimento proposicional. É justamente isso que está em disputa, e é isso que os autores ainda não provaram.

Consideremos agora a reabilitação real de Martins com o auxílio das luvas extensoras biônicas. As especulações sobre se ele sempre soube como tocar piano ou se teve de readquirir seu conhecimento prático poderiam ganhar mais corpo e relevância empírica nesse cenário. Contudo, sem estudos controlados, não podemos dizer se o pianista agora tem a mesma proficiência de outrora e, por conseguinte, se possui o mesmo saber prático. Será o caso que ele tem mais facilidade para tocar uma peça de Bach hoje (com as luvas) do que tinha antes de todas as enfermidades? Ele poderia, por exemplo, tocar la Campanella de Franz Liszt–uma peça notória pela sua dificuldade—desde o primeiro segundo em que colocou as luvas, ou teve de reaprender como se toca essa peça? Ou quem sabe João Carlos saberia apenas como tocar composições mais simples e de menor abertura entre os dedos? Parece-me inteiramente aberta a questão sobre se o autor sempre soube como tocar ou se teve de adquirir um novo saber prático adaptado às novas circunstâncias.

Mas o que diríamos se imaginarmos um cenário em que Martins recupera milagrosamente a capacidade motora fina das mãos por completo? Talvez aí então disséssemos que ele sempre sabia como tocar piano, mesmo quando não podia tocar, porque sua habilidade foi inteiramente restituída pelo milagre. Mas talvez disséssemos (o que me parece mais plausível) que ele teria de reaprender a tocar algumas peças. Poderíamos dizer que ele não seria mais o mesmo pianista, ou que não teria mais a mesma capacidade. Talvez até mesmo diríamos, quem sabe, que ele passaria a ter uma capacidade ainda maior do que antes do milagre. O ponto é que, quando os casos contrafactuais são muito remotos, como os que envolvem curas milagrosas e intervenções divinas, não sabemos o que dizer—como quando o pintassilgo de Austin (1970) explode ou recita Virginia Woolf. Por isso, eu acho que esse tipo de cenário não deveria receber tanto peso nas considerações a favor ou contra uma teoria, sobretudo quando a questão é largamente empírica. Trata-se de um caso notável de “se minha vó tivesse rodas, seria uma bicicleta”. Pode ser interessante como um exercício de criatividade filosófica, mas não prova nada substancial.

Então, mesmo que os autores acreditem terem reduzido ao absurdo a concepção não-intelectualista de conhecimento prático endossada por enativistas, nenhum dos seus argumentos é exitoso. [120]

 

3 Sobre cérebros e corpos

3.1. O cérebro também faz parte do corpo

Pereira et al. abrem a segunda seção do seu artigo enunciando o fato de que, para o enativismo, “[...] a percepção é essencialmente uma atividade incorporada [ou corporificada] de um organismo” (PEREIRA et al., p. 530), para, então, discutir a tese de Gallagher (2005), segundo a qual o corpo dá forma à mente. A partir daí, Pereira e colaboradores se empenham em defender a tese contrária, segundo a qual “[...] cabe ao cérebro moldar o corpo biológico ou físico (Körper) como corpo vivo (Leib).” (PEREIRA et al., p. 530).

Uma primeira objeção que podemos apresentar é: se o cérebro fosse exclusivamente responsável a conferir a forma ao corpo vivo e ao corpo biológico, então como poderia o cérebro de seres humanos ser formado apenas na sexta para sétima semana de gestação, e não antes? Esse é um conhecido fato biológico que falseia a tese de que o cérebro dá forma ao corpo biológico. Embora a questão mais interessante diga respeito à relação entre cérebro e corpo vivo, a alegação de Pereira e colaboradores é sobre a primazia do cérebro com respeito à forma do corpo, tanto vivo quanto biológico, por isso é importante destacar a falsidade empírica daquela afirmação.[121] Além disso, um dos tratamentos contemporâneos para casos extremos de epilepsia é a hemisferectomia, isto é, a remoção de um hemisfério do cérebro—pois pacientes epilépticos possuem uma maior conectividade (anômala) entre os dois hemisférios (KLIEMANN et al., 2019). Se a afirmação dos autores acerca da relação cérebro-corpo biológico fosse correta, então um paciente que passa por uma hemisferectomia perderia metade do seu corpo biológico. Naturalmente, isso é absurdo e descabido. Mas mais interessante do que isso é que as pessoas podem levar uma vida moderadamente normal mesmo depois de um procedimento tão invasivo.

Mesmo ignorando as dificuldades acima, que eu acredito de qualquer forma serem menores, há algo interessante a ser dito sobre o que os autores pensam serem teses contrárias, sejam elas: que o corpo dá forma à mente e que o cérebro dá forma ao corpo vivo. Notemos primeiro que o conceito de corpo vivo remete a um corpo animado, imbuído de mentalidade, por oposição ao corpo como objeto ou corpo biológico (conjunto de veias, músculos, vísceras etc.). Agora, dado que o corpo vivo é um corpo imbuído de mente, é possível destacar uma suposição curiosa que subjaz ao argumento entimemático dos autores. As teses de que o corpo dá forma à mente e de que o cérebro dá forma ao corpo vivo só são contrárias—no sentido de que não podem ser ambas verdadeiras—sob a suposição de que o cérebro não faz parte do corpo! Vejamos: se o cérebro é parte do corpo, então a tese de que o cérebro é responsável pela mentalidade implica também que o corpo é responsável pela mentalidade.[122] Mesmo que o resto dessa seção seja empiricamente bem-informado, trazendo discussões interessantes sobre esquemas corporais (que eu comentarei em seguir), parece-me uma trivialidade biológica que o cérebro faz parte do corpo tanto quanto mãos, pés, pulmões, intestino etc.

Talvez, no entanto, o que os autores queiram dizer com a premissa oculta de que o cérebro não é parte do corpo é que ‘cérebro’, nesse contexto, significa somatório de representações mentais. ‘Cérebro’ não se referiria, desse modo, à massa cinzenta dentro das nossas cabeças, mas àquilo de que essa massa é veículo, isto é, as representações mentais e as operações sobre elas. Em uma analogia (sem dúvida confortável ao cognitivismo dos autores), ‘cérebro’ parece referir-se ao software, enquanto a massa cinzenta seria apenas o hardware. Mas, além de tratar-se de uma escolha semântica curiosa, isso me soa vagamente dualista, porque, afinal de contas, as representações mentais estariam estocadas e seriam computadas em outro plano que não o cérebro de fato (no nosso sentido biologicamente incontroverso do termo). Mas o real problema dessa concepção, se eu estiver interpretando os autores corretamente, é que ela apela à distinção entre veículo e conteúdo. Se, no entanto, há excelentes razões para duvidar da possibilidade de naturalizar conteúdo (isto é, representações mentais), então não há uma razão de ser da distinção entre veículo e conteúdo. Assim sendo—a não ser que os autores realmente queiram dizer que o cérebro não faz parte do corpo—a motivação de Pereira et al. nessa seção só faz sentido se a crítica dos enativistas radicais contra a possibilidade do conteúdo representacional já estivesse sido respondida. Como eu mostrei em 1.3 acima, ela não foi respondida, e o apelo ao representacionalismo aqui acaba saindo, como em outras passagens, suspeitamente barato.

 

3.2.           Ratos, primatas e membros fantasmas

Como eu disse, essa seção é empiricamente bem-informada, pois nela os autores discutem alguns experimentos que supostamente acarretariam, de uma vez por todas, a falsidade do enativismo. Vejamos.

O primeiro experimento comentado é de Pais-Vieira e colegas (2013), que mostram que uma interface cérebro-a-cérebro entre dois roedores permitiu que a atividade cortical envolvida na realização de uma tarefa por um roedor seja transmitida pela interface a outro roedor. O cérebro do receptor recebe esses estímulos e aprende a desempenhar os padrões sensório-motoros relevantes para a tarefa (sem nunca ter feito a tarefa). Pereira e colaboradores parecem pensar que esse experimento refuta o enativismo porque supostamente refutaria a tese de que as constantes perceptuais são individuadas relativa e exclusivamente a cada corpo. Essa interpretação da intenção dos autores é clara quando eles escrevem ‘pouco importa qual corpo (qual organismo vivo) ao fim e ao cabo irá realizar a tarefa. O que importa é aquilo que o enativista quer negar: a rede neuronal intracraniana’ (PEREIRA et al.).

Será? Enativistas enfatizam que a morfologia corpórea de um organismo é constitutiva das suas atividades cognitivas, e por morfologia corpórea entende-se também como a rede neuronal é implementada nesse organismo. É um bem conhecido fato biológico que as estruturas neuronais transcendem a caixa craniana, conectando o cérebro ao resto do organismo, então a escolha pelo cérebro como locus da cognição (porque seria onde fica a rede neuronal) parece mais como um erro empírico. Ademais, no experimento comentado, temos dois (ou mais) agentes covariando seus estados de modo sincronizado, caracterizando um sistema complexo pelo acoplamento entre dois organismos—exatamente como a passagem de Pais-Vieira et al. (2013) citada pelos autores indica. Longe de ser uma refutação do enativismo, fenômenos de sincronização são conhecidos de longa data da ciência cognitiva radicalmente corporificada, tendo sido estudados por psicólogos ecológicos (ver o modelo HKB em CHEMERO, 2009 capítulo 5) assim como por enativistas (DE JAEGHER; DI PAOLO; GALLAGHER, 2010).

Portanto, quando os autores formalizam o seu argumento e escrevem que ‘3. Assim, primeiro, perceber é uma atividade no cérebro (rede neuronal), e a ação realizada é contingente para a percepção’ (PEREIRA et al.), a resposta óbvia é que os ratos estão de fato acoplados pela interface, e que há corpos agindo em ação conjunta—nenhum mistério até aqui. Em seguida, os autores escrevem que ‘6. Ora, segundo [a interface de cérebro-a-cérebro], o rato que aciona a alavanca só o faz na medida em que “recupera um conteúdo informativo” sensório-motor do primeiro rato’ (PEREIRA et al.). O problema, dessa vez, é que o “conteúdo informativo” mencionado é a covariação de estados. Como eu mencionei acima (1.3), covariação é insuficiente para o conteúdo. Longe de ser, portanto, uma refutação do enativismo, o experimento comentado pelos autores é perfeitamente acomodável no paradigma enativista, feitas as ressalvas sobre o vocabulário representacionalista.

O segundo experimento comentado na terceira seção é retirado de Ramakrishnan et al. (2015) e configura o mesmo tipo de caso, porém dessa vez com primatas utilizando uma interface cérebro-máquina ao invés de cérebro-a-cérebro. Nesse experimento, nota-se um acoplamento entre agentes através de um avatar virtual, o que permitiu o desenvolvimento de padrões sensório-motores comuns e a sincronia de estados intraneurais entre os primatas. Os autores alegam que ‘um mesmo corpo não é necessário para a experiência tátil’ (PEREIRA et al.). Mas isso não é controverso. De fato, é perfeitamente possível no panorama enativista que indivíduos morfologicamente semelhantes e com características ontogenéticas congruentes tenham experiências semelhantes, ou até mesmo idênticas, e que, com o acoplamento adequado, entrem em sincronia. Mas Pereira et al. continuam e afirmam que ‘o que é necessário é aquilo que o enativista quer negar: a existência de uma rede neuronal instanciada em uma série indefinida de corpos em espaços distintos’ (PEREIRA et al.).

A resposta enativista, para qualquer um familiarizado com a literatura, é que não há compromisso com a tese de que “um mesmo corpo” é necessário para determinar a qualidade da experiência. Enativistas têm compromisso centralmente com duas teses: em primeiro lugar, de que é necessário ter um corpo para ter experiências (anti-dualismo) e, em segundo lugar, de que a morfologia corpórea é um parâmetro crucial para determinar o tipo de experiências a serem tidas (corporificação). Ou seja, que dois ou mais organismos com morfologia corpórea semelhante possam transmitir sinais táteis através de conexões adequadas, e que dessa transmissão eles refinem e coordenem suas habilidades sensório-motoras, não é nem um pouco contrário ao enativismo. Seria surpreendente se o experimento mostrasse a transmissão de um sinal tátil entre organismos radicalmente diferentes e que ainda assim preservasse a qualidade da experiência. Por exemplo, se o primata pudesse ter o tato aderente de uma lagartixa ou a sensibilidade à corrente elétrica de um tubarão. Isso, eu acredito, ainda não foi demonstrado.

O terceiro experimento comentado nesta seção diz respeito ao famoso caso da ilusão da mão de borracha, e para isso os autores usam o trabalho de Shokur et al. (2013). Essa ilusão é interessante porque mostra que um objeto não corpóreo (a mão de borracha) pode facilmente ser incorporado no esquema e na imagem corporal do sujeito pelo cruzamento de informações visuais e táteis. Segundo os autores, disso se seguiria que

[...] esse corpo vivo é constituído metafisicamente pela representação subliminar e/ou não-conceitual do corpo biológico ou de substitutos, como avatares e membros mecânicos, que têm a forma de um esquema corporal gerado pelo próprio cérebro de forma sub-pessoal e subliminar (PEREIRA et al., p. 16).

 

Contudo, essa consequência se seguiria apenas sob a suposição de que esse fenômeno é uma ilusão de fato, em que a deriva proprioceptiva constatada no experimento é uma anomalia genuína, e não uma característica da nossa plasticidade adaptativa. Pois, sob a suposição de que existe um acoplamento momentâneo entre sujeito e órgão postiço—semelhante ao uso de uma ferramenta, como quando o martelo é percebido como a extensão do nosso corpo durante o ato de martelar um prego na parede (SCHETTLER; RAJA; ANDERSON, 2019)—, então não há nada de ameaçador ao enativismo no experimento da mão de borracha. Claro, o enativista ainda teria a dificuldade adicional de explicar por que a deriva proprioceptiva acontece. Talvez o caminho aqui seja explorar nossa virtude adaptativa que decorre do uso de ferramentas, como as tecnologias líticas que antecedem até mesmo o surgimento do sapiens. De acordo com essa explicação, nós temos a facilidade de incorporar objetos ao nosso corpo, e não há nada de misterioso com isso, sobretudo considerando que nós somos os únicos primatas que se realizam pela confecção e uso de ferramentas (IHDE; MALAFOURIS, 2019). A ideia, portanto, é que apenas sob a suposição de que a explicação enativista da “ilusão” da mão de borracha está a priori errada, a objeção pode proceder. Trata-se de mais uma petição de princípios.

Esta seção conclui com um comentário interessante sobre uma terapia usada para aliviar a dor do membro fantasma, que é comumente relatada por pessoas que tiveram um membro amputado. Os autores perguntam: ‘como entendermos o tal membro fantasma sem supormos um conteúdo representacional?’. Eu respondo: hoje sabemos que a dor do membro fantasma é causada pelo trauma da amputação, que rompe conexões nervosas eferentes e aferentes. Os danos às terminações nervosas causam tumores benignos onde elas foram rompidas, deixando os nervos superexcitáveis e emitindo descargas súbitas que causam dor (HANYU-DEUTMEYER; CASCELLA; VARACALLO, 2021). Mas a descoberta interessante relatada por Pereira et al. é que pessoas que fizeram o tratamento de movimentar o membro normal e “movimentar” o membro amputado na frente do espelho relataram uma diminuição considerável de dor, diferente de outros grupos que usaram outras técnicas. Como os autores mesmo reconhecem, não há uma explicação óbvia para o êxito dessa terapia. Mas por isso mesmo é importante ter cautela ao asserir que o cérebro (ou o homúnculo lá dentro) está ajustando a sua representação do corpo pelo espelho. É igualmente provável que a observação dos movimentos no espelho diminua a dor por facilitar o ajuste das habilidades sensório-motoras às novas condições do sujeito, precisamente pelo reforço sensorial da imagem especular.

 

4 Onde fica a consciência perceptual

4.1. Fogo amigo nas trincheiras cognitivistas

Na terceira seção do seu artigo, os autores atacam o que acreditam ser a quintessência do enativismo, o externismo fenomenal. Essa é a tese de que o caráter fenomenal da experiência é constituído pelo ambiente com o qual o agente interage. Que isso seja uma das consequências de abolir a ubiquidade das representações mentais nas ciências cognitivas é uma coisa—mas tratar aquela tese como quintessência pode ser uma novidade para maior parte dos enativistas. De qualquer forma, aqui o argumento foca na teoria da consciência perceptual de Alva Noë.

Apesar do trabalho de Alva Noë (2004, 2012) ser caracterizado como pertencente à fase intermediária desse programa de pesquisa, um peso exagerado é atribuído às suas contribuições, pois, inobstante aparências do contrário, Noë é um cognitivista. No entanto, esse equívoco por Pereira e colaboradores é parcialmente justificadao pois o próprio Noë — em conjunção com outros autores (HURLEY; NOË, 2003; O’REGAN; NOË, 2001a, 2001b) — foi um dos responsáveis por ampliar o alcance do enativismo na filosofia analítica no começo dos anos 2000. Porém, o exame do seu trabalho revela um compromisso velado com o cognitivismo que é veementemente rejeitado pelas variedades mais desenvolvidas de enativismo disponíveis (DI PAOLO; BUHRMANN; BARANDIARAN, 2017; HUTTO; MYIN, 2013). É importante ter isso com clareza em mente, pois as críticas dirigidas a Noë são, na verdade, críticas a um companheiro dos próprios autores nas trincheiras cognitivistas—trincheiras essas que há pelo menos 30 anos entraram em irreversível recuo na disputa pelo terreno das ciências cognitivas.

Em resumo, as razões pelas quais a teoria de Alva Noë sobre a consciência perceptual não deve ser tomada como exemplo de enativismo são as seguintes. Noë argumenta que a consciência perceptual de um sujeito é constituída pelo entendimento prático de padrões sensório-motores. Isto significa que o caráter fenomênico de estados perceptuais é determinado pelo conhecimento de quais exercícios sensório-motores oferecem as variações perceptuais esperadas pelo indivíduo. A acusação consensual é justamente que Noë contrabandeia uma tese cognitivista na sua explicação da consciência perceptual, pois “entendimento prático”, no uso que Noë faz, é simplesmente conhecimento proposicional. Isso ocorre porque o sujeito sabe que determinados exercícios sensório-motores terão determinadas respostas esperadas por ele. Por implicar conhecimento proposicional, a fortiori, a explicação de Noë implica conteúdo representacional (HUTTO, 2005; HUTTO; MYIN, 2013; ROWLANDS, 2010). Notemos que nenhum enativista deve comprometer-se com essa teoria, dada a ênfase do enativismo na rejeição do conteúdo representacional como a marca da cognição (1.3 acima). O fato de que Noë combina veladamente conteúdo representacional com coordenação sensório-motora apenas o afasta do cognitivismo clássico como de Fodor (1983), mas não dá o passo necessário para caracterizá-lo como enativista, pois ele não explica o fenômeno da consciência sem recorrer (nem implicitamente!) a conteúdo representacional.

Qualquer que seja o caso, essa seção tem dois argumentos que merecem atenção: primeiro a observação de que alguns estados anômalos, como alucinações, podem ser indiscrimináveis de percepções genuínas—e que, uma vez que ocorrem na ausência de uma interação entre sujeito e mundo, falsificariam o externismo fenomenal do enativismo. Em segundo lugar, os autores relatam uma história pessoal em que um dos autores falhou em distinguir particulares, apesar da diferença numérica entre esses particulares, o que supostamente convidaria interações sensório-motoras diferentes. Veremos cada argumento por vez.

 

4.2.                     Das alucinações e percepções

Como suporte ao fato de que algumas alucinações são qualitativamente indiscrimináveis de percepções genuínas, os autores invocam a Síndrome de Charles Bonnet (SCB). Pessoas com SCB desenvolvem padrões sui generis de alucinação conforme lhes faltam estímulos no córtex visual (mais especificamente, no lobo occipital ventral), e geralmente os sintomas pioram conforme a sua idade avança. Porém é bem conhecido que pessoas afetadas por essa condição são capazes de discriminar alucinações de percepções verídicas e de levar uma vida quase normal (SACKS, 2012). Segue-se que essas alucinações não são indiscrimináveis de experiências normais, pois é possível discriminá-las. Ou seja, segue-se que os dois tipos de estados—percepção genuína e alucinação—possuem qualidades fenomênicas potencialmente diferentes. Pode não ser um caso “universalizável”, como os autores colocam, mas isso é uma inversão de ônus da prova. Para que o argumento dos autores funcione, o que precisaria ser universalizável aqui é a tese de que toda alucinação para pessoas afetadas pela SCB é indistinguível de percepção genuína, pois apenas assim Pereira e colaboradores teriam suporte para afirmar que não há diferença fenomênica entre percepção e alucinação (ou delírio).

Depois de comentar o caso de um idoso acometido com SCB que alucina plantas com cores vibrantes, os autores se perguntam se ‘haveria alguma ação incorporada que os organismos pudessem realizar que tornasse o caráter fenomenal das suas experiências alucinatórias distinto das suas percepções genuínas?’ E eles mesmos respondem que não há nenhuma evidência na literatura. Mas me parece gritantemente falso que você possa interagir do mesmo modo com o mundo real e com uma alucinação. Até onde eu sei, não é possível regar uma alucinação! Ou seja: há óbvias diferenças entre o aspecto fenomênico de uma percepção genuína, o que envolve o acesso sensório-motor ao mundo, e o aspecto fenomênico de uma alucinação (sem o exercício sensório-motor adequado). Em condições normais, você pode interagir fluentemente com o mundo, mas não é o mesmo com uma alucinação—sobretudo se ainda estivermos falando dos casos de SCB, porque essa é uma afecção do córtex visual apenas. Mas se estivermos falando sobre uma pessoa acometida por outros impedimentos cognitivos—digamos que ela esteja em um caso de delírio permanente—então não há nenhuma tendência a atribuir-lhe estados cognitivos normais ou mesmo análogos aos que uma pessoa neurotípica em condições normais executaria. Isso é tudo que precisamos para barrar um argumento pelo internismo fenomenal avançado pelos autores.

Isso posto, os autores desafiam os enativistas a provar que ‘duplicatas cerebrais, interagindo de forma incorporada com diferentes particulares e diferentes propriedades distantes [ou distais], realizariam experiências fenomenalmente distintas, ainda que expostos aos mesmos estímulos próximos [ou proximais]’. Isso, eu acredito, é um equívoco. Enativistas não precisam responder a esse desafio porque ele não é empiricamente plausível. Isso é trabalho de filósofos que se encantam com possibilidades lógicas que, por mais divertidas que sejam, ainda são cientificamente irrelevantes. Do mesmo modo, os autores se perguntam sobre ‘por que temos que supor que cérebros em tanques de nutrientes não possam compartilhar dos mesmos processos metabólicos de cérebros encarnadas quando devidamente estimulados?’. Aqui me parece haver novamente uma confusão acerca de fatos biológicos básicos (ver também THOMPSON; COSMELLI, 2011). Se fosse possível separar o metabolismo do corpo dos funcionamentos cerebrais, toda vez em que eu tivesse que trabalhar, mas estivesse muito cansado, eu removeria o cérebro do corpo e colocaria meu corpo em stand by enquanto meu cérebro escreve, estuda ou prepara uma aula.

 

4.3. Da discriminação de particulares

Antes de apresentar o argumento interessante contra a concepção enativista de experiência fenomênica, os autores ainda ensaiam mais um argumento do tipo “se minha vó tivesse rodas, ela seria uma bicicleta” ao enunciar que a tese enativista é contraintutivia e que ‘supor que a consciência não esteja em nossas cabeças, mas antes “nas atividades orgânicas amplas” em um ambiente é difícil de se engolir’ (PEREIRA et al.), chamando por causa disso a teoria enativa de ‘wishful thinking’ (PEREIRA et al.) ou autoengano em bom português. Se fizesse sentido entrar no mérito sobre os estados psicológicos dos autores, neste ponto estaríamos lidando com um caso clássico de projeção.

Mas seja como for, os autores prosseguem com um relato pessoal, em que um sujeito inebriado em uma festa consome várias taças de vinho inadvertidamente sob a impressão de que havia bebido muito menos. Ocorre que, sem que ele soubesse, toda vez em que colocava sua taça na bancada, alguém a enchia. Na medida em que ele interagiu com vários particulares diferentes (taças 1 a 10) — prossegue o argumento dos autores—se o enativismo estivesse correto, o sujeito seria capaz de perceber, ao beber cada taça, que se tratava de uma taça com conteúdo diferente da anterior.

Se assim fosse, o enativismo teria de enfrentar uma forte objeção. Mas não é isso que o enativismo prevê. Vamos supor que o sujeito estivesse bebendo vinho tinto seco. Se alguém coloca um mesmo tipo de vinho na sua taça quando ele não está olhando, a resposta sensório-motora é amplamente semelhante às anteriores. Ou seja, não há variação ambiental significativa o suficiente para interferir no exercício dos seus padrões sensório-motores nesse caso. Assim, mesmo ignorando que as capacidades discriminatórias do sujeito seriam progressivamente afetadas a cada nova taça, a conclusão enativista é que não há como discriminar uma taça da outra porque o ambiente se ofereceu de modo suficientemente semelhante. Isso é o que de fato aconteceu no exemplo original. Mas e se os responsáveis por manter a bebida rolando trocassem a taça de vinho tinto seco por um vinho tinto doce? Ou por um copo de uísque? Ou por uma taça alongada de espumante? Ou por um copo de suco de laranja com gelo? Ou uma taça de mamma jamma?[123] Todos esses casos, naturalmente, convidam interações sensório-motoras mais ou menos diferentes daquelas envolvidas com as taças de vinho, a começar pelo próprio formato ideal de cada copo para cada bebida. Apenas nesse tipo de caso, em que as variações ambientais são significativas o suficiente, o enativismo prevê que as ações do sujeito dariam origem a estados perceptuais substancialmente diferentes, porque seriam necessários exercícios sensório-motores diferentes.[124]

 

Conclusão

O enativismo segue firme e forte.

 

Agradecimentos

Eu agradeço muito enfaticamente a Marcos Antonio Alves pelo convite para participar de um número tão prestigioso da revista Trans/Form/Ação e também pela paciência na editoração deste artigo. Agradeço mais uma vez aos pareceristas anônimos que ofereceram sugestões importantes para a melhoria deste texto. Agradeço a Nara Figueiredo, Guilherme de Vasconcelos, Lucas Argolo por lerem e comentarem este texto comigo. O retorno positivo de muitos amigos e colegas, entre eles (mas não apenas) Ralph Ings Bannell, Thales Silva e Roberto Alexandre Levy, representou uma importante força motivadora para o meu trabalho como um todo.

 

Why we are not only our brain: in defense of enactivism

Abstract: In the article “Why are we our brain: enactivism put into question” (this volume), Pereira and collaborators raise a battery of criticisms of enactivism, which is a family of approaches in the cognitive sciences that gives centrality to the body and to the autonomous action of organisms in explanations of their cognitive processes. The authors’ attacks target some central concepts of the enactivist proposal, such as practical knowledge, embodiment (or corporeity) and sensory-motor regularities. I argue that the criticisms by Pereira et al. do not proceed for different reasons: some assume what they want to prove, others give excessive weight to intuitions about fictional scenarios and, finally, others attack scarecrows that do not represent the enactivist positions. None of the points I raise in defense of enactivism are new, but I consider it important to make them explicit in order to make the debate on the philosophy of cognitive sciences clearer.

 

Key-words: Enactivism. Cognitivism. Mental Representations. Fallacies.

 

Referências

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Recebido: 11/09/2022

Aceito: 03/01/2023


Comentário a “Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo”: representações situadas como um terreno comum entre o cognitivismo e o enativismo

 

Felipe Nogueira de Carvalho[125]

 

Referência do artigo comentado: ROLLA, G. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 207- 236, 2023.

 

Qualquer estudante ou pesquisador(a) que se interesse pela filosofia da cognição e da percepção, no Brasil, sem dúvida percebeu que o programa de pesquisa enativista tem passado por uma crescente popularização no país, nos últimos anos. Livros, artigos, conferências etc. atestam como muitos filósofos e filósofas já se valem desse quadro teórico, para explorar temas caros à filosofia, não apenas dentro da filosofia da cognição, como também na ética e na epistemologia.

            No entanto, o enativismo ainda enfrenta resistências de parte da comunidade filosófica brasileira. Em círculos mais informais, é comum ouvir acusações de que o enativismo entrega pouco mais do que uma série de slogans envolvendo um punhado de letras “E” (em inglês, embodied, embedded, enactive e extended, ou, em português, corporificada, situada, enativa e estendida, todos predicados aplicados à cognição), os quais, na melhor das hipóteses, são vagos e obscuros e, na pior, são falsos ou carecem de sentido. Essas suspeições foram sintetizadas por Horácio, Filho e Barcellos (2022) – que representam aqui a posição cognitivista – em um texto que coloca pressão no enativismo, para que se explique e fundamente seus argumentos e prescrições metodológicas. Esse desafio foi encarado por Giovanni Rolla, atualmente um dos expoentes desse programa de pesquisa, não apenas no Brasil, mas internacionalmente, no texto que será objeto do presente comentário

            O texto de Rolla possui grande mérito, ao responder dúvidas e dissipar os principais mal-entendidos que assolam o enativismo, apresentando-se como uma boa introdução a um programa de pesquisa que ainda é pouco compreendido por filósofos e filósofas de tendência mais cognitivista. Apesar das doses ocasionalmente excessivas de ironia que perpassam seus argumentos, a dialética de Rolla é suficientemente clara, para que até mesmo um leitor pouco familiarizado com esse campo de estudos possa acompanhar o debate. No entanto, alguns pontos ainda permanecem obscuros e merecem atenção especial, a fim de que o texto possa, de fato, cumprir seu objetivo de aliviar as preocupações de quem ainda se vê incapaz de conceber uma filosofia da cognição não cognitivista.

            Um ponto em especial me parece nevrálgico, no debate entre cognitivistas e enativistas: as representações mentais. Enquanto o abandono da linguagem representacional é uma das bases do enativismo, sobre a qual todo o seu arcabouço teórico é construído, certos cognitivistas, como Horácio, Filho e Barcellos, se mostram profundamente perplexos com tal sugestão. Como podemos explicar as percepções e ações de um organismo, em seu ambiente, sem fazer menção a estados neurocognitivos que representem aspectos desse ambiente? O enativismo, claro, tem uma (ou mais de uma) resposta, fortemente apoiada sobre noções como habilidades práticas (know-how), acoplamentos sensório-motores e enações (enactments), mas, mesmo após esses esclarecimentos, o cognitivista ainda insiste que tais conceitos devem, de uma forma ou de outra, ser baseados em representações mentais.

            A este ponto, corre-se o risco de o diálogo entrar em colapso, sem um chão comum onde um debate genuíno possa ocorrer. Meu objetivo, neste breve comentário, será especular sobre a possível existência desse chão comum, o qual redesenhe o mapa do espaço teórico do debate de modo a incluir uma Suíça entre a França e a Alemanha do enativismo e do cognitivismo. Mas, como esse terreno envolve uma reabilitação de (uma certa noção de) representações mentais, não é claro que esta será uma fronteira que o enativista terá interesse em cruzar. Todavia, enquanto ele se reforça em seu território, podemos levantar a seguinte questão, não só ao texto de Rolla, porém a todos os simpatizantes desse programa de pesquisa: por que tamanha resistência a qualquer tipo de linguagem representacional?

            Há duas resposta imediatas a essa questão que podem ser facilmente encontradas no texto de Rolla. A primeira delas diz respeito aos 4 “E” do enativismo. Ora, se a cognição é corporificada, situada, enativa e estendida, faz pouco sentido conferir uma atenção excessiva ao que acontece dentro do cérebro de agentes cognitivos, como faz o cognitivismo clássico. Essa resposta é mais metodológica do que argumentativa, e concerne a uma mudança de vocabulário na construção de teorias sobre a cognição. Já a segunda resposta é mais argumentativa, e se refere ao “problema duro do conteúdo” articulado por Hutto e Myin (2013) e citado com aprovação por Rolla, como o prego definitivo no caixão do representacionalismo. Embora questões de espaço não nos permitam examinar esse problema em maiores detalhes, a ideia básica pode ser extraída da seguinte passagem de Rolla:

[…] de acordo com cognitivistas, representações mentais são portadoras de informação semanticamente carregada [...]. Porém, o único tipo de informação encontrada na natureza é a covariação. Estados naturais covariam confiável ou nomicamente. Pensemos na relação de covariação entre a idade da árvore e o número de anéis no seu tronco [...]. Não podemos inferir que um dos termos em uma relação de covariação representa o outro. Números de anéis no tronco da árvore não representam a sua idade—a representação aqui é imputada por nós uma vez que estamos situados em um contexto sociocultural amplo. Por si só, estados naturais são piamente quietistas e não dizem nada sobre ninguém. (Rolla, 2023, p. 213)

 

            Ora, contudo, se este é o problema, podemos fazer a seguinte pergunta. Caso haja uma noção de representação que responda ao mesmo tempo a motivação metodológica expressa pelos 4 “E” do enativismo e a argumentação levantada pelo problema duro do conteúdo, essa noção poderia ser aceitável ao enativista? Se não, por que não?

            Por sorte, já existe uma noção desse tipo que pode nos ser útil: o conceito de “representações situadas”, de Gualtiero Piccinini (2022), o qual visa, justamente, resolver o problema duro do conteúdo, através da corporificação e situacionalidade da cognição, resultando em uma linguagem representacional que pode aliviar as preocupações do cognitivismo, ao mesmo tempo que os 4 “E” do enativismo são mantidos e respeitados. Como tal, esse conceito pode se apresentar como um terreno comum onde ambos os lados poderiam dialogar de forma colaborativa sobre os diversos papéis do corpo e do ambiente, na cognição.

            Na proposta de Piccinini, sistemas cognitivos empregam, em sua interação com o meio, representações neurais estruturais que possuem uma certa similaridade (homomorfismo) parcial com seus alvos, e que possuem a função de rastrear e prever a evolução de aspectos do ambiente com os quais o organismo está interagindo e pelo qual se interessa (2022, p. 5). Essas representações são constantemente atualizadas de forma dinâmica por informações do ambiente e de outros estados internos do organismo que carregam informação sobre o ambiente e sobre o corpo, incluindo sinais afetivo-avaliativos e estados passados do organismo.

            Como em teorias teleossemânticas, o conteúdo semântico de tais representações é explicado por funções biológicas, exceto que, para Piccinini, tais funções não são compreendidas apenas em termos de efeitos selecionados pela evolução, mas sim em termos de contribuições estáveis que estados neurocognitivos fazem para os objetivos situados do organismo (2022, p. 5). Além disso, diferentemente do cognitivismo clássico, o conteúdo de tais representações não possui estrutura proposicional e, portanto, não entra em relações inferenciais típicas de representações linguísticas. Se o organismo percebe um gato em cima do tapete, o conteúdo semântico dessa representação seria algo como “gato no tapete agora irá provavelmente evoluir de tal-e-tal forma”, de acordo com a função biológica do estado neurocognitivo que lhe confere esse conteúdo, em que “tal-e-tal forma” é atualizado dinamicamente, de acordo com informações do ambiente e das ações do organismo sobre este (2022, p. 6).

Ou seja, representações mentais e as computações que operam sobre elas emergem de maneira coordenada em padrões neurais homomórficos, através da interação dinâmica do organismo com seu ambiente, a qual depende constitutivamente de informações do corpo e do ambiente, sem as quais não poderiam cumprir a função biológica que lhes confere conteúdo semântico. A relação de homomorfismo entre uma representação e um aspecto do mundo, segundo Piccinini, também é uma relação informacional natural e real, portanto, não seria verdadeiro dizer, como afirma o “problema duro do conteúdo”, que a única relação informacional que existe na natureza é a covariação.

            Talvez aqui Rolla diga que a linguagem representacional de Piccinini vale somente para o ponto de vista do cientista cognitivo interessado em modelar a cognição desse organismo, mas que não devemos projetar essa linguagem para o objeto-alvo do modelo, i.e., o organismo em si (2023, p. xx). No entanto, aqui devemos nos perguntar o que é que perdemos, teoricamente falando, ao empregar essa linguagem representacional na própria descrição das capacidades cognitivas e perceptuais de organismos vivos em interação com seus ambientes, através de seus corpos, e não apenas na modelagem dessas capacidades, em termos neurocomputacionais. O que foi perdido com essa linguagem que apenas o enativismo seria capaz de explicar? Se as representações de Piccinini são situadas, corporificadas e enativas[126], o enativista ainda deve resistir a essa linguagem a qualquer custo? Por quê?

Se o problema, como diz Rolla (2023, p. 215), é que “[...] o cérebro não é um cientista homuncular fazendo cálculos e previsões sobre o mundo […], mas uma parte de um sistema que opera, quando tudo vai bem, em sintonia com o resto do corpo e com o ambiente distal”, ora, não há nada nessa descrição de que Piccinini discordaria. Tampouco seria preciso uma “física do futuro” para mostrar como uma representação situada desse tipo poderia ter propriedades semânticas, visto que tais propriedades são conferidas por sua função biológica de rastrear e prever a evolução de partes do ambiente em que o organismo está interessado, por meio de processos de aprendizagem ativa calibrados pela interação contínua do organismo com seu meio, através de propriedades morfológicas de seu corpo. Talvez aqui Rolla diga que funções biológicas só conferem conteúdo semântico de forma derivada, por intermédio de teóricos que se valem desse conceito em teorias teleossemânticas. Essa manobra, no entanto, removeria funções biológicas do mundo natural, e não sei se Rolla estaria disposto a seguir esse caminho.

            Para concluir, enquanto o enativismo se populariza, no Brasil, é natural que haja suspeições em relação às suas principais propostas. Nesse sentido, o texto de Rolla sucede em dissipar uma série de mal-entendidos que assolam os 4 “E” do enativismo, e deve ser reconhecido como um avanço inequívoco de nosso conhecimento, nessa área de estudos. Entretanto, alguns pontos ainda permanecem obscuros, em particular, porque o enativismo ainda resiste a qualquer tipo de linguagem representacional. Isto é, caso haja uma noção de representação que atenda às questões metodológicas e argumentativas aceitas por Rolla , essa noção poderia servir de terreno comum para que enativistas e cognitivistas dialogassem sobre o papel do corpo e do ambiente na cognição? Se não, por que não?

            Neste comentário, pergunto se o conceito de representação situada de Piccinini pode ser esse terreno comum. Embora muitos detalhes dessa teoria tenham sido deixados de lado por questões de espaço, ela serve ao menos para levantar questões importantes ao texto de Rolla e ao enativismo, de modo geral. Se tais questões forem respondidas com a mesma seriedade e meticulosidade que já aparece nos trabalhos de Rolla, toda a comunidade filosófica brasileira, sem dúvida, se beneficiará de tal debate.

 

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ROLLA, G. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 207- 236, 2023.

Recebido: 12/03/2023

Aprovado: 15/03/2023


 

Comentário a “Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo

 

Marcos Silva[127]

 

Referência do artigo comentado: ROLLA, G. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 207- 236, 2023.

 

Vários filósofos contemporâneos têm desenvolvido teorias a partir do pragmatismo (amplamente interpretado), para motivá-lo como um fundamento filosófico alternativo a uma compreensão abrangente da cognição, oposta a uma tradição representacionalista de longa data. Essa tradição, há muito estabelecida na filosofia da mente e na ciência cognitiva, defende que a cognição envolve fundamentalmente alguma noção de conteúdo veritativo, pois seria essencialmente constituída por manipulações intelectuais (muitas vezes, internas ao cérebro) de representações que impõem condições de satisfação ao mundo.

Por outro lado, alguns contendores radicais defendem que a cognição não é inerentemente representacional nem pressupõe, como nas visões internalistas usuais, processamento ou manipulação de conteúdos informacionais no cérebro. Dentre eles, há os que chamam atenção para a importância das práticas herdadas e incorporadas e das interações sociais, a fim de compreender tópicos relevantes na percepção, na linguagem e na natureza da intencionalidade. Em especial, enativistas levam bastante a sério os sistemas biológicos em evolução e os indivíduos situados interagindo em comunidades, ao longo do tempo, como pré-condições de nossas atividades cognitivas, características muitas vezes negligenciadas como não centrais, na tradição representacionalista e internalista.

No contexto dessa discussão sobre a natureza da mente, do pensamento, da cognição e da racionalidade, as últimas décadas, de fato, testemunharam o surgimento da E-cognição como uma alternativa a uma maneira intelectualista, internalista e individualista de ver a cognição. A primeira é interativa, relacional e dinâmica, fornecendo ferramentas originais para nossa compreensão do que somos. Essa abordagem, portanto, incorpora mais insights biológicos ao debate sobre cognição, chamando a atenção para fatos básicos sobre os organismos vivos, como sua atividade perpétua de autoconstrução (autopoiese), sua necessidade de estar em constante adaptação às condições mutáveis do ambiente, a adaptabilidade e sua capacidade de resposta seletiva a aspectos específicos do ambiente, criando seu próprio mundo de significado (ação). Assim, a visão conservadora de que o conteúdo é a marca do cognitivo deveria ser rejeitada.

O recente texto “Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo”, de Giovanni Rolla, está inserido nessa disputa contemporaneamente quente, discutindo, de forma direta, com o artigo “Por que somos nossos cérebros”, de Pereira et al., publicado em 2022, no qual há uma batelada de argumentos contra a tradição enativista.

Rolla defende a tradição enativista com rigor conceitual e argumentativo, em uma tentativa de analisar um a um os argumentos novos e antigos contra ela, usando cada ataque presente no trabalho de Pereira et al. como fio condutor para as defesas do enativismo. O artigo de Rolla  é bem-vindo também, porque esse tipo de polêmica em português entre artigos diametralmente opostos não é tão comum como deveria ser, na comunidade filosófica do Brasil.

O trabalho funciona ainda como uma boa revisão da literatura sobre enativismo e das produções recentes de seus principais autores, incluindo as do próprio Rolla.

A ênfase na réplica de Rolla aos cognitivistas Pereira et al. foi dada prioritariamente à falta de discussão, no artigo dos últimos, sobre a assunção primordial a respeito do seu representacionalismo de base, a saber: “Toda cognição envolve representação”. Essa assunção parece estar na estrutura entimemática dos argumentos de Pereira et al., apontada por Rolla. Ele destaca que o projeto enativista é um projeto naturalista que deseja dar uma explicação para a cognição aqui e agora, completa e sem lacunas. Em outras palavras, defende o oposto contraditório dos cognitivistas: nem toda cognição envolve representação, e, se envolver, é porque usa algum tipo de scaffolding social. Caso Rolla esteja certo nessa visão, ainda resta a grande questão de como as práticas socioculturais evoluíram de mentes sem conteúdo.

A alternativa propriamente cognitivista de Pereira et al. à tese enativista explica a cognição superior, mas parece ter dificuldade de naturalizar conteúdo semântico para casos básicos, como os movimentos corporais e a sensação. Se olharmos de um ponto de vista puramente biológico, não parece haver um argumento imbatível para acreditar, e nenhum fundamento definitivo para supor, que as conexões forjadas entre organismos e partes de seus mundos devam ser mais bem entendidas como instâncias de relações semânticas intracranianas envolvendo referência e verdade, por exemplo. Por que experiência, percepção e pensamento deveriam envolver condições de satisfação?

De fato, se olharmos fenômenos cognitivos sob uma perspectiva puramente biológica, esse tipo de tese cognitivista parece ser supérflua, do ponto de vista explanatório, e extravagante, do ponto de vista filosófico. Pensando de uma maneira simples, não há uma razão óbvia, como Rolla também defende, para que conexões básicas entre mente e mundo forjadas biologicamente devessem ser caracterizadas em termos semânticos, a partir de manipulações representacionais no cérebro. Acredito que esse seja o principal contra-argumento enativista contra as investidas cognitivistas feitas por Pereira et al. É importante notar que o uso liberal da noção de conteúdo ou representação não deve mascarar o fato de que muitos argumentos seriam necessários para estabelecer que todos os atos de experiência, percepção ou pensamento concernentes ao mundo abrangem conteúdos com condições de satisfação. Aqueles persuadidos por esse critério cognitivista considerariam simplesmente impensável que a ciência cognitiva pudesse abandonar a ideia de que os estados mentais básicos são representativos e envolvem conteúdo.

De acordo com o conhecido relato cognitivista, supõe-se que a informação seja captada pelos sentidos, através de múltiplos canais, codificada e depois processada e integrada de várias maneiras pelo cérebro, permitindo sua recuperação posterior. Mas, nessa visão, há uma incompatibilidade de raiz entre o erro de representação e a falha da função biológica. Expressando vários autores influentes, eles sustentam que somos avisados de que “[...] a evolução não lhe dará mais intencionalidade do que você carrega nela” (PUTNAM, 1992, p. 33); que existe uma distinção crucial entre “[...] funcionar adequadamente (sob as condições apropriadas) como um portador de informações e fazer as coisas corretamente (correção objetiva ou verdade)” (HAUGELAND 1998, p. 309); que “[...] a seleção natural não se importa com a verdade; ela se preocupa com o sucesso reprodutivo” (STICH, 1990, p. 62). E, por exemplo, como nos lembra Burge (2010, p. 303): “A evolução não se importa com a veracidade. Ele não seleciona a veracidade per se.”

Contudo, a pergunta permanece aberta: como naturalizar o conteúdo? Como explicar a origem natural do conteúdo? Foi nesse ponto que senti falta de uma discussão mais detalhada de Rolla sobre a duplex account apresentada por Hutto e Myin, em 2017, como alternativa ao problema aparentemente negligenciado por Pereira et al.

Com efeito, uma solução direta para a plena naturalização dos conceitos de conteúdo e de representações mentais requer, inter alia, explicar como é possível passar de fundamentos informacionais, os quais supostamente não possuem conteúdos, para uma teoria completa do conteúdo mental, usando apenas recursos naturalistas. A questão é como fornecer uma explicação naturalista completa e sem lacunas da cognição. Adicionalmente, críticas à possibilidade de um programa enativista de pleno direito têm sido colocadas, como a chamada “objeção scale-up”, ou seja, o desafio de se mostrar relevante para a investigação de problemas tradicionais relacionados à cognição de nível superior, englobando conceitos como conteúdos informacionais, estados representacionais, conhecimento matemático, raciocínios contrafactuais, pensamento simbólico, inferências lógicas etc. (SILVA, 2022). Conforme testemunham os desenvolvimentos recentes, a questão ainda não foi resolvida e os debates estão atingindo um ponto crítico.

Nesse horizonte, uma questão que deveria ser mais bem desenvolvida por enativistas, como Rolla, me parece ser o ponto fundamental da crítica de Pereira e et al. e de outros cognitivistas, como Papineau, a saber, o caso do erro. A possibilidade do erro em atividades cognitivas diversas parece ser fundamental para a defesa da representação no cérebro, segundo autores cognitivistas. Por isso, a noção de representação também ganha tanta centralidade, em seus trabalhos. Acredito que Rolla deva aos seus leitores cognitivistas uma explicação enativista para o caso da falha na cognição. Como a sensação falha? Ou como explicamos a falha do juízo ou da memória, sem apelarmos para a noção de representação? Há uma abordagem integrada da tradição enativista que explique tanto a falha em juízos, a partir de sensações, ou da imaginação ou da memória? Como a percepção pode ser falsa se não tem conteúdo? Vale notar que agimos de acordo com uma falsa percepção; tomamos decisões baseadas em falsas representações.

Cognitivistas podem explicar esses casos sem muitos problemas, inclusive em nossas ações, porque usam o poderoso conceito de representação sem muitas restrições. Afinal, nós cometemos erros, porque tomamos decisões sobre representações falsas, pensa um cognitivista. Essa visão parece ser replicada para casos mais básicos, como o do sapo que erra o alvo, ao lançar a língua para pegar uma mosca. Esse é um problema emblemático para a discussão cognitivista, e acredito que o projeto enativista de Rolla poderia se beneficiar muito, ao tratar diretamente dessa discussão e desse argumento. Quanto de informação proposicional deve ser posto para o sapo pegar a mosca? Nenhuma? Mas, se não houver informação proposicional, o que um enativista poderia colocar no lugar do conceito de representação, a fim de explicar o erro, nesse caso de cognição básica? Covariação seria suficiente? Qual é o alcance dessa proposta? A tese da covariação pode funcionar para a imaginação? E para a memória? E para a matemática? E para a lógica? E para raciocínios contrafactuais? Um cognitivista defenderia que não. Será impossível, de fato, ter um argumento representacional e naturalisticamente bem-informado para abordar o problema do erro, nesses casos mais básicos, assim como nos casos mais sofisticados de raciocínio, de maneira integrada?

Embora Rolla faça um trabalho muito bom, ao destacar os problemas com o conceito de conteúdo representacional usado como ferramenta explicativa na ciência cognitiva, ele não fornece uma proposta alternativa da intencionalidade, apenas uma sugestão de uma forma socialmente orientada. Com efeito, Rolla não fornece um modelo explicativo detalhado de como a cognição social e os sistemas de símbolos públicos dão origem a conteúdos em conexão com a cognição básica. Ele não explica, por exemplo, como a cognição social e os sistemas de símbolos públicos podem surgir sem a existência prévia de conteúdos mentais veritativos. As conexões com inferencialismo, ontologia social, intencionalidade compartilhada, reconhecimento mútuo e (neo)pragmatismo devem ser desenvolvidas para resgatar o enativismo dessas críticas, eu acredito (SILVA et al., 2020).

Aqui também vale salientar que há um quebra-cabeça kantiano sobre a conexão entre percepção e julgamento usando noções sociais e normativas. O problema kantiano pode ser assim enunciado: como passamos da percepção à crença e ao juízo? A percepção parece dever ser conceitual, porque nossos julgamentos se aplicam sistematicamente a ela. Contra essa visão, Hutto e Myin (2017, p. 122), por exemplo, sustentam que “[...] é possível, em princípio, explicar as origens da cognição envolvendo conteúdo de uma maneira cientificamente respeitável e sem lacunas. Os RECers, enativistas radicais, pretendem fazê-lo, aludindo especialmente ao importante papel desempenhado pelos andaimes socioculturais.” O trabalho é, então, tentar explicar como os estados mentais repletos de conteúdo realmente surgem, por meio de um processo de domínio de tipos especiais de práticas socioculturais.

Embora rejeitar críticas e teorias rivais com argumentos filosóficos não forneça uma teoria detalhada da ciência cognitiva, pode-se dizer que os trabalhos de Rolla discutem a perene questão filosófica sobre a natureza de nossas atividades cognitivas, desvelando uma visão impossível de negligenciar: a contribuição enativista para o atual estado da arte na discussão.

 

Referências

BURGE, T. The Origins of Objectivity. Oxford: Oxford University Press, 2010.

HAUGELAND, J. Truth and rule-following. In: HAUGELAND, J. (ed.). Having Thought: Essays in the Metaphysics of Mind. Harvard: Harvard University Press, 1998.

HUTTO, D.; MYIN, E. Evolving Enactivism: Basic Minds Meet Content. Cambridge: The MIT Press, 2017.

PAPINEAU, D. Sensory Experience and Representational Properties. Proceedings of the Aristotelian Society, v. 114, p. 1-33, 2014.

PUTNAM, H. Renewing Philosophy. Harvard: Harvard University Press, 1992.

ROLLA, G. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 207- 236, 2023.

SILVA, M. Notes on the nature of logic: an enactivist proposal. O que nos faz pensar, [S.l.], v. 29, n. 49, p. 38-56, jan. 2022. ISSN 0104-6675. Disponível em: http://oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp/article/view/810. Acesso em: 17 fev. 2023. doi: https://doi.org/10.32334/oqnfp.2021n49a810.

SILVA, M.; CAVALCANTI, I.;  MOTA, H. Linguagem e Enativismo: uma Resposta Normativa para a Objeção de Escopo e o Problema Difícil do Conteúdo. Revista Prometheus, n. 33, maio/ago. 2020.

STICH, S. The Fragmentation of Reason: Preface to a Pragmatic Theory of Cognitive Evaluation. Cambridge: MIT Press, 1990.

 

Recebido: 16/02/2023

Aprovado: 20/02/2023


 

A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos

 

Ivan Domingues[128]

 

Resumo: O artigo versa sobre a filosofia contemporânea brasileira e tem como objetivo  introduzir [i] os operadores conceituais no plano teórico-filosófico, com foco no problema da natureza da filosofia brasileira, tomando como ponto de arranque as ideias de autoralidade/originalidade; [ii] as ferramentas analíticas no plano epistêmico-metodológico, ao associar os métodos da metafilosofia, ao operar e dar expressão à ratio filosófica, e os métodos da história intelectual, ao operar e dar expressão à realização histórica da filosofia e da intelligentsia filosófica. O campo das discussões é a metafilosofia, na acepção de filosofia da filosofia, ao desenhar um percurso argumentativo onde metafilosofia, história da filosofia e história intelectual caminham juntas.  Serão considerados, na vertente da história intelectual, a título de hipóteses para operar os processos históricos, os paradigmas da formação e pós-formação; na vertente metafilosófica, com foco no ethos, para tipificar os diferentes posicionamentos da intelligentsia filosófica brasileira frente à matriz europeia, nos séculos XX-XXI, as atitudes de alinhamento e reverência; autonomia e assimilação crítica; instrumentalização ideológica e política; suspeição e defenestração.

Palavras-chave: Filosofia contemporânea brasileira. Metafilosofia. História Intelectual. Paradigmas da formação e da pós-formação. Atitudes frente à matriz europeia da filosofia. 

 

INTRODUÇÃO

          O artigo versa sobre a filosofia contemporânea brasileira e se divide em duas partes.

Na primeira, a título de considerações preliminares e, não obstante, algo extensas, vou tratar, como foi proposto, da ideia de “autoralidade na filosofia” in abstracto, em escala mundial, e mais especialmente da questão da “Filosofia Autoral Brasileira”.

Na segunda parte, de natureza metodológica, ao encaminhar as discussões e, no entanto, sem poder desenvolvê-las, vou tratar dos “Paradigmas e métodos para a filosofia contemporânea brasileira”, como está no título, com a questão da filosofia autoral e outras a ela associadas, como a da originalidade, no centro das considerações, tendo por contexto os séculos XX-XXI e como foco as estratégias de análise.

O campo das discussões é a metafilosofia, aplicada à filosofia brasileira, tendo como núcleo duro a pergunta pela natureza da filosofia –  brasileira, no caso –, levando ao questionamento sobre o logos ou a ratio filosófica, em sua diversidade, senão acerca dos logoi ou das ratios, pois se a razão é a mesma, seus métodos e ferramentais são diversos e mais de um (lógica, retórica, dialética  e a própria matemática), e tendo em vista a razão filosófica como um grande arco que abriga diferentes elementos ou componentes, tais como as technai e os gêneros literários (tratados, ensaios, livros e artigos), passando pelo ethos e os ethei do filosofar como atitude, ideia e convicção, vazados numa cultura de um agrupamento intelectual (intelligentsia). E, paralelamente, como eu venho insistindo em minhas pesquisas, mais além do logos e da ratio como ato intelectual e associado ao pensamento, ao focalizar a práxis coextensiva ao ethos, levando ao questionamento ou à consideração da diversidade de sua expressão e realização históricas nesta parte do globo.

E desde logo, como eu vejo, ao serem consideradas, importando na distinção de fases ou etapas, bem como dos elementos do devir historial que permanecem e não mudam e daqueles que se modificam e se transformam, sem alterar, no entanto, a natureza da filosofia como logos e experiência intelectual. Concluindo, é aqui que fica justificada – nessas duas vertentes da filosofia como pensamento e como práxis, resultando em obras e ações – a pergunta pelo kanon da filosofia, em seus aspectos estático e dinâmico, e em cuja consideração, assim como na descrição e análise dos outros elementos ou componentes do filosofar, como o ethos e a techne, [i] metafilosofia e [ii] história da filosofia andam juntas e são o avesso e o direito de uma mesma realidade e experiência intelectual.

É o que vou tentar mostrar, nas páginas que seguem, perfazendo as duas seções do artigo.

 

1 A AUTORALIDADE NA FILOSOFIA

Começando pela primeira parte, ao me situar frente ao assunto, digo de saída que não tenho reservas em falar de autoralidade e de filosofia autoral, se entendemos por uma tal autoralidade e uma tal filosofia como uma atitude pessoal e uma filosofia em primeira pessoa, em que estamos pessoalmente empenhados ou engajados e podendo resultar numa contribuição original e inédita. A única exigência ou o único requisito é a autonomia intelectual, somada não só da ousadia pessoal em pensar e formular os problemas filosóficos, próprios ou não, mas do empenho pessoal em dar-lhes uma resposta ou uma solução.

Até aí tudo bem e eu não tenho nada contra, depois de ter assistido décadas atrás à “morte do autor” em terras francesas (Roland Barthes), seguida, passados alguns anos, de sua ressurreição na França (Ricoeur, p. ex.) e em outras paragens, inclusive no Brasil, autorizando a ver, como eu vejo, na ideia de autoralidade o outro nome para a originalidade e podendo a escolha recair sobre uma ou outra, com suas vantagens e desvantagens.

A desvantagem da originalidade é sua associação com origem, levando à primazia daquilo que vem primeiro, na ordem do tempo, como se o simples fato de algo ser primeiro ou ter surgido antes por si só lhe dá a garantia ou o selo de ser melhor ou o autêntico, ficando o que vem depois relegado a algo pior ou desvirtuado, como se fosse má cópia ou mero simulacro. Porém, como negar a recorrência dos problemas filosóficos ou que a questão do sujeito em Kant não tem nada a ver com cópia ou simulacro da questão do sujeito e da consciência em Descartes, tendo o francês servido de ponto de arranque para o filósofo alemão, que lhe vai dar uma outra solução?

Outra desvantagem da originalidade é sua associação com novidade, levando à moda e a modismos intelectuais, sendo que, como viu Roberto Gomes, em Crítica da razão tupiniquim, o “novo” e, por extensão, a “novidade”, é apenas um acidente do original, como nos carros sem motor e direção (1994, p. 21-22) – uma quimera em sua época, pressupondo sua modelagem e eventual fabricação o carro tradicional, que está na “origem”, e mesmo a diligência, pode-se dizer. Tudo isso há de ser considerado, devendo o estudioso delimitar com clareza o campo semântico do termo e barrar as implicações indesejadas.

Por sua vez, a ideia de autoralidade tem a desvantagem de ser pouco corrente, bem menos do que autonomia e originalidade, implicando pensar com autoridade e competência, bem como livremente e sem amarras, ao assumir reflexivamente uma posição determinada – e aí não é diferente da ideia de originalidade e de pensamento autônomo e original. Outra desvantagem, e esta, sim, própria da autoralidade e da ideia de filosofia autoral, é sua associação a autor e a autoria. Vale dizer, as criações intelectuais como algo próprio de um indivíduo e com sua marca pessoal, como os claims da filosofia analítica, levando em outros campos da atividade humana a copyright e direito de propriedade. De resto, a algo ou a um plus que não faz parte da essência da atividade intelectual genuína, ou pelo menos não fez parte por mais de dois milênios, sendo um acidente da história ligado ao capitalismo tardio.

Ora, se isso é verdade, como ainda assim falar de autoralidade e negar que a história da filosofia é um imenso hipertexto, que Descartes retomou e copiou Agostinho, da mesma forma que Aristóteles retomou e copiou Platão e Stuart Mill retomou e copiou Auguste Comte, tendo Spencer feito o mesmo? Como falar de autoralidade pessoal ou individual, em tempos como os de hoje, quando se estenderam da ciência para a filosofia experiências de dupla parceria, havendo ainda livros de autoria coletiva provenientes de colóquios, de festschriften ou de encomendas de editoras, sem esquecer a experiência de rede de colaboradores tendo como plataforma a Internet?

Assim, respeitante à dupla parceria, pode ser destacado o caso de Adorno e Horkheimer (Dialética do esclarecimento), na primeira metade do século XX, podendo ser citadas outras parcerias conhecidas na segunda metade do século, como a de Deleuze e Guattari – modalidade esta, no entanto, mais rara em filosofia do que na ciência, cujas revistas de prestígio, como a Nature e a Science, publicam o tempo todo papers com dois, três, uma variedade de colaboradores.

Assim, respeitante aos livros ou publicações de múltipla autoria, por vezes às dezenas, os exemplos hoje abundam por toda a parte, dispensando-me do ônus da escolha ou da necessidade de dar um ou mais exemplos, em nossos dias. Para ficarmos só com casos consagrados de décadas passadas ou mesmo de séculos precedentes, o exemplo mais famoso talvez ainda seja a Encyclopédie, de Diderot e d’Alembert, o maior best-seller do século XVIII, com várias dezenas de colaboradores e inúmeras vezes reeditada. Outro excelente exemplo, no século XX, é o Manifesto do Círculo de Viena, que veio a lume em 1929, com as assinaturas de Moritz Schlick, Rudolf Carnap, Kurt Gödel, Hans Reichembach, Otto Neurath e outros nomes não menos ilustres, incluindo físicos, e ao qual está associada, como a sua maior realização, a Enciclopédia Internacional da Ciência Unificada: precisando, trata-se de uma obra  a várias mãos, fruto de um projeto ambicioso, constituída de dois volumes e levada a lume com o propósito de difundir o modelo fisicalista da ciência,  cuja publicação foi iniciada nos EUA, em 1938, e só concluída em 1969, reunindo um total de 19 colaboradores, entre os quais Bertrand Russell e Niels Bohr, e 25 anos após a morte de seu idealizador, Otto Neurath.  

E assim, acerca da colaboração em rede, corrente em ciência e só recentemente mostrando a que veio, na filosofia, como evidencia o caso de Derek Parfit, não muito citado entre nós e hoje falecido. Vale dizer, aquele que foi uma das últimas eminências de Oxford, que só depois de discutir amplamente Climbing the Mountain, na rede de colegas, estudantes e amigos, habitués de seus seminários, publicou sua primeira versão em 2006. E finalmente, ao dar-lhe a última demão, publicou sua versão definitiva, quando mudou o título para On What Matters, vindo a lume em 2011 (v. 1-2) e 2013 (v. 3), depois de anos e anos de discussão. Trata-se de mais um exemplo de autoria múltipla, como aliás o próprio Parfit reconhece e agradece, fornecendo os nomes.

Contudo, quem vai falar e mesmo vai se importar com isso, em filosofia e mesmo em literatura, se tudo não passa de um hipertexto, como a tradição filosófica com suas recorrências e dezenas de gênios criadores – e, portanto, como obra coletiva, sedimentada em correntes de ideias e escolas de pensamento –, e como também é o caso e nos mostra a literatura, mesmo ao considerar o indivíduo e o gênio criador? Precisamente, em literatura e em outros campos das artes, como negar que tudo não passa de um hipertexto, ao ter em vista o exemplo de Shakespeare? Sim, Shakespeare, em quem todo mundo reconhece a genialidade, de cujas 37 peças que compõem o First Folio, de 1623, nada menos do que 33 resultam da combinação de fontes diversas, aproveitando as comédias de Terêncio, as tragédias de Sêneca e relatos e crônicas de historiadores medievais, sendo, das 37 obras, apenas quatro rigorosamente de sua autoria? E, com efeito, repito, quem vai se importar com isso e dizer que Shakespeare foi um plagiador e um campeão do alheio? (CASTRO ROCHA, 2017, p. 139-140).

Continuando com as considerações preliminares, passo às ideias correlatas de “criação” e de “invenção”, tão essenciais no campo das artes e da literatura, assim como em filosofia, com o culto das mentes privilegiadas e do gênio criador dos grandes filósofos, advindo do romantismo alemão a que tanto a ideia de autoralidade e filosofia autoral quanto a de originalidade e de filosofia original estão associadas. Pessoalmente, desde quando passei a me entender como gente, na adolescência, eu tinha muita simpatia com respeito à ideia de criação no sentido forte, como nas artes, com as ideias de novo e de ineditismo, na linha de frente. Mais tarde, eu me vi mais e mais desconfiado, por causa da vizinhança com a creatio ex-nihilo, saindo alguma coisa do nada ou de um ponto zero, ao contrastá-la com outras noções em filosofia, como produção e construção, depois de reservar a inventio da retórica para a tecnologia, a creatio para as artes e a descoberta para as ciências.

Recentemente, ao ler o livro de João Cézar de Castro Rocha, que saiu pela É Realizações, com o título para lá de espichado de Culturas shakespearianas – Teoria mimética e os desafios da mimesis em circunstância não hegemônicas, eu me vi forçado a levar em conta o campo semântico das ideias de mimesis e imitatio, com seu potencial de vencer as rivais creatio e inventio em literatura, como no caso de João Cézar, e em filosofia, como em meu caso. Assim, João Cézar de Castro Rocha, ao citar George Steiner e seu livro seminal Grammars of Creation, publicado em 2001, onde faz o inventário das diferentes formas da creatio e recupera a distância que separa dois verbos latinos que a tradição intelectual do Ocidente terminou por apagar, tomando-os erroneamente como sinônimos: invenire, que leva a inventio, e creare, que leva a creatio. Peço a vocês, leitores, licença para citar uma longa passagem do livro de João Cézar que sintetiza as coisas que estão em jogo no campo da literatura, permitindo que eu tire as consequências e faça o translado para a filosofia, ao pensar a questão da originalidade e do pensamento em 1ª pessoa, ligada à autoralidade da filosofia brasileira. Conforme as palavras do autor carioca, apoiando-se no franco-britânico George Steiner:

Criar, do latim creare, é um verbo arrogante que implica produzir o novo no instante mesmo da criação; trata-se da romântica creatio ex-nihilo, no elogio do artista auto-centrado, imune a influências externas. Inventar, pelo contrário, do latim invenire, é um verbo sugestivo [trivial, eu diria], cuja modéstia leva longe, pois significa ir de encontro ao que já há, e, muitas vezes, fazê-lo por acaso. Inventar demanda a existência de elementos prévios, que devem ser recombinados em arranjos e relações ainda inexplorados. (CASTRO ROCHA, 2017, p. 227).

 

Desse modo, tirando as consequências, ao voltarmos ao exemplo de Shakespeare, as “culturas shakespearianas” – como as nossas, em que prevalecem a mimesis e a imitatio, frente à chamada civilização ocidental, recombinando o original em novos arranjos – “pertencem ao domínio da inventio” e não da creatio. E prossegue João Cézar, ao concluir o raciocínio, ressaltando a centralidade da inventio da retórica, não por certo – digo eu – a inventio da tecnologia, que sofrerá as limitações da matéria a que se aplica, à diferença da literatura, que tem suas injunções, mas são de outra ordem como obra de pensamento e expressão da subjetividade, não se deixando prender a determinismo algum, nem psíquico, nem físico ou biológico:

A invenção – escreve o crítico – é um dos procedimentos mais importantes da poética da emulação, cujo corolário é a anterioridade da leitura em relação à escrita, e, no caso das leituras não hegemônicas [vale dizer, subalternas, de países periféricos], a centralidade da tradução no desenvolvimento da tradição. Desse modo, aliás, Rubén Dario ‘concebeu seu latino-americanismo: um ser em tradução; uma subjetividade que se constitui no ato de traduzir o universal que se reconhece como alheio a códigos culturais próprios’. Neste ânimo, o poeta-crítico Haroldo de Campos propôs a teoria da ‘transcriação’, segundo a qual o ato de traduzir é, como ele diz, um ato criador. Ou um gesto de inventor, como proponho, pois o tradutor parte sempre de um texto prévio. (CASTRO ROCHA, 2017, p. 227-228).

 

Penso que é o bastante, devendo eu me limitar a fornecer alguns exemplos que ilustrem as ideias do crítico literário carioca, exemplos da literatura, com efeito, e em seguida proceder à expansão de suas considerações luminosas para outros campos da arte e da filosofia.

Inicialmente, exemplos da literatura, fornecidos por João Cézar:

[i] Haroldo de Campos, ao traduzir o poema “Blanco” do escritor mexicano Octavio Paz, fazendo da sua tradução uma verdadeira “transdução” e “transcriação” (CASTRO ROCHA, 2017, p. 228).

[ii] Jorge Luís Borges, em seu Um ensaio autobiográfico, ao falar de seus primeiros escritos, quando “[...] tentava imitar diligentemente Quevedo e Saadra Fajardo, dois escritores barrocos do século XVII que, [à] sua maneira espanhola, rígida e árida, procuravam o mesmo estilo da prosa de sir Thomas Bowne em Urn Burial.” (CASTRO ROCHA, 2017, p. 229].

[iii] E ainda Sergio Pitol, ao falar de Borges e de suas criações em literatura, definindo sua originalidade como a de um plagiário, não muito diferente de Shakespeare, eu diria, que foi o campeão e o maior de todos: “Gustavo Londoño sempre insistia que Borges era um herdeiro direto de Tchekhov. A mim parece que não. Borges inventou uma literatura própria, transformou nosso idioma apoiado nos modelos clássicos, quase todos ingleses. Leu o Quixote em inglês, como Homero e muitos outros clássicos.” (CASTRO ROCHA, 2017, p. 226-227).

Donde a conclusão do crítico carioca acerca de Borges e, indo além do argentino genial, acerca da centralidade da imitatio nas produções literárias, levando-o a relativizar a ideia de originalidade, da qual se pode dizer que se tem alguma coisa a ver com a criação, não é da ordem da creatio ex nihilo. Em vez, é da ordem de uma inventio, como prefere o autor, sem esquecermos que Borges ele mesmo falava de criação, deixando a creatio ex nihilo bíblica e romântica de lado.

E, voltando a João Cézar e suas considerações sobre o argentino, tudo somado “[...] é como se Borges fosse tão mais original quanto mais imitasse a tradição. A contradição é apenas aparente – você [leitor] já sabe. O avesso desse paradoxo, tem nome e sobrenome: poética da emulação.” (CASTRO ROCHA, 2017, p. 227). Emulação, ou seja, digo eu, imitação, não como cópia servil e atitude escrava ou subalterna, mas como competição ou esforço para igualar e superar outrem. É este o ponto que está em jogo e ao qual vou voltar, na sequência.

Passando para a pintura, onde as noções de criação, de imitação e de emulação são centrais, e não menos do que na literatura, ao colapsar a ideia de obra única e criação ex nihilo, o exemplo que eu gostaria de explorar nos vem de Picasso, cujo potencial para repensar a estética da criação artística eu antevi, ao visitar em setembro uma exposição sobre o pintor catalão genial, ao exibir peças inéditas em poder de sua filha mais velha e finalmente trazidas a público no Museu Picasso, em Paris. Trata-se de telas, de variações e esboços de telas e mais telas, na origem telas ou portraits de outros pintores, cujas obras Picasso amava de verdade, como Velázquez, e tentava apropriar-se delas de algum modo, tornando próprio o alheio, um plagiário, portanto, como Borges e Shakespeare – mas quem vai se importar com isso e defenestrar Picasso?

Assim, na exposição, eu me deparei com esboços e variações sobre o belíssimo Déjeneur sur l’herbe, de Manet, cobrindo o extenso período que vai de 1954 a 1962, dos quais resultaram três quadros de Picasso, doados por ele ao Museu, em 1979. Cópias, em suma, mas com sua assinatura, merecendo os seguintes comentários do curador da exposição, num pequeno quadro-notícia afixado ao lado de um dos esboços, a título de guia para os/as visitantes, contextualizando a obra, ao passar da França e dos impressionistas franceses para a Espanha:

Entre janeiro de 1959 e 1962, Picasso realiza estadas no castelo de Vauvenargues, imponente casa senhorial situada ao pé da montanha Santa Vitória perto de Aix-en-Provence. As paisagens circundantes tornadas célebres por Paul Cézanne [que vivera na região, ele mesmo tendo realizado vários esboços da montanha famosa, julgando sua apreensão e pintura impossíveis] lhe  pareceram [a ele Picasso]  como um quadro propício à criação. Este contexto favorece o prosseguimento de um trabalho conforme [d’après] os mestres dos quais testemunham El bobo [de Velázquez, que dará lugar ao de Picasso, de 1959, em cujo título ele acrescenta o nome de Murillo] ou o caderno de estudos consagrado ao Déjeneur sur l’herbe de Edouard Manet.  Este “período Vauvenargues” está marcado, segundo as palavras do historiador de arte Maurice Jardot, pelo retorno a “uma Espanha interior, ardente, grave, simples e franca” da qual “o tom, o timbre, a impostação da voz são os exemplos na obra”. A paleta de Picasso se compõe então com as cores de seu país natal onde os vermelhos, os amarelos, o verde-garrafa e o negro dominam.[129]

 

Concluindo esse longo périplo, chego finalmente à filosofia, a começar pelo mainstream, digamos assim, tomada em sua atopia e expressão universal, comum a várias culturas e épocas históricas. De minha parte, entendo que a antiga rainha do saber, ao longo de mais de 2500 de sua história, com a experiência do filosofar variando no tempo e no espaço, conservou em suas grandes linhas aquilo que poderíamos chamar, em uma de suas componentes, de kanon: termo que em grego significava régua ou vara com que se mediam as coisas, cuja etimologia se viu acrescida depois das ideias de norma ou regra. E paralelamente, em outra componente, conservou para designar a práxis filosófica, em sua interioridade, dizendo respeito a convicções, ideias e valores impressos na alma – ou, antes, na mente, se se preferir –, aquilo que poderíamos chamar com Platão de ethos, associado a conduta ou a comportamento e consistindo numa atitude.

Por um lado, kanon do gênero literário e da expressão filosófica, com a ideia de obra na linha de frente, autorizando-nos a falar de clássicos da filosofia e da tradição filosófica, com Platão e Aristóteles encabeçando as listas, em meio à variedade de expressões e à exigência de alargar e reatualizar o kanon, ao incluir Foucault, Heidegger e Wittgenstein – situação que não é muito diferente da literatura, como mostrou Harold Bloom, em seu livro seminal (BLOOM, 1994). Nele o grande crítico norte-americano põe põe Shakespeare à testa da literatura ocidental, no mesmo passo em que abre a lista das obras canônicas às inúmeras variantes ou variações modernidade adentro, em torno desse núcleo prestigioso e paradigmático, ao incluir Marcel Proust, p. ex., resultando num crescendo, o qual não tem fim ou ponto de paragem. Tal situação não é muito diferente, como mostram outros estudiosos dos departamentos de criação das megacorporações da indústria cultural, que zelam pelos cânones de seus personagens dos cartoons e do cinema, como os de Batman, de Coringa e dos heróis da Marvel, como Hulk, o Homem de Ferro e a Mulher-Aranha, que podem variar, senão não há histórias e eles são esquecidos, mas jamais vazar o kanon ou pôr em xeque e abandonar o núcleo duro do script e do personagem (STRIPHAS, 2015).

Por outro lado, ethos do filósofo e da atitude de filosofar em suas várias modalidades e expressões: frente ao mundo e à realidade circundante, como nos mostram os gregos, que põem o espanto ou o estranhamento na origem do filosofar e da filosofia; frente às imperfeições da natureza e ao mundo humano decaído, com o empenho de salvar as almas, a sua própria e a dos outros, em busca da perfeição e da realização pessoal na outra vida e fora da ordem do tempo, na eternidade, como nos filósofos medievais; e, ainda, natureza e ordem transcendente à parte, frente ao mundo humano nos planos pessoal  e coletivo, em meio a inquietudes existenciais acerca da vida que levamos ou frente às injustiças e distorções dos poderes instalados na sociedade, quaisquer que sejam eles, nos planos micro e macro, como nas filosofias moderna e contemporânea – numa vertente, em busca de experiências mais autênticas, como nos existencialistas, os quais pensavam a filosofia como modo de vida; em outra vertente, em busca de alternativas, com o empenho pessoal de mudar um estado de coisas, clamando pela reforma da humanidade e por mais justiça nas relações humanas neste mundo, como nos iluministas franceses e nos frankfurtianos.

 Ora, num cenário como este, não vejo como as ideias de autoralidade e de filosofia autoral, assim como as rivais originalidade e filosofia original – umas e outras com as ideias de criação e ineditismo abrindo alas –, por si sós sejam suficientes para aquilatar os problemas que estão em jogo no tocante às obras filosóficas. Antes de mais nada, obras caracterizadas pela diversidade de gêneros literários, como o tratado, o ensaio e o paper, devendo o estudioso em seu exame recorrer às ideias de tradição e de kanon, em que o novo vem junto com o velho e o clássico ou o canônico com o datado e o anódino. Ademais, no tocante às formas do filosofar como experiência de pensamento e atitude intelectual, caracterizadas por sua grande variedade, não sendo possível reuni-las numa só, ainda que se fale de uma mesma filosofia como forma de pensamento e campo intelectual: numa direção, levando Descartes a falar de meditação e meditação metafísica, com sua filosofia em primeira pessoa; em outra, Kant a falar de pensamento e reflexão, ao distinguir o conhecimento por construção de conceitos, como nas matemáticas, e o pensamento por reflexão sobre os conceitos e, por extensão, as ideias, como na filosofia; em outra, Marx e Sartre falando em filosofia engajada e fusão da teoria e da prática; e em outra, enfim, Heidegger a falar de pensamento meditativo, ao colocar em xeque a tradição filosófica e a própria filosofia, em busca de outra coisa.

Com essas ideias em mente, eu tratei de abrir uma nova frente de pesquisa delineando o escopo da metafilosofia, ou filosofia da filosofia, com o propósito de, por um lado, pensar e dar coerência à diversidade dos gêneros literários e das obras filosóficas, com a ideia de kanon prestando seus serviços, não me parecendo melhor trocá-lo pelos rankings e algoritmos, como já apontei em estudos anteriores (DOMINGUES, 2014, 2015). E, paralelamente, junto com o kanon, como eu venho insistindo desde a publicação de meu livro sobre Filosofia no Brasil (DOMINGUES, 2017), levando as considerações sobre obra e gênero literário à techne e às diferentes technai filosóficas. Por outro lado, pensar e dar coerência às diversidades da experiência do filosofar, abarcando as diferentes atitudes do filósofo frente ao mundo humano e da realidade circundante, com a ideia de ethos/ethei mostrando seus serviços, não menos essenciais.

Dando um passo a mais nessas investidas, ao juntar pensamento e obra, bem como atitude, techne e gênero literário, de olho na história da filosofia e na tradição filosófica em sua longevidade e diversidade, estamos prontos para decidir o que é filosofia, ao fim ao cabo, como experiência intelectual. Trata-se de uma invenção, como na tecnologia, levando o filósofo a reinventar a filosofia ou a roda filosófica dos velhos problemas e soluções? Trata-se de uma criação, como a literatura, levando Montaigne a criar o gênero ensaio e Aristóteles o tratado? Trata-se de uma descoberta, como na ciência, levando o filósofo a descobrir uma ordem das essências escondida na realidade, como Heidegger ao falar da aletheia ou da essência da técnica como uma nova forma de objetivação e desvelamento? Ou será uma produção, senão uma construção intelectual, levando muitos de nós a falar de reprodução e outros de reconstrução, ao ter em vista a recorrência dos problemas e das soluções filosóficas?

É nesse cenário que faz todo o sentido – ao considerar a tradição filosófica e a história de filosofia, com as ideias de logos, kanon, ethos e techne na linha de frente, bem como as ideias de obra e de gênero literário – recorrermos à ideia de filosofia como hipertexto e cocriação coletiva, tendo ao centro e como fulcro o filósofo, pois, sem o filósofo como indivíduo, não há filosofia pessoal nem coletiva como gênero. Esta é a minha proposta: pensar a filosofia como criação do filósofo, ao me juntar, por um lado, a Deleuze, que em conferência de 1987, intitulada “O ato de criação”, fala da filosofia como criação de conceitos e de ideias, as quais ele parece colocar na base ou na origem dos conceitos, pois sem ideias não podemos fazer nada, e ainda ao me juntar a Adorno que, na Minima moralia, parte em defesa do kanon nas produções musicais; por outro lado, mais perto de nós, aqui no Brasil, sem que ninguém tenha feito ainda o kanon da filosofia brasileira, ao me juntar a Flusser, que toma como sinônimas a criação e a liberdade do artista, autorizando-nos a dizer a mesma coisa da filosofia e do filósofo, ao mesmo tempo, de nossa parte, livres das ilusões românticas do gênio criador do artista  e do enfeitiçamento das criações ab ovo ou ex nihilo.

Tudo somado, se a filosofia é um imenso hipertexto como gênero literário e tradição intelectual, entrando em sua difusão mestres-escolas, o Herr Professor e o pensador; se a história da filosofia consiste na contínua recorrência e retomada dos problemas e das soluções, em meio a cisões e a disputas sem fim, dando lugar a correntes e escolas de pensamento; se as coisas se passam assim, em suma, nada mais raro do que brotar desse estado de coisas uma via totalmente nova e uma solução absolutamente original. Este foi o caso de Heidegger, o qual, em Ser e tempo, inaugura uma maneira sumamente original de fazer filosofia e trabalhar os problemas filosóficos, em que aparece acotovelado com Husserl e a fenomenologia, mas abrindo um caminho todo seu e absolutamente inédito, ao propugnar a analítica existencial do Dasein. Porém, os Heidegger são raros em filosofia, e mesmo raríssimos – e não bastasse o Heidegger 1 que veio antes e eu prefiro, há o Heidegger 2, que veio depois.  Da mesma forma que é igualmente rara, senão impossível, uma criação rigorosamente nova ou absoluta, mesmo no caso de Heidegger, que bebeu em Husserl e aprendeu filosofia lendo os escolásticos medievais, quando mais jovem.

Por isso, todo cuidado é pouco, devendo de nossa parte deflacionar a ideia de criação e falar de criações relativas e mesmo de recriações, senão expansões ou renovações, como os neokantianos frente ao mestre e, no entanto, tendo de seguir outros caminhos, trabalhar novos problemas, como os valores e as culturas, e seguir adiante. Em suma, é isso, com tantas mentes envolvidas e às voltas da tarefa filosófica, inclusive a de difundir e a de ensinar, fazendo da filosofia e da criação filosófica um gradiente que vai do mais ao menos ou do menos ao mais, pouco importa, entrando o mestre-escola, o Herr Professor ou o scholar, assim como o exegeta e o historiador, e ficando o filósofo ou pensador no topo ou no plano mais alto, com nossa reverência e admiração. Contudo, como disse Isaac Newton em carta a Robert Hook, inspirando-se em um dito famoso de Bernard de Chartres, datado de cinco séculos antes: “Se vi mais longe, foi por estar sentado sobre ombros de gigantes.” (Em latim, conforme a fórmula mais sintética atribuída ao filósofo neoplatônico francês:  nanos gigantum humeris insidentes). E como foi, aliás, o caso de Heidegger, que teve Husserl antes dele, como foi lembrado.

 

2 PARADIGMAS E MÉTODOS PARA A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA

Penso que já temos elementos mais do que suficientes para abrirmos o foco da grande angular, expandindo as investigações, ao passarmos para a segunda parte e focalizarmos a filosofia brasileira.

Tal como eu vejo, duas são as ordens de considerações. A primeira, de ordem teórica, em que está em jogo a compreensão global ou a ideia de conjunto acerca do percurso histórico da filosofia em nossas terras e de seus legados, mas com foco nos séculos XX e XXI, como está no título, exigindo que avancemos, a título de hipótese, as tendências ou as linhas de força que nos dariam o fio da meada dos processos em curso, assumidas como paradigma, num sentido próximo de Thomas Kuhn, mas diferente. A segunda, de ordem metodológica, respeitante aos métodos de análise requeridos, ao aliar os métodos metafilosóficos que nos levam à natureza da filosofia como pensamento (logos) e como práxis, ao perguntar pela filosofia da filosofia brasileira, e aos métodos historiográficos da história da filosofia.

A começar pelos paradigmas, eles serão dois em fim de contas, devendo ser coordenados e tensionados, como veremos. De um lado, o paradigma da formação, ao seguir um topos clássico da história das ideias no Brasil, com Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado, Raymundo Faoro e Antonio Candido, abrindo o caminho nas ciências humanas e sociais, e aos quais vão corresponder na história da filosofia brasileira Cruz Costa e Paulo Arantes – todos eles evidenciando, em suas obras seminais, que as coisas se passaram assim em Terra Brasilis da Colônia até tarde do século XX, quando finalmente o país concluiu sua formação histórico-cultural, em seus aspectos institucional e extrainstitucional, quando a nossa filosofia finalmente atinge a maturidade e entra no concerto da filosofia mundial. De outro, o paradigma da pós-formação, que eu introduzi em meu livro Filosofia no Brasil, para pensar o que sucedeu depois, nas últimas décadas do século XX, depois que o SNPG se consolidou nos anos 90, quando o sistema de doutorado foi implantado e o país, ao cabo de 30 anos, saltou de 4 teses, em 1987, para 226, em 2017.

Desse total, 164 sobre autor (= 3/4), somando 83 teses, com Kant (9), Aristóteles (8) e Rousseau (8) encabeçando as preferências, e um montante de 62 teses temáticas (=1/4) (LUCERO 2019, p. 71). E o que é importante: nenhuma tese em 2017 e em anos anteriores sobre algum pensador brasileiro, evidenciando a persistência do colonialismo epistêmico e cultural em nossos meios, e no mesmo passo bloqueando o caminho que levaria ao surgimento, entre nós, do primeiro filósofo brasileiro genuíno, a um só tempo cosmopolita e enraizado nesta parte do mundo, como Kant na Alemanha. Vale dizer, um filósofo não só dedicado a nossos problemas e à nossa cultura, como já temos e o tivemos no passado, mas com reconhecimento mundial como pensador, à diferença do que ocorre no campo da literatura, das artes plásticas, da música e das ciências humanas e sociais.

Passando para os métodos de análise, com a questão da originalidade ou não das criações filosóficas ao fundo das considerações, a que se soma a nossa própria condição de ex-colônia e de país periférico, evidenciada pelo paradigma da formação, levando à transculturação e transplantação das ideias, com a questão da inserção subalterna e colonização intelectual na linha de frente, teríamos o seguinte quadro analítico:

[i] A postulação da atopia da filosofia, que vai junto com as ideias de universalidade e agora internacional ou transnacional, onde as ideias são discutidas e estão em circulação, numa relação dialógica franqueada em princípio a todo mundo;

[ii] A postulação da inscrição local da filosofia, onde vai sofrer a fricção do meio que a hospeda e em que se enraíza, adquirindo novas cores e feições próprias, inscrição que vai junto com a questão geopolítica e o desnivelamento do movimento das ideias, com a circulação Norte-Norte e seus hipercentros se impondo sobre a Norte-Sul e a Sul-Sul, ao obliterar a Sul-Norte, desfazendo a isonomia e quebrando a reciprocidade;

[iii] A exigência de ajustar as duas postulações e considerar a dupla inscrição universal e local da filosofia, nas perspectivas dos países periféricos e centrais, para aferir a originalidade ou não das produções filosóficas, numa situação de hegemonia e domínio ou de colonização intelectual e epistêmica: ontem, na era moderna, como foram os casos da Alemanha e dos Estados Unidos frente à França, a Inglaterra correndo sozinha;  hoje, como a França frente à Alemanha e a Alemanha  junto com a Inglaterra frente os Estados Unidos, que fazem a globalização da filosofia e o debate filosófico mundial; e como foram e são os casos das ex-colônias e dos países periféricos frente à França, à Alemanha, à Inglaterra e aos Estados Unidos.  

Foi assim –  ao me ver desafiado a levar a cabo as novas análises requeridas em complementação ao meu livro Filosofia no Brasil – que eu modelei cinco atitudes possíveis de nossa intelectualidade filosófica tomada in extenso, em sua diversidade, frente à matriz europeia da tradição filosófica ocidental, abrigando num mesmo arco temporal: desde o europeu aqui atuante, como a Missão Francesa em São Paulo, até diferentes extrações da intelligentsia brasileira, tendo como escopo os séculos XX-XXI, com a filosofia acadêmica na linha de frente, mas não tão só ou exclusivamente. Ou seja, as atitudes de:

[i] Catequese e missão civilizatória, já presente no Brasil-colônia e replicada no professor europeu aqui atuante, no século XX, como na Missão Francesa, em São Paulo ou no Rio de Janeiro, podendo resultar numa transmissão acrítica da tradição filosófica, o mais do mesmo, ou na propagação das novidades dos modismos intelectuais;

[ii] Alinhamento e reverência, como contraparte da primeira atitude e marca de grande parte de nossa intelectualidade, ao internalizá-la, como no caso do especialista disciplinar, hoje uma legião em nossas universidades, imperando o mais do mesmo e a transmissão acrítica da tradição, sem considerar o contexto brasileiro;

[iii] Assimilação e independência crítica, como contraparte da segunda atitude e visada como sinal de maturidade intelectual e típica do filósofo genuíno, acarretando a possibilidade de recriação original das ideias ou sua transmutação, ao passar de um contexto a outro, como Benedito Nunes, ao tratar da obra de Clarice Lispector;

[iv] Apropriação ideológica e instrumentalização política, à esquerda ou à direita, levadas a cabo mediante a fusão do pensamento e da ação e vistas como próprias do filósofo intelectual público, com os riscos que a atitude instrumental implica ou acarreta, requerendo a mise-à-distance para resguardar as diferenças de atitude e engajamento do intelectual e do político, como no caso de Marilena Chauí, ao tratar do integralismo e do autoritarismo brasileiros;

[v] Suspeição, repúdio e defenestração da matriz europeia e ocidental, como no pensamento decolonial, com as distorções e as implicações que lhes são próprias, ao estabelecer a equivalência entre “lugar epistêmico” e “lugar social de fala”, atitude já presente há algumas décadas nas ciências humanas e sociais e tendo chegado à filosofia de nossas terras em anos recentes, levando ao insulamento das agendas identitárias ou então à sua exotização: à exotização do novo e do particular ou local, em suma.

Este ponto não poderá ser desenvolvido no presente artigo, devendo eu concluir as pesquisas em andamento nos próximos anos e então publicar os resultados em novo livro de ensaios, ainda sem data para sair, mas a cujos resultados parciais o leitor poderá ter acesso já em 2023, em dossiê especial sobre o assunto organizado pela revista Aurora.

 

CONCLUSÃO

            Voltando à Introdução, com o propósito de sumariar os resultados das investigações desenvolvidas até aqui, penso que eles são de três ordens.

            Antes de mais nada, no plano mais geral da metafilosofia e sua associação com a história, em sua dupla vertente da história das ideias e da história intelectual, o principal resultado consistiu em pavimentar um caminho para a argumentação filosófica, em que a análise das ideias e a clarificação dos conceitos e dos termos empregados, em atenção ao jargão técnico da filosofia, conquanto necessárias e fundamentais, não são, no entanto, suficientes e decisivas para  clarificar e determinar a filosofia como práxis e fenômeno histórico-cultural: para tanto, além da argumentação lógica e linguística, em torno de conceitos e vocábulos, será preciso recorrer à argumentação  contextual e histórica, mediante a consideração de contextos que variam e a introdução de hipóteses sobre o devir historial, incidindo sobre realidades e processos.

            Por seu turno, ao sumariar os resultados específicos a que eu cheguei, no presente artigo, ao levar a cabo a vertente metafilosófica da pesquisa, com a análise conceitual no primeiro plano – donde a atenção especial devotada ao jargão técnico, com os vocábulos gregos logos/logoi, ethos/ethei, techne/technai e kanon/kanonis à testa das análises realizadas, com os termos gregos deixando claro se tratar de um uso eminentemente técnico – penso que o aporte mais significativo e capaz de iluminar as discussões opacas e infindáveis sobre a natureza da filosofia universal como gênero e as filosofias nacionais como caso ou modo, consistiu na distinção conceitual entre [i] a atopia da filosofia e sua inscrição na ágora transnacional e [ii]  a heterotopia da filosofia e sua inscrição geográfica e histórica local. E o que é importante: ponto que eu não pude desenvolver, ao considerar a filosofia brasileira, o claim da dupla inscrição da filosofia nacional evidenciando que distinção não significa separação, podendo haver linhas paralelas ou combinadas.

Por um lado, o scholar ou especialista disciplinar que inscreve a filosofia e sua práxis individual na ágora transnacional e transcultural, participando de corpo inteiro do debate internacional das ideias, com a cabeça no Hemisfério Norte e fazendo home office no Brasil, como durante a pandemia. Por outro, o claim da inscrição local da filosofia, como no pensamento decolonial, de costas para a tradição filosófica, considerada racializada e eurocêntrica, ou ainda o claim da dupla inscrição local e universal da filosofia, como nos scholars de horizontes largos e definidos, em minha taxionomia acima, a terceira, como pensadores autônomos e independentes, a saber: aqueles que assimilaram a tradição ocidental (assimilação crítica) e, no mesmo passo, incluíram o Brasil em suas preocupações e agendas, como Benedito Nunes frente às obras de Heidegger e de Clarice Lispector, como foi lembrado. 

            E, por fim, ao sumariar os resultados específicos da vertente histórica da pesquisa, ao estabelecer o liame entre a história da filosofia e a história intelectual, acarretando a necessidade, a um tempo teórica e empírica, de introduzir as hipóteses unificadoras que vão explicar e dar sentido aos processos em curso ou já consumados, penso que o aporte mais significativo consistiu na postulação do paradigma da formação (hipótese 1) e do seu par, paradigma da pós-formação (hipótese 2). Vale dizer: paradigmas introduzidos ex hypothesis para pensar etapas diferentes de nossa história e com o potencial, por lidar com coerções ou forças da realidade e não tão só com coerções lógicas do pensamento, de introduzir nas análises lógicas e históricas o viés geopolítico.

Ou seja, na esteira do paradigma da formação, ao perguntarmos pelo modo de inserção de nosso país, e da filosofia brasileira especificamente, no concerto das nações em escala global ou mundial: uma inserção dependente e subalterna, ao fim e ao cabo, e isto desde a colônia, em razão do pacto colonial, depois neocolonial, resultando em verdadeiras barreiras estruturais que bloquearão o fluxo das ideias Sulà Norte, em favor do livre curso Norte à Sul.  E numa outra perspectiva, na esteira do paradigma da pós-formação, com o país mantendo com o resto do mundo uma relação de interdependência, ainda que não exatamente horizontal, por causa da geopolítica, a própria disseminação da especialização disciplinar – com o scholar na linha de frente, ao dar origem a um novo mandarinato, em plena taylorização e “paperização” do conhecimento, imperando nas produções intelectuais o mais do mesmo – terminará por bloquear o conhecimento novo, levando à morte do pensamento e, consequentemente, impedindo o surgimento do filósofo genuíno como pensador, no Brasil e por toda parte.

            Todavia, esses resultados, conquanto significativos – como no caso das hipóteses da formação e da pós-formação, já assentadas e com lastro nas ciências humanas e sociais, com os processos históricos evidenciando tanto sua fertilidade quanto sua plausibilidade, inclusive na filosofia –, são ainda provisórios, não passando de ilações e suposições, e sua ratificação ou não deverá aguardar a conclusão da pesquisa.   

O próximo passo vai consistir em fazer o teste da abordagem que está sendo proposta e seus questionamentos, incluído o questionamento da ideia de filosofia autoral, brasileira ou não, ao se aplicar às cinco atitudes de nossa intelectualidade, já referidas, a começar pelo europeu aqui atuante, frente à matriz europeia da tradição filosófica ocidental, tendo como fulcro as ideias de alinhamento e reverência, autonomia intelectual e assimilação crítica, e repúdio e defenestração. E o que é importante: ideias e atitudes cujo exame vai requerer a incorporação de novas categorias analíticas para além da clivagem autoralidade/originalidade e, mesmo, para além do par criação/repetição ou imitação, havendo um gradiente de elos intermediários, combinações, arranjos, componentes e possibilidades interposto entre umas e outras.

 

Contemporary Brazilian Philosophy and the Authorialship Issue: Paradigms and Methods

Abstract: This paper focuses on Brazilian contemporary philosophy and aims to introduce [i] the conceptual tools  on the philosophical-theoretical plan, emphasizing the problem of the nature of Brazilian philosophy and taking the ideas of authoriality / originality as a starting point; [ii] the analytical tools on the epistemic-methodological plan, when associating the metaphilosophical methods, operating and giving expression to the philosophical ratio, and the intellectual history methods, when operating and giving expression to philosophy's historical realization and the philosophical intelligentsia. The discussions field is that of metaphilosophy, in the sense of philosophy of philosophy, when designing an argumentative course where metaphilosophy, history of philosophy and intellectual history go together. We will then have, in the intellectual history branch, in terms of the hypotheses to  operate the historical processes, the formation and post-formation paradigms, and in the metaphilosophical branch, with focus on the ethos, in order to distinguish the different stances taken  towards the European matrix in the XX-XXIst centuries, the attitudes of: alignment and reverence; assimilation and critical independence; ideological appropriation and political instrumentalization; suspicion and defenestration.

 

Keywords: Contemporary Brazilian philosophy. Metaphilosophy. Intellectual history. Formation and Post-formation paradigms. Attitudes towards the European matrix of philosophy.

 

Referências

BLOOM, H. The Western Canon: The Books and School of the Ages. New York: Harcourt Brace, 1994.

CASTRO ROCHA, J. C. Culturas shakespearianas – Teoria mimética e os desafios da mimesis em circunstância não hegemônicas. São Paulo: É Realizações, 2017.

DOMINGUES, I. O sistema de comunicação da ciência e o taylorismo acadêmico: questionamentos e alternativas. Revista Estudos Avançados, v. 28, n. 82, p. 225-250, 2014.

DOMINGUES, I. O taylorismo acadêmico e a filosofia no Brasil: Situação e tendências das publicações. In: DOMINGUES, I; CARVALHO, M. Pesquisa e Pós-Graduação em Filosofia no Brasil – Debates ANPOF de Políticas Acadêmicas, ANPOF, 2015.

DOMINGUES, I. Filosofia no Brasil: Legados e perspectivas – Ensaios metafilosóficos. São Paulo: Editora UNESP, 2017.

GOMES, R. Crítica da razão tupiniquim. 11. ed. São Paulo: FTD, 1994.

LUCERO, E. F. A questão da autoralidade na filosofia brasileira: Um exame cartográfico e metafilosófico. 2019. 119p. Dissertação (Mestrado) – PPG em Filosofia da UnB, Brasília, Brasília, 2019 (disponível em PDF).

STRIPHAS, T. Algorithmic culture. European Journal of Cultural Studies, n. 18 (4-5), p. 395-412, 2015.

Recebido: 12/11/2022

Aceito: 20/11/2022


Comentário a “A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos”

 

Lúcio Álvaro Marques[130]

 

Referência do artigo comentado: DOMINGUES, Ivan. A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 251- 270, 2023.

 

Recebi o convite de Marcos Antonio Alves para fazer este comentário, com muita satisfação, tanto pelo interesse no tema quanto pela honra em comentar o artigo de quem admiro e leio há anos. Isso não significará nenhuma forma de amicus laude, porque magis amica veritas. Também não significa nenhuma forma de crítica, por serem apenas notas sobre um quodlibet de nosso interesse comum. Outrossim, a prática de comentar poderá, com o tempo, reduzir o silêncio monástico que ainda persiste entre muitos de nós.

O estudo em curso mencionado por Ivan Domingues sobre o logos, ethos, techne e kanon, na filosofia, torna-se mais necessário em razão das críticas ao “lugar epistêmico” que, de alguma maneira, gera certa confusão entre militância e produção acadêmica. No momento, o autor pensa os lugares epistêmicos clássicos, isto é, os universais matizados pela circunscrição local do pensamento filosófico nacional e autoral. O resultado mostra-se em duas partes: na primeira, pela compreensão de conceitos, como criação e emulação, mimesis e invenção, originalidade e autoralidade, e, na segunda, os lugares epistêmicos clássicos já mencionados. E, como está presente na conclusão, os resultados “[...] são ainda provisórios, não passando de ilações e suposições”, embora já se entrevê a possibilidade de “novas categorias analíticas” para compreensão de autoria e originalidade, criação e repetição. Não obstante, graças ao rigor típico do autor, o que foi dito já permite uma série de considerações.

Quanto à primeira parte – a autoralidade na filosofia –, Ivan parte da pintura e da literatura e chega aos matizes da autoria, na filosofia contemporânea, sobretudo francesa. Ele argumenta em favor de um conceito deflacionário de autoria, por não se tratar de nada a estilo ex nihilo, mas de algo mais próximo à “poética da emulação”. O desdobramento dessa ideia abre espaço para uma distinção entre autoralidade e originalidade, sendo que o original não é maximizado em função do seu caráter de antiguidade ou anterioridade. Outro passo decisivo refere-se à consideração da filosofia como hipertexto, cujo resultado se revelaria através da noção de criação deflacionária ou de criação relativa, recriação, expansão ou renovação, clivado nos exemplos de Heidegger 1 e 2 e Husserl.

Em relação a esse ponto, consideremos quatro aspectos: o primeiro, a ascensão da novidade como valor filosófico tem data recente no início da modernidade, com Descartes e Bacon, um valor com um fim que já foi datado por Vattimo (2002, p. XII); o segundo, a originalidade enquanto valor epistêmico não se refere apenas à anterioridade temporal ou à antiguidade (traditio), porém, à capacidade de tematizar as raízes, a arché epistêmica de uma questão, no caso, a originalidade não se confunde com a novidade, mas com a busca de compreensão das bases do pensamento de um autor ou de um período histórico; o terceiro, a noção de originalidade comporta dois aspectos básicos: um relativo à gênese de um pensamento, outro, atinente à capacidade de ser fiel ao original. O pensamento original, portanto, não é um pensamento novidadeiro, contudo, aquele que é capaz de ser fiel às suas origens (ad mentem auctoris).

O quarto aspecto se nota nas páginas do próprio Heidegger que serviu de exemplo nesta parte. Para ele, a originalidade no pensamento não decorre apenas da desconstrução do passado, como o fez em Ser e tempo (1927), mas justamente do passo atrás (Schritt zurück) em direção às fontes, à gênese e pressupostos teóricos de certo pensamento (MARQUES, 2022, p. 1-6). Nesse sentido, a autoralidade e a originalidade do pensamento brasileiro talvez requeiram sempre mais a compreensão de pressupostos históricos e filosóficos da herança lusa entre nós.

Quanto à segunda parte – paradigmas e métodos para a filosofia contemporânea brasileira –, o autor focaliza os séculos XX e XXI, estabelecendo uma separação entre, de um lado, o paradigma da formação com os clássicos autores sociais (Gilberto Freyre, Sérgio B. Holanda, Caio Prado, Raymundo Faoro e Antonio Candido) e filosóficos (Cruz Costa e Paulo Arantes) do século passado, “[...] evidenciando em suas obras seminais que as coisas se passaram assim em Terra Brasilis da Colônia até tarde do século XX”, e, de outro, o paradigma da pós-formação, inaugurado sob a tutela da interdependência, da especialização, da taylorização e “pa(u)perização” do conhecimento, conforme a análise “[...] que eu [Ivan Domingues] introduzi em meu livro Filosofia no Brasil.” (2017).

O balanço não parece tão favorável, pois o autor indica como limiar a possibilidade de a produção filosófica acabar “[...] por bloquear o conhecimento novo, levando à morte do pensamento e, consequentemente, impedindo o surgimento do filósofo genuíno como pensador, no Brasil e por toda parte.” O ponto em pauta, como dito na conclusão, seria a “[...] distinção conceitual entre [i] a atopia da filosofia e sua inscrição na ágora transnacional e [ii] a heterotopia da filosofia e sua inscrição geográfica e histórica local.” Vale dizer, pensar a originalidade do pensamento requer uma compreensão do lastro histórico do pensamento com a realidade em que se pensa, cujo diagnóstico nada animador se lê em Lucero (2019).

Nessa parte, o autor situa sua Filosofia no Brasil (2017) como o ponto de viragem entre os paradigmas da formação e da pós-formação, obra em que formulou cinco atitudes bastante produtivas para a compreensão dos tipos intelectuais e que, doravante, se aplicarão à filosofia brasileira do século XX. Entretanto, como destacado no texto, a partir dos clássicos do século XX: “[...] todos eles evidenciando em suas obras seminais que as coisas se passaram assim em Terra Brasilis da Colônia até tarde do século XX...” Esse ponto soa decisivo para pensar a originalidade e autoralidade na filosofia contemporânea brasileira, por diversas razões: a primeira, se considerar a instauração do Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG) como critério exclusivo para a instituição da filosofia entre nós, logo, só os filósofos profissionais seriam dignos do nome; a segunda, o critério seria mais restritivo que a proverbial expressão de Tobias Barreto, pois reduziria a contribuição brasileira às malhas da pesquisa especializada; a terceira, as obras seminais dos clássicos sociais e filosóficos do século XX mostram como as questões contemporâneas do Brasil não se resolvem apenas no hoje, ao contrário, têm raízes nos tempos coloniais. Por tudo isso, a questão posta por Ivan Domingues sobre o logos, ethos, techne e kanon, na filosofia brasileira, é urgente e não poderá ser pensada senão através do lastro histórico-genético.

Nesse sentido, alguns elementos parecem estruturantes para a compreensão dessa contemporaneidade filosófica brasileira (séculos XX e XXI), digo: a complexidade social no século XX traz problemas que requerem análises interdisciplinares de tópicos como urbanização e favelização, industrialização e pós-industrialização, violência e seguridade social, controle da terra e agronegócio, sustentabilidade e saúde, além do sistema público de ensino (que atende apenas cerca de 25% dos alunos do ensino superior), frente ao home schooling and businness knowledge. O advento tardio e precário do sistema público de ensino, confrontado pela mercantilização privatista de títulos acadêmicos, põe em pauta a origem seletiva e elitista do ensino superior nacional, cujas raízes remetem ao século XIX.

Neste século, o sistema de ensino com financiamento público precário viu nascer algumas faculdades timidamente distantes da sociedade, reservadas à elite e com baixa inserção social e cultural. Somem-se a isso as grandes transições que se operaram, graças ou não às lutas sociais: da colônia ao império, do império à república, do escravismo à libertação de escravizados e do padroado ao Estado laico. Enfim, era uma sociedade em transição, sem uma base social e política que subsidiasse a população na busca por condições mínimas de vida social e de desenvolvimento político e econômico. Tanto o século XX quanto o XIX ainda carecem largamente de pesquisas de base capazes de subsidiar uma compreensão estrutural dos problemas e avanços dessa sociedade, como advertiu L. Washington Vita, no Panorama da filosofia no Brasil (1969).

Por fim, como as grandes questões brasileiras “[...] passaram assim em Terra Brasilis da Colônia até tarde do século XX”, seria igualmente estranho tentar compreender as razões do pensamento contemporâneo, esquecendo-se do trauma colonial. Uma sociedade mantida por mais de três séculos em um regime de exploração voraz, que sofreu a colonização do tempo e espaço, religião e cultura, língua e símbolos, território e formas de vida, corpos originários e africanos, ainda não superou os principais traumas coloniais: a integração de povos originários e africanos, a socialização da terra e de meios de produção e a universalização do sistema de ensino. Ao contrário, o ensino colonial foi religioso, com largo aporte financeiro da Coroa e restrito à elite e ao clero. Por isso, uma sociedade que ainda não se pôs no divã da história nem enfrentou seus traumas continua uma sociedade com pensamento alienado e alienante, mimético e emulador, incapaz de ultrapassar os muros da academia e prestar o serviço devido à sociedade onde se encontra.

Enquanto o pensamento filosófico deixar-se embalar por sistemas bem-construídos do pensamento do Eixo Norte, a filosofia continuará a fazer comentário e exegese para sua autoilusão. Pôr em questão o logos, ethos, techne e kanon da filosofia brasileira é analisar a legitimidade disso que fazemos como home office do pensamento do Eixo Norte. Haveria legitimidade em um pensamento encapsulado somente nas mãos dos especialistas que falam apenas a seus pares imediatos?  Tal como a literatura, as ciências sociais e as artes que se tropicalizaram desde a Semana de Arte Moderna e, em alguns casos, antes mesmo disso, produzindo contribuições de inegável teor original e crítico, não é tempo de rever o estatuto epistêmico da filosofia, entre nós? Ou ainda devemos insistir na compreensão filosófica, sem uma psicanálise profunda e sistemática de nossa produção teórica e sem investigar o lastro “[...] em Terra Brasilis da Colônia até tarde do século XX”?

 

Referências

DOMINGUES, Ivan. A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 251- 270, 2023.

MARQUES, L. Á. The Jesuit Philosophical Heritage in Brazil. Engaging Sources: The Tradition and Future of Collecting History in the Society of Jesus (Proceedings of the Symposium held at Boston College, June 11-13, 2019). Available in: https://doi.org/10.51238/ISJS.2019.27. Access: 18 Nov. 2022.

VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. 2. tiragem. Trad. E. Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

VITA, L. W. Panorama da filosofia no Brasil. Porto Alegre: Globo, 1969.

 

Recebido: 03/04/2023

Aprovado: 11/04/2023


 

Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica

 

Jonas Gonçalves Coelho[131]

 

Resumo: A questão sobre a qual se propôs refletir neste artigo é se, e em caso afirmativo, em que termos, uma abordagem fisicalista não reducionista e interacionista explica a relação entre consciência e cérebro. Para tanto, tomou-se como fio condutor o problema da lacuna explicativa em sua relação com o problema da lacuna ontológica, o que envolveu duas questões entrelaçadas: 1. A existência de uma lacuna explicativa implica a existência de uma lacuna ontológica? 2. A inexistência de uma lacuna ontológica implica a inexistência de uma lacuna explicativa? Acredita-se que essa reflexão seja bem-vinda, uma vez que essas duas perspectivas, a epistemológica e a ontológica, muitas vezes se confundem e não são compreendidas.

 

Palavras-chave: Consciência. Cérebro. Lacuna explicativa. Lacuna ontológica.

 

 

Suponhamos que construímos um ser artificial capaz de passar com louvor no Teste de Touring. Não saberíamos se esse ser possui consciência fenomênica; a rigor, só ele o saberia. Na hipótese de esse ser artificial possuir consciência fenomênica, seria preciso algo além do conhecimento de sua estrutura e funcionalidade, por nós construídas, para explicar a existência daquela?

 

Quanto mais conheço a estrutura e funcionamento do cérebro, em sua interação com o corpo e com o ambiente, físico e sociocultural, externo ao corpo, menos a consciência, em suas diversas formas e conteúdos, parece-me um mistério.

 

I

Tenho defendido, baseando-me em pesquisas envolvendo a interface entre a filosofia da mente e a neurociência, o que chamo de “abordagem dupla face” da relação entre consciência e cérebro, a qual pode ser resumida nos seguintes termos: para explicar a relação entre consciência e cérebro, é necessário que se considerem as suas duas faces e direções dessas, ou seja, consciência cérebro e cérebro consciência. Essa abordagem assume e corrobora uma concepção  fisicalista não reducionista e interacionista, segundo a qual consciência e cérebro – duas faces – são entidades distintas, irredutíveis e inseparáveis, sendo as propriedades de cada uma delas a causa – duas direções – das propriedades da outra. O cérebro físico, incorporado e situado fisicamente e socioculturalmente, causa a existência da consciência, em suas diferentes formas e conteúdos; a consciência, propriedade do cérebro incorporada e situada fenomenalmente, causa modificações na estrutura e funcionalidade do cérebro. Considerando-se que, segundo essa abordagem, a consciência não é uma substância cartesiana[132], seu papel causal deve ser compreendido, conforme se verá posteriormente, como inseparável do cérebro no qual está instanciada.

A hipótese de que, para explicar a consciência, deve-se olhar para o cérebro, incorporado e situado, fundamenta-se, principalmente, em pesquisas neurocientíficas, as quais indicam que os eventos conscientes em geral – cognitivos, volitivos e emocionais – são causados por eventos cerebrais. São incontáveis os estudos publicados nos últimos anos que tratam da relação entre o cérebro e os vários aspectos da vida consciente, os quais envolvem os efeitos de lesões em regiões cerebrais específicas, o monitoramento da atividade cerebral através do uso de tecnologias, como a ressonância magnética funcional, e a manipulação química e eletromagnética do cérebro. Essas pesquisas têm propiciado o desenvolvimento de práticas terapêuticas dirigidas a disfunções cognitivas, volitivas e emocionais, as quais consistem, grosso modo, em modificar fisicamente a anatomia e funcionalidade do cérebro e, consequentemente, as experiências subjetivas conscientes.

A hipótese de que, para explicar a estrutura e funcionalidade do cérebro, deve-se olhar para a consciência, também se baseia em pesquisas neurocientíficas, as quais têm mostrado que o cérebro, além de ser incorporado e situado fisicamente, é incorporado e situado experiencialmente – fenomenalmente. Isso significa que é como consciência, embora não exclusivamente, que o cérebro interage tanto com os estímulos físicos provenientes do corpo e do ambiente físico externo, nos quais está inserido, quanto com o ambiente externo sociocultural. Sabe-se que o cérebro responde inconscientemente aos estímulos físicos através dos órgãos dos sentidos, da interocepção e da propriocepção, entretanto, o que se está enfatizando aqui é a capacidade que o cérebro tem de interagir conscientemente com os estímulos físicos e socioculturais. Em relação a esse aspecto, a neurociência contemporânea tem defendido que o cérebro é modificado – plasticidade cerebral – pela exposição não apenas a estímulos físicos corpóreos e externos, mas também a práticas socioculturais, como aquelas relacionadas à educação regular, à educação moral, às psicoterapias, às práticas de meditação etc.

Assumindo esses resultados das pesquisas em neurociência, cujo mérito não será objeto de análise neste artigo, a questão sobre a qual me proponho refletir é se, e sendo o caso, em que termos, essa concepção fisicalista não reducionista e interacionista, pressuposta e ancorada na abordagem dupla face acima esboçada, resolve de forma satisfatória o problema da relação entre consciência e cérebro. Para tanto, tomarei como fio condutor o problema da lacuna explicativa – lacuna epistemológica –, o qual será enfrentado a partir de sua relação com o problema da lacuna no ser – lacuna ontológica, o que envolve duas questões entrelaçadas: 1. A existência de uma lacuna explicativa implica a existência de uma lacuna ontológica? 2. A inexistência de uma lacuna ontológica implica a inexistência de uma lacuna explicativa? Considero que essa reflexão é oportuna, visto que essas duas perspectivas, a epistemológica e a ontológica, frequentemente se confundem, sem que se explicitem suas implicações recíprocas. Para efetivá-la, começarei com uma breve apresentação, nas duas seções que se seguem, dos termos em que tem sido tradicionalmente colocado o problema da lacuna explicativa.

 

II

Para que se compreenda o problema da lacuna explicativa, tal como atribuído à concepção fisicalista não reducionista, incluindo a interacionista, da relação entre cérebro e consciência, é necessário que se explicite o significado dos conceitos diretamente envolvidos nessa problemática, a saber: “consciência”, “cérebro” e “explicação”. Inicio pelo conceito “consciência”. Embora difícil de definir, seu significado é facilmente compreensível, visto tratar-se de algo que nos é muito familiar. Compreendemos o que é consciência por oposição à inconsciência. Dizemos que uma pessoa está inconsciente, durante o tempo em que está dormindo – sono normal sem sonhos ou sono induzido (anestesia geral) – com isso significando que, durante esse período, essa pessoa não vivencia nenhum tipo de experiência.

De modo distinto, dizemos que essa pessoa está consciente, ou seja, acordada, significando que ela vivencia as mais diversas formas de experiência. Dentre as formas de experiência consciente, destacam-se as sensações corpóreas – visuais, auditivas, olfativas, táteis, gustativas, interoceptivas, proprioceptivas –, as emoções – medo, alegria, tristeza, ódio, amor etc. –, as imaginações, os desejos, as crenças, as intenções e as lembranças. Cada uma dessas formas inumeráveis implicam variados conteúdos, os quais constituem a experiência subjetiva consciente de cada pessoa. Daí podermos perguntar sobre um ser humano – ou não humano –, que acreditamos ter experiências conscientes: como são suas experiências? Por exemplo, como são suas sensações olfativas, gustativas, visuais, auditivas, táteis, proprioceptivas; como são seus sentimentos, lembranças, crenças, desejos, intenções etc.[133]

Diferentemente do conceito de consciência, o qual se refere às várias formas e conteúdos da experiência subjetiva, o conceito de “cérebro” significa algo objetivo, ou seja, o órgão corpóreo, constituído de várias estruturas, corticais e subcorticais, cujas funções, individualmente e/ou em conjunto, são associadas àqueles estados conscientes. Dentre as estruturas, incluem-se os corteses frontal, ocipital, parietal, temporal, sensorial, motor etc.; o hipocampo, o tálamo, o hipotálamo, o corpo caloso, a amídala etc.; os sistemas visuais, auditivos, olfativos, gustativos, interoceptivos, proprioceptivos etc.; as células e circuitos eletroquímicos neuronais, os circuitos químicos hormonais etc.

Essas estruturas cerebrais interagem continuamente com as outras partes do corpo e, através dessas, com o ambiente externo físico e sociocultural, instanciando funções cognitivas, volitivas, afetivas e motoras; em outras palavras, o cérebro é um órgão incorporado e situado. Sendo um órgão físico, o cérebro compartilha com outros corpos físicos alguns dos inúmeros constituintes fundamentais da natureza, tal como definida pela Física. Nesse nível, a natureza é composta por partículas, tais como próton, nêutron, elétron pósitron, neutrino, kaons etc; pelas quatro forças fundamentais, ou seja, a gravidade, a eletromagnética, a interação forte e a interação fraca; pela energia em suas várias formas, tais como a luz, a eletricidade, o calor e o raio-x.

Tendo definido, grosso modo, os conceitos “consciência” e “cérebro”, passo ao significado da noção de “explicação”, afinal, trata-se do problema da lacuna explicativa. Nesse contexto, assumirei que uma explicação consiste no estabelecimento de uma relação causal entre eventos, a partir da identificação da causa – explanans – de um efeito – explanandum. Dessa maneira, uma explicação – perspectiva epistemológica – pressupõe uma relação causal real entre eventos – perspectiva ontológica – a ser identificada. Isso significa que a noção de “explicação” implica a noção de “conexão” entre eventos, ou seja, o evento considerado como causa possui propriedades que tornam necessária, em contextos semelhantes, as propriedades características do evento efeito.

Essas conexões necessárias seriam identificadas a partir das regularidades que se observam na relação entre os eventos. Baseando-se na regularidade verificada entre os eventos cerebrais e os eventos conscientes, o fisicalismo não reducionista defende que as propriedades físicas, estruturais e funcionais dos primeiros causam as propriedades qualitativas dos segundos; em outras palavras, as propriedades qualitativas conscientes são efeito das propriedades físicas, estruturais e funcionais do cérebro. Segundo essa perspectiva, explicar as propriedades qualitativas conscientes consiste em identificar as propriedades físicas do cérebro que as causam; em outras palavras, identificar a propriedades físicas do cérebro das quais elas são um efeito.

Mas não haveria uma lacuna nessa explicação segundo a qual, grosso modo, o cérebro é a causa da consciência, ou seja, os eventos físicos cerebrais são a causa dos eventos qualitativos conscientes? É o que defendem proeminentes filósofos da mente, cujos principais argumentos serão resumidamente apresentados a seguir.

 

III

O argumento central a favor da lacuna explicativa é que o conhecimento, por mais detalhado que seja, dos eventos físicos associados regularmente aos eventos conscientes não permitiria identificar uma conexão causal entre eles. De que haja uma conjunção regular entre os eventos físicos cerebrais e os eventos qualitativos conscientes não há dúvida, mas conjunção regular não é o mesmo que conexão causal, argumentam os defensores da lacuna explicativa. A existência de uma lacuna explicativa nessa relação seria corroborada pelo fato de ser imaginável, ou concebível, que cérebros estruturalmente e funcionalmente idênticos aos nossos não possuam consciência, ou seja, seria possível existir um mundo fisicamente idêntico ao nosso, mas no qual seus habitantes seriam destituídos de consciência. Desse modo, pretende-se que, por serem os eventos físicos cerebrais e os eventos qualitativos conscientes essencialmente distintos, a sua conexão causal é ininteligível. Em suma, por mais que se conheça a natureza e as propriedades físicas do cérebro, não seria possível explicar a partir delas a existência das propriedades qualitativas da consciência. Essa relação ininteligível seria, portanto, um mistério.

Sobre esse problema, vejamos, brevemente, o que dizem alguns dentre os mais proeminentes filósofos da lacuna explicativa: Joseph Levine, David Chalmers e Collin McGinn. Joseph Levine afirma que a “ligação” entre os aspectos físicos/funcionais cerebrais e suas características qualitativas/fenomênicas é um “completo mistério” (LEVINE, 1983, p. 357). Levine apresenta o problema da lacuna explicativa, tomando, como principal exemplo, a experiência de dor. A dor, sendo uma experiência consciente, possui um “caráter qualitativo” – “propriedade fenomênica” –, ou seja, o “modo como ela é sentida”. Além disso, a dor está associada causalmente a eventos envolvendo o sistema nervoso periférico e central.

O argumento de Levine é que, ao associar causalmente a dor a um evento cerebral com o qual a identificamos, como o disparo das fibras-C no cérebro, continuaria inexplicada “a razão por que sentimos a dor como a sentimos!” Isso porque “[...] não parece haver nada sobre o disparar das fibras-C que se ‘ajuste’ naturalmente com as propriedades fenomênicas da dor.” (LEVINE, 1983, p. 357). Essa lacuna tornaria possível imaginar os eventos físicos cerebrais sem os eventos qualitativos conscientes e os eventos qualitativos conscientes sem os eventos físicos cerebrais: “Se não há nada que possamos determinar sobre o disparar das fibras-C que explique por que esse tem o caráter qualitativo que tem [...] torna-se imediatamente imaginável haver disparos de fibras-C sem o sentimento de dor, e vice-versa.” (LEVINE, 1983, p. 359).

David Chalmers considera que a “[...] coisa mais misteriosa do mundo” (CHALMERS, 1996, p. 4) é conciliar a consciência, a coisa “mais familiar” e “mais intimamente conhecida”, com o que se sabe sobre o físico: “[...] a consciência é tão desconcertante quanto sempre foi [...] parece completamente misterioso que a causação do comportamento deva ser acompanhada por uma vida interna subjetiva.” (CHALMERS, 1996, p. XI). Segundo Chalmers, embora tenhamos “[...] boas razões para acreditar que a consciência se origina de sistemas físicos tais como cérebros [...] temos pouca ideia de como ela se origina, ou de porque ela existe.” (CHALMERS, 1996, p. XI).

Ainda segundo o filósofo, por mais conhecido que seja o mundo físico, não seria possível derivar dele a consciência: “Se tudo que soubéssemos fossem os fatos físicos, e mesmo os fatos sobre dinâmicas e processamento de informação em sistemas complexos, não haveria nenhuma razão convincente para postular a existência de experiência consciente.” (CHALMERS, 1996, p. 4). A consciência seria algo completamente “inesperado”, “imprevisível” e “surpreendente”. Daí ser possível conceber logicamente a existência de zumbis, ou seja, seres fisicamente idênticos a nós, mas desprovidos de experiência consciente, e até mesmo mundos fisicamente idênticos aos nossos, porém, desprovidos de seres conscientes: “[...] podemos conceber a possibilidade lógica de um mundo zumbi: um mundo fisicamente idêntico ao nosso, mas no qual não existem seres conscientes. Nesse mundo, todos são zumbis.” (CHALMERS, 1996, p. 94).[134]

Assim como Levine e Chalmers, Colin McGinn defende que o problema da lacuna explicativa envolvendo a relação entre cérebro e consciência é um “mistério”, todavia, diferentemente desses filósofos, entende que esse não é um mistério em si mesmo, mas um mistério para os seres humanos. Assumindo que o cérebro causa a consciência, McGinn argumenta que não podemos saber como isso ocorre: “Sabemos que os cérebros são a base causal de facto da consciência, mas não temos, ao que parece, qualquer entendimento de como isto pode ser.” (McGINN, 1989, p. 349). Não o sabemos, e nunca o saberemos, em virtude de nossa constituição cognitiva: “Este é um tipo de nexo causal que estamos impedidos de alguma vez compreender, dado o modo que temos de formar os nossos conceitos e desenvolver as nossas teorias.” (McGINN, 1989, p. 350). O limite de nossas “competências cognitivas” implica um “fechamento cognitivo”.

Para McGinn, embora o modo como estados físicos cerebrais causam os estados qualitativos conscientes seja “misterioso” para nós, ele não é “milagroso”, visto ser real e, em princípio, explicável: “[...] o que para nós é numênico pode não ser miraculoso em si [...] na verdade, a consciência não surge do cérebro do modo miraculoso como o Génio surge da lâmpada.” (McGINN, 1989, p. 352). Desse modo, por considerar que não há milagres na natureza, McGinn argumenta que a assunção de que estados cerebrais causam estados conscientes significa que existe “conexão necessária” entre os dois estados, a qual deve ser explicada, ou seja, tornada inteligível, e acredita que existe uma teoria científica que os explique, embora essa teoria esteja definitivamente fora do alcance dos seres humanos.

O problema filosófico acerca da consciência e do cérebro surge na medida em que somos forçados a aceitar que a natureza contém milagres — como se a lâmpada meramente metálica do cérebro pudesse trazer à existência o génio da consciência. Mas não precisamos de aceitar isto; podemos apoiar-nos no conhecimento de que alguma propriedade (incognoscível) do cérebro faz com que tudo se encaixe.. O que cria a confusão filosófica é a pressuposição de que o problema tem, de algum modo, de ser científico mas que qualquer ciência concebida por nós irá representar as coisas como totalmente milagrosas. E a solução é reconhecer que o sentido de milagre vem de nós e não do mundo. Nada há, na realidade, de misterioso acerca do modo como o cérebro gera a consciência. Não há problema metafísico. (McGINN, 1989, p. 362).

 

Em que pese o problema da lacuna explicativa, tal como tem sido paradigmaticamente apresentado pelos filósofos da mente citados, estes são unânimes ao sustentar que a consciência qualitativa é uma propriedade causada pelas propriedades físicas do cérebro, sugerindo assim que não há uma lacuna ontológica nessa relação; é o que McGinn postula explicitamente, ao afirmar a existência de uma conexão necessária entre cérebro e consciência. Argumentarei, a seguir, que a assunção de uma conexão causal necessária entre os eventos físicos cerebrais e os eventos qualitativos conscientes implica, se não em dissolver, pelo menos em mitigar a lacuna explicativa; se não solucionar o mistério, pelo menos amenizá-lo, e isso sem que sejam necessárias capacidades cognitivas especiais distintas daquelas que naturalmente possuímos, como McGinn sugere.

 

IV

Ao defender que há uma conexão causal necessária entre eventos, estou assumindo uma concepção essencialista – realista – da causação. Nesse sentido, penso que se aplica à relação entre o cérebro físico e a consciência qualitativa o mesmo tipo de relação causal que Brian Ellis, em seu “essencialismo científico”, atribui à relação entre o que chama de “tipos naturais”, referindo-se a entidades puramente físicas.[135]  Parafraseando Ellis, assumirei que: (a) cérebro e consciência não são passivos, mas essencialmente ativos e reativos; cérebro e consciência possuem propriedades disposicionais, isto é, poderes, capacidades e propensões causais; (c) as regularidades – “leis básicas” – envolvidas na relação cérebro e consciência decorrem dos modos como estão predispostos a agir ou interagir, dadas suas propriedades essenciais; (d) essas regularidades são metafisicamente necessárias, porque qualquer coisa que tenha as mesmas propriedades disposicionais essenciais deve estar predisposta a comportar-se como essas propriedades requerem; (e) as relações causais elementares envolvem conexões necessárias entre eventos cerebrais e eventos conscientes.

Assumindo-se essa concepção ontológica – essencialismo/realismo causal – como ficaria o problema da lacuna explicativa, ou seja, os eventos físicos cerebrais explicariam os eventos qualitativos conscientes? Em que pese a existência de uma conexão necessária, o problema da lacuna explicativa parece permanecer, na medida em que, como já argumentava brilhantemente o filósofo David Hume, nossa experiência nos oferece eventos distintos, todavia, não a conexão causal entre eles. Seríamos nós que os conectamos causalmente, a partir de sua conjunção regular, mas conjunção regular não é conexão causal. Embora concordando com essa tese humiana, estou assumindo que onde houver causação há regularidade – essencialismo/realismo causal –, o que significa que a identificação de conjunções regulares é o meio mais adequado para se identificar as causas, isto é, para explicar os efeitos. Levando-se em conta que onde houver conexão causal há conjunção regular, e que há uma conjunção regular, amplamente conhecida, entre eventos físicos cerebrais específicos e eventos qualitativos conscientes específicos, conclui-se, legitimamente, que são os primeiros que causam e, portanto, explicam os segundos.

Poder-se-ía alegar, ainda em termos humianos, que essa regularidade não constitui nenhuma garantia de que há uma conexão causal entre os eventos físicos cerebrais e os eventos qualitativos conscientes. Penso que esse ceticismo pode ser mitigado, admitindo-se: 1. Que não há uma causa da consciência concorrente com o cérebro físico, por exemplo, algum tipo de substância não física; nenhum tipo de experiência nos dá a existência de uma substância não física ocorrendo de forma regular com os eventos qualitativos conscientes. 2. Que, embora possa causar estranhamento o fato de eventos físicos cerebrais causarem eventos conscientes, cuja natureza é essencialmente qualitativa, é preciso lembrar que estes últimos eventos não têm uma natureza substancial, no sentido cartesiano, ou seja, não se trata de uma substância cartesiana não física produzida pelo cérebro físico. 3. Que, quando se observam em detalhes a riqueza e a complexidade da estrutura e funcionamento do cérebro, em sua interação com a riqueza e complexidade do corpo no qual está incorporado, e do ambiente externo ao corpo no qual está situado, parece não haver nenhum fundamento para se especular que todo esse extraordinário complexo sistema não seja a causa da consciência qualitativa, a qual deveria ser procurada em outro lugar.

Consideremos, a título de exemplo, a relação entre o cérebro e a consciência visual.[136] Segundo a concepção essencialista/realista anteriormente assumida, explicar a consciência visual consiste em identificar a sua causa, no caso, a estrutura e a funcionalidade do sistema cerebral visual, em sua interação com o órgão corpóreo e com o ambiente externo. Resumidamente, a concepção científica dominante é a de que a consciência visual, constituída por propriedades, tais como cor, forma, movimento, localização espacial e identificação de objetos, resulta de um processo que se inicia no ambiente físico externo ao corpo, onde a luz incide sobre os objetos e esses, em virtude de sua constituição atômico-molecular, a absorvem e refletem em maior ou menor grau. A luz refletida incide sobre o olho, órgão corpóreo altamente complexo, cuja estrutura é constituída por inúmeros componentes, dentre os quais se destacam a pupila, a íris, a córnea, as câmaras anterior e posterior, o cristalino e a retina, esta, por sua vez, composta por células fotorreceptoras (cones e bastonetes), além de células horizontais, bipolares, amácrina, ganglionares etc., cada uma delas com funções específicas e imprescindíveis à geração de informações eletroquímicas.

Essas informações são transmitidas pelo nervo trato ótico para uma estrutura localizada no tálamo, o núcleo geniculado lateral, do qual partem radiações óticas que chegam ao córtex visual, constituído por vários núcleos (V1, V2 etc.) com funções específicas. O córtex visual, junto com outras estruturas, tais como o campo ocular frontal, o colículo superior, os núcleos pretectais, os músculos extraoculares etc., algumas dessas responsáveis por atividades motoras do olho, estão envolvidos e são imprescindíveis para a construção dos diversos conteúdos da consciência visual anteriormente citados.

Embora essa seja uma descrição muito resumida da estrutura e funcionalidade do sistema visual, acredito que ela seja suficiente para ilustrar o que foi dito no penúltimo parágrafo. Primeiro, não é necessário, nem inteligível, postular que a causa da consciência visual não é o cérebro, incorporado e situado, mas alguma substância cartesiana de natureza não física, o que implicaria uma lacuna ontológica. Segundo, ao causar a consciência visual, o cérebro não está produzindo uma substância cartesiana não física; novamente, não há uma lacuna ontológica. Terceiro, a busca de um conhecimento minucioso dessa complexa estrutura e funcionalidade, envolvendo não apenas o sistema visual, mas também outros sistemas cerebrais relacionados a outras formas de consciência cognitiva, a saber, as volitivas, afetivas e motoras, é o único caminho para explicar as experiências conscientes correlatas. 4. Não seria possível que cérebros e corpos com estrutura e funcionalidade idênticas às dos seres humanos não possuíssem experiências conscientes semelhantes; daí a admissão de que animais não humanos, que tenham sistemas visuais, assim como outros sistemas cerebrais/corporais, mais ou menos semelhantes aos dos seres humanos, tenham consciência visual, assim como outras formas de consciência correlatas.

 

V

Assumindo essa visão fisicalista segundo a qual as propriedades físicas, estruturais e funcionais do cérebro físico causam a propriedade qualitativa consciência, em suas várias formas e conteúdos, e que, portanto, é no cérebro, em sua interação com seu corpo e com o ambiente externo, físico e sociocultural, que se deve buscar a explicação para as diversas formas e conteúdos de consciência, como compreender o papel causal da consciência em relação ao cérebro?

Aqui reaparece o problema da lacuna explicativa, contudo, numa direção inversa, pois se trata de responder se, e sendo o caso, explicar como as propriedades qualitativas da consciência atuariam causalmente sobre as propriedades físicas do cérebro, o que parece ininteligível. Vem ao encontro desse problema a possibilidade de se poder imaginar/conceber a consciência qualitativa sem o cérebro físico – um mundo berkeleyano de consciências puras. Assim como no caso do problema da causalidade cerebral, o problema da causalidade da consciência envolve uma lacuna explicativa, a qual pressupõe uma lacuna ontológica entre a consciência qualitativa e o cérebro físico. Voltemos então à questão da lacuna ontológica.

Cabe aqui inicialmente lembrar o que foi destacado na seção anterior, ou seja, que, para o fisicalismo, a consciência não é uma substância cartesiana, mas uma propriedade qualitativa das propriedades físicas do cérebro. Não sendo a consciência qualitativa uma substância, não seria apropriado, rigorosamente falando, dizer que a consciência causa eventos cerebrais, pois tal enunciado sugere que a consciência, a qual é causada pelo cérebro, adquire, a partir daí, algum tipo de independência ontológica e um poder causal inerente à sua natureza qualitativa; é o que parece implícito na noção de “causação descendente”. O primeiro passo, então, para resolver o problema da causação consciente consiste em não substancializar a consciência, não confundindo, assim, o dualismo de propriedade com o dualismo de substância; o cérebro não causa a substância cartesiana consciência, mas a propriedade qualitativa consciência. Não sendo a consciência uma substância cartesiana, seria legítimo atribuir a ela uma ação causal sobre o cérebro?

Penso que sim, e que o caminho é, em vez de considerar a consciência como possuidora de alguma autonomia em relação ao cérebro, deve-se considerá-la como uma propriedade qualitativa do cérebro, a qual lhe dá a capacidade/poder de interagir causalmente consigo mesmo e, a partir daí, com seu corpo e, através deste, com o ambiente físico e sociocultural externo ao corpo. Isso significa focar no poder causal do cérebro derivado do fato de este ter a propriedade qualitativa consciência, o que implica entender como o fato de o cérebro possuir essa propriedade interfere na sua estrutura e funcionalidade e, consequentemente, na sua interação física e consciente com seu corpo e, através deste, com o ambiente externo físico e sociocultural. Essas propriedades conscientes, em suas várias formas e conteúdos, as quais dão ao cérebro capacidades/poderes causais que este, de outro modo, não teria, são utilizadas pelo cérebro como guias de sua ação voluntária, não sendo, portanto, apenas epifenômenos. Resumidamente, o cérebro é o agente e a consciência, em suas várias formas e conteúdos, é seu guia de ação.

Tentarei explicitar essa interpretação, voltando ao exemplo da consciência visual. Um cérebro, ao deslocar-se junto com seu corpo, recebe, como vimos anteriormente, através do olho, estímulos externos a partir dos quais produz os conteúdos da consciência visual. Destaco agora que o cérebro emprega esses conteúdos por ela produzidos para orientar o seu deslocamento incorporado no ambiente no qual está situado. Para esclarecer esse ponto, volto a uma analogia, já utilizada em texto anteriormente citado, sobre o papel de uma lanterna usada por um indivíduo para orientação num ambiente escuro. A lanterna produz uma visibilidade que funciona como guia que o indivíduo utiliza, para se deslocar de forma adaptativa no ambiente. Embora o indivíduo dependa da luz produzida pela lanterna para seu deslocamento eficaz no ambiente, é ele que direciona a lanterna e se vale das novas visibilidades por ela produzida, ou seja, o indivíduo é o agente e a visibilidade criada pela lanterna é seu guia de ação.

No caso da relação entre o cérebro e a consciência visual, há uma diferença importante, qual seja, o cérebro é ao mesmo tempo o causador da consciência visual (visibilidade) e o agente que utiliza a consciência visual por ele produzida, a partir de sua interação como o corpo e, através de seu órgão, o olho, com o ambiente externo, como guia de ação; na analogia citada, o cérebro é tanto a lanterna quanto o indivíduo. As ações implementadas pelo cérebro em decorrência das informações constitutivas de sua consciência visual, como guia, permitem ao cérebro receber, através do deslocamento de seu olho/corpo, outros estímulos visuais que lhe produzirão outras modificações, as quais, por sua vez, produzirão outros conteúdos de consciência visual, os quais continuarão a ser usados pelo cérebro como guias para novas ações no mundo externo e, assim, sucessivamente. Um cérebro que, seja em virtude de fatores ambientais como a escuridão, seja em razão de graves problemas oculares, seja em decorrência de danos em sua própria estrutura e funcionalidade relacionada à visão, não é capaz de produzir a consciência visual tem sua performance incorporada mais ou menos prejudicada, dependendo do grau de dependência da ação eficaz em relação à consciência visual.

Observe-se que a consciência visual está sendo tomada como uma propriedade do cérebro, derivada de sua relação com o corpo/olho e, através deste, com o ambiente externo, imprescindível para sua ação eficaz no mundo, e não como uma substância não física cartesiana que exerceria, por si só, independentemente do cérebro, uma ação causal, uma espécie de causação descendente, sobre o cérebro. Por isso, evitei dizer que a consciência visual guia o cérebro, para não incorrer num cartesianismo. Lembremos que a consciência visual não funciona isoladamente, mas é associada a outras formas de consciência, tais como sensações, crenças, desejos, intenções, afetos conscientes e seus respectivos e inumeráveis conteúdos, sobre os quais vale também a tese de que são efeitos e guias de ação do cérebro incorporado e situado.

 

VI

Procurei argumentar brevemente, na seção anterior, que é possível, assumindo-se uma abordagem fisicalista não reducionista da relação entre o cérebro físico e a consciência qualitativa, afirmar o papel causal da consciência em relação ao cérebro, sem que isso implique a existência de uma lacuna ontológica. Já havia argumentado, na penúltima seção, que é possível, com base na mesma abordagem, afirmar o papel causal do cérebro em relação à consciência, também sem que isso implique a existência de uma lacuna ontológica. Em ambos os casos, o ponto essencial da argumentação consistiu na interpretação da noção de consciência como propriedade do cérebro, e não como uma substância cartesiana por aquele criada. Retornarei, a partir daí, a alguns dos argumentos, anteriormente citados, de Joseph Levine, David Chalmers e Colin McGinn a favor da lacuna explicativa.

Resumidamente, apresentando a dor como exemplo, Levine defende que a associação entre um evento consciente a um evento cerebral não explica a forma e o conteúdo do evento consciente, visto não haver nada sobre os acontecimentos cerebrais que se ajuste com as propriedades fenomênicas dos eventos conscientes. Em concordância com essa posição de Levine, Chalmers argumenta que, por mais conhecido que seja o mundo físico, não seria possível derivar a partir dele os eventos conscientes, sendo a consciência algo completamente “inesperado”, “imprevisível”, “surpreendente”. Aceitando os termos do problema da lacuna explicativa, tais como colocados por Levine e Chalmers, McGinn acrescenta que esse problema é inerente à constituição cognitiva dos seres humanos – “fechamento cognitivo” –, e não intrínseco à relação entre cérebro e consciência.

O que me chama a atenção no argumento de Levine é a ideia de que é necessário que haja algo nos eventos causa que se ajuste aos eventos efeitos, sem que se explicite o que é e o porquê de tal ajuste ser necessário. Se tal ajuste não é possível, no caso da relação entre cérebro e consciência, o conhecimento, por mais detalhado que seja, do funcionamento cerebral, em sua interação com o corpo e o ambiente externo ao corpo, não seria suficiente para explicar as experiências conscientes. O que seria necessário para explicar, por exemplo, as experiências conscientes de dor e de cor, além de uma descrição detalhada da estrutura e funcionalidade dos sistemas cerebrais/corporais/ambientais envolvidos com essas experiências conscientes? Haveria algum outro tipo de evento causal cuja natureza se ajustaria ao efeito consciência, sendo mais apropriado para explicá-lo? Qual deveria ser a natureza do evento causa da consciência, para que houvesse o ajuste reivindicado por Levine? Algum tipo de substância cartesiana não física?

No argumento de Chalmers, gostaria de destacar a ideia por ele sugerida de que, para se estabelecer relação causal entre dois eventos, seria inicialmente necessário derivar a priori os eventos efeitos dos eventos causa, no caso, a consciência qualitativa dos eventos físicos cerebrais. A questão é se seria possível, em qualquer relação entre eventos, derivar a priori o evento efeito do evento causa. Não seriam os eventos efeito, sempre que considerados a priori, ou seja, independentemente de suas causas, “inesperados”, “imprevisíveis” e “surpreendentes”, deixando de o ser apenas quando os associamos causalmente, e após repetidas experiências, a outros eventos?

O argumento de McGinn me parece intrigante, pois, ao atribuir a lacuna explicativa ao fechamento cognitivo dos seres humanos e a solução do problema a seres que porventura tenham outras competências cognitivas, ele não parece estar se referindo às dificuldades e limites inerentes a uma compreensão minuciosa da estrutura e funcionamento do cérebro. McGinn sugere que nos falta a compreensão de alguma coisa que faça a conexão entre o cérebro e a consciência. Todavia, se o próprio McGinn admite que há uma conexão necessária entre eventos cerebrais e eventos conscientes, e que é possível uma teoria científica que explique essa conexão, o que essa teoria poderia oferecer que não seja uma descrição detalhada da estrutura e funcionamento do cérebro? E, sendo o caso, por que essa descrição estaria além de nossas competências cognitivas?

Por não vislumbrar a existência de nenhuma causalidade da consciência concorrente com a cerebral, incorporada e situada, por não entendear que haja uma justificativa legítima para não se considerar que o cérebro, incorporado e situado, seja a causa das várias formas e conteúdos da consciência, por levar em conta que já dispomos de um conhecimento amplo sobre o funcionamento do cérebro associado a uma enorme variedade de eventos conscientes e por assumir uma concepção essencialista da causação, penso que o programa de pesquisa em neurociência é o caminho para, se não eliminar, pelo menos mitigar a lacuna explicativa. Creio que a neurociência, associada à outras áreas da biologia, tais como a genética e a teoria evolutiva, apresenta-se como o único programa de pesquisa que tem permitido construir, passo a passo, uma teoria da consciência que preencha os requisitos apresentados por David Chalmers, a saber, uma teoria que especifique as condições sob as quais os processos físicos originam os tipos de experiências conscientes a eles associadas; explique de modo inteligível, não mágico, como a consciência se origina; permita ver a consciência como parte integral do mundo natural (CHALMERS, p. 5).[137]

 

Consciousness and brain: explanatory gap and ontological gap

 

Abstract: The question I have proposed to reflect on in this article is whether, and if so, in what terms, a non-reductionist and interactionist physicalist approach explains the relationship between consciousness and brain. For that, I took as a guiding thread the problem of the explanatory gap, which was faced with the problem of the ontological gap, which involves two intertwined issues: 1. Does the existence of an explanatory gap implies the existence of an ontological gap? 2. Does the nonexistence of an ontological gap imply the nonexistence of an explanatory gap? I believe this reflection is welcome, since these two perspectives, the epistemological and the ontological, are often confused, and not understood.

 

Key-words: Consciousness. Brain. Explanatory gap. Ontological gap.

 

Referências

CHALMERS, D. J. The Conscious Mind: In Search of a Fundamental Theory. New York/Oxford: Oxford University Press, 1996.

COELHO, J.G. Abordagem Dupla Face da Relação Mente Consciente e Cérebro: A Visão como Exemplo Paradigmático. In: Toledo, G. L.; GOUVEA, R. A.S.; ALVES, M. A. S. (Org.) Debates Contemporâneos em Filosofia da Mente. São Paulo: FiloCzar, p. 131-150, 2018.

DESCARTES, R. Les Principes de la Philosophie. In: DESCARTES, R.  Oeuvres en Lettres. Paris: Gallimard, 1952.

ELLIS, B. Scientific Realism. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

LEVINE, J. 1983. Materialism and Qualia: The Explanatory Gap. Pacific Philosophical Quarterly, v. 64, p. 354-361, 1983.

McGINN, C. Can We Solve the Mind-Body Problem? Mind, v. 98, p. 349-366, 1989.

NAGEL, T. What is it like to be a bat? The Philosophical Review, v. 83, n. 4, 435-450, 1974.

Recebido: 12/08/2022

Aceito: 09/12/2022


Comentário a Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica”

 

Leonardo Ferreira Almada[138]

 

Referência do artigo comentado: COELHO, J. S. Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 277- 294, 2023.

 

No artigo “Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica”, Coelho (2023) se propõe a apresentar a posição teórica que, há alguns anos (2015a, 2015b, 2017, 2018, 2019, 2023), tem defendido em filosofia da mente: trata-se, mais especificamente, de uma perspectiva que se propõe fisicalista não-reducionista e interacionista, e cuja finalidade é a de equacionar as relações de interação entre consciência e cérebro. A esta posição, Coelho (2015a, 2015b, 2017, 2018, 2019, 2023) designou de ‘abordagem dupla face’ (double face view) da relação mente-cérebro[139] (doravante ‘abordagem dupla face’).

No presente texto (COELHO, 2023), a estratégia argumentativa a qual recorre para nos apresentar sua ‘abordagem dupla face’ é a de tomar como ponto de partida duas de algumas das questões de cujas respostas depende seu modelo, quais sejam: (i) a relação entre consciência e cérebro é adequadamente equacionada por uma abordagem fisicalista não-reducionista e interacionista?; no caso de a resposta à (i) ser afirmativa, (ii) quais são os motivos sobre os quais devemos nos sustentar para defender que (i) seja o caso?

Essas perguntas revelam que a intenção de Coelho (2023) é a de depreender a defesa da ‘abordagem dupla face’ da análise das relações entre a (i) lacuna explicativa e a (ii) lacuna ontológica. Novamente, duas são as questões que Coelho (2023) elege para determinar sua estratégia argumentativa, a saber: (i) a suposta existência de uma lacuna explicativa implica uma lacuna ontológica?; (ii) a suposta inexistência da lacuna ontológica implica a inexistência da lacuna explicativa? Sua estratégia metodológica é, pois, a de demarcar as aproximações e os distanciamentos entre as perspectivas epistemológica e ontológica do problema das relações consciência-cérebro.

Grosso modo, a ‘abordagem dupla face’ propõe que: (i) há duas faces e direções na relação entre consciência e cérebro: consciência → cérebro e cérebro → consciência; (ii) essas duas faces (consciência e cérebro) são entidades distintas, irredutíveis e inseparáveis; (iii) cada uma dessas faces exibe propriedades, e cada uma destas propriedades têm poder causal sobre a outra, o que significa dizer que, há, nessa relação, duas direções; (iv) o cérebro é incorporado e situado em nível físico e sociocultural; (v) a consciência é propriedade do cérebro; (vi) a consciência é incorporada e situada fenomenalmente; (vii) o cérebro causa a existência da consciência, e a consciência causa modificações na estrutura e funcionalidade do cérebro; (viii) a consciência não é uma substância; (ix) o papel causal do cérebro deve ser compreendido como inseparável do cérebro, ou ainda, como não-epifenomenal.

O conjunto de premissas/suposições sobre as quais se sustenta a posição de Coelho (2015a, 2015b, 2017, 2018, 2019, 2023) faz com que a análise acerca das relações entre as lacunas explicativa e ontológica seja imprescindível. Afinal, é preciso que fique claro como é possível que, nos níveis epistêmico e ontológico, não haja lacunas explicativa e/ou ontológica entre duas entidades que, embora sejam e distintas e irredutíveis, sejam, a um só tempo, inseparáveis.

Ao fazermos uma análise mais distante da ‘abordagem dupla face’, pode ser que algumas dúvidas sejam suscitadas por sua apresentação inicial e geral, no caso: (i) o que mais precisamente o autor entende por face, já que ambos — consciência e cérebro — são igualmente face? Com efeito, se ambos são igualmente face, então face não é propriedade ou algo similar; (ii) o que o autor entende por entidade, a ponto de considerar que consciência e cérebro sejam igualmente entidades?; (iii) nas relações bottom-up e top-down, o autor recorre à causação ascendente e descendente, ou, antes, a outros expedientes, como o de determinação descendente?; (iv) caso o autor não recorra ao expediente de determinação descendente, seria uma alternativa interessante para dar conta das formas por meio das quais a consciência causa modificações na estrutura e funcionalidade do cérebro? É preciso reconhecer, algumas dessas questões, como as (iii) e (iv), são solucionadas adiante, ao passo que outras permanecem mesmo após o encerramento da leitura do texto, o que é o caso das questões (i) e (ii). A boa notícia é que, neste texto, as questões mais espinhosas são bem tratadas por Coelho (2023).

Algumas dificuldades conceituais importantes dizem respeito a como se dá exatamente a relação top-down. Será legítima a diferenciação feita por Coelho (2023) entre (i) estímulos físicos corpóreos e externos e (ii) práticas socioculturais? A abordagem de Coelho (2023) reconhece a necessidade de termos clareza não apenas em como devemos conceber a direção cérebro → consciência (bottom-up), mas também como devemos supor a direção inversa. Nos últimos anos, tem havido uma grande quantidade de publicações bem-informadas e referenciadas dedicadas a tratar da natureza bidirecional das relações entre consciência e cérebro (ELLIS, 2019; FUCHS, 20202; TAYLOR et al., 2010; VANDERHASSELTAB; OTTAVIANI, 2022). Ao encerrar a leitura do texto de Coelho (2023), posso afirmar que mais uma produção se une ao grupo das engenhosas tentativas de explicar as interações consciência e cérebro sem negligenciar o problema das lacunas explicativa e/ou ontológica.

Um ponto digno de consideração na constituição da perspectiva de Coelho (2023) diz respeito a como lida com as espinhosas relações entre conexões causais e conjunções regulares no que diz respeito a como o cérebro atua causalmente sobre a consciência: ora, há, em filosofia e em psicologia, uma compreensão muito difundida de que regularidade correlacional (ou simplesmente correlação) não é causação. Essa compreensão remonta à David Hume. O que ocorre é que, apesar de concordar com a tese humeana, Coelho (2023) opta pela compreensão de que a identificação de conjunções regulares é o meio mais adequado para se identificar as causas, isto é, para explicar os efeitos: ou seja, Coelho (2023) assume que, já que a causação implica a regularidade, então podemos concluir que a presença de conjunções sinaliza causação entre causas (cérebro) e seus efeitos (consciência). Talvez o leitor possa se questionar se de fato a lacuna possa ser abarcada pela suposição de que a regularidade pressupõe causação. Não haveria aí uma lacuna entre causação e correlação? Esta dificuldade não passa batida por Coelho (2023), que enfrenta, a seguir, a lacuna, propondo que: (i) inexiste uma causa física da consciência concorrente com o cérebro; (ii) os fenômenos mentais embora qualitativos, não são substanciais, podendo ser facilmente concebíveis como decorrentes de atividade neural; e, por fim, um pressuposto um pouco menos consistente: (iii) a riqueza do cérebro é suficiente para nos fazer crer que o cérebro seja a causa de toda vida mental considerada em sua complexidade.

O ponto mais difícil é também enfrentado por Coelho (2023), a saber: como devemos lidar com as relações causais entre consciência e cérebro. Eis como se dá, em linhas gerais, a engenhosa argumentação de Coelho (2023): (i) a consciência não é uma substância cartesiana. Portanto, (ii) a consciência não causa eventos cerebrais. Com efeito, (iii) a consciência não possui independência ontológica em relação ao cérebro. Por isso mesmo, a consciência não possui qualquer poder causal inerente à sua natureza qualitativa. Antes, a (iv) consciência é uma propriedade qualitativa do cérebro. É esta característica que permite ao cérebro interagir causalmente consigo mesmo, com seu corpo e com o ambiente externo ao corpo. O foco da direção consciência cérebro recai, portanto, sobre o poder causal do cérebro, cujas propriedades qualitativas explicam como sua estrutura e funcionalidade é alterada.

O que dizer, portanto, da proposta teórica de Coelho (2023) em sua intenção de sustentar uma abordagem fisicalista não-reducionista e interacionista para a relação entre consciência e cérebro? Coelho (2015a, 2015b, 2017, 2018, 2019, 202X) tem sido muito feliz em seu projeto de sustentar a possibilidade de suprir a lacuna ontológica no âmbito de como propõe as relações causais entre o cérebro e a consciência. A chave de sua solução está na noção de consciência como propriedade do cérebro, e, a seu favor, conta com amplos recursos teórico-argumentativos ou pelo menos inspirações que toma de empréstimo de autores como David Chalmers, Joseph Levine, Colin McGinn e, dentre outros, Thomas Nagel. Justamente por esse último motivo, soa incoerente ou exageradamente entusiasmada sua afirmação de que as neurociências constituem o único programa epistemológica capaz de explicar tanto (i) como a consciência se origina quanto (ii) o espaço que ocupa no mundo natural.

 

Referências

COELHO, J. G. Mente como Cérebro e Cérebro como Mente: A Dupla Face da Relação Mente-Cérebro. In: Monica Aiub; Maria Eunice Quilici Gonzalez; Mariana Claúdia Broens. (Org.). Filosofia da Mente, Ciência Cognitiva e o pós-humano: para onde vamos? p. 93-99. São Paulo: FiloCzar, 2015a.

COELHO, J. G.. Cérebro e Mente: Cognição, Emoção e Autocontrole. In: Marcelo Carvalho; Dirk Greismann; Jonas Gonçalves Coelho; Paulo Ghiraldelli. (Org.). Pragmatismo, Filosofia Analítica e Filosofia da Mente (pp. 322-347). São Paulo, SP: ANPOF, 2015b.

COELHO, J. G. A Double Face View on Mind-Brain Relationship: The Problem of Mental Causation. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 40, p. 197-220, 2017.

COELHO, J. G. Abordagem Dupla Face da Relação Mente Consciente e Cérebro: A Visão Como Exemplo Paradigmático. In: Gustavo Leal de Toledo; Rodrigo A dos S. Gouvea; Marco Aurélio Sousa Alves. (Org.). Debates Contemporâneos em Filosofia da Mente. São Paulo, SP: FiloCzar, 2018.

COELHO, J. G. A Relação Mente-Cérebro e o Efeito Placebo: Uma Abordagem Dupla Face. In: Marcos Antonio Alves. (Org.). Cognição, Emoções e Ação. São Paulo, SP: Cultura Acadêmica, 2019.

COELHO, J. S. Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 277- 294, 2023.

ELLIS, G. Top-down effects in the brain. Psysics of life reviews, v. 31, p. 11-27, 2019.

FUCHS, T. The Circularity of the Embodied Mind. Frontiers in Psychology, v. 11, artigo 1707, p. 1-13, 2020. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2020.01707

TAYLOR, A et al. Top-Down and Bottom-Up Mechanisms in Mind-Body Medicine: Development of an Integrative Framework for Psychophysiological Research. Explore: The Journal of Science & Healing, New York, v. 6, n. 1, p. 29-41, 2010.

VAN GULICK, Robert. Consciousness. In: ZALTA, Edward N. The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2018 Edition). Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/spr2018/entries/consciousness/>. Acesso em 26 ago. 2021.

VANDERHASSELTAB, M-A., & OTTAVIANI, C. Combining top-down and bottom-up interventions targeting the vagus nerve to increase resilience. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, v. 132, p. 725-729, 2022.

 

Recebido: 21/02/2023

Aprovado: 27/02/2023


 

Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira

 

José Crisóstomo de Souza[140]

 

Resumo: O texto apresenta os elementos básicos de um novo paradigma poético-pragmático e destranscendentalizado para a filosofia, situado entre o pragmatismo e a filosofia da práxis, como uma posição não fundacionista, não representacionista, anti-relativista, essencialmente oposta às formas linguocêntricas ou simplesmente intersubjetivistas dominantes, hoje em dia, na cena filosófica não-mentalista. Como parte dessa apresentação, o texto recapitula a metodologia, de trabalho coletivo, plural e concertado, que corresponde, no plano do fazer filosofia, ao espírito do paradigma, e a plataforma geral por trás do seu desenvolvimento progressivo.

 

Palavras-chave: Trabalho em grupo. Trabalho em progresso. Compreensão geral das coisas. Pragmatismo aprimorado. Paradigma de produção reconstruído.

 

No começo era o ato, e, logo, o artefato.

 

Introdução

Filosofia para nós tem a ver com compreensão geral das coisas, envolvendo a discussão bem- articulada de nossas noções mais abrangentes, tais como realidade, atividade, condição humana, conhecimento, linguagem, normatividade, propósitos, criação, valores, etc. Apenas agora não mais como discurso transcendental, mas como ponto de vista situado, praticamente justificado, em todo caso refletido, informado, elaborado. Não apartado, porém, do diálogo com o senso comum e o mundo da vida, com a conversação social e as inquietações privadas, com a cultura e com nossas misturas de fato e valor.

De um modo que – é o que este texto propõe –, a produção de filosofia, no fim das contas, supõe uma indagação a propósito de pressupostos e paradigmas, modos gerais de entender as coisas e de agir em meio a elas. Fazer filosofia sendo, então, ter um paradigma para oferecer, a ser discutido e testado, a se medir com outros, e a ser, por essa razão, não só sistemática mas também dialeticamente constituído, ou pelo menos exposto. Tudo isso considerado, entendemos que filosofia envolve um trabalho em progresso e supõe uma comunidade de investigação e discussão. Deve envolver uma exploração grupal, de círculo ou escola, e oferecer uma pauta de estudo e pesquisa para mais gente, uma que responda a desafios de um certo tempo e contexto. Desse modo, introduzindo – ou inserindo-se em – um diálogo e em uma certa concertação, abertos, para que a elaboração de pensamento não se torne uma coisa atomizada, desconectada e, daí, possivelmente, estéril.

Nessa linha, reunimos aqui, abreviadamente, alguns dos contornos e dos elementos de uma proposta dessas, um ponto de vista que chamamos de prático-poiético, materialista, de uma filosofia da práxis como poiésis, produção, de algo como um pragmatismo melhorado, materialista e histórico, não linguocêntrico. Apresentamos, também abreviadamente, a forma de trabalho e cooperação que tem sustentado sua elaboração, como um trabalho em desenvolvimento. Começando – é a primeira parte do texto - pela denominação do grupo, Poética Pragmática, depois seu percurso, seu modo de funcionamento e, por fim, sua plataforma. Em seguida, expomos, numa segunda parte do texto, alguns de seus resultados. Quanto a esses, eles aparecem primeiro na forma de uma sugestão de reconstrução de Marx, de seu paradigma da produção, dispensado de seus supostos vícios, com algumas referências a expressões da filosofia contemporânea. Depois, eles são apresentados na forma de uma sugestão de superação do que denominamos criticamente de paradigma linguocêntrico (aos quais Habermas e Rorty estão presos), que é, para nós, a fôrma geral, limitada, da maior parte da filosofia contemporânea metropolitana, quer dizer, europeia e americana, aquela que, o mais das vezes, apenas repetimos no Brasil.

A primeira parte do texto (I – O Poética-Pragmática, seu Percurso, sua Plataforma) retoma, com modificações, uma parte da introdução da recente coletânea Filosofia, Ação, Criação: Poética Pragmática em Movimento, do GT Poética Pragmática e de companheiros de viagem, do Brasil e de mais meia dúzia de países. Uma Coletânea que é uma espécie de jam session filosófica, como uma série de desdobramentos e interações possíveis do paradigma prático-poiético proposto. A segunda parte do texto (II – O Materialismo Prático-Poético como Alternativa...”), sobre os resultados do trabalho do grupo Poética Pragmática, sobre os contornos de seu ponto de vista ou posição, é composta por trechos revistos e modificados das duas peças até aqui mais fundamentais de apresentação daquele paradigma, materiais publicados, em versões diferentes, no Brasil, no México e na Alemanha. São coisas minhas, mas que, como mostraremos, encontram desdobramento nos trabalhos de vários outros membros do Poética, como a referida Coletânea mostra. As referências desses trabalhos todos, e mais alguns através dos quais o paradigma foi se construindo, ao longo de muitos anos, estão apresentadas ao final deste texto. O leitor pode preferir começar logo pela segunda seção do texto, sobre o materialismo poético-pragmático, para depois passar à primeira, sobre o grupo, seu percurso, seu modo de trabalho e sua plataforma.

 

I O grupo poética pragmática. seu percurso, sua plataforma, seu convite

1 O que há no nome Poética Pragmática. Interlocuções e Convergências. Fontes Nacionais e Internacionais

Não por acaso, Poética e Pragmática são duas expressões adjetivas; não quisemos começar por algum “-ismo” fechado, nem tampouco queremos terminar por um deles. Quando, por fim, recorremos a um ou alguns, é como abreviatura para um modo instrumental, contextualmente justificado, de compreensão das coisas; um modo conceitualmente articulado, o qual,que entretanto, se quer apenas prático, não um novo vocabulário último ou excludente. Poética, como adjetivo substantivado, tem a ver com um conjunto de produções aparentadas, textos ou não, de alguma maneira expressivos, tomados por qualidades que as definem, que podem marcar um autor, escola, elementos de uma cultura ou época inteira. No nosso caso, trata-se de uma Poética que se quer ensaística, prática, “não-escolástica” e mais coisas que iremos mostrando. Uma Poética marcada também por um modus operandi, grupal, de criação livre e concertada, de um círculo em que todos tocam uma parte ou mais de uma, embora com uma posição razoavelmente compartilhada, da qual vários trabalhos querem ser expressão.

Poética, então, tem a ver com um modo de elaboração em filosofia, tanto quanto com uma compreensão das coisas, que põe no seu centro a prática enquanto produção, isto é, introdução de “coisas” no mundo. Pois é também um adjetivo que remete, tanto quanto sua variante poiética, ao substantivo grego Poiésis (em português, poiese), que quer dizer, indistintamente, tanto produção como criação. Tanto “espiritual” (daí poesia, que é o que o adjetivo primeiro evoca), quanto “material” (objetual, artesanal, técnica) – uma indistinção que nos agrada sustentar. Poiésis vem do verbo poieín, produzir/criar, fazer coisas (para nós, filosofia, inclusive), pôr no mundo o que não está lá -– como o setzen (pôr) do idealismo alemão, de Hegel na Fenomenologia do Espírito. Com ênfase, no nosso caso, na dimensão sempre em última análise sensível (sinnliche), material, desse pôr/fazer/criar humano, junto com o que para nós necessariamente lhe acompanha de imaginação e experimentação. Daí que uma filosofia poético-pragmática é um fazer e um modo de fazer, tanto quanto é uma filosofia do fazer, da criação e do ato (“no começo era o ato”) – e, logo, do objeto ou artefato, no sentido mais amplo do termo. É uma outra filosofia da práxis, da práxis como poiésis, ou ainda, vá lá, um outro pragmatismo, aquele de uma agência produtiva, material, social, histórica. Um ponto de vista a um só tempo, e de maneira articulada, sobre realidade, ação, conhecimento, normatividade, linguagem, criação, mudança social e mais.

Para quem andou lendo Jürgen Habermas, pode ser destacado um outro “paradigma da produção” (o de Marx é outro) – mais bem reconstruído do que na sua transfiguração discursiva, intersubjetiva, sem mundo, proposta por Habermas. Como um outro paradigma da produção, porém, o nosso não quer ser mais uma “filosofia do sujeito” ou “da consciência” – classicamente moderna. Embora tampouco queira ser, do outro lado, uma filosofia linguocêntrica, essencialmente do discurso, como têm sido, desde a chamada virada linguística, as alternativas filosóficas pós-cartesianas de nossos dias, inclusive as de pretensão crítica. Em vez de um ponto de vista linguocêntrico, apenas intersubjetivista, embora prático/pragmático, não logocêntrico, trata-se, no nosso caso, de um ponto de vista prático-material, corpóreo e objetual.

Para completar uma apresentação a partir do nome: o termo Pragmática procede do grego pragma (no plural, pragmata), que se refere a atos e negócios humanos comuns – não a algo de “interesseiro” e “picareta”, que os mais ignorantes supõem ser o significado de pragmatismo. Pragmático refere-se ao que é mundano, destranscendentalizado, junto com social, compartilhado; diz respeito ao que é prudencial, tanto quanto ao que tem a ver com conduta e ao que, portanto, não se quer intelectualista ou academicista. Por aí, Poética, junto com Pragmática, sugere uma combinação entre o que é romântico, artístico, ideal, e o que é prático, operativo, instrumental. Isso, porém, enquanto duas coisas de antemão um tanto entrelaçadas, não opostas, ambas envolvidas com ação, experimentação e criação – como sintetizadas, por exemplo, no que concebemos como Modernismo. Um casamento que está compreendido no diálogo crítico, reconstrutor, que a posição poético-pragmática mantém com o pragmatismo clássico, também ele um modernismo, a propósito de alguns de seus pressupostos, como a chamada sentença de Alexander Bain, a máxima de Charles Peirce, o ponto de vista do agente, de John Dewey, a ênfase em experimentação e falibilismo, de todos eles. Tanto quanto está compreendido no diálogo com a chamada filosofia da práxis, também reconstrutor, sobre o qual logo mencionaremos mais alguma coisa.

Filosofia é conversação, e nosso trabalho quer ser bem isso: parte de uma conversação. Daí que gostamos de apresentar, não de esconder, nossos cruzamentos e convergências com outras posições, de explorar aproximações e favorecer interlocuções, embora nada ecleticamente, sempre a partir de uma posição própria, bem articulada e delineada. Nosso ponto de vista prático-poiético dialoga criticamente tanto com Habermas, pragmatista kantiano frankfurtiano, como com Richard Rorty, neo-pragmatista hegeliano, americano. Tanto com o pragmatismo clássico de Peirce, James e Dewey, quanto com aquele mais romântico e criativo, de Nietzsche. Tanto com o “pragmatismo” de Heidegger (da Zunhandenheit), quanto com o positivismo (sic) do nacionalizado Augusto Comte. De outro lado, dialoga com um hegelianismo interativo, transformativamente mobilizado, pós-metafísico, pós-darwiniano, no seio do qual Marx é apenas uma vertente, ao lado de outras como as de Bauer, Feuerbach ou Max Stirner. Do mesmo modo que dialoga com o hegelianismo brasileiro, marxiano-fenomenológico, contextualista, anticolonialista, do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1955-1964). Pode dialogar ainda com as teorias críticas razoavelmente pragmáticas de Nancy Fraser e Rahel Jaeggi e, de novo do lado nacional, com o ensaísmo crítico de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e outros, que já deveriam ter entrado no radar da filosofia que se faz na universidade brasileira.

Pois “o Poética” – como nos apelidaram, com insinuações de escola – interessa-se por um diálogo nacional, com expressões brasileiras de espírito, filosóficas ou nem tanto, com o propósito de nos colocarmos na esteira de seus desenvolvimentos, os mais progressistas, descolonizados, transformativos. Quanto a esse lado nacional, registre-se que Sílvio Romero e Cruz Costa encontraram, para a disposição brasileira de pensamento – de outra sorte, frequentemente escolástica e bacharelesca – uma inclinação prática, não metafísica, oxalá, se poderia desejar, de “filosofia em mangas de camisa” (Tobias Barreto). Quem sabe uma inclinação deflacionista, como em Francisco Sanches, Matias Aires, Nísia Floresta, Machado de Assis ou Oswaldo Porchat (o da “visão comum do mundo”). Uma inclinação também naturalista, conciliada com os sentidos, “franciscana” como para Gilberto Freyre, junto com descolonizada, como em Vieira Pinto e Guerreiro Ramos. Muito disso já sugestivamente misturado, em viés estetizante, no nosso Modernismo cultural, apropriador (Oswald de Andrade), e, mais sobriamente, do lado político, no nosso construtivismo institucional (v.g. Anísio Teixeira, Celso Furtado, Roberto Mangabeira Unger). Queremos esses parentescos com expressões brasileiras de pensamento mesmo quando em algumas delas haja um déficit de elaboração e interlocução filosófico a ser deixado para trás.

 

2 O Percurso do Poética: Filosofia Civil, Hegelianismo, Pragmatismo. Neo-Pragmatismo e Marx Reconstruído. O Mundo Bem Nosso

Quanto aos marcos da produção do próprio Poética Pragmática, isto é, de sua construção como ponto de vista, podemos dizer que começamos, lá atrás, de modo polêmico, meta-filosófico, pela busca de uma certa ideia de filosofia, inicialmente esboçada num trabalho nada convencional, “A Filosofia como Coisa Civil” (de Crisóstomo), um trabalho que interessou a vários estudantes mais inquietos e a diversos colegas professores-pesquisadores mais jovens. Publicado primeiro como um opúsculo, o Filosofia Civil, um convite a se fazer filosofia no Brasil, integrou depois a coletânea A Filosofia entre Nós (2005), junto com outras contribuições semelhantes, também não-escolásticas, não-comentaristas, de Oswaldo Porchat, Ernst Tugendhat e Renato Janine. Foi um trabalho lido com aprovação por Tugendhat e por Richard Rorty, numa versão em inglês depois ampliada e publicada na Amazon, como Philosophy as a Civil & Worldly Thing, from a Brazilian Critical-Historical Perspective.

Formulado como “uma narrativa e uma tarefa para a filosofia no Brasil”, o Filosofia Civil esboça uma perspectiva histórica do caminho brasileiro de pensamento, enquanto um percurso que vai da colonial Ratio Studiorum à regra goldschmidtiana de hoje, dita uspiana, da “leitura interna” do autor canônico. Um percurso que procede, assim, de uma sujeição Magister dixit, lá atrás, a outra, Magistri dixerunt, dos nossos dias, enquanto filosofia de exegese e comentário de texto canônico, na nossa opinião um ancien régime da filosofia, nada estranho aos tradicionais bacharelismo e colonialismo mental que nos afligem. Tal caminho histórico, porém, foi, de outro lado, marcado também por esforços de apropriação e uso do pensamento filosófico metropolitano da época, até de elaboração de alternativas a ele, esforços na esteira dos quais, já dissemos, valeria a pena nos colocarmos. O que faríamos agora por uma superação daquela oposição “repetição comentarista” vs. “apropriação usuária”, ou seja, por uma síntese dialética do melhor das duas coisas: 1) ensaísmo filosófico apropriador, até criador, ainda que às vezes amadorista, mais 2) método e sofisticação técnica, finalmente conquistados (mesmo que em versão inicialmente escolástica) com a implantação, mais do que tardia, da universidade brasileira e de seus programas de pós-graduação.

Nessa mesma linha, isto é, de um esforço crítico-produtivo, prosseguimos empenhados, em vários outros textos, mais breves, em manter vivo o desafio de maioridade, ou seja, de alguma autonomia e contextualização, para a filosofia nacional. Um desafio finalmente posto pela própria Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia, por ocasião da criação da Coluna Anpof, em 2016 – o de finalmente estabelecermos um diálogo do que fazemos, como filosofia, com nosso tempo e contexto. Quanto a isso, seguimos defendendo que fazer filosofia brasileira é, em primeiro lugar, simplesmente fazer filosofia; é não fazer apenas história da filosofia ou comentário interno, acrítico, de textos de filósofos canonizados. De outro lado, para nós, fazer filosofia brasileira tampouco é fazer uma filosofia de posição única, praticamente em torno de tema único (v.g. filosofia da libertação,” decolonial”, o que seja), nem muito menos uma filosofia roots, de buana, tupiniquim ou coisa parecida. Nem é tampouco fazer uma pseudofilosofia militante, de diretório estudantil, cheia de chavões “críticos” importados – pois não foi para isso que estudamos tanto, nem que o País tanto gastou com nossas pós-graduações.

Nossos textos posteriores sobre essas coisas seguem aí, em colunas Anpof, vídeos, livros e artigos, para quem quiser reagir a eles. Aos quais, aliás, se acrescentam hoje contribuições comparáveis, de tantos colegas, de várias partes do País, no que pode sugerir o começo de uma auspiciosa mudança na filosofia acadêmica brasileira. Algo que pode chegar a ter uma relevância mundial, já que, para um olhar mais autônomo e viajado, os modos metropolitanos de fazer filosofia, analítica ou continental, na Europa ou nos EUA, tampouco têm andado lá muito bem. Nesse empenho crítico por uma filosofia nossa, porém, como em qualquer outro, a prova do bolo está em comê-lo. Não haveríamos de ficar só promovendo um clamor ou mesmo apenas sugerindo uma receita qualquer, como no Filosofia como Coisa Civil, sem buscar realizá-la na prática. Quanto a isso, isto é, quanto ao caminho de desenvolvimento do nosso ponto de vista prático-poiético em filosofia, começamos lá atrás, nos anos 1980, pelo hegelianismo e por Marx, ainda sem saber bem onde iríamos parar. Começamos por uma extensa tese de doutorado sobre o debate e elaboração filosóficos jovem-hegelianos, para, por essa via, driblar o já referido modelo comentarista interno, mono-autoral, da nossa comunidade filosófica, tendo ao mesmo tempo como professores parte representativa da nata da filosofia universitária brasileira da época, entre Unicamp, USP e Rio Grande do Sul.

Na verdade, começamos bem antes disso, fora da academia, com algo em certa medida aparentado: as narrativas críticas de formação histórica deste país (que, na ocasião, sustentavam o que publicávamos de crítico nos Cadernos do CEAS, do Centro de Estudos e Ação Social, durante o regime militar, e o que, em outro espaço, tratávamos de levar à prática política). Eram nNarrativas que, bem-entendidas, são discursos compreensivos de uma modernidade particular, subalterna, da qual os discursos metropolitanos da modernidade, mesmo críticos, não tomam conhecimento. Em comum entre uma coisa e outra, entre a narrativa alemã e a narrativa brasileira, está que se trata de elaborações históricas compreensivas, doadoras de sentido, que se oferecem como suporte de políticas radicais para o presente.

Todo esse trabalho, depois do referido doutorado, levou-nos a publicar dois livros – e, adiante, muitos artigos – sobre aqueles filósofos histórico-críticos alemães. Um deles, sobre o debate Marx vs. Stirner, a propósito do “humano” como medida e ser supremo; o outro sobre a ascensão e queda da figura do sujeito, no movimento jovem hegeliano geral. Por fim, já na docência do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da UFBA, tudo isso deu na orientação de monografias críticas afins, mais contemporâneas, na área de filosofia política e teoria social, que resultaram muito relevantes para o projeto do GT Poética Pragmática, produzidas por futuros membros, muito talentosos. Deu também, como já dissemos, na participação de colegas já professores-pesquisadores, colegas cujos trabalhos passaram também a dialogar com o nosso (vide a Coletânea Filosofia Ação, Criação, a sair ainda este ano, pela EDUFBA).

Assim, antes que Habermas o propusesse, partimos, nos anos 80, da ideia de que ainda somos contemporâneos dos jovens (anti-)hegelianos, incluindo entre eles, contra Habermas, o próprio Nietzsche, do mesmo modo que Marx, como dois entre tantos perfis de crítica histórico-dialética da Modernidade, do ponto de vista de um futuro diferente. Uma crítica feita sempre na forma de narrativas epocais, filosofias do futuro, as quais seguem até nossos dias competindo entre si pelo título de superação mais completa e verdadeira e radical de todo o anterior. A própria teoria crítica alemã, do nosso tempo, eterna herdeira de Hegel e Marx, visivelmente sem saber muito o que está dizendo, passou a se apresentar, ela própria, como filiada a essa esquerda hegeliana.

Do nosso lado, desse esforço de escarafunchar o debate do movimento jovem-hegeliano, resultou uma crítica do essencialismo (feuerbachiano) e do substancialismo (espinosano) de Marx, coisas que, no nosso entender, teorias críticas e posições filosóficas assemelhadas à nossa até hoje não diagnosticaram direito. No mesmo trânsito, por afinidade, apropriamo-nos de elementos do naturalismo-sensualismo de Feuerbach (também de G. Freyre), da pegada usuária-corpórea, ironista, de Max Stirner, e do deflacionismo filosófico, radicalmente destranscendentalizante, de ambos, em parte também de Marx, como aliás, contemporaneamente, também, por ex., de Porchat, Rorty ou Habermas. Mas tratamos de fazer tudo isso de um ponto de vista que não aquele do sujeito concebido como autoconsciência, do idealismo alemão e da ala idealista da esquerda hegeliana, nem tampouco aquele da dialética negativa, antitética, predominante naquele movimento como também na posterior Teoria Crítica de Frankfurt. Como muito menos quisemos, mais adiante, desenvolver nosso paradigma de crítica no rumo da virada, francesa mas não só, para a linguagem e o discurso, mesmo em sua feição pragmática, alemã ou americana, como virada para uma intersubjetividade linguistificada, sem mundo, como no caso de teóricos críticos mais recentes, começando pelo próprio Habermas.

Mas é também verdade que tratamos de acompanhar o percurso, desde o jovem hegelianismo e de Marx até o nosso tempo, principalmente na companhia de Habermas, como um ecumênico e produtivo interlocutor, embora sempre criticamente tomado. Considerado, em todo caso, como alguém que se empenhava em discussões que nos interessavam, envolvendo narrativas da modernidade, desenvolvimentos filosóficos diversos, uma reconstrução do materialismo histórico, a passagem a um certo pragmatismo intersubjetivo-kantiano (que não é a nossa), o debate com o (neo)pragmatismo livremente historicista-hegeliano de Richard Rorty (que depois, apresentamos no nosso Filosofia, Racionalidade, Democracia: Os Debates Rorty-Habermas, 2005) etc. etc. Nesse trânsito, que nos levou a passar também pela “Teoria Francesa” (em conversação, num pós-doutrorado, com Hubert Dreyfus), da qual se aproveita um ou outro ponto mas nada de sua pegada geral, organizamos o GEFIM (Grupo de Estudos de Filosofia e Modernidade), que depois deu lugar ao Poética Pragmática (2008). Um grupo que, mesmo de breve existência, foi, como o nome sugere, parte do nosso caminho para fazer filosofia não mono-autoral, não sempiterna e exegética, mas tentativamente temática, contemporânea e debatedora – onde alguma coisa de Brasil se pudesse enfiar e, por fim, de certo modo, prevalecer, como perspectiva.

Quanto à fórmula prática de trabalho, isto é, com relação a nosso interesse por uma “enturmação” viva e produtiva, para um trabalho de elaboração em grupo e dialógico, o movimento jovem hegeliano nos interessou também por sua produtiva dinâmica de discussão, começada pelo Clube dos Doutores e, logo, Os Livres, de Berlim, com Marx pelo meio. Do mesmo modo, as origens do pragmatismo americano, posição pela qual viemos na sequência a nos interessar (como veio também a interessar, de outra maneira, parte da teoria crítica e da filosofia analítica mais recente), configuram para nós um interessante processo criativo grupal, começado no Clube Metafísico (anos 1870), com Peirce e James, e na sequência, como movimento, desenvolvido por Dewey, Mead e outros, já como corrente.

Além desses, interessaram-nos outros grupos e cadeias (sequências) de elaboração e desenvolvimento filosóficos, como as dos espiritualistas franceses, filósofos da ação e da criação, de Maine de Biran a Bergson, Blondel e além. Como também, na Itália, os politicamente atrapalhados, mas filosoficamente criativos, Leonardinos (de Leonardo Da Vinci, um dos nossos heróis), nos começos do século XX. Do Brasil, inspirou-nos o Movimento Modernista de 1922, particularmente o grupo que depois prosperou em torno da revista Antropofagia e dos Manifestos Antropófago e Pau-Brasil, tendo em Oswald de Andrade sua principal expressão. E ainda o ISEB, nos anos 1960, com a sua filosofia mais ou menos hegeliano-marxiana, combinada com fenomenologia e existencialismo, além de historicismo. Sem falar no referido Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) e seus Cadernos, onde por uns doze anos elaborei e publiquei trabalhos sobre Brasil e teoria social, e no semanário Movimento, por outros tantos anos, sobre coisas mais políticas do que filosóficas.

Voltando à filosofia: em seguida ao hegelianismo, nosso envolvimento crítico e reconstrutor, com o pragmatismo, deu-se na perspectiva de algo como uma relação interna, historicamente corroborada, entre ele e o hegelianismo/marxismo. Digamos, entre as possibilidades de um hegelianismo pragmático e de um pragmatismo hegeliano, histórico, materialista. Afinal de contas, Peirce partiu de uma significativa formação idealista alemã, embora incialmente mais kantiana, para depois convergir com Schelling como idealista objetivo, enquanto o experimentalista/instrumentalista John Dewey e o interacionista simbólico Herbert Mead partiram de uma formação marcadamente hegeliana. Os próprios desenvolvimentos filosóficos neo-pragmatistas, linguísticos, de hoje, de Habermas, Rorty ou Brandom, incluem uma relação positiva com Hegel. E esse mesmo empenho reconstrutor foi estendido por nós à exploração de uma relação “interna” entre o primeiro pragmatismo e o ponto de vista de Marx, que tratamos de recuperar pelo lado de seu “materialismo prático” (um dos rótulos que Marx mesmo deu a seu pensamento) – como pode ser verificado em nosso “Para uma Crítica ao (Não-)Pragmatismo de Marx” (Cognitio, 2012). Daí prosseguimos por um diálogo crítico com os neo-pragmatistas Habermas e Rorty, enquanto dois filósofos contemporâneos dialógicos e mobilizadores, já agora a partir de um paradigma próprio, nosso, que se afastava do intersubjetivismo linguístico “sem mundo” de ambos (cf. nossos artigos de 2019 e 2020, na alemã Transcience).

É basicamente nesse terreno de interlocução e elaboração – que envolve uma reconstrução de Marx e uma reconsideração do modernismo, do ensaísmo historicista e do hegeliano-marxismo brasileiros, que finalmente nos situamos. Por um desenvolvimento do qual participaram ativamente, de modo muito democrática, razoavelmente horizontal, mais uns, menos outros, o Grupo Poética Pragmática inteiro, incluindo orientandos, ex-orientandos, colegas professores jovens, e mais parceiros de fora, por um arranjo concertado coletivo e um work-in-progress.

Para concluir, sobre nossa produção, isto é, sobre alguns dos nossos textos mais centrais ou fundantes para aquele ponto de vista próprio, prático-poiético, depois do “Filosofia Civil”, lá atrás, chegamos, no outro extremo, nos nossos dias, ao “O Mundo Bem Nosso” (Cognitio, 2015), em inglês “A Pragmatic-Poietic Transformative Perspective” (Transcience, 2020). Texto que encontra um complemento no “Nem Habermas, nem Rorty, nem Marx” (Ideação, 2020), que saiu em espanhol no México (como “Pragmatismo Brasileño”) e em inglês na Alemanha (“Towards a Practical-Poietic, Materialist Point of View”). São ambos textos cujos títulos e subtítulos sugerem o desenvolvimento de uma posição não-fundacionista, não-representacionista, materialista-sensível. São textos que deram lugar a discussões publicadas, réplicas e tréplicas, um procedimento nada costumeiro na comunidade filosófica brasileira: os debates com os colegas Waldomiro da Silva Filho, Paulo Margutti Pinto, Leonel Pereira, por ex., em Cognitio e Ideação, e ainda outros, em encontros e eventos gravados.

Retrospectivamente, entre aqueles dois pontos extremos (o “Filosofia Civil” e o “Mundo Bem Nosso”), estão textos que dialogam com diversos pontos de vista da esquerda hegeliana, também Nietzsche e Marx, alguns mais recentes, como “A Teologia de Marx Explicada às Crianças” (2017), alguns também publicados no exterior, como o “Marx and Feuerbachian Essence” (Cambridge University Press, 2006), de transição para o ponto de vista próprio que hoje sustentamos. E os inúmeros textos breves sobre fazer filosofia e fazer filosofia no Brasil. A essas publicações agregam-se depois livros de mais participantes do Poética, como Pragmatismo Romântico e Democracia (2016), de Tiago Medeiros, Direito como Imaginação Institucional (2020), de Pedro Lino, A Política Cultural de Rorty (2018), de Hilton da Cruz, brevemente o Raízes da Institucionalidade: uma tipologia Filosófica, de Tiago, e mais outros tantos por sair. Além de vídeos, colunas Anpof, revistas nacionais de filosofia, artigos de conjuntura na grande impressa etc. É o ponto de vista prático-poiético de várias maneiras se desdobrando; como agora, de uma outra maneira, nova, na conversação/concertação entre os textos da referida Coletânea Filosofia, Ação, Criação: Poética Pragmática em Movimento.

 

3 Poética Pragmática. Construção Prática. Produções, Intercâmbios, Eventos. Concertação, Instituição, Plataforma

No plano dos eventos e realizações, fazem parte do percurso do Poética Pragmática alguns estágios pós-doutorais, como as oportunidades de interlocução e elaboração, na UC-Berkeley (com Hubert Dreyfus), na New School (com Dick Bernstein), na Humboldt-Berlim (com Rahel Jaeggi), de Crisóstomo, e as visitas-sanduíche de Laiz Fraga a Penn-State e de Tiago Medeiros a Harvard. Do lado dos eventos em sentido estrito, quase realizamos no Brasil um debate com Rorty e Habermas, com quem mantivemos contato epistolar, um debate que acompanharia o lançamento do nosso livro com os dois (Filosofia, Racionalidade, Democracia, 2005). Foi durante os contatos iniciais, conjunção com a Unesp, que fazia 30 anos em 2006, que Dick Rorty soube da grave enfermidade que o levaria à morte, no ano seguinte – uma tremenda e dolorosa perda, em meio à chatice de boa parte da filosofia dos nossos dias. Em compensação, fizemos depois acontecer, na Bahia (2013), o primeiro encontro de internacionalização do Poética, em conjunto com o VII Congresso da Sociedade Interamericana de Filosofia, com a participação de parceiros internacionais e nacionais, como Goyo Pappas, Cristina di Gregori, Ivo Ibri, Larry Hickman, Douglas Moggach, Paul Thomas e Jean-Pierre Cometti (outra enorme perda, que depois tivemos).

Isso, além de mais eventos, como o grande Seminário Filosofia e Democracia (jul./out. 2016), e dos colóquios de outros aos quais nos associamos, regionais, nacionais e internacionais, na UEFS, na UFRB, na Universidad de La Plata, na PUC-SP (Centro de Estudos de Pragmatismo). E, na Faculdade de Direito da USP, na sua mais recente edição (2019) do “Homenagem Largo do São Francisco”, coordenado por Alessandro Octaviani, dedicado dessa vez ao pensamento de Roberto Mangabeira Unger. Em que o Poética participou com três representantes e onde o pessoal, pela primeira vez, publicamente nos batizou de “Escola Baiana de Filosofia” (embora eu próprio seja mineiro de nascimento).

A tanto devemos acrescentar que, institucionalmente, o Poética Pragmática se construiu em vinculação com o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFBA, no qual se deu boa parte de nosso trabalho de orientação, discussão e produção. Que resultou num punhado de teses razoavelmente heterodoxas, de doutorandos e mestrandos muito talentosos, como Hilton, Tiago, Laíz, Matheus, Rodrigo, Pedro Lino, Gracione, Margareth, que deram em artigos e livros publicados ou por publicar, como os já mencionados acima. São teses críticas que recorrem, temática e em alguma medida reconstrutivamente, a gente como Stirner, Feuerbach, Habermas, Rawls, Rorty, Chantal Mouffe, Nancy Fraser, Mangabeira Unger, Oswald de Andrade, Guerreiro Ramos e mais.

Nesses casos, não se trata de tomar os autores como mestres inquestionáveis, orixás de cabeça, cercados de comentadores apologéticos, em leituras apenas internas. Mas de tomá-los pelas suas contribuições temáticas, em confronto com seus críticos e com posições alternativas. Autores apreendidos, junto com isso, em seus próprios percursos de pensamento, como buscas do esclarecimento de questões, temas e argumentos, e tudo tendo como horizonte a constituição de posições próprias a esse respeito, de parte dos que os estudam. Disso resultou uma primeira coletânea dos integrantes do Poética, em 2012, discutida entre eles: a Virada Prático-Histórica da Filosofia: Hegelianismo, Pragmatismo, Democracia, que incluiu contribuições de, além dos já citados, também Christine Leboucher, Edineide Santos e Line Lobo.

A turma do Poética é assim tentativamente lançada não apenas ao comentário, mas ao debate, desenvolvimento e recepção crítica do pensamento dos autores, o que compreende seu contexto de discussão e elaboração. Do lado do grupo, envolvendo consulta e discussão com os demais membros, envolvendo referências aos trabalhos uns dos outros, e depois um contato continuado entre todos. Em discussões abertas, seminários permanentes, presenciais ou remotos, com a participação de professores, associados, como André Itaparica, Genildo Ferreira da Silva, Frederik dos Santos, Cristina Di Gregori e Erick Lima.

Pois o mais interessante do Poética Pragmática talvez seja esse seu modus operandi, seus modos de interação, discussão e cooperação, como um fazer associado razoavelmente horizontal e livre, em que todo mundo em alguma medida também orienta todo mundo e troca ideias com todo mundo. Vejamos se a nossa segunda Coletânea, agora no prelo, realiza um novo passo dessa experimentação, além de representar, finalmente admito, por insistência da turma, algo de um Festschrift do grupo para o autor dessas linhas. Mas, nesse caso, tinha de ser mesmo um Festschrift produtivo e interativo, uma jam session com participação do homenageado, em parte em torno do seu pequeno pensamento.

Depois de tudo isso, aonde foi mesmo que chegamos, filosoficamente? Antes de ver isso mais articuladamente na Parte II, vejamos algumas opiniões. Se você perguntar informalmente a um membro qualquer do Poética Pragmática qual a nossa plataforma – é o que fizemos, e aqui agora reportamos – poderá ouvir, desculpada alguma redundância, que nosso Ponto de Vista Prático-Poiético, sensível, integra uma vertente filosófica mais abrangente que descarta uma concepção transcendentalizada de conhecimento. O que implica, entre outras coisas, que se contrapõe aos fundamentos tradicionais da epistemologia moderna, diferindo desta (desculpem tantos ismos e negações) – pela defesa de um não-dualismo, um não-mentalismo, um não-representacionismo, um não-correspondentismo. O que significa que sua dimensão prática essencial pode estar numa radicalização da concepção, de Alexander Bain, de que uma crença é um hábito de ação.

Também, o que singulariza sua posição em relação ao pragmatismo clássico, e mesmo ao neo-pragmatismo, é o fato de que leva mais a sério do que esses dois as consequências da máxima pragmatista de Peirce, por inserir a ação e o conhecimento humanos no âmbito do sensível, material e social. E por pôr o conhecimento numa espécie de interação e contexto práticos que não se reduzem ao campo linguístico ou intersubjetivo, mas devem ser estendidos ao tecido de relações sociais e materiais, como ampliadas em verdadeiras formas de vida. Como parte relevante desse contexto, os objetos são aí tomados como “determinados” pelas nossas ações, mas também como condicionando as relações sociais que vigem nessas práticas, tanto quanto, por aí, importando para a constituição de nossas subjetividades e de nossa forma apropriação da realidade.

Poderia ainda ouvir que o Poética Pragmática procura “radicalizar” Marx, retirando dele seus elementos dualistas, essencialistas e substancialistas, e sublinhando o aspecto dinâmico e contextual da cognição, tanto quanto da criação humanas, nem sempre contemplado por Marx. Essa ideia holista, de um emaranhamento prático-sensível, produtivo, com o mundo, introduz no nosso ponto de vista tanto o elemento poiético quanto o elemento poético-estético, enquanto compreende a ação humana como sensível e plástica, em sentido nietzschiano: criadora de formas e moldadora da realidade. Essa ênfase na criação e na interação abre espaço, no âmbito da política, para a sugestão de um construtivismo institucional, imaginoso, e para uma aposta no aprimoramento da democracia como via de florescimento do indivíduo e da sociedade. Nisso tudo, o Poética exibe uma vocação experimentalista, alimentada por uma visão meliorista da sociedade, da cultura, etc., e esboça uma ideia própria de democracia como forma de vida, que compreende a própria cidadania como coisa também material e produtiva.

Sempre assim, espontaneamente, em termos de plataforma ou programa, você poderia ouvir que se trata, no caso da Poética Pragmática, de uma posição prática propositiva, modernista e historicista. De uma pegada que compreende 1) uma ideia metafilosófica: a filosofia como coisa civil, citerior, dialética; mais 2) um conjunto de temas clássicos de filosofia geral, como realidade, atividade, normatividade, conhecimento, linguagem., mas também de filosofia política e social; mais 3) uma articulação conceitual particular, teórica, de filosofia geral, da qual decorreriam “logicamente” os dois pontos anteriores, embora, genealogicamente, lhes seja posterior. Do outro lado, há no grupo uma certa ideia de indivíduo-pessoa, corpóreo, pulsivo, irredutível a linguagem e a identidades essencializadas, a descrições fixas e a enquadramentos genéricos substancializados. Não se trata, porém, do indivíduo de um subjetivismo solipsista, mas, ao contrário, do reconhecimento de um grau de envolvimento social, histórico, cultural, nacional, do sujeito; tanto quanto se trata de uma certa transcendência, em sua relação com isso tudo. Donde o enredamento do mundo comum apareceria também como contingente e como uma interação entre pessoas, práticas materiais e experiências abertas de mundo.

Duas coisas básicas se encontrariam nessa compreensão poético-pragmática: Primeiro, uma ideia de filosofia como desinflada, como um ponto de vista comum, mundano, particular – social mas também nacional. De uma filosofia em contiguidade/ continuidade com a conversação do mundo da vida e com as discussões da esfera pública; com os interesses de seres humanos comuns, tomados como referência e como contexto onde se trata de pôr-se. Essa pode ser considerada uma posição filosófica crítica, mas de uma crítica nem intelectualista nem negativista, em vez disso interessada em pontos de vista de maiorias, além de orientada para mudanças e soluções práticas e efetivas – cumulativas. Orientada por uma perspectiva sem fundacionismos tradicionais, mas também sem relativismos, implicando, em vez disso, num novo realismo prático-criativo, o da prática sensível e do enfrentamento prático do mundo real. Uma compreensão das coisas entre outras compreensões possíveis, mas nem por isso não conceitual e argumentativamente articulada, multiplamente justificada, praticamente respaldada e dialeticamente constituída. Tendo como pressuposto o reconhecimento de uma multiplicidade de vozes possíveis, já no interior do próprio Poética mas também, em escala maior, no mundo em torno. Uma perspectiva envolvida com narrativas que projetem desinfladas redenções, tanto quanto infinitas também, como uma posição esperançosa, melhorista, até mesmo como um humanismo não-essencialista, popular, interessado em iniciativa pessoal e social tanto quanto em coisas e de meios materiais.

Segundo, essa é, portanto, uma posição que se faz, por recurso à prática enquanto reveladora de mundo e atribuidora de significado, o que a filosofia linguocêntrica faz por recurso à linguagem; sem cair, desse modo, no que se pode entender como o ascetismo, idealismo, abstração dos corpos e dos sentidos, que marcam tacitamente boa parte da filosofia metropolitana dos nossos dias. Isso é o nosso materialismo e é nosso realismo, práticos, desde um ponto de vista que entrelaça, e por aí reconcebe, realidade, atividade, experiência, criação, conhecimento, normatividade, intencionalidade, fruição, etc. Por um “emaranhamento” que pode ser visto como uma reconstrução do famoso fio condutor ontológico-antropológico de Marx (cf. a Contribuição à Crítica da Economia Política), despojado de seu lado dualista (infraestrutura-superestrutura) e determinista (histórico), naturalista primário. O que pode ser considerado como uma reconstrução também do fio condutor do pragmatismo; no caso deste, despojado de seus traços cientificistas, de seu naturalismo reducionista, e de um consequente adaptacionismo prático menos interessante, de inspiração biológica e darwiniana. O que, por fim, envolve uma reformulação crítica dos “fios condutores” normativos de ambos; no caso de Marx, de seu humanismo essencialista genérico (sic), comunista (sic), deduzido feuerbachianamente do Cristianismo e do suposto caráter absolutamente social dos seres humanos, fundado no caráter absolutamente social do trabalho como seu (dos seres humanos) ser-um-para-o-outro.

Por fim, ainda em rápidas pinceladas, sempre a propósito da plataforma filosófica do Poética, você ouviria falar da ideia de que o real é atividade material-sensível (mais ou menos como em Marx), e de que nós próprios também somos isso – e não em primeiro lugar linguagem. No plano do conhecimento, ouviria falar da ideia de que não resta assim espaço para dogmatismo, mas tampouco para ceticismo, agnosticismo ou relativismo, pois uma crença é em primeiro lugar a sinalização de uma conduta e de um lidar com o mundo e com as pessoas, do que decorrem, então, consequências deflacionistas pra o conhecimento, como experimentalismo e falibilismo. Isso tudo com a conclusão de que a Poética Pragmática é um ponto de vista intrinsecamente histórico, contextualista, interacionista, não dualista nem determinista, neste último caso porque inclui uma noção de intencionalidade sensível, corpórea, em oposição tanto a mentalismos e idealismos, quanto a determinismos e naturalismos causais-reducionistas.

 

II O materialismo prático-poético. nem essencialista-dogmático, nem relativista-linguocêntrico

1 Um Retorno ao Paradigma da Produção, em diálogo com Marx, sem seus Problemas Originais

Vejamos, então, como reconstruir Marx, a propósito de um ponto de vista materialista prático, contemplando ao mesmo tempo recuperar, em versão sensível, materialista, o melhor de intuições filosóficas mais recentes, p. ex. de Habermas e Rorty, i.e., de seus pontos de vista supostamente pragmáticos, não-logocêntricos, pós-metafísicos, históricos, contextualistas, anti-dogmáticos, anti-positivistas. Agora, no interior de outro paradigma, justamente do que chamo de ponto de vista poético-pragmático, ou de materialismo pragmático-poiético, não linguocêntrico. E justamente por um diálogo não apenas com o pragmatismo clássico, de onde podemos colher elementos não-linguocêntricos, não-idealistas, sem cair em seus aspectos reducionistas-naturalistas. Mas agora por um diálogo com Marx e, por aí, também com a Fenomenologia do Espírito de Hegel, ou seja, um diálogo crítico com o melhor de Marx como filósofo que tenta uma conversão materialista de Hegel. Isso para um melhor retorno ao paradigma da produção, para além tanto do neo-pragmatismo linguístico e kantiano, quanto do realismo correspondentista e fundacionista do que podemos chamar de empirismo dogmático, hoje analítico.

Trata-se, em primeiro lugar, de abrir mão do que seriam dogmas teóricos de Marx, bem pouco prático-pragmáticos, mas em vez disso teoricistas, a-prioristas, transcendentalistas. Em benefício de um Marx reconstruído, materialista prático, despido de seus essencialismos e substancialismos, fundacionismos e determinismos.[141] Bem como liberto dos dualismos e dicotomias, clássicos e modernos, platônicos e cartesianos, que, apesar de tudo, Marx reitera com muita força: sensível vs. inteligível, essência vs. aparência, essência vs. existência, fundo vs. superfície, infraestrutura vs. superestrutura, ciência vs. consciência/ideologia, sujeito vs. objeto, ideal vs. real.

Isso pela retomada do seu viés mais consequentemente materialista prático, através da noção de práxis como produção sensível (poiesis), de nós e do social como atividade sensível, de um interesse pelo papel – relevante – dos meios/objetos materiais, e de seus usos, na constituição de nossas relações e, portanto, de nós próprios. “O homem põe objetos porque é posto por objetos” – afirma Marx, nos Manuscritos de 1844, pretendendo corrigir o suposto elemento idealista subjetivo de Hegel, a propósito da Fenomenologia do Espírito como história da construção, pelos seres humanos, de si mesmos e do mundo.[142] Com aquele “porque” marxiano deixando entrever, entretanto, um questionável apassivamento ou determinação causal, exterior, que Marx apesar de tudo propõe para a ação humana.

O que chamo de embrião de um materialismo prático-normativo, poiético, não teoricista nem essencialista, em Marx, pode ser lido como compreendendo uns tantos “momentos” que se interpenetram, encontrados no conjunto de sua obra, porém, aqui extraídos, por simplificação, sobretudo das Teses ad Feuerbach (mas não só), por mais abreviadas que essas sejam.[143]

Tais momentos são:

1) A recusa de um “empirismo dogmático”, intuicionista-passivo, mentalista-cartesiano, contemplativo, que Marx chama de materialismo anterior, não constitutivamente prático, assim como uma rejeição do idealismo subjetivo que desconhece a verdadeira atividade humana enquanto sensível, trabalho (Teses ad Feuerbach, n. 1 e 5);

2) Logo, uma superação da concepção – dualista -– do mundo e do sujeito humanos como estáticos, exteriores um ao outro, tanto quanto do segundo apenas como pensamento. Logo, possivelmente, um abandono do ponto-de-vista do espectador e da fixação objetivista-representacionista do real;

3) Uma desqualificação do indivíduo abstrato da percepção empirista, do indivíduo pré-social; uma rejeição da ficção do indivíduo como dissociado do conjunto das -– suas -– relações sociais e de uma forma de vida social determinada (Tese 6). Isso, não obstante sua (de Marx) essencialização/redução (visível em mais de seus textos) daquelas relações todas a um tipo único e determinante, as suas “relações de produção”, viés que não queremos adotar;

4) A já mencionada concepção de nós como seres que põem objetos e são postos por objetos (dos Manuscritos de 1844 até O Capital). Para nós, dispensada do elemento determinista, causal, expresso na fórmula: “põem objetos porque são postos por objetos”. Uma formulação em certa medida contraditória no próprio Marx, que, no seu materialismo histórico, tem problemas com a ideia de criação do novo como não causalmente inscrita num largo condicionamento precedente. Isso, não obstante, no Capital, na caracterização do trabalho humano em geral, Marx pareça reservar para ele um elemento de imaginação e de transcendência.[144]

5) Tudo isso atravessado por uma sugestão de “epistemologia” social e política – i.e., por uma ideia de congruência de pontos-de-vista filosóficos (epistemológicos, ontológicos, políticos) com posições sociais (Standpunkten), enquanto situações práticas materiais, “lugares” no interior da sociedade (Teses 9 e 10). Atravessado, assim, por um contextualismo e um perspectivismo materiais sensíveis, a que Marx, entretanto, não é fiel ele próprio, no que diz respeito a suas concepções do real, em geral correspondentistas (Ideologia Alemã, seção I), ainda que com um elemento de “construtivista” hegeliano (“Introdução de 1857”).

6) Ao final, entretanto, para além desses elementos pragmatistas-poiéticos, Marx, especulativamente, apresenta sua crítica do real social como ao mesmo tempo essencialmente (sic) cindido e atomizado, pelas “más” relações e práticas sociais imperantes (desiguais e conflitivas, em vez de cooperativas e comunistas), o que, para ele, acarretaria o desdobramento/duplicação do mundo na religião – pela alienação (Tese 4) e pelo fetichismo (O Capital).

7) Para sustentar tal posição normativa, Marx se compromete com uma dedução do “homem” (genérico), a partir do Cristianismo (enquanto idealismo), como premissa de sua posição crítica. Ou seja, compromete-se com a “tradução” feuerbachiana do Cristianismo no humanismo comunitarista, anti-individualista do Ser-Genérico – seu fundamento para a crítica da sociedade, da economia política e da cultura (Tese 4). O “homem” como Ser-Genérico, como tal um valor, um fundamento normativo mundano mas essencializado, o homem como essência-genérica, nesses termos o novo – o verdadeiro -– Ser Supremo para os homens.

8) É esse homem social-social que, introduzido na economia política pela noção do trabalho (nosso ser-um-para-o-outro) como inteiramente social, determinará, por necessidade, o rumo da supressão prática da contradição social e a restauração (reconciliação) da unidade-solidariedade social, com o fim da suposta auto-alienação, de novo, do “homem”. Isso, então, abrindo caminho, para além do ponto-de-vista “egoísta” da Sociedade Civil de hoje, para o da Sociedade Humana de amanhã, o Socialismo e o Comunismo, para a necessidade e o imperativo de sua realização.

9) Do lado de seus elementos menos práticos, registremos ainda que Marx: a) distingue e hierarquiza dois níveis de prática: aquela, diz ele, egoísta, judaica suja, a prática comum dos homens comuns na vida civil vs. a prática virtuosa, revolucionária, teoricamente iluminada, crítica (ver Tese 1); b) se envolve-se, contraditoriamente, com uma variação da posição mentalista-correspondentista, quando, após afirmar que é a existência (prática, relacional, ativa) que determina a consciência, invoca a metáfora da câmara escura (correspondentista/inversora do Real) na sua crítica ao idealismo e à ideologia (na Ideologia Alemã), e sobretudo defende seu conhecimento como científico, no sentido inteiramente correspondentista, de um espelhar/reproduzir na mente individual nada menos do que o inteiro movimento totalizante do real, por via da rearticulação dos dados objetivos sensíveis, factuais, pelas categorias da lógica hegeliana, em versão alegadamente materialista (Introdução de 57).

10) Finalmente, c) como indicado, Marx sustenta um normativismo transcendentalista dogmático para fundamento de seu ponto de vista social crítico, seja 1) a partir da tradução feuerbachiana, humanista-comunitarista, naturalista, dos predicados/valores do Cristianismo (do Ser Supremo alienado), infinitizados, seja 2) pela alegada demonstração do caráter, de fundo, essencial, determinante, inescapavelmente social, do trabalho (sentido estrito), na sua crítica da economia política. Um caráter alegadamente invisível, para seus próprios atores e para todos nós, homens comuns, ao nível da enganadora superfície enquanto aparência real, que apenas sua teoria desvela (cf. O Capital, vol. I).

O que pode resultar dialeticamente de uma boa correção crítica e prática de Marx, e prático-sensível, do linguocentrismo idealista-criativo de Rorty e normativo-universalista (com um grão de realismo) de Habermas, é, para mim, então, uma compreensão que deve partir, ao modo de primeiro, de nosso emaranhamento com o mundo, na direção de um pragmatismo poiético-sensível, de um holismo prático-material e de uma consideração da criadora contingência da existência. Tomando como ponto de partida o que chamo de nosso emaranhamento prático sensível criativo com o mundo, um emaranhamento produtivo – também enquanto cognitivo, estético, ético, político etc.

Isso como base para um materialismo prático-poiético, o qualque põe em estreita relação, de maneira renovada, prático-sensível, a gente, a realidade, a ação, o conhecimento, a normatividade etc. De um modo que deve distinguir-se tanto de certo realismo empirista representacionista, entendido por nós como pouco interessante para a realização das disposições livres, prático-criadoras dos seres humanos. Quanto deve, ao mesmo tempo, distinguir-se de um anti-representacionismo meramente linguístico, o qual tem preocupações semelhantes às nossas, mas é compreendido por nós como insuficientemente aberto à criação material sensível, embora disposto à crítica anti-positivista e antiautoritária, e ao reconhecimento da dimensão social, não-fundacionista (ao modo tradicional), de nossa relação com o mundo.

Trato de alcançar esse ponto de vista, que considero mais fecundo para certos propósitos, pela via de uma combinação de não-representacionismo prático e materialismo poiético, sugerida como possivelmente mais apropriada às nossas circunstâncias e necessidades. E busco isso por recurso à utilização de algumas noções principais:

a) uma noção de intencionalidade prático-sensível, significadora, como parte de nosso modo básico de envolvimento com o mundo, por nossa iniciativa deliberada de dirigirmo-nos ativamente às coisas, tomá-las assim ou assado, dando-lhes, dessa maneira, seu significado. E assim, por esse trato com o mundo, formando delas noções (práticas) “antes” de qualquer recurso à linguagem, ainda que se trate de noções socialmente sustentadas, sedimentadas e compartilhadas – por práticas das quais faz parte a linguagem;

b) essa noção de intencionalidade se constitui numa recuperação, aqui no seu nível mais elementar, de uma noção não-metafísica, não-dualista, de autoconsciência (da filosofia clássica alemã), como sua dimensão eminentemente ativa, criadora, transcendedora, para os seres humanos, que é o que Marx, contraditoriamente, se empenha em praticamente aniquilar por sua onipresente crítica da noção de consciência e por seu fundacionismo do Ser-Genérico enquanto passividade (leidend-sein);

c) uma noção de nós e do mundo como essencialmente atividade, da ação humana como ubíqua e eminentemente poiésis, fazer criador que introduz coisas e modos no mundo, que põe o próprio mundo humano e que nos faz históricos;

d) a noção de objetivação de conhecimento e imaginação, na ação, pelo homem, no mundo e nas coisas, algo como o espírito objetivo de Hegel, que também encontra eco na posterior noção marxiana de “inteligência geral”;

e) assim, uma noção de realidade humana como “subjetiva” (Tese 1), não objetiva em sentido tradicional, independente, separada, cartesiana; uma noção de realidade e de nós próprios como atividade sensível e como artefato;

f) as noções de normatividade e de significação como constituídas, não em primeiro lugar, pela linguagem, por uma subjetividade monádica, por uma atomizada intuição sensível. Ou uma intersubjetividade-sem-mundo, eminentemente linguística. Mas pela nossa própria prática, social, de lidar experimentalmente com mundo, as pessoas e coisas, orientada por nossos propósitos e interesses, e apoiada e permanentemente modificada pela introdução de objetos;

g) isso em oposição à ideia de uma normatividade 1) deduzida, de modo fundacionista, dogmática, da religião, 2) lida dogmaticamente para dentro da realidade, por uma teoria da história e uma filosofia crítica da economia, ou mesmo 3) postulada finalmente por um universalismo abstrato, de tipo kantiano, ainda que semi-destranscendentalizado, socializado.

Por essa via, chegamos a uma concepção prática, holista-materialista, objetual, do mundo, da cultura e de nós mesmos, segundo a qual os seres humanos permanentemente põem/criam novos objetos e objetivações (artefatos no sentido mais amplo), . Ssendo, por sua vez – eles, indivíduos humanos em sociedade –, postos/constituídos/criados por tais objetos/objetivações e pelas práticas/relações que tais coisas tanto pressupõem quanto permanentemente engendram e às quais dão suporte. Chegamos assim à concepção da sociedade como um conjunto de práticas, envolvidas com o uso e a criação de objetos e objetivações, e assim como uma própria forma de produção e de vida. Tornando-se tais práticas, como sugerimos, igualmente nossas objetivações, que têm em objetos seu suporte e que envolvem relações nas quais esses têm papel constitutivo. Tais práticas estão envolvidas, tanto na reposição/reprodução da sociedade quanto no desenvolvimento de novas coisas, novas relações e mesmo outras práticas, novas. Portanto, na modificação do mundo e de nós próprios. Práticas que possivelmente se podem constituir em espaços privilegiados de ação transformadora do mundo, mais do que apenas alguma Super-Prática, concebida como inteiramente transcendente, exterior a tudo isso.

Parafraseando Marx, a dialética desse novo materialismo poderia ficar assim: no uso e criação de objetos, os seres humanos desenvolvem entre si relações múltiplas e cambiantes, que têm a ver com aqueles, enquanto desenvolvem novas práticas e produzem novos objetos, artefatos, coisas. A criação de novas práticas, objetos e usos enseja – ou força – novas relações e novas formas de subjetividade entre os seres humanos, constituindo um mundo nosso, histórico, constituindo-nos a nós próprios como pertencentes a tal mundo e constituindo, assim, o que chamamos de uma forma de vida e de mundo. Não há por que supor que tal dialética só se dê na produção de objetos/bens ditos materiais, sem espírito, de consumo, “na base” da sociedade, pelo uso aí de grandes Objetos/Meios de produção. E não se dê na prática geral dos seres humanos de criar, usar e reproduzir, como inevitavelmente entrelaçados entre si, objetos, ideias, vocabulários, instituições – todos eles, enfim, artefatos. E de, dessa maneira, produzirem-se a si próprios como artefatos.

Sendo assimNesse sentido, deve cair o tradicional dualismo infraestrutura-superestrutura, não havendo por que entender que “só” há pensamento privilegiadamente (embora irrelevantemente) no nível da superestrutura, mas não no da infraestrutura e das práticas consideradas produtoras, em sentido estrito. Quer dizer, não há por que entender que sejam, nos dois casos, pensamentos de ordens inteiramente diferentes (compreensivo vs instrumental), acrescidos e contrastados, ademais, de uma terceira forma, absolutamente distinta, de pensamento, a Ciência ou Teoria-Verdade, de ordem absolutamente superior, transcendental, como a própria Teoria de Marx. Ao contrário, o pensamento sempre seria, em todos esses casos, o que se produz na e para a ação, como aquilo que orienta a conduta ou corresponde a ela e a acompanha, que corresponde aos nossos propósitos e contribui para a solução de nossos problemas.

Pois, tanto em Marx, contraditoriamente, como no pragmatismo, tacitamente, haveria uma congruência, como já registramos, entre pontos de vista filosóficos gerais (como o pragmatismo e o materialismo histórico eles próprios) e seu contexto, suas consequências políticas e sociais, as práticas de que brotam. São pontos de vista, em última análise, práticos e envolvidos com idealizações. No primeiro caso (o materialismo histórico), o comunismo como sociedade verdadeiramente humana e como desenvolvimento do novo homem, plenamente social. No segundo (o pragmatismo), a democracia como forma de vida e de florescimento humano. Para o nosso caso, nosso ponto de vista poético-pragmático poderia dar suporte a uma noção materialista prática de cidadania como empoderamento criativo por capacidades e meios, sem que isso implique necessariamente consequências nem coletivistas nem liberais individualistas, digamos clássicas. Nem implique uma sociedade achatada, estatizada ou absolutamente atomizada – em todo caso, no fim de contas, oligopolizada. No nosso caso, trata-se do que eu chamaria de um ponto de vista eminentemente civil, democrático, cidadão, material.

A sociedade como forma de vida, segundo vimos, pode ser entendida como um agregado de práticas reprodutoras e produtoras, suportadas por objetos e constituindo objetivações, nas quais as relações entre pessoas e com o mundo decorrem de sua introdução, por nós mesmos, por nossa imaginação e cálculo, e nos faz quem somos – em permanente mudança. Numa sociedade assim compreendida, podemos entender de um modo novo a relevância e o papel de chamadas forças produtivas, das relações que essas propiciam, cobram ou condicionam, do poder que promovem, que as possam favorecer ou limitar, ou com elas entrar em conflito – em benefício de relações e práticas novas. Forças produtivas que compreendem, em primeiro lugar, os indivíduos e grupos humanos como criadores, com suas potências, competências e recursos. E vale sublinhar que as relações com os objetos e os recursos e competências podem refletir ou determinar dissimetrias, como relações desequilibradas de poder, propriedade e competência – mas disso não nos podemos ocupar aqui, de forma estendida.

Por via dessa compreensão das coisas, enfim, pode-se constituir e sustentar uma noção de cidadania material, produtiva, econômica, não passiva, protagonista, realizadora, f. Ficando a democracia como uma forma de vida também material e produtiva, econômica, envolvendo um empoderamento (ou “soberanização”) de todos, tanto de maneira individual quanto grupal, por competências e meios. Aí onde estão as práticas – sociais – de reposição da sociedade, numa forma de vida como conjunto de práticas de sua reprodução, podem-se cotidianamente desenvolver, e efetivamente se desenvolvem, práticas de sua transformação. Estamos, assim, de volta à associação de progresso e democracia ao avanço, difusão e democratização, de competências, recursos e capacidades (ou forças) produtivas, também objetivadas em práticas, artefatos e instituições, p. Pelo que eu chamaria de uma proposta de democratização econômica, material, produtiva, da sociedade. Menos inclinada a admitir certas práticas – intelectuais, políticas ou científicas – como transcendentais, superiores, de uma natureza totalmente outra, em detrimento das comuns, usualmente tomadas, em visões filosóficas superiores, como de natureza degrada ou alienada. Essa, sim, a favor do comum dos homens, seria mesmo um ponto de vista eminentemente civil, autonomista, livre e criativo. Isso, sim, a filosofia poderia favorecer.

 

2 Anti-Representacionismo Prático-Sensível, Poiético-Pragmático, Não-Linguístico, Não-Fundacionista, Não-Relativista

Vejamos agora mais de perto outro de nossos concorrentes, o anti-representacionismo linguístico e seus desdobramentos não correspondentistas, não-mentalistas e não-fundacionistas (v.g. Rorty e Habermas, mas não só), além de outros desdobramentos possíveis não explicitamente explorados aqui, de segundo grau, culturais, políticos, estéticos, científicos, técnicos etc. Parece-nos que disso tudo podemos ficar com alguma coisa, mas, novamente, apenas por sua reconstrução sobre outras bases, mais amplas e compreensivas. Em confronto com esse panlinguisticismo pós-metafísica, neo-pragmatista, nossa pretensão é de que as práticas, a ação, a criação, a invenção, sensíveis, não apenas aquelas linguísticas, são o que “primeiro” nos põe em relação estreita, porém, não representacionista, cognitiva, mas não só, com o mundo, num marco igualmente não fundacionista. O que eEntretanto, isso deixa para trás eventuais traços malsuperados de idealismo, dualismo, ceticismo e mesmo ascetismo, contraintuitivos, na nossa opinião ainda remanescentes no linguocentrismo.[145]

Pois Ora, é em relação ao nosso agir e ao nosso fazer que o mundo sensível não é exterior nem independente, e são eles que permanentemente o significam e ressignificam, constituem e reconstituem, segundo nossos propósitos e interesses. Não, por suposto, à sua (do mundo) completa revelia, mas, mesmo assim, pelos modos de uso e apropriação, criação e recriação que dele pudermos ou precisarmos fazer, ao encontro dos quais a significação linguística, comunicacional, se constitui, se soma e se adéqua – até, de certo modo e para certos casos, diríamos, a esse mundo “co-respondendo”. Isso num trato com o mundo que é sempre de algum modo social, que inclui nele os outros seres humanos, tanto quanto as coisas sensíveis enquanto não “exteriores” a nós e à cultura, com as quais nos pomos em relação, coloca pondo-as em relação conosco, de determinados modos, no interior de práticas sensíveis entre si articuladas. Entre as quais coisas estão destacadamente aquelas inteiramente humanas, como instituições, construções, associações, artefatos outros, sempre em permanente transformação. Coisas certamente impregnadas de significado humano, de linguagem e de pensamento, coisas justamente resultantes de nossa própria ação significadora e manipuladora, culturalmente orientada por propósitos e usos, sendo mesmo, elas, a materialização sensível destes últimos, ademais, por fim, de seu suporte

Com efeito, o mundo, do outro lado, não é, como para um fisicalista ou pós-fisicalista extremo, basicamente um além da linguagem puramente físico, por isso, um além de nós, lá para as tantas perdido para nós por um modo pós-empirista e pós-metafísico de ver as coisas, ou de jamais vê-las. Mundo “em si” que só se nos apresentaria, enigmaticamente, como uma sucessão desinteressante de empurrões e puxões causais, crus, brutos, cegos, como no máximo uma porção de obstáculos duros, inflexíveis, que nos afetam ou mesmo atrapalham, como uma indesejável e desinteressante resistência no nosso caminho. Em vez disso, o mundo seria, para nós e para começo de conversa, coisa material-sensível como nós próprios somos, quer dizer, como nossos corpos são, como um conjunto de qualidades, recursos e apelos, tanto quanto de riscos, resistências e ameaças, mas também de possibilidades. O mundo seria, mesmo no seu nível mais primário, básico, natural, um conjunto de sensações qualitativas, gostos, cores e mais, a que reagimos, que buscamos ou evitamos dessa ou daquela maneira, segundo nossos interesses, necessidades e propósitos. Um mundo de coisas sensíveis que tomamos, usamos, consumimos, fruímos e transformamos, e, em tantos casos, inventamos e fazemos por completo, e aí inteiramente conforme nossos gostos, necessidades, fantasias – mas ainda assim também conforme “suas” (do mundo) propriedades e características.

É, na verdade, um mundo que se compõe – no caso de nós, organismos humanos, e a essa altura da história – de práticas humanas holisticamente articuladas e de artefatos, em última análise, humanos que encontram nelas o seu lugar e que lhes dão, como já dissemos, suporte. Práticas que incluem simultaneamente a interação dos homens entre si e com as coisas, num contato compreendido agora de maneira bem mais prática, concreta, rica, sensível, material e aberta, do que no realismo sensista, abstrato e estático, do empirismo, ou do que no panlinguismo, embora este tentativamente historicista e hermenêutico – ou até (neo)pragmatista. É através de nossa interação com o mundo que as coisas resultam significadas por nós e para nós, além de serem, em tantos casos, segundo já frisamos, simplesmente inventadas e feitas e refeitas por nós, para esse ou aquele uso, isto é, com esse ou aquele significado – imposto, sensível, materialmente, por nós, segundo nossas forças, habilidades, invenção, mas também experimentação e criação, ao mundo dito exterior. Assim, não teríamos, como para o linguisticismo teríamos, uma esfera propriamente humana, essencialmente linguística, simbólica, histórica, social, do lado de cá, e, do outro lado, um lá fora material, físico, “não humano” – como um mundo fixado, não histórico e sem qualquer significado “objetivo”, como algo enfim indizível, obscuro e não nosso.

Certamente, para quem começa por um empirismo dogmático abstrato, por uma abordagem representacionista-correspondentista do conhecimento e do mundo, e por um tratamento apenas lógico-analítico da linguagem, é uma grande descoberta e um passo auspicioso chegar a uma concepção hermenêutica e pragmatista, behaviorista, da mesma linguagem, e ultrapassar assim o estreito e dogmático epistemologismo positivista, dualista cartesiano, a que aquela abordagem e aquele tratamento deveriam originalmente servir. Não há por que desprezar a contribuição, digamos, emancipadora, que pode advir daí, isto é, de uma descrição renovada do papel da linguagem como “mediação” com o mundo, com ênfase na dimensão prática, intersubjetiva, social, logo histórica, de pensamento e conhecimento, e dela própria, a linguagem.

Certamente, devemos celebrar que por essa via se tenha chegado inclusive a uma imagem pós-metafísica melhor, desinflada, não epistemologicamente-centrada, do papel do filósofo e da filosofia. Quer seja aquela do filósofo como “linguista de campo”, em vez de mero analista linguístico apriorista, de cadeira de balanço, quer seja, muito melhor, do filósofo como intérprete e mediador na cultura. Quer seja, por fim, do filósofo como artífice, já agora deliberada e conscientemente, de novos vocabulários formatadores, os quais criariam novas realidades, dando forma a novas práticas – ou seja, em todos esses casos, do filósofo não mais à imagem de um superteórico do mundo e superjuiz da cultura.

Pois eEfetivamente, em sociedades modernas, mais ou menos desenvolvidas e democráticas, todas aquelas poderiam ser contribuições do filósofo e da filosofia, hermenêuticas e criadoras, e isso poderia ser o mais cabível e defensável para eles, embora, para mim, fosse preferível que um papel transformador para a filosofia pudesse, nesse caso, ser concebido não como operando em “roda livre”, numa suposta esfera apenas ou em primeiro lugar linguística, desencarnada, num contexto “imaterial” também a isso reduzido, basicamente à intersubjetividade discursiva e intelectual, mesmo que, em certa medida, um contexto normativamente regrado. Mas que fosse concebido, em vez disso, como um papel (o do filósofo) de partícipe do mesmo conjunto a que pertencem práticas materiais-sensíveis, no mais amplo sentido, ao fim e ao cabo em interação com o mundo material-sensível, como naquelas práticas o apreendemos e também como por elas o produzimos, em qualquer que seja nossa esfera de atividade.

É fato que o interesse positivista-lógico pela linguagem, enquanto possivelmente neutra, como elemento do projeto inicial do neoempirismo, foi dando lugar, no próprio desenvolvimento do movimento analítico, a uma abordagem progressivamente mais pragmatista e hermenêutica, prática e contextualista, da linguagem, liberada de vícios dogmáticos originários. Isso, porém, não teria necessariamente de desembocar e fixar-se em um absolutização da linguagem e da prática linguística, uma vez autocriticados os mitos do dado, da separação analítico-sintéticao, e outros correlatos, passando elas a reinarem com exclusividade. Dando-se então, por isso, o mundo por perdido, na verdade perdidas apenas as intuições sensíveis supostamente primárias, imediatas, do positivismo, desbancadas junto com qualquer coisa que, de outro lado, pertencesse a um a priori puro, também por ele e algumas de suas variantes dogmaticamente pressuposto. O desenvolvimento epistemológico gradualmente mais comportamentista, hermenêutico e pragmatistizante da filosofia analítica da linguagem, desde o empirismo lógico inicial, para além de si mesma, compõe, se se quiser, uma narrativa razoavelmente dialética, i.e., um desenvolvimento plausivelmente imanente e necessário, realizado por uma recuperável lógica interna, a partir de suas próprias contradições, até desembocar no seu extremo contrário antipositivista.

Contudo, isso por si só não excluiria que tal desenvolvimento ainda possa por aí manter, na sua suposta radicalidade, desavisadamente, algumas das limitações do seu paradigma cartesiano-humiano originário, as quais marcaram tão decisiva e indelevelmente seu ponto de partida. Ou seja, como sugerimos, o resultado final a que tal desenvolvimento chega pode não ter deixado inteiramente para trás o que é negado, ainda que negado com suposta radicalidade, mas, em vez disso, pode ter até aqui se resolvido nos limites de seus pressupostos fundantes mais profundos. Isso por ter-se detido aquém de um salto para fora e para além deles, i.e., um salto para a prática sensível, que incluísse, como defendemos, uma assimilação mais decisiva de sugestões do pragmatismo anterior e da filosofia continental “pós-darwiniana” (v.g. Nietzsche e Marx), de diferentes maneiras também anti-representacionistas, porém mais efetivamente prático-sensíveis e não linguocêntricas, c. Cujo naturalismo anti-metafísico, sob certos aspectos, soube melhor distanciar-se de dualismos e dogmatismos classicamente modernos, os quais ainda se refletiriam, infelizmente, na mania norte-atlântica, do século XX, e já agora no século XXI, de linguistificação da filosofia, como por uma nova versão moderno-platonista de ascetismo anti-sensualista.

Tentando, de nosso lado, contribuir para que deixe para trás o que entendemos como seus vícios de origem, podemos interpelar o novo linguisticismo hermenêutico-neopragmatista, em boa medida também o pós-estruturalista, através de algumas questões preliminares, começando por aquela central, seguida de outras acessórias. Com efeito, será mesmo preciso deter-se numa concepção filosófica ascética e idealistamente linguocêntrica, que cremos empobrece nossa relação sensível e criadora com o mundo também tomado como sensível, para, por essa via, sustentar e aprofundar o abandono das limitações representacionistas-correspondentistas do mentalismo solipsista e do fundacionismo dogmático, para daí então assegurar maiores ganhos antiautoritários e pluralistas, além de supostamente romântico-criativos, para um possível florescimento da cultura e da política democrática, enfim, para uma efetiva virada radical, prático-poiética, pós-cartesiana e pós-platônica, não logocêntrica, da filosofia?

Pois para nós, é em primeiro lugar uma ênfase na prática sensível que melhor deixaria para trás tudo isso, sendo sobretudo através de uma compreensão pragmática e também holística, anti-teoricista, da “precedência” e “onipresença” dessa prática, que podemos chegar de maneira melhor às consequências mais desejáveis de tal superação do dualismo e abstracionismo modernos, da qual uma concepção pragmatista ou não-representacionista da linguagem seria apenas um dos elementos. Isso, ao tempo em que nos afastamos das sombras remanescentes de idealismo e dualismo, de agnosticismo e ceticismo, do linguocentrismo, bem como nos libertamos de uma descrição abstrata e ascética do mundo, isto é, de uma representação da nossa relação com ele como empobrecida, mantida abstrata, em última análise, apenas cognitiva, como no positivismo cartesiano originário. A interação prático-sensível, como “mediação” incontornável com o mundo e os outros, na nossa opinião, faria tudo isso mais e melhor do que a linguagem dominantemente verbal e cognitiva, sem aqueles prejuízos, sendo essa, para nós humanos, apenas um dos elementos da prática, por muito presente e relevante que eventualmente seja.

Como usuários de linguagem verbal que, entre outras coisas, também somos, movemo-nos já sempre e inevitavelmente, no que diz respeito às nossas descrições do mundo, e certamente também a uma parte de nossa comunicação, com ela e dentro dela – esse relevante componente da maior parte das práticas e interações humanas. Logo, movemo-nos assim, embora de modo algum só por isso, num contexto intersubjetivo, cultural, social, com o qual necessariamente negociamos, o mundo a essa altura já dito e redito, além de objetivamente povoado por uma infinita riqueza de signos, não apenas linguísticos, com nossas interações potenciadas e variadas com o suporte da linguagem nas suas diversas formas, mas não só por ele. Pode-se, então, perguntar: isso é dizer que não nos movemos também já sempre como seres prático-sensíveis dentro do mundo enquanto sensível e prático, de um mundo nosso, nós e ele como sensíveis, e isso como particulares criaturas físicas, corpóreas, prático-ativas etc.? E não o fazemos dentro de um mundo sensível criado por nós (que nos cria também, certamente), que tem mais e mais a marca de nossa atividade, não enquanto povoado de coisas “estranhas” que nada dizem nem significam ou expressam, porém, como corporificação, expressão e suporte de nossos propósitos e significações, logo também de nossa racionalidade, sendo ele a essa altura exatamente isso: um mundo constituído e composto por nossas práticas e, dentro delas e para elas, por nossas próteses, criadas por nós, os objetos tomados, produzidos ou postos, como dissemos no começo do texto, como isso ou aquilo, para isso ou aquilo, justamente por nós, sensível e corporeamente?

Infinitamente mais – e mais literalmente – do que na velha tirada pragmatista-humanista-protagoriana (invocada por William James), de que “os rastros da serpente humana estão em toda parte”, o mundo é ele próprio radicalmente e de diversas maneiras feito e mapeado por nós, assim como é para nós sensível e concretamente fazedor e mapeador. Nessa perspectiva, entre a linguagem como o humano, de um lado, e as abstratas empobrecidas intuições sensíveis, como o inumano supostamente hard, do outro, os dois como no fim de contas dissociados como gostariam de entender justamente os positivistas abstratos e fisicalistas, podemos ficar agora com uma outra posição: aquela da prática sensível, social, significadora, criadora e holística. E, por essa via, a do integral enredamento entre um mundo progressivamente mais humano e nós enquanto seres humanos mundanos que a ele “correspondem” (em sentido bem mais completo e interessante) e que são junto com ele modelados, p. Pois, para nós, são as práticas sensíveis, as artísticas também, que põem e repõem e reinventam o mundo, e que assim primeiro o significam, que são a um só tempo o que somos e quanto é o mundo.

No meio disso, uma crença sobre o mundo é apenas uma disposição de ação prática, ou igualmente de fruição, nascida da e testada na prática sensível, pela interação sensível com o mundo prático, crença que se torna, portanto, um hábito na e pela ação, e não por certo apenas e primeiramente um hábito linguístico, nem mesmo necessariamente um hábito cognitivo. Dando a essa questão (que visivelmente remete a Peirce e Alexander Bain) uma volta inteira: um hábito de ação já é em boa medida uma crença significadora do mundo mesmo que – imaginemos – ainda não linguisticamente formulada. Do mesmo modo, e apelando ainda aos primeiros esteios do pragmatismo americano clássico, mas nem de longe só a eles, nossa noção apropriada, também apropriadora, de alguma coisa, é aquela dos efeitos sensíveis que podemos esperar dela (e que podem nos orientar para ela) no quadro de uma interação sensível com ela. Ou seja, é seu comportamento (não só o nosso), na nossa atividade de lidar com ela e por fim de usá-la ou transformá-la, e isso com base na experiência anterior, sensível e prática, que dela tivemos. Tal noção é uma projeção de uma experiência anterior com ela, orientada por propósitos, como antecipação de um comportamento posterior e uma aptidão para modificá-la e à nossa relação com ela.

Por que, podemos perguntar, o sensível não-linguístico não poderia ser tomado de um modo não empirista abstrato, além de não-fundacionista, não mais como fonte de suposta representação pictórica em nossas mentes, nem como algo originário, imediato, dado, mas como mediado em primeiro lugar pela prática, por uma significadora interação sensível com ele, envolvida assim por nossos propósitos, interesses, gostos, fantasias e caprichos? A linguagem não pôde ser separada do paradigma empirista lógico-analítico, para afirmar-se como “primeira” – e como coisa prática e não representadora – sem por isso ser assumida de modo fundacionista? Se a linguagem poderia ter toda uma centralidade, ser alegadamente esse primeiro inarredável e incontornável (como antes as intuições sensíveis), sem aparecer por isso como nova fundação, salvo se como fundação de um certo antifundacionismo, por que não a prática e o comportamento enquanto não reduzidos/redutíveis a simplesmente linguísticos? Por que, enquanto “correlato” de práticas e experiências, o sensível mundano só poderia ser acolhido de uma forma fundacionista dogmática, anti-historicista, além de apenas cognitiva, e não como algo plástico e aberto, embora também material e resistente, posto e reposto na/pela atividade intencional humana sensível, histórica, criadora, ou, quanto a isso, posto mesmo pela atividade “não histórica” de qualquer outro organismo vivo, sem necessariamente competências comunicativas especificamente verbais, isto é, sem linguagem?

É verdade que, para tudo isso, poderia haver uma resposta simples: porque o sensível como prática ou atividade, como interação sensível, uso ou o que seja, por si só não significa, não dá significado a coisa alguma, nem se constitui tampouco em significação corporificada. Por isso, ela, a prática sensível humana, por si só poderia ser apenas um lidar com as coisas que vem depois da linguagem verbal, já que só a linguagem verbal significaria. Caso contrário, ela necessariamente se reduz a um lidar animal ou maquinal, totalmente desprovido de semelhança com o nosso lidar propriamente humano, cultural, histórico. Ora, estamos dispostos a afirmar que, muito pelo contrário, são os seres humanos e suas práticas, enquanto contexto e sociedade, que significam o mundo pelo seu constante e renovado uso, criação e fruição sensíveis, o que não quer dizer necessariamente apenas e em primeiro lugar os seres humanos como linguagem, nem, de outro lado, quer dizer significado enquanto estritamente linguístico. Mas quer dizer os seres humanos essencialmente como prática social e pessoal sensível, e essa sua prática como uso no sentido mais amplo do termo, que inclui apropriação, fruição, cognição, criação e, finalmente, a própria produção material de coisas, também no sentido mais amplo do termo.

São nossas práticas, nossos usos, incluindo o nosso fazer e a nossa invenção, não enquanto meramente linguísticos nem primariamente linguísticos, que efetivamente significam e ressignificam o mundo (e a nós mesmos) – e, como dizíamos lá no começo, que o recortam e compõem assim ou assado, que o tomam como isso ou aquilo, ou seja, como tendo esse ou aquele significado, para nosso proveito, deleite, potenciação ou o que seja. Como para qualquer outro organismo vivo, de onde viria a significação do mundo, do seu mundo próprio, senão da sua atividade prático-sensível “nele” e “sobre” ele? – algo ser bom ou ruim, proveitoso ou danoso, ser isso ou aquilo, ser meio de vida ou ameaça, gratificação ou aversão, alimento ou abrigo, sólido ou líquido? Dessa maneira,e modo poderíamos finalmente concluir que significado é uso não somente no caso de palavras, como na famosa máxima da virada linguística (v.g. Wittgenstein), mas também e primeiramente uso sensível, do mundo e das coisas.

Assim, descrever e redescrever o mundo, e testar novos vocabulários sobre ele, para um antirrepresentacionista, não poderiam significar apenas dizer o que ele é para nós, interpretá-lo e reinterpretá-lo de novos modos, para com isso fazê-lo, então, ser assim ou assado, para assim torná-lo isso ou aquilo, com novos e melhores resultados. Pois Ora, esse próprio descrever e redescrever, pelo menos no caso dos seres humanos, é apenas parte de nossas práticas de – em sentido muito material e sensível – efetivamente criá-lo, constituí-lo e reconstituí-lo praticamente. O correlato de uma “redescrição”, não sendo o mundo, pictoricamente falando, será antes de mais nada um curso de conduta, um novo comportamento que uma redescrição promove ou patrocina, ou ao qual reciprocamente corresponde a posteriori.

Dessa maneira, entretanto, justamente porque não se trata de tomar a nova descrição ou vocabulário como reflexo melhorado do mundo, isto é, como representação mental correspondentista, quem for não-representacionista se vê na injunção de apreender as coisas “do jeito certo”, e de lidar com elas, praticamente, da melhor forma. Inclusive para conduzi-las a uma outra figuração, fazê-las mais radicalmente assim ou assado, fazê-las isso ou aquilo – de um modo que só a experiência, de novo a própria conduta, poderá depois testar, verificar e estabelecer. Um novo vocabulário, não querendo ser uma imagem mental do que é o mundo, mas seguramente do que este pode ser e do que nos pode conduzir até isso, remete ou responde em primeiro lugar a uma conduta, mais do que a uma imagem envolvida em algum tipo de dissociação com respeito ao mundo enquanto sensível. Como já temos sugerido, seria ingênuo imaginar que um vocabulário faz muita coisa antecipadamente e de modo forma completamente independente com respeito à ação, concebida então equivocadamente como algo que apenas se lhe sucede.

Não compreendo, por conseguinte, como o “linguocentrismo redescritivo” pode pretender impor uma perda do mundo, quando qualquer descrição que dele tenhamos faz apenas parte de nosso encontro com ele e do nosso “pô-lo” e agir nele e sobre ele. É para a visão anterior, positivista, que o mundo foi perdido, aquele mundo em si e de ninguém, reduzido a intuições sensíveis atomizadas. O que não impede, aliás, que também de uma boa imagem “redescritora” ele venha a escapar de novo, pois o mundo, tal como as pessoas, é mutável e mutante – muda, digamos, em e por si mesmo, sem que o faça apenas nem necessariamente por uma desencarnada e dessituada logopoiese fundante. Não [146]entendemos, portanto, como pode, a discursos que devem lidar com o mundo, deixar de interessar ir ao encontro do que ele “realmente” é, de como ele “realmente” se comporta, ao encontro de como efetivamente não o perdermos de vista, mas de como mantermos – na verdade, melhorarmos e potenciarmos – nosso contato prático com ele, no mais amplo e variado sentido.

O que fica faltando sublinhar é que já sempre vivemos em interação fazedora com o mundo, e que é em boa medida por nossa causa que ele não cessa de mudar, de nos mudar e de “se reinterpretar” materialmente – por nossas ações e iniciativas, naturalmente. Bem como por isso mesmo não cessa de “cobrar” e “permitir” novas redescrições, mesmo que seguramente não de prescrevê-las, se é isso que uma visão anti-representacionista linguística mais teme. Mas é preciso assumir que, para uma superação do empirismo dogmático e positivista, não se trata apenas de historicizar e poetizar o lado do sujeito, e sim decididamente também o lado do objeto e do mundo material, desses enquanto prático-sensíveis, como dois lados separados e distinguíveis apenas de modo muito parcial, em sentido apenas muito relativo e circunscrito.

 

Poetic-Pragmatic Materialism: Another Paradigm for Contemporary and Brazilian Philosophy

Abstract: The text presents the basic elements for a new, detranscendentalized, poetic-pragmatic paradigm in philosophy, situated between pragmatism and praxis philosophy, a non-foundationalist, non-representationalist, anti-relativistic position essentially opposed to the dominant linguocentric or simply intersubjectivistic ways nowadays generalized in the non-mentalist philosophical scene, as well as it recapitulates the ways of concerted, plural team work and the platform behind the new paradigm's progressive development.

Key-words: Group work. Work in progress. General understanding of things. Improved pragmatism. Reconstructed production paradigm.

 

Referências[147]

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Recebido: 17/08/2022

Aceito: 16/01/2023


Comentário a “Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira”: a filosofia é conversação

 

Waldomiro J. Silva Filho[148]

 

Referência do artigo comentado: Souza, J. C. de. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 301- 338, 2023.

 

I

O materialismo prático-poiético proposto por José Crisóstomo de Souza é uma contribuição original e, na minha opinião, de grande relevância para o debate filosófico no Brasil, hoje. Souza é um destacado filósofo e pesquisador da Universidade Federal da Bahia, autor de uma obra incontornável sobre o neo-hegelianismo (SOUZA, 1992, 1993) e de um importante trabalho sobre pragmatismo (SOUZA, 2005). O seu materialismo prático-poiético (MPP) é uma posição filosófica que vem sendo desenvolvida em um conjunto de publicações de grande repercussão, no ambiente acadêmico (entre elas, ver SOUZA, 2005, 2012, 2015, 2019a, 2019b, 2019c, 2020a, 2020b), e elaborada num intenso debate com filósofos brasileiros e estrangeiros. 

Grosso modo, a contribuição do materialismo prático-poiético de José Crisóstomo de Souza tem uma pars destruens e uma pars construens. A pars destruens é uma severa crítica a posições filosóficas e práticas acadêmicas em geral e no Brasil, em particular. O materialismo prático-poiético (MPP), na sua própria origem materialista, é uma forma de crítica filosófica ao transcendentalismo, ao dogmatismo e ao essencialismo e a todas as formas de fundacionismo que sustentam teses gerais sobre a natureza humana. Do mesmo modo, também é uma crítica à hegemonia da “guinada linguística”, na filosofia analítica contemporânea. Nesse sentido, (MPP) se apresenta com uma posição deflacionista que não se compromete em acrescentar novas teses filosóficas de teor universal. O (MPP) também é uma crítica à prática filosófica entre nós, no Brasil, uma prática que, muitas vezes, quando muito, busca um amparo nos grandes edifícios intelectuais europeu e americano e se alheia da historicidade da nossa condição brasileira e pós-colonial.

A pars construens do (MPP) tem três faces. A primeira propõe uma radicalização do materialismo, retirando de Marx seus elementos dualistas e essencialistas e ressaltando o aspecto dinâmico e contextual da cognição e a da criação (poiésis) humanas. Essa radicalização envolve uma intepretação da herança intelectual do pragmatismo americano e alemão. Da sua crítica à filosofia, Souza formula um realismo prático-criativo baseado na prática sensível e do enfrentamento prático do mundo real, sem, contudo, assumir uma posição relativista. A segunda face envolve uma interpretação crítica da tradição intelectual brasileira, como aparece em Sílvio Romero, Cruz Costa, Tobias Barreto, Machado de Assis, Oswaldo Porchat, Gilberto Freyre, Vieira Pinto, Guerreiro Ramos, Oswald de Andrade, Anísio Teixeira, Celso Furtado e Roberto Mangabeira Unger. Na sua terceira face, o (MPP) se apresenta tanto como uma filosofia quanto como uma prática e uma plataforma de um grupo de intelectuais. Aqui, prática tem relação com o pragmatismo e com o sentido cotidiano de “aquilo que se faz” com um propósito. Nesses termos, a pragmática-poiética pode ser concebida como aquilo que um grupo de filósofos brasileiros fazem, quando procuram entender a tradição filosófica e a urgência da realidade.

Tudo isso é fascinante e estimulante e, realmente, merece nossa atenção. Em outra oportunidade, eu arrisquei fazer um primeiro e mais longo comentário das ideias presentes na proposta do materialismo prático-poiético de José Crisóstomo (ver SILVA FILHO, 2017).   

 

II

Neste comentário, eu gostaria de tratar de um ponto que, para mim, se destaca nos argumentos apresentados em “Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira”. Numa certa altura, o nosso autor afirma categoricamente: “Filosofia é conversação”. E, para sustentar essa afirmação tão forte, ele está amparado na tradição da dialética platônica, hegeliana e marxista e no sentido comum de diálogo. Sobre esse último aspecto, Souza diz que “[n]osso ponto de vista prático-poiético[149] dialoga criticamente...” com Habermas, Rorty, Peirce, James, Dewey, Nietzsche, Heidegger, Comte, Bauer, Feuerbach, Max Stirner, Nancy Fraser, Rahel Jaeggi, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e outros, inclusive com o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1955-1964).

Souza sempre está se remetendo a um “nós” do (MPP), indicando que há um corpo de pesquisadores e filósofos envolvidos na elaboração e na prática dessa filosofia. Por isso, como prática filosófica, aqueles que praticam o (MPP) se propõem manter um diálogo aberto e criativo, numa forma de ativismo filosófico que emerge e interage com a realidade política e cultural do Brasil atual. Souza (2023, p. 302) escreve:

Fazer filosofia sendo, então, ter um paradigma para oferecer, a ser discutido e testado, a se medir com outros, e a ser, por essa razão, não só sistemática mas também dialeticamente constituído, ou pelo menos exposto. Tudo isso considerado, entendemos que filosofia envolve um trabalho em progresso e supõe uma comunidade de investigação e discussão.

 

Eu aprecio muito essa proposta de filosofia como a prática de uma comunidade de investigação e conversação. Souza pensa na conversação como um espaço de uma convergência, como um diálogo que integra diferentes atores e pensamentos. Por essa razão, para mim, o (MPP) está muito próximo àquilo que Edward W. Said (2004) chama de humanismo e prática crítica. Said trata do papel do filósofo, do intelectual, das humanidades, no ambiente dos desafios das democracias liberais – o que me parece ser o horizonte onde se movem as ideias e a prática de Souza, reconhecido como um democrata histórico. De acordo com Said (2004, p. 2), o humanismo deve ser pensado como uma prática que “[...] informa o que alguém faz como intelectual e professor erudito das humanidades no mundo turbulento de nossos dias, transbordante de beligerância, guerras reais e todo tipo de terrorismo.” O que interessa no humanismo, para ele, é como intelectuais, cientistas sociais, acadêmicos e artistas se dão conta da sua tarefa em conexão com o mundo real “em que vivem como cidadãos”.  

Para mim, essa é a fortuna, mas também uma fragilidade da concepção de conversação do materialismo prático-poiético. Enquanto Souza parece se mover num espaço público caracteristicamente acadêmico (o que importa, em primeira instância, é a convivência dialógica entre intelectuais), eu, ao contrário, penso na conversação como conflito baseado em desacordos.

 

III

Eu estou certo de que o fato de que partilhamos uma linguagem comum, de que vivemos no mesmo mundo natural e de que temos uma mesma constituição humana nunca foi uma garantia para que os encontros entre pessoas conduziram para o entendimento mútuo, a compreensão, a convergência de opiniões ou, pelo menos, a aceitação da divergência legítima. Falar é uma habilidade, conversar é uma arte. Aprende-se a falar com o tempo, na experiência com os outros e na espantosa descoberta do mobiliário do mundo. Conversar, por sua vez, exige ainda mais tempo, esforço e treino, requer dirigir-se aos outros, interessar-se pelos outros, mover-se das nossas próprias perspectivas, interesses e opiniões para as perspectivas, interesses e opiniões das outras pessoas.

É incontroverso que nós temos crenças adquiridas por inúmeras fontes. O caso é que, na dinâmica das nossas vidas sociais, especialmente em contextos de democracia, as crenças  podem ser constante e razoavelmente desafiadas. Esse é o cenário dos desacordos epistêmicos.[150] No desacordo racional, os interlocutores têm posições divergentes acerca de uma proposição-alvo e contraem o direito legítimo de desafiar as crenças do seu interlocutor. No desacordo, aqueles que têm crenças podem (em certas situações devem) se envolver no esforço de apresentar as razões da sua crença. Em termos mais gerais, chamo de “contexto dos desacordos” a situação na qual uma pessoa, enquanto agente moral e epistêmico, está racionalmente autorizada a discordar de outra pessoa, diante das mesmas ou semelhantes evidências e de uma avaliação racional da questão. Nesse contexto, uma pessoa pode se manter fiel à sua própria perspectiva de partida e se sentir autorizada a ter um elevado grau de confiança na sua crença. Porém, o que realmente importa, para o debate filosófico, são as situações nas quais essa confiança pode ser, de algum modo, abalada pela palavra da outra pessoa, no caso em que uma pessoa é sensível ao desacordo.

Minha sugestão é que a discordância dialógica, o conflito dialético, entre sujeitos que se consideram e se tratam como pares, pode ser (às vezes, deve ser) uma motivação para a avaliação dos nossos saberes e comportamentos sociais. Enfim, a conversação, em um sentido relevante, é regida por tensão e conflito de opiniões que desafiam os participantes (voluntários) a disputar razões e se empenharem na busca de um bem moral ou epistêmico, como a verdade, o entendimento, o consenso, a tolerância etc. Eu concebo a conversação como atos comunicativos cooperativos, nos quais os participantes assumem propósitos comuns e contraem o compromisso de contribuir com declarações relevantes, ainda que discordantes. Se nos engajarmos em uma conversa estruturada como um desafio dialético, devemos assumir o seguinte compromisso: em disputas e desacordos, apresentar razões a favor das próprias crenças e considerar razões contra elas é a melhor coisa a fazer. Para que isso aconteça, devemos supor que as pessoas envolvidas assumem ou reconhecem metas e objetivos epistêmicos comuns. É uma norma da conversa que sempre que se faz as perguntas “por que você acredita?”, “por que você faz isso?”, a pessoa deve dar uma resposta. De um ponto de vista normativo, podemos esperar que cada participante se comprometa a reconhecer que seu interlocutor também pode ter razões para apoiar crenças opostas.

Essas habilidades para conversar não são naturais, nem são facilmente adquiridas. A longa jornada da filosofia é um modo de ensinar a conversar. A minha tese geral, diria, metafilosófica é: o único resultado importante da filosofia é ensinar a conversar. Nisso, é bem provável que eu me aproxime do materialismo prático-poiético. Contra qualquer forma de dogmatismo, a filosofia é uma maneira de nos prepararmos para desacordos, daí, a conversação – cujo fim é indeterminável.

 

IV

Existem dois caminhos para resolver as diferenças humanas: a violência e a política. Para praticar a política, há a necessidade de que os concernidos, os cidadãos, estejam preparados para os desacordos e a convivência com outras pessoas com opiniões e valores diversos. A filosofia, as humanidades, as ciências humanas, as artes e a literatura são meios de desenvolver certas competências fundamentais, como as capacidades de pensar criticamente, de transcender os compromissos locais e abordar as questões que vão além dos limites tribais e nacionais, de pensar como “cidadãos do mundo”. Nussbaum (2010, p. 7) alude a uma capacidade ainda mais fundamental, qual seja, a capacidade de imaginar, com simpatia, a situação difícil em que o outro se encontra.

            Eu saúdo a prática filosófica de José Crisóstomo de Souza como uma realização intelectual muito importante entre nós, em especial, no horizonte dos desafios de um país que ainda não aprendeu a se pensar e encontrar bases sólidas para sua imatura democracia. O (MPP) está em sintonia com o desafio da própria democracia, como a busca de esclarecimento e diálogo. Souza nos apresenta uma filosofia que se dirige ao aqui e agora e que busca (necessariamente) o confronto de ideias, uma filosofia que “[...] gostamos de apresentar, não de esconder, [seus] cruzamentos e convergências com outras posições, de explorar aproximações e favorecer interlocuções, embora nada ecleticamente, sempre a partir de uma posição própria, bem articulada e delineada.” Essa é uma filosofia inspiradora.

 

Referências

CHRISTENSEN, D.; LACKEY, J. The Epistemology of disagreement. New York: OUP, 2013.

FRANCES, B. Disagreement. Cambridge: Polity, 2014.

NUSSBAUM, M. C. Not for Profit: Why democracy needs the humanities. Princeton, Oxford: Princeton University Press, 2010.

SAID, E. W. Humanism and Democratic Criticism. New York: Columbia University Press, 2004.

SILVA FILHO, W. J. Sobre o que a filosofia não: considerações sobre a “poética pragmática” de José Crisóstomo de Souza. Cognitio, v. 18, n. 2, p. 273-312, 2017.

SOUZA, J. C. de. Ascensão e Queda do Sujeito no Movimento Jovem Hegeliano. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1992.

SOUZA, J. C. de. A Questão da Individualidade: a crítica do humano e do social na polêmica Stirner-Marx. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993.

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SOUZA, J. C. de. Pragmatismo Brasileño: Ni Rorty, ni Habermas, ni Marx. In: CÁRDENAS, P. R.; Herbert, D. R. The Reception of Peirce and Pragmatism in Latin America. México: Torres Asociados, 2020b. p. 121-148.

Souza, J. C. de. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 301- 338, 2023.

Recebido: 06/03/2023

Aprovado: 10/03/2023


 

Inteligência contínua: a sétima revolução cognitiva do Sapiens

 

Lucia Santaella[151]

 

Resumo: A formação da autora deste trabalho, no campo das linguagens – musicais, visuais e verbais – foi sempre marcada pela atenção à materialidade das próprias linguagens e aos meios pelos quais elas são transmitidas, para permitir suas funções comunicativas. Desde o aparelho fonador, instalado no próprio corpo, esses meios se constituem como tecnologias que foram evoluindo, através dos séculos, trazendo consigo novas formas de linguagem, tais como as distintas formas de escrita, a galáxia de Gutenberg e, do século 19 para cá, as revoluções industrial, eletrônica e digital, cada qual introduzindo tecnologias que lhes são próprias. Quando as questões de linguagem são colocadas no foco da atenção, o que importa, desde a revolução industrial, é o advento de tecnologias cognitivas, como são a fotografia, o cinema, seguidas das tecnologias eletrônicas – rádio e televisão – e, por fim, a explosão da revolução digital com todas as suas novas formas de linguagens e consequentemente de cognição, que hoje se distribuem pelos mais distintos aplicativos e plataformas. O estudo dessa evolução levou a autora a postular, a partir da inspiração colhida em alguns autores, que a cognição humana está, desde as primeiras formas de escrita, crescendo fora da caixa craniana. Portanto, uma proposta que diz respeito à exossomatização da inteligência e da cognição humana com todas as contradições que isso traz. Este artigo está dedicado à explicitação dessa proposta, com atenção ao modo como ela foi se desenvolvendo, no seu pensamento.

Palavras-chave: Linguagens. Tecnologias. Cognição. Exossomatização. Contradições.

 

Introdução

Tem havido recentemente uma verdadeira explosão de publicações, demarcando ciclos evolutivos que foram gradativamente engendrando as condições tecnológicas, consideradas revolucionárias, que ora atravessamos, com grandes repercussões na economia, política, cultura e também na cognição e psiquismo humanos. Esses ciclos são hoje denominados quarta revolução industrial, segunda revolução das máquinas, Web 4.0, Vida 3.0 etc. Trata-se de um contexto que vem dar respaldo a uma hipótese de trabalho que venho desenvolvendo, há muitos anos, na companhia de muitos autores com os quais tenho dialogado, em várias áreas de conhecimento. A hipótese é a seguinte: a inteligência humana, desde o advento da escrita, vem crescendo fora da caixa craniana. Da escrita, passando por Gutenberg, então, pela era da reprodutibilidade, da eletrônica, viemos dar na revolução digital, em desenvolvimento exponencial. Nesse contexto, conduzida pela hipótese do crescimento da inteligência, proponho a entrada do sapiens, sob o nome de “neo-humano”, em sua sétima revolução comunicacional-cognitiva, sob a égide da inteligência artificial, da internet das coisas, do gigantismo dos dados e da mudança de paradigma da computação. Essa hipótese se encontra ampla e detalhadamente desenvolvida, no livro Do pós-humano ao neo-humano: a sétima revolução cognitiva do sapiens, já publicado, de que o artigo a seguir é uma brevíssima síntese.

 

1 O tema das revoluções

            É fato que a palavra “revolução”, em quaisquer contextos, está sujeita a muitas discussões. Contudo, é tal sua presença atual, nos escritos de especialistas das mais diversas áreas de conhecimento e atuação, que é possível constatar que se trata hoje de um consenso que poucos se dispõem a discutir, limitando-se a propor uma numeração relativa a ciclos evolutivos marcados dentro do campo com que o autor está familiarizado, como se segue.

            Ficou bastante conhecido pela repercussão internacional, na área da economia, o livro de Klaus Schwab sobre a quarta revolução industrial (2016), traduzido para várias línguas, inclusive o português, e seguido por um volume voltado para a modelagem do futuro (2018). No Brasil, especificamente, esse livro estimulou a corrida das empresas para o que passou a ser chamado de “transformação digital”. O autor justifica a entrada de uma quarta revolução com o argumento de mudanças profundas e sistêmicas baseadas nas megatendências da física, do digital e do biológico, as quais estão colocando em questão não apenas os modos de produção, mas, nas palavras do próprio autor, a nossa concepção mesma do humano.

            Bem antes da onda atual de marcação de ciclos evolutivos, veio a público o magnífico livro de Merlin Donald, Origens do pensamento moderno (Origins of the modern mind: three stages in the evolution of culture and cognition) (1991), no qual o pesquisador propõe que, a partir da invenção da escrita, seguida por extensões tecnológicas cada vez mais sofisticadas, o sapiens deu início ao terceiro ciclo evolutivo da espécie. Essa publicação foi seguida pelo livro A mind so rare: the evolution of human consciousness (Uma mente tão rara. A evolução da consciência humana) (2001), no qual o mesmo autor sintetiza e complementa suas ideias.

Pouco tempo depois, no volume A quarta descontinuidade. A coevolução dos humanos e máquinas (1993), Bruce Mazlish discutiu as transformações simultâneas ocorridas nos humanos – cada vez mais plugados a dispositivos maquínicos – e nos robôs, crescentemente buscando a semelhança com os humanos.

Essas publicações pioneiras em suas propostas foram seguidas recentemente por uma verdadeira explosão de publicações, demarcando ciclos evolutivos que foram gradativamente engendrando as condições, consideradas revolucionárias, que ora atravessamos. Senão, vejamos.

            Para Floridi (2014), entramos em uma quarta revolução devido à remodelagem da realidade humana provocada pela infosfera. Embora o número coincida com o de Schwab, os ciclos diferem em sua magnitude. A base de Schwab encontra-se na industrialização e nos negócios, agora na fase 4.0 (1ª revolução: água e vapor para mecanizar a produção; 2ª: eletricidade e produção em massa; 3ª: eletrônica e tec-info para automatizar a produção; e 4ª: de fusão e sem fronteiras, de tecnologias físicas, digitais e biológicas graças aos dispositivos móveis, sensores, IoT – internet das coisas – e IA – inteligência artificial).

Floridi, por seu lado, vai bem mais longe e divide as eras de desenvolvimento humano em três (pré-história, história e hiper-história), que se originam de quatro revoluções do desenvolvimento humano (1. agricultura, 2. escrita, 3. tecnologias energéticas e informacionais separadas e 4. tecnologias da comunicação e informação, como forças ambientais que criam e transformam a nossa realidade). Nessa divisão, Floridi segue um critério bem mais próximo da área de comunicação, baseado no registro, acumulação e transmissão de informação para o consumo futuro, regulado, portanto, pela produção e preservação de conhecimento. Por isso, a passagem da pré- para a história é marcada pela invenção da escrita.

            Brynjolfsson e McAfee (2016) defendem que estamos atravessando uma segunda idade das máquinas, a partir da mudança indiscutível de paradigma das máquinas mecânicas e mesmo eletrônicas da primeira idade para a digitalização, a qual não cessa de colocar no mundo novidades inquietantes, como carros autônomos, novas gerações de robôs, impressoras 3D, logística quase instantânea para o e-comércio, vigilância onipresente, superpoderes computacionais disponíveis em brinquedos, drones capazes de orquestrar coreografias coletivas sem intervenção humana, similares aos voos coordenados de pássaros, na mudança de estação, e por aí vai. O que mais seria preciso para justificar a proposta dos autores de uma segunda era das máquinas? Mais do que isso, uma era que perturbadoramente progride para um destino que nos é desconhecido e que parece escapar, entre os dedos, ao poder de previsibilidade da ciência.

            Leonhard (2016), de sua parte, bate na tecla da megavirada da nossa era, em função de exponenciação das transformações. No passado, afirma o autor, cada virada radical na sociedade humana era provocada por um fator decisivo, como a madeira, a pedra, o bronze, o ferro, então, pelo vapor, a eletricidade, a automação industrial e, por fim, a internet na sua primeira era. Agora, no entanto, um conjunto de megaviradas na ciência e tecnologia atuando em conjunto estão redesenhando não apenas o comércio, a cultura e a sociedade como um todo, mas, sobretudo, a própria biologia humana com seus consequentes dilemas éticos.

            Tegmark (2017), um dos maiores especialistas em IA do MIT, propõe que, nesta era da IA, o ser humano saltou para outro tipo de vida, marcado como “Vida 3.0”. Quais são os atributos dessa numeração comparativamente à Vida 1.0 e, então, à 2.0? A 1.0, estritamente biológica e determinada que é pelo DNA, só evolui ao longo de muitas gerações. A 2.0, por seu lado, biocultural, “[...] pode redesenhar muito do seu software: os humanos podem aprender novas habilidades complexas – por exemplo, linguagens, esportes e profissões – e podem fundamentalmente atualizar sua visão de mundo e seus alvos.” A Vida 3.0, que está a caminho, poderá “[...] redesenhar dramaticamente não apenas seu software, mas também seu hardware, ao invés de ter que esperar por sua evolução através de gerações.” (TEGMARK, 2017, p. 26).

               Bostrom (2014), no seu livro bastante citado sobre os passos, os perigos e as estratégias envolvendo a superinteligência, discorre sobre a explosão da inteligência prognosticada pela esperada evolução da IA. O argumento defendido na obra se desenvolve na direção de que é nula a hipótese de que poderemos, daqui para frente, ignorar com segurança o prospecto da superinteligência, também chamada de “explosão da inteligência”. Para entender essa explosão, é preciso considerar um novo ciclo evolutivo, interior ao desenvolvimento da própria IA, pois, entre os especialistas, já se tornou voz corrente nomear a IA por níveis que vão da IA fraca à forte, levando às perspectivas da superinteligência.

            Uma das características da bibliografia citada encontra-se no equilíbrio da postura dos autores, os quais não acionam sua balança nem para o lado tecnofóbico, nem para o lado ingenuamente eufórico, embora todos eles mantenham a constatação crítica de que estamos penetrando em uma era profundamente inédita, na história da nossa espécie. Evidentemente, essa bibliografia é muito mais seletiva do que exaustiva. O que me interessou na sua coleta e estudo foi encontrar vozes que pudessem dar respaldo à hipótese que tem norteado minhas pesquisas, a qual se apoia na evidência de que a onipresença da digitalização e sua expansão, por todos os meandros da pesquisa científica, da cultura e do holístico da sociedade, nos fornecem, do ponto em que se encontra hoje, o crescimento extrabiológico da inteligência humana.

 

2 A onipresença da digitalização

            De fato, a obesidade digital está tomando conta de tudo e a velocidade exponencial de suas transformações está levando muitos especialistas à denominação de um verdadeiro “tsunami digital”. A rigor, o termo “digitalização”, hoje transfigurado em “datificação”, transcende, e muito, o frenesi provocado pela internet e seus aplicativos de redes sociais, os quais podem ser vistos agora como mera ponta de um iceberg invisível e profundo, cujos efeitos chegam até nós, sorrateiramente. Motores de busca, mineração de dados, reconhecimento de voz e de face, traduções exímias automatizadas e muitas outras aplicações são regidas por algoritmos de IA no comando de nossas vidas. Não há dúvida de que a IA está transformando os computadores e seus aplicativos em alguma outra coisa que ainda não somos capazes de definir. Diante disso, não há como evitar o temor das interrogações sobre o momento em que as máquinas irão nos ajudar ou, então, assumir de vez o controle decisório de nossas ações, momento em que, como quer Leonhard (2016), os algoritmos estarão convertidos em “androrritmos”.

É indiscutível que não se trata mais de uma diferença de grau ou de espécie, mas de ordem de magnitude. O que, por enquanto, não passa de pressentimento inquietante para cada um de nós, os prognósticos afirmam que os assistentes pessoais se tornarão superinteligentes, onipresentes, vergonhosamente baratos, invisíveis e embarcados em tudo, inclusive em nós mesmos. E não saberemos viver sem eles, do mesmo modo que, para os jovens de hoje, quando o digital se mescla e se enreda em tudo, não vale mais qualquer passagem diferencial entre on e off.

            Quando se sabe que o número de dispositivos conectados já era de 6.58 por pessoa, em 2020, quando se sabe que sensores embarcados em todas as coisas, via IoT, conectarão tudo e todos (conforme já se instalou, na Coreia do Sul), quando se pressentem as perspectivas futuras do Blockchain, a comunicação na Terra aparecerá como eminentemente não humana, muito mais do que pós-humana, pois o cérebro artificial, na nuvem de dispositivos, sensores, hardwares e processos interconectados se constituirá como uma rede do tamanho do mundo e para além de suas fronteiras. Esse é o resultado de estarmos cada vez mais mergulhados, nós e as coisas, na era dos zetabytes, um nome melhor do que big data, para nos dar a dimensão do gigantismo desse mergulho que se define como um conjunto de dados amplos, diversos, complexos, longitudinais e distribuídos, gerados por sensores, internet, transações, redes sociais, vídeos, sons, stream de cliques etc. (FLORIDI, 2014, p. 14).

            A digitalização de tudo – documentos, notícias, música, fotos, vídeos, mapas, atualizações pessoais, redes sociais, buscas de informações e respostas a essas buscas, sensores de todos os tipos e assim por diante – é o fenômeno mais atordoante dos últimos tempos, o qual só será ainda mais atordoante frente às perspectivas prometidas pela IA forte. Diante das estripulias que as aplicações da IA fraca já estão promovendo, a única certeza que podemos ter é a de que a vida humana não será mais o que é hoje. Não vem do acaso, portanto, a hipótese do neo-humano que está orientando minhas pesquisas atuais.

 

3 A hipótese do neo-humano

            Não estou só na hipótese que estou desenvolvendo sobre o neo-humano, ou seja, de uma radical transformação da própria ontologia do humano, que, de minha parte, tomo como fruto de um processo evolutivo das formas comunicacionais e cognitivas sustentadas pelas linguagens que o ser humano não cessa de inventar e que crescem na medida mesma em que crescem os meios de produção, registro, armazenamento, memória e transmissão dessas linguagens. Vejamos algumas passagens extraídas da literatura em circulação, as quais realçam a necessidade de revisão urgente da ontologia do humano.

            Barrat (2013, p. 21) pergunta: de que se constitui um robô, quando os humanos estendem seus corpos e mentes com próteses inteligentes e implantes? Nessa mescla entre ser robô sem deixar de ser humano, o que então poderá definir o humano?

A perplexidade de Leonhard segue em direção similar, ao constatar que a transformação humana será maior nos próximos vinte anos do que foi nos prévios 300 anos. Quando certas coisas, como um nanobot na nossa corrente sanguínea ou implantes comunicacionais no nosso cérebro, se tornarem possíveis, quem decidirá sobre qual é a natureza do humano? O autor nos adverte quanto ao fato de que devemos imaginar um amanhã diferente, em um futuro cuja complexidade pode muito bem ir bastante além da compreensão humana corrente. Em função disso, dedica-se, em seu livro, a desenhar um mapa mental e uma filosofia para a era digital por ele chamada de “humanismo exponencial” (LEONHARD, 2016, p. 1, 10, 14).

O que define o humano? Leonhard também se pergunta. A filosofia vem lutando há séculos com essa questão, mas agora chegamos a um ponto no qual a tecnobio está se engrenando, de sorte a nos permitir aumentar, alterar, reprogramar ou mesmo redesenhar o humano. Portanto, a pergunta se transformou agora em uma questão candente e inadiável. Diante disso, como ficará o embate entre STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática) e aquilo que o autor chama de CORE (criatividade, compaixão, originalidade, reciprocidade, responsabilidade e empatia)? Tudo isso para evitar que a tecnologia repentinamente se torne o propósito de nossas vidas, em vez de ser uma ferramenta para descobrir o propósito (LEONHARD, 2016, p. 16, 24, 46).

Vivendo na infosfera e já transformados de ciborgues para “inforgs”, segundo Floridi (2014), não há como escapar da necessidade de se repensar quais são os novos atributos capazes de definir o humano. Para Tegmark (2017, p. 92), não restam dúvidas acerca do fato de que os avanços iminentes da IA irão transformar o que significa ser humano. Cada vez se torna mais difícil afirmar que faltam propósitos, criatividade ou linguagem na IA, traços que muitos pensam ser privilégios do humano. Ao contrário, daqui para frente, a IA irá cada vez mais impactar como o ser humano vê a si mesmo, não importa o quanto isso pode ferir o orgulho de si que nossa espécie cultivou até hoje. A tecnologia da informação já provocou um grande impacto em todos os setores das atividades humanas, da ciência às finanças, à manufatura, transporte, saúde, energia e, sobretudo, à comunicação, esta que, a meu ver, se constitui em uma espécie de carro-chefe. A intimidade que mantém com as pesquisas em IA autoriza Tegmark (2017, p. 93) a concluir que esses impactos anteriores irão empalidecer, em comparação com os avanços que a IA tem o potencial de incrementar.

Diante dessas tecnoevidências crescentes e sub-repticiamente introjetando-se nos aspectos mais insuspeitados de nossa existência, a hipótese do neo-humano aqui postulada deve parecer bastante plausível. Basta observar, com mente aberta, a destreza cognitiva precoce de um bebê entre 18 e 24 meses, quando manipula um celular, e o choro desesperado, quando lhe tiram o “bichinho” das mãos (SANTAELLA, no prelo).

 

4 A hipótese da extrassomatização do cérebro

            Desde muito cedo, o ser humano buscou superar tanto a fragilidade do seu cérebro mortal como depositário da memória quanto a contingência da fala evanescente e fugaz: começou a gravar imagens nas grutas, para driblar a dissipação da memória no tempo. Do mesmo modo, inventou formas de escrita pictográficas, ideográficas, hieroglíficas, como meios de preservação externa, socializada, dos seus modos de conhecimento do mundo. Tais fatos têm me levado a afirmar (SANTAELLA, 2003) que, por meio das linguagens, aí se deu o início do crescimento do cérebro humano, de sua capacidade cognitiva e, consequentemente, de sua inteligência fora do corpo biológico, mas devidamente a ele integrado pelos próprios fios do pensamento e da inteligência suportados pelas linguagens.

            Tanto é assim que grandes saltos em tal direção foram se dando no Ocidente, a partir da implantação, no mundo grego, da escrita alfabética e seus suportes de inscrição que vieram se exponenciar com a invenção de Gutenberg. Embora a propagação dos livros tenha impulsionado consideravelmente a exossomatização da inteligência, seu ponto de expansão e aceleração viria com as tecnologias de linguagem trazidas pela revolução industrial: máquina fotográfica, fonógrafo, cinematógrafo, seguida pela revolução eletroeletrônica, de que resultaram o rádio e a TV. O que é importante notar é que, nessas máquinas, que chamo de sensórias (amplificadoras dos sentidos da visão e audição), transitam linguagens e, nestas, constituem-se novas formas de cognição que diversificam e ampliam as formas externalizadas da inteligência humana. Entretanto, essa ampliação só viria alcançar seu cume evolutivo com as máquinas cerebrais, a saber, os computadores.

            Se, por limitações físico-biológicas, o crescimento do cérebro não podia se dar dentro da caixa craniana, a inteligência humana tratou de se desenvolver fora do corpo humano, extrassomatizada sub specie de linguagens que foram se sofisticando cada vez mais, nas máquinas replicadoras das funções sensório-motoras próprias da revolução eletromecânica, passando pela eletroeletrônica, até atingir as tecnologias da inteligência da revolução teleinformática.

            Enquanto as linguagens geradas em suportes eletromecânicos, especialmente a foto e o cinema, e as linguagens geradas em suportes eletroeletrônicos, especialmente as radiofônicas e televisivas, são linguagens voltadas prioritariamente para a ampliação de um tipo de específico de inteligência, aquela do infotenimento comunicacional; enquanto  a própria internet e suas redes sociais estão ainda direcionadas para o infotenimento, agora incrementado pela interatividade e compartilhamento, com a inteligência artificial, as máquinas cerebrais estão atingindo um ponto de magnitude de tal ordem que são simulados e emulados os próprios atributos constitutivos da inteligência em si. No estado da arte em que hoje estamos, seria difícil encontrar prova maior do que essa do vetor para o crescimento da inteligência humana.

            É diante disso que podemos afirmar, sem muitos titubeios, que a inteligência artificial (IA) veio para ficar, crescer e se multiplicar, o que, por outro caminho, acaba por coincidir com os prognósticos dos especialistas de laboratórios, ou seja, aqueles que estão com a mão na massa, que estão construindo a IA e que conhecem por dentro os benefícios e riscos, os efeitos colaterais que apresentam, longe do sensacionalismo de filmes distópicos e de temores mal-informados. É o que pode ser atestado no livro organizado por Martin Ford (2018), Architects of Intelligence, um compêndio de entrevistas com especialistas de formação interdisciplinar que estão na linha de frente das pesquisas e em condições de avaliar suas condições presentes e prognósticos para o futuro.

 

5 O crescimento da inteligência

            Desde muito tempo, cuja localização exata se perdeu nas brumas da minha memória, provavelmente na época juvenil, quando li O acaso e a necessidade, de Jacques Monod (1976), e, então, depois de assistir repetidamente ao filme Blade Runner 1 (1982), começou a brotar em meu pensamento essa hipótese de que a inteligência humana está crescendo para fora do corpo biológico, processo que já teve início nas imagens das cavernas.

            O livro de Monod obteve na época uma grande repercussão, não apenas pelo fato de o autor ter recebido o prêmio Nobel. O livro lançava por terra qualquer hipótese determinística sobre a vida no planeta, com suas consequências na vida humana. Conforme está expresso no título, O acaso e a necessidade, existe um balanço indissociável entre o determinado e o indeterminado, o possível e o atual, a previsibilidade e a incerteza. De fato, o destino se inscreve na medida em que se cumpre, e não antes. Além disso, a obra já colocava em questão dicotomias que tenderiam a se dissipar daí para frente, especialmente entre natureza e artifício. Afinal, desde meados do século XX, a biologia já havia se dado conta da natureza química do código genético: a vida é informação.

De fato, de meados dos anos 1950 a 1980, a biologia entrou em alvoroço com a grande pergunta: o que é a vida? Aquilo que se conhecia de sua fisicalidade foi questionado. A descoberta do código genético evidenciou que vida é código, informação, portanto, algo que pode ser decifrado, destituído de quaisquer suposições de sacralidade. Aquilo que é decifrado pode ser manipulado. Não deu outra: a primeira intervenção no código genético se deu em 1969. Os problemas éticos que decorrem disso são imensuráveis. A primeira sequencialização do genoma se deu em 1999. Qualquer cientista pode hoje ter acesso a bancos de genes.

As ideias do livro de Monod encontraram, poucos anos mais tarde, sua versão imaginativa impactante no filme Blade Runner. O caçador de androides (RIDLEY SCOTT, 1982). Alguns o consideram como uma expressão ficcional da metafísica. Penso que ele trata especificamente de questões ontológicas. É a natureza humana e o que costumávamos pensar sobre o que é ser humano que são colocadas em questão. Em que se transforma a mente humana, quando ela se estende em aparelhos e dispositivos? O que é o corpo, quando sua clonagem se torna possível? Mais ainda, o que é hoje o corpo, quando as tecnologias começam a penetrar em seu âmago mais profundo e se alargar, por meio de sensores, GPSs, hiperconexões que captam nossas localizações onde quer que estejamos?

Tendo isso em vista, Blade Runner não é um filme futurista. Ele estava com os olhos postos no seu presente. Parecia futurista, porque levou os avanços da engenharia genética às últimas consequências, o que, de resto, já se anunciava naquele momento. Pareceu futurista, porque as pessoas tendem a olhar o presente com os olhos no retrovisor, conforme foi diagnosticado por M. McLuhan. Repito: não é futurista, embora tenha antecipado as incertezas cruciais que o contemporâneo está colocando na face de nosso ser: o que é o ser humano? Afinal, o que somos nós, humanos, ou o que sobrou de nós, melhor, o que sobrou do que pensávamos que éramos, agora que nos tornamos literalmente híbridos entre o carbono e o silício?

Creio que esse emaranhado de questões se constituiu em um fio subterrâneo que vem, explícita ou implicitamente, acompanhando muitos dos meus trabalhos desde então, alimentados também por uma curiosidade intelectual difícil de dar conta. Para tornar essa longa história mais curta e chegarmos mais cedo ao que aqui interessa, no final dos anos 1990, impulsionada pelas novas tendências da arte, estava imersa na pesquisa sobre o corpo, que passei a chamar de biotecnológico, e o seu conceito irmão, o pós-humano. Os temas eram praticamente obrigatórios, na época.

Imersa em uma rosácea de ideias e atenta às exposições internacionais de arte sobre o pós-humano (ver HARAWAY, 1991; HAYLES, 1999), decidi dar ao livro em que expunha as pesquisas recentes (também em débito na época com as obras pioneiras de Lemos, publicadas um pouco antes, 2002a e 2002b) o título de Culturas e artes do pós-humano. Da cultura de massas à cibercultura (SANTAELLA, 2003). A penetração desse livro no Brasil deu-se de maneira lenta, mas gradativamente foi ganhando reimpressões, até ser homenageado em 17 de agosto de 2019, na Bienal Nacional do Livro, em Fortaleza, justo no momento em que estava passando meu pensamento do pós-humano para o neo-humano.

            De fato, muitas águas rolaram desde 2003. Minha pesquisa, levada a cabo a partir de 2015, que já foi finalizada e que envolveu a OOO, Ontologia Orientada aos Objetos, proposta pelos realistas especulativos, conduziu-me para a passagem do pós-humano ao não humano, tema discutido com veemência pelos realistas, conforme apresentei em uma publicação (SANTAELLA, 2017). A virada do não humano (nonhuman turn) engloba estudos interdisciplinares das mais diversas ordens, todos eles endereçados para o descentramento do humano, no seio da biosfera.

            A rigor, as teorias do não humano representam um prolongamento crítico dos movimentos teóricos e artísticos que, durante algum tempo, ocuparam o cenário das ideias com o nome de pós-humano (ver FELINTO; SANTAELLA, 2012). De um lado, para evitar o mal-entendimento de uma teleologia implícita no prefixo “pós”, quer dizer, a interpretação simplista de um antes e um depois do humano, a qual, por mais que se queira evitar, acaba por se impor, de outro lado, para estender o descentramento do humano até uma dimensão eco e cosmológica, o termo “não humano” passou a ser usado, sem que isso signifique o abandono das ricas discussões travadas sob o título de pós-humano. Segundo Grusin (2015, p. vii-xxix), as filosofias e teorias que têm demonstrado seu engajamento no amplo espectro das questões do não humano são:

a)     A teoria ator-rede de Bruno Latour e outros, que versa sobre os objetos sociotécnicos a partir de uma ontologia plana entre humanos e não humanos, dos agenciamentos não humanos e do parlamento das coisas.

b)     A teoria dos afetos, tal como foi mobilizada pelas discussões sobre diversidade sexual.

c)     Os estudos sobre os animais e seus direitos.

d)     A teoria da assemblage, de Deleuze e DeLanda.

e)     As teorias do cérebro, neurociências, ciências cognitivas, inteligência, consciência e vida artificiais.

f)      O novo materialismo, especialmente nas teorias feministas.

g)     As teorias midiáticas, com atenção para as redes, interfaces e análise computacional.

h)     Todas as variedades do realismo especulativo ou filosofia orientada a objetos, neovitalismo e pampsiquismo.  

Tudo isso resulta do fato de que, hoje, entramos decididamente em uma segunda era do digital, a qual, além de digitalmente sincronizar biotecnologias, engenharia genética com outros avanços tecnológicos que interferem inclusive no mundo físico, conforme Schwab (2016), é uma era que deverá ficar conhecida como a mescla da cognição humana com a inteligência artificial e os incrementos biotecnológicos.

            Seja o que for que vier pela frente, o que está me interessando no estado da arte no qual a digitalização se encontra é marcar o quanto a IA, especialmente de uns anos para cá, está dando força à hipótese do crescimento da inteligência fora do corpo biológico humano, o que ajuda a justificar a hipótese do neo-humano. Isso é uma constatação crítica, sem nenhum resvalo por quaisquer euforias ou disforias, extremos que costumam ser sempre mais fáceis e confortáveis do que o enfrentamento dos desafios que a complexidade do presente está nos colocando.

 

Considerações finais: inteligência, uma questão a discutir

            Neste ponto, é preciso esclarecer o que está aqui sendo entendido por inteligência. Não existe um consenso quanto à definição de inteligência. Aquela que está mais próxima do sentido que está sendo tomado neste projeto foi formulada por Nilsson (2010). Para ele, a inteligência é uma qualidade ou atributo que habilita uma entidade a funcionar apropriadamente e com alguma previsão, no seu ambiente. A partir disso, são muitas as entidades que podem possuir a qualidade da inteligência: humanos, animais e algumas máquinas. Não é por acaso, portanto, que nossos celulares são chamados de telefones inteligentes, o que, de fato, são. Seria difícil negar.

É fundamental esclarecer que pensar o crescimento da inteligência da espécie humana e, com ela, o neo-humano não implica, de modo algum, a consideração acrítica e apologética desse crescimento. Ao contrário, a inteligência cresce e com ela crescem juntos suas ambivalências, suas contradições e seus paradoxos. Afinal, conforme Edgar Morin (1975) já nos alertou, há muitos anos, somos Homo faber, loquens, ludicus, sapiens, digitalis e, sobretudo, não há como negar, somos também demens. Trata-se de uma espécie efetivamente paradoxal, que ganha, ao nascer, a consciência da morte – um ser para a morte, como afirmou Heidegger. O que se tem aí é um descarnamento radical, irrevogável, irremediável, uma promessa de dor pela efemeridade, pelas perdas e pelo desaparecimento inexorável, em contradição cabal com o sonho de eternidade que ronda a fragilidade da vida fadada à morte.

            Trazendo a questão para mais perto da realidade atual, Bostrom (2016, p. 67) esclarece que somos levados a constatar que as sociedades modernas não parecem inteligentes. Em condições políticas bastante negativas, presentes em alguns países, aquilo que vem se evidenciando como a ascensão de uma direita radical comparece como um sinal evidente de falta de sabedoria e incapacidade mental, na era moderna. Além disso, são também evidentes a idolatria do consumo, a poluição, a destruição do meio ambiente e a dizimação de muitas espécies, as falhas em se remediar injustiças globais e a negligência em relação a valores humanos e espiritualidade. Tais condições apenas comprovam que o crescimento da inteligência coletiva não implica maior sabedoria. Que sistemas inteligentes não são inerentemente bons e confiavelmente mais sábios funciona como índice inegável dos paradoxos e contradições de uma espécie que, por ser sapiens, carrega a demência também dentro de si.

            Tais condições, entretanto, não devem servir de impedimento para a constatação crítica de que somos uma espécie em processo ininterrupto de evolução, um tipo de evolução que é hoje bastante precipitada, pelo crescimento das linguagens e, com elas, da cognição humana, o que, de modo algum, pode ser tomado como sinônimo de progresso – esta palavra, de resto, uma invenção alimentadora dos ideais capitalistas. Vem daí a importância de se levantar os perigos que nos rondam e de se engajar no pensamento de estratégias, como o faz Bostron (2016), em sua obra.

Esse é o novo limiar em que nossa humanidade está penetrando, um limiar cuja extrema complexidade e desafios ontológicos e especialmente éticos, segundo Tegmark (2017), deveriam nos instigar para uma conversação em que todos, de uma forma ou de outra, poderiam se engajar. É nesse diálogo em que me encontro hoje engajada, com a modéstia que me cabe, mas com o rigor necessário e na continuidade de ideias que foram brotando e amadurecendo, ao longo do tempo, as quais me fizeram chegar às condições atuais do meu pensamento.

 

Continuous intelligence: the 7th sapiens’ cognitive revolution

Abstract: My training in the field of languages – musical, visual, and verbal – was always marked by attention to the materiality of languages themselves and to the means how they are transmitted to allow their communicative functions. Since the phonatory system, installed in the body itself, these means constitute technologies that have evolved over the centuries, bringing with them new forms of languages, such as the different forms of writing, the Gutenberg galaxy and, from the 19th century onwards, the industrial, electronic, and digital revolutions, each introducing technologies of their own. When language issues are placed in the focus of attention, what matters, since the industrial revolution, is the advent of cognitive technologies, such as photography, cinema, followed by electronic technologies – radio and television –, and, finally, the explosion of the digital revolution with all its new language forms and consequently of cognition, which today are distributed across the most different applications and platforms. The study of this evolution led me to postulate, based on the inspiration gathered from some authors, that human cognition is, since the first forms of writing, growing outside the human skull. Therefore, this is a proposal that concerns the exosomatization of human intelligence and cognition with all the contradictions that this brings. This article is dedicated to explaining this proposal with attention to the way it was developed in my work along the years.

Keywords: Languages. Technologies. Cognition. Exosomatization. Contradictions.

 

Referências

BARRAT, James. Our final invention. Artificial intelligence and the end of the human era- New York: Thomas Dunne Books, 2013.

BOSTROM, Nick. Superintelligence. Paths, dangers, strategies. Oxford: Oxford University Press, 2016.

BRYNJOLFSSON, Erik; McAFEE, Andrew. The second machine age. Work, progress, and prosperity in a time of brilliant technologies. New York: W. W. Norton & Company, 2016.

DONALD, Merlin. Origins of the modern mind. Three stages in the evolution of culture and cognition. Harvard University Press, 1991.

DONALD, Merlin. A mind so rare. The evolution of human consciousness. New York: W. W. Norton & Company, 2001.

FELINTO, Erick; SANTAELLA, Lucia. O explorador de abismos. Vilém Flusser e o pós-humanismo. São Paulo: Paulus, 2012.

FLORIDI, Luciano. The fourth revolution. How the infosphere is reshaping human reality. Oxford: Oxford University Press, 2014.

FORD, Martin (org.). Architects of Intelligence. The truth about AI from the people building it. Birmingham: Packt, 2018.

GRUSIN, Richard. Introduction. In: GRUSIN, Richard (org.). The nonhuman turn. Minneapolis: The University of Minnesota Press, 2015. p. vii-xxix.

HARAWAY, Donna. A cyborg manifesto: Science, technology, and socialist feminism in the late twentieth century. In: HARAWAY, Donna. Simians, cyborgs, and women: The reinvention of nature. New York: Routledge, 1991.

HAYLES, Katherine. How we became posthuman. Virtual Bodies in Cybernetics, Literature, and Informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.

LEMOS, André. Cibercultura. Tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulinas, 2002a.

LEMOS, André. Ciberensaios para o século XXI. Salvador: EDUFBA, 2002b.

LEONHARD, Gerd. Technology vs. humanity. The coming clash between man and machine. Fast Future, 2016.

MAZLISH, Bruce. The fourth discontinuity. The co-evolution of humans and machines. New Haven, CN: Yale University Press, 1993.

MORIN, Edgar. O enigma do homem: para uma nova antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

NILSSON, Nils J. The quest for artificial Intelligence. A history of ideas and achievements. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

SANTAELLA, Lucia. Ignições das artes contemporâneas na virada especulativa. In: ROCHA, Cleomar; SANTAELLA, Lucia (ed.). Ignições. Goiânia: UFG, 2017. p. 69-87.

SANTAELLA, Lucia. A precoce cognição por imagem em crianças. Ponta Grossa: UEPG: no prelo.

TEGMARK, Max. Life 3.0. Being human in the age of artifitial intelligence. New York: Penguin, 2017.

Recebido: 13/09/2022

Aceito: 29/11/2022


 

Comentário a “Inteligência contínua: a sétima revolução cognitiva do Sapiens

 

Adriano Messias[152]

 

Referência do artigo comentado: SANTAELLA, Lucia. Inteligência contínua: a sétima revolução cognitiva do sapiens. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 347 - 362, 2023.

 

Hoje, vivemos uma convergência vertiginosa de tecnologias que transformam o corpo e as possibilidades do humano, a cada instante. Alterações que, no passado recente, levavam décadas, agora acontecem em anos ou meses. Somos, sem dúvida, uma espécie não apenas gregária, dotada da linguagem simbólica – que lhe conferiu amplo domínio do planeta e da biota no decorrer de uma perambulação de mais de duzentos mil anos –, mas também dispersa em redes ubíquas de comunicação. Como bem pontua a pesquisadora Lucia Santaella em seu artigo, fomos hábeis em permitir a exossomatização da inteligência. Ou seja, para além de meros aportes tecnológicos que nos permitissem aprimorar habilidades circunvizinhas, levamos nossas “extensões cerebrais” a todo o orbe – o qual se vê afetado, para o bem ou para o mal, por nossas ações.

A sétima revolução cognitiva, tão bem demarcada por Santaella (2023) – expressa igualmente pela dataficação, pela internet das coisas – a IoT –, e pela inteligência artificial – a IA –, conforma a realidade com a qual já nos confrontamos. Não se trata de algo por vir ou de futurologia. Temos os pés bem fincados no território dos zetabytes e nos tornamos, dia a dia, inforgs, esses “ciborgues 2.0” que fazem uso de uma tecnologia cada vez mais porosa, rarefeita, desmaterializada, mas incrivelmente potente. À medida que se abstrai do próprio corpo, o humano imerge em aventuras tecnológicas até mesmo difíceis de serem decifradas: esperamos chegar, em tempos não tão distantes, a ver a troca de membros e órgãos por seus similares artificiais de forma corriqueira e acessível, quando doenças que hoje demandam tratamentos invasivos e dolorosos serão curadas com interferências da nanomedicina.

Entretanto, toda essa rápida alteração para outro eixo – e aí se justifica o termo “revolução” – não deixa escapar questionamentos muito pontuais que atingem até mesmo a própria ontologia. O que será, daqui em diante, o humano? Santaella já responde parte dessa indagação em sua obra Neo-humano. A sétima revolução cognitiva do Sapiens (2022), elucidativa sobre todas as formas de cultura pelas quais passamos até atingirmos a atual cultura dos dados, de onde se abre a pergunta: o que iremos chamar de realidade, doravante?

Sigo com Edgar Morin (1975, 2012), autor citado no artigo em análise, que comentou a andança linguística labiríntica e errática das paleossociedades rumo às arquissociedades – vencedoras, até certo ponto, pela resistência da genealogia Homo e, posteriormente, sapiens, mas fracassadas, em parte, na tentativa de manterem tanto o diálogo interespécies quanto o hibridismo, e creio que este é um dos desafios para o neo-humano: estamos nos umbrais do Antropoceno, quando precisamos, cada vez mais, de ações rápidas e urgentes que amenizem os impactos, muitos dos quais já inalterados, que deixamos pelo planeta. E se foi por conta de nosso maior artifício – a linguagem – e seus desdobramentos – a cultura, a tecnologia – que impactamos a biota, haverá de ser também por esse mesmo recurso que teremos de dar conta desse globo altamente modificado pelo sapiens, agente terraformador como nunca visto. Ou seja, se há alguma esperança para nossa espécie, esta reside em como ela própria traduzirá em ética todas as ações de seu vasto arsenal tecnológico.

O neo-humano é uma hipótese assertiva, muito bem fundamentada na longa trajetória sapiens até o atual momento, e se revela, mais do que uma terminologia, um novo campo para investigações da epistemologia. A partir de onde, porém, encontrar alguma possibilidade de renovação de nossos paradigmas, frente ao planeta e à biota? Retornamos ao velho problema da “natureza”, imposição filosófica irrecusável do Esclarecimento? Penso que não, seguindo também o pensamento antidualista de Santaella (2023). E há aqui uma pergunta que se faz muito necessária e honesta: quando não fomos antropocêntricos? Sabemos que os pré-históricos registravam o mundo sob sua ótica: basta analisar os painéis nas cavernas europeias de trinta mil anos atrás, para se perceber o que são as marcas do antropocentrismo – ainda que ecologistas radicais queiram alegar, naquelas representações, uma comunhão absoluta e terna do homem com o meio selvagem, o qual é outro retorno ao mito do paraíso perdido, da Mãe Natureza, do silvícola rousseauniano. Antropomorfizamos tudo o que tem a ver com a natureza: os riachos cantam, as matas sofrem com as queimadas, as cigarras apaixonadas se amam sobre a casca das árvores, os vírus são malvados vilões, porque destroem famílias.

Em vez de pretendermos pensar uma natureza absoluta e apartada de nossos juízos, talvez o melhor apelo à nossa responsabilização na Terra seja justamente entendermos essa natureza como modificável perante as ações do neo-humano. Acolho as palavras do filósofo Paulo Preciado, quando de sua manifestação na Jornada Internacional da Escola da Causa Freudiana de Paris, em 2019:

Estamos prestes a abandonar esse regime de capitalismo mundial integrado, para usar a terminologia de Félix Guattari. Se as mudanças econômicas, políticas e tecnológicas que conduziram ao regime da diferença sexual e ao capitalismo colonial levaram três séculos para ser produzidas, a rapidez das mudanças técnicas e a urgência das decisões políticas concernentes à destruição do ecossistema e à sexta extinção nos colocam em uma modalidade de mudança ainda mais rápida, talvez iminente. Internet, física quântica, biotecnologia, robotização do trabalho, inteligência artificial, engenharia genética, novas tecnologias de reprodução assistida e viagem extraterrestre precipitam igualmente as transformações sem precedentes em direção a outras modalidades de existência entre o organismo e a máquina, o vivo e o não vivo, o humano e o não humano, enquanto novas hierarquias no domínio político aparecem e desaparecem. (PRECIADO, 2022, p. 82).

 

O que Santaella (2023) propõe é justamente uma reflexão que nos coloca em uma via condizente com uma tecnologia que possa ser empregada a favor da vida. Assim como ela pontuou lucidamente a relevância filosófica de Blade Runner, o caçador de androides (Blade Runner, Ridley Scott, 1982), valho-me aqui de outro grande filme, Alien, o oitavo passageiro (Alien, Ridley Scott, 1979), na mesma esteira das conjecturas scifi que nos marcam há gerações, pelo excelente diretor: o alien é um pesadelo biotecnológico que revela uma função especular e, também por isso, nos assusta tanto. Todavia, a angústia habita a suspensão, jamais a certeza. O monstro de Scott, ao se revelar aos humanos, entra em outro plano, muito mais próximo ao fóbico do que ao angustiante, no sentido atribuído por Lacan: o alien, então, se apresenta como objeto, assim como o cavalo para o pequeno Hans. O espectador já sabe o que é o monstro espacial, ainda que já o supusesse – e aí, obviamente, está o jogo do inverossímil do qual participamos, ao ver um filme. Serve-nos de alerta, pois a predação alienígena é apenas uma outra face da moeda que a ficção nos permite ver, em alerta metaforizado (cf. MESSIAS, 2022, 2023). Afinal, como propõe a pesquisadora, uma vez mais aludindo ao célebre texto de Morin (1975), somos Homo faber, loquens, ludicus, sapiens, digitalis e também demens. Eis o grande paradoxo da condição humana.

 

Referências

MESSIAS, Adriano. Todos os monstros da Terra: bestiários do cinema e da literatura. Edição revista e ampliada. São Paulo: Blucher, 2022.

MESSIAS, Adriano. Cinema e Antropoceno: novos sintomas do mal-estar na civilização. São Paulo: Blucher, 2023 (no prelo).

MORIN, Edgar. O enigma do homem. Para uma nova antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

MORIN, Edgar. O método 5: a humanidade da humanidade. A identidade humana. Porto Alegre: Sulina, 2012.

PRECIADO, Paulo B. Eu sou o monstro que vos fala. Relatório para uma academia de psicanalistas. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

SANTAELLA, Lucia. Neo-humano. A sétima revolução cognitiva do Sapiens. São Paulo: Paulus, 2022.

SANTAELLA, Lucia. Inteligência contínua: a sétima revolução cognitiva do sapiens. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 347- 362, 2023.

Recebido: 02/03/2023

Aprovado: 11/03/2023


 

HÁBITOS E RACIONALIDADE: UM ESTUDO FILOSÓFICO-INTERDISCIPLINAR SOBRE AUTONOMIA NA ERA DOS BIG DATA

 

Maria Eunice Gonzalez[153]

Mariana C. Broens[154]

José Artur Quilici-Gonzalez[155]

Guiou Kobayashi[156]

 

Resumo: Neste texto, discutimos o seguinte dilema: por um lado, o crescente impacto das Tecnologias de Comunicação e Informação nos hábitos cotidianos parece influenciar a dinâmica da opinião pública, reforçando crenças irracionais e criando a impressão de que a autonomia da opinião e das decisões das pessoas é apenas um mito. Por outro lado, as pessoas parecem agir racionalmente na maioria das vezes, nas circunstâncias normais da vida cotidiana, como se suas ações habituais resultassem de decisões relativamente autônomas. A hipótese que propomos para superar o dilema é de que as pessoas podem agir racionalmente na maioria das vezes, mas têm suas opiniões influenciadas por informações insuficientes ou distorcidas ou por hábitos e disposições emocionais previamente adquiridas. Essa hipótese, por sua vez, será examinada, a partir de uma perspectiva filosófico-interdisciplinar, considerando o papel das escolhas racionais na dinâmica de formação da opinião autônoma. Com diagramas ilustrativos, argumentamos que hipóteses da teoria dos Sistemas Complexos podem auxiliar a compreensão do possível papel de disposições emocionais no processo de formação de opiniões.

 

Palavras-chave: Autonomia. Big Data. Emoções. Hábitos. Tecnologias de informação e comunicação. Sistemas complexos qualitativos.

 

Introdução

Na sociedade da informação contemporânea, a dinâmica da formação de opinião individual e coletiva parece ser frequentemente guiada por notícias e mensagens falsas e anúncios cuidadosamente elaborados, com o uso de recursos de mídia. Essa dinâmica tem sido incrementada pelo desenvolvimento de tecnologias de informação e comunicação (doravante TIC) e por técnicas analíticas de Big Data (LANEY, 2001; BOYD; CRAWFORD, 2011; MAYER-SCHONBERGER; CUKIER, 2013), que fornecem algoritmos para registrar e organizar grandes quantidades de dados individuais e coletivos disponíveis em diversas fontes de informação. Nesse contexto, atualmente, nós nos deparamos com o seguinte dilema: por um lado, o crescente impacto das TIC nos hábitos cotidianos parece influenciar a dinâmica da opinião coletiva, muitas vezes provocando polarizações, reforçando e/ou gerando crenças e hábitos de condutas irracionais, criando a impressão de que a autonomia da opinião e da tomada de decisão das pessoas são apenas quimeras. Por outro lado, no que se refere à capacidade de formação de hábitos, as pessoas parecem agir racionalmente em seu dia a dia, como se suas ações habituais resultassem de decisões relativamente autônomas.

Uma saída para o dilema indicado acima é sugerida neste artigo, discutindo a seguinte hipótese: apesar de serem racionais, na maioria das vezes, as pessoas têm suas opiniões temporariamente influenciadas por informações distorcidas, notícias fraudulentas ou crenças e hábitos previamente adquiridos. Tal influência permite que distorções indesejáveis alterem a dinâmica de formação da opinião, embora a recorrência de hábitos individuais e coletivos possa preservar aspectos de autonomia relativa, evitando o efeito de polarização conflituosa, característico do duplo vínculo. De acordo com Gregory Bateson e colegas (1956), o duplo vínculo (double binding) expressa situações em que tipos conflitantes de informação, muito comum em disputas argumentativas, influenciam sentimentos e processos de decisão das pessoas, de tal forma que “[...] não importa o que a pessoa faça, ela não consegue ser bem sucedida (no matter what a person does, he cannot win […].” (BATESON et al., 1956, p. 1).

Uma das contribuições do presente artigo é destacar a importância das disposições, enquanto tendências de conduta predominantes nas pessoas, e sua relação com hábitos adquiridos no contexto da dinâmica de formação de opiniões. Partindo do modelo preconizado por Claude Shannon, em sua Teoria Matemática da Comunicação (1948), propomos um modelo de formação de opiniões que envolve informação significativa na comunicação. Com esse modelo, investigamos possíveis consequências da opinião coletiva, diretamente afetada pelos meios de comunicação e pelo uso de ferramentas analíticas de Big Data. Na sequência, esboçamos um modelo de tomada de decisões racionais alicerçado na perspectiva dos Sistemas Complexos Qualitativos (explicitada a seguir), e na noção de racionalidade formal proposta por Max Weber (1978), entendida como a capacidade de encontrar uma solução ponderada para a equação envolvendo meios e fins. Consideramos, finalmente, a forte dependência entre as TIC contemporâneas e a dinâmica de formação de opiniões, em áreas nas quais hábitos emocionais parecem ser mais ativos e passíveis de desorientação, ressaltando o papel de disposições emocionais, nesse processo.

 

1 Hipóteses dos Sistemas Complexos Qualitativos no estudo dos processos de formação de opinião

 

Partindo do modelo elaborado por Claude Shannon (1948), em sua Teoria Matemática da Comunicação (TMC), propomos um modelo de formação de opiniões que envolve informação significativa na comunicação.

 O advento da TMC ajudou a difundir o modelo de comunicação centrado em informação, no qual um agente (denominado fonte) envia uma mensagem, através de um canal, para um receptor/destinatário (Figura 1). Esse modelo matemático foi concebido para lidar com problemas técnicos de transmissão de informações a um receptor, independentemente do significado da informação, mas foi adaptado para uso em cenários mais amplos. Como apontado por Dreyfus (1972) e Searle (1980), entre muitos outros, quando o conteúdo semântico da mensagem é levado em consideração, a suposição de um receptor/usuário passivo (que não interpreta a mensagem, apenas a recebe), no modelo de Shannon, é inadequada. Isso é especialmente verdadeiro para modelos explicativos da dinâmica de cognição e, no caso em pauta, da formação e divulgação de opiniões.

 

Figura 1: Modelo de Comunicação Centrado na Informação

Diagrama

Descrição gerada automaticamente

 

Fonte: Elaborado por José Artur Quilici-Gonzalez

 

Um dos problemas decorrentes do pressuposto shannoniano de um receptor passivo no modelo TMC, no contexto da dinâmica da opinião, é que, para atingir o comportamento coletivo desejado, as pessoas deveriam responder à mesma mensagem aproximadamente da mesma maneira esperada. Isso pressupõe que as pessoas não teriam, ou não exerceriam, uma opinião autônoma. No entanto, na vida cotidiana, o que se observa é que as pessoas podem ter reações bastante diferentes à mesma mensagem, dependendo de seu background e de seus diferentes sistemas de crenças. Nos estudos da comunicação humana, é necessário levar em conta características específicas de cada pessoa ou grupo de pessoas: suas experiências anteriores, expressas na forma de disposições e hábitos, sua capacidade de entender a mensagem e a quantidade de informação relacionada ao conteúdo da mensagem que seria disponibilizada.

Na tentativa de superar as dificuldades com o modelo TMC, no estudo dos processos de decisão e de formação da opinião, sugerimos um modelo de comunicação centrado em informação com significado, alicerçado na perspectiva dos Sistemas Complexos Qualitativos (BATESON, 1972; LALANDA-GONÇALVES, 2010; WIENER, 1948). Nessa perspectiva, os processos são investigados em várias escalas e dimensões, incluindo a biológica, a histórica, a social, a ética e a epistemológica.

As seguintes hipóteses dos Sistemas Complexos Qualitativos (daqui para frente SCQ) fundamentam a presente investigação:

 

1- os padrões de informação com significado são as unidades básicas e fundamentais da comunicação;

2- no processo de comunicação, padrões informacionais significativos emergem de interações recorrentes entre agentes que expressam disposições habituais coletivas;

3- o fluxo de comunicação pode trazer novidades emergentes inesperadas e auto-organizadas em sistemas complexos;

4- o sistema de crenças do receptor/destinatário desempenha um papel ativo no conteúdo semântico de padrões informacionais significativos;

5- a comunicação coletiva envolve agentes morais, ou seja, com autonomia suficiente para regular racionalmente interesses culturais, éticos, sociais, entre outros;

6- hábitos disposicionais contextualizados permitem às pessoas antecipar possíveis consequências das mensagens transmitidas/recebidas;

7- resiliência pode desempenhar um papel fundamental no processo disposicional de comunicação entre agentes racionais autônomos para superar a influência da desinformação, entendida aqui como notícia ou imagem fraudulenta;

8- o falibilismo, isto é, a estratégia de reconhecimento de possíveis erros no processo de comunicação e a prontidão para corrigi-los criticamente, deve ser adotado como estratégia profícua de interação entre agentes racionais autônomos;

9- o sistema de crenças pode ser considerado resiliente quando a pessoa tem a capacidade falibilista de problematizar crenças ou opiniões adquiridas por meio de notícias ou de mensagens fraudulentas ou desorientadoras.

 

Um exemplo de SCQ de especial interesse, no presente contexto, é a mencionada hipótese do duplo vínculo formulada por Gregory Bateson (BATESON et al., 1956), segundo a qual as relações de dependência entre os seres vivos são expressas por meio de padrões informacionais que configuram, através da repetição, disposições para agir de formas muitas vezes conflitantes. Conforme indicado, o duplo vínculo se manifesta em situações de conflitos, os quais são frequentes em disputas argumentativas, gerando polarizações e oposições, sem perspectivas imediatas de saída racional para o ciclo vicioso autogerado pelos envolvidos na disputa. Quando uma pessoa (ou grupo de pessoas) está presa em uma situação de duplo vínculo, os argumentos racionais têm pouco ou nenhum poder de persuasão para auxiliar a cortar o vínculo emocional gerado pela situação conflitante.

Uma possível saída do ciclo vicioso resultante do duplo vínculo requer mudanças radicais das disposições contextuais e individuais/coletivas, o que pode ocorrer pela consideração de diferentes tipos de padrões informacionais significativos, relevantes para a compreensão da situação conflituosa, a partir de perspectivas diversas. Inspirados nesta hipótese, investigamos uma situação conflituosa contemporânea (o Brexit) envolvendo a dinâmica da opinião coletiva, possivelmente influenciada por ferramentas de mídia auxiliadas por técnicas de análise de Big Data.

A seguir, com base nos pressupostos do SCQ (1-9), esquematizamos um modelo da dinâmica de formação de opiniões que pode ser afetada pelas TIC, segundo o qual os padrões informacionais transmitidos são tratados de forma que seu significado faça sentido para os destinatários, em sintonia com sua formação cultural e suas disposições.

 

2 Um modelo centrado no significado da dinâmica dos processos de formação de opinião

Quais poderiam ser as propriedades principais de um modelo da dinâmica de processos de formação de opinião em que o receptor tem sua opinião influenciada por conteúdos relacionados às suas disposições mais arraigadas, entretanto, expressa certo grau de autonomia? Propomos adotar uma caracterização minimalista, provisória, de autonomia enquanto capacidade racional de implementar decisões sem coação, livre de determinantes externos impostos, de forma que a conduta seja (ou possa ser) direcionada pela pessoa (GONZALEZ, 2017).

Embora o processo autônomo de formação da opinião possa variar em graus de pessoa para pessoa, em função de seus sistemas de crenças, experiência anterior, entre outros fatores, vários aspectos desse processo são frequentemente construídos coletivamente por meio de padrões informacionais compartilhados. De acordo com a hipótese 2 do SCQ, padrões informacionais significativos podem emergir, no processo de comunicação, através de interações recorrentes entre agentes, expressando disposições habituais coletivas. Considerando essa hipótese, um modelo de comunicação não linear deve incorporar algum tipo de feedback entre o(s) receptor(es) e o(s) emissor(es) das mensagens.

A Figura 2 traça um modelo de comunicação centrado no significado das mensagens, tendo em vista que a intenção do agente, ao dizer algo, nem sempre coincide com o que o público entenderá, ao receber a mensagem emitida. Para que a comunicação ocorra de forma satisfatória, evitando o aprisionamento do duplo vínculo, os interlocutores precisarão assumir uma atitude falibilista cooperativa, conforme as hipóteses 7, 8 e 9 do SCQ, a fim de perceberem o que está implícito no que foi dito.

Figura 2: Modelo de Comunicação Centrado no Significado

 

Diagrama

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Elaborado por José Artur Quilici-Gonzalez [157]

 

Nesse modelo de comunicação não linear, no qual os agentes da relação se afetam mutuamente, de acordo com a hipótese 3 do SCQ, o fluxo de comunicação pode trazer para os agentes novidades emergentes auto-organizadas, não esperadas. Além disso, fontes de ruído, como as expressas na forma de mensagens fraudulentas ou enganosas, afetam a comunicação entre os agentes, por meio da modificação de suas disposições e habilidades comuns, por vezes produzindo erros no fluxo da informação coletiva compartilhada.

O modelo de comunicação centrado no significado (Figura 2) pode ser aplicado a agentes morais com grau de autonomia, suficiente para regular o que é supostamente de interesse cultural, ético ou social.[158] No caso humano, a racionalidade formal e fatores emocionais desempenham um papel relevante na sustentação de padrões informacionais significativos que fornecem bases para a preservação de benefícios comuns. Conforme indicado, de acordo com a noção de racionalidade formal proposta por Weber (1978) e resumida aqui, como a capacidade de encontrar uma solução ponderada para a equação envolvendo meios e fins, uma pessoa agindo com informação insuficiente pode ser tão racional quanto outra com acesso a mais informação. Essas pessoas possivelmente chegarão a conclusões diferentes, por meios racionais, uma vez que a maioria das pessoas usa a racionalidade para reforçar e justificar seus hábitos sociais e os valores herdados. Em situações de conflito, disputas possivelmente darão lugar à polarização, típica do duplo vínculo. Inúmeras ilustrações dessa situação estão disponíveis em nossos meios de comunicação.

Segundo o modelo da Figura 2, o exemplo do Reino Unido, sobre sua saída da comunidade europeia (conhecida como Brexit), ilustra uma situação de campanha que utiliza fontes de ruído. Várias pessoas que votaram favoravelmente à saída do Reino Unido da comunidade europeia parecem lamentar a ação anterior, depois de terem tido acesso a mais informação sobre o assunto e de compreenderem melhor suas possíveis consequências. Alguns dizem que, se soubessem o que sabem agora, não teriam votado da maneira como votaram (PAYNE, 2020). Muitos dos argumentos usados nessa campanha tinham fortes significados emocionais, mas seriam os apelos emocionais suficientes para concluir que essas pessoas tomaram uma decisão de forma irracional?

Embora a complexidade da saída do Reino Unido do bloco econômico europeu seja alta, o que certamente dificulta a compreensão de todas as suas consequências, a questão é: essas pessoas teriam agido de forma irracional e agora estariam agindo racionalmente? Entendemos que a atribuição de "irracionalidade", neste caso, é meramente metafórica: não quer dizer que o agente deixou de pertencer ao grupo de seres agindo racionalmente, mas apenas que: (1) o agente manifestou sua opinião e deliberou, sem considerar aspectos relevantes do problema; (2) não levou a desinformação em consideração em sua deliberação, ou (3) não antecipou ou não deu a devida importância às implicações de longo prazo de sua decisão.

Será que as pessoas que agora lamentam sua escolha negligenciaram a responsabilidade epistêmica de suas decisões, por acreditarem, de modo displicente, em promessas vazias baseadas em uma concepção propagandística de soberania? Seria válido atribuir alguma responsabilidade moral a alguém, por subestimar sua responsabilidade epistêmica? Se a resposta à primeira pergunta for afirmativa, a consequência direta é que as pessoas favoráveis à saída do Reino Unido da comunidade europeia, as quais agora mudaram de opinião, agiram racionalmente o tempo todo e, nesse sentido, a responsabilidade moral pelas consequências de sua escolha lhes deve ser atribuída. Por outro lado, se for admitido que a decisão ocorreu em consequência de informação com determinado conteúdo emocional, por exemplo, podendo induzir pessoas a tomarem decisões erradas, a atribuição de responsabilidade moral poderia ser diferente.

Parece-nos que o direcionamento enganoso da formação de opinião e da conduta só pode operar de forma eficiente em agentes racionais se houver disposições robustas que sejam coerentes com o conteúdo desinformativo ou enganoso de mensagens. Por exemplo, no caso de campanhas publicitárias destinadas a suscitar respostas emocionais, a comunicação não teria muito sucesso se não houvesse disposições prévias enraizadas no agente. Consideramos que a dificuldade em modificar essas disposições bem estruturadas (e, no caso humano, as crenças que sustentam a dinâmica da opinião) é indicativa da falta de resiliência que o falibilismo possibilitaria, como sugerido pelas hipóteses 7 e 8 do SCQ.

Uma dificuldade para romper estados em que preponderam situações de duplo vínculo, na dinâmica de opiniões sobre questões éticas, políticas, entre outras, é que não basta uma boa dose de voluntarismo; é preciso que um novo estado disposicional de uma parcela da sociedade entre em sincronia, algumas vezes com liderança de um movimento político de agentes morais que conseguiram ultrapassar as barreiras dos processos de fixação de crenças tenazes.

Entendemos que, análises contemporâneas sobre a dificuldade de modificar disposições bem estruturadas requerem um diálogo inter/multidisciplinar entre a Filosofia/Ciências Sociais/Humanas e Ciências Naturais/Formais. A seguir, esboçamos uma perspectiva filosófico-interdisciplinar da dinâmica da formação da opinião e dos processos de decisão que leva em consideração as consequências éticas das escolhas racionais na era dos Big Data.

 

3 Perspectivas sobre as técnicas de análise de Big Data na dinâmica da opinião coletiva

Nos debates científicos atuais, as técnicas de análise de Big Data têm sido consideradas principalmente a partir de duas perspectivas dicotômicas:

(i) a perspectiva das Ciências Formais, Biológicas e Naturais, a qual se concentra no desenvolvimento de algoritmos (supostamente) neutros e outras ferramentas para coletar, minerar, estruturar, classificar e modelar uma quantidade massiva de dados;

(ii) a perspectiva das Ciências Humanas e Sociais, que focaliza os efeitos da datificação resultantes de análises algorítmicas de traços digitais deixados pelos usuários das TIC (FURNER, 2016) nas redes sociais digitais e sítios da internet, como postagens no Facebook e no Twitter, compras pela internet, dados de cartão de crédito, entre outras fontes de informação.

Segundo os adeptos da perspectiva (i), a análise de Big Data lida com informação objetiva disponível no mundo, e uma das funções de suas ferramentas analíticas é detectar, objetivamente, através de algoritmos de busca, correlações entre dados digitalizáveis para auxiliar a propagação e a previsão de eventos. Em contraste, os defensores de (ii) afirmam que algoritmos não são neutros: são recursos analíticos cujo uso pode não apenas reforçar crenças e preconceitos, mas também criar possibilidades de ganhos indevidos para as empresas, detentoras de dados, direcionarem as opiniões dos usuários.

Como saída para as visões dicotômicas apresentadas, propomos uma terceira (iii) caracterização, interdisciplinar, de Big Data, segundo a qual (i) e (ii) devem operar conjuntamente, a fim de fornecer uma visão do complexo cenário introduzido pela datificação, na sociedade informacional contemporânea.

Longe do sonho positivista de uma ciência metodologicamente unificada, nossa proposta (iii) não requer uma visão unificada dos eventos e métodos de análise de dados. A adoção de uma perspectiva falibilista e resiliente, de acordo com as hipóteses 7 e 8 do SCQ, possibilita o levantamento de hipóteses e conceitos relevantes, para enfrentar os riscos, desafios e as consequências do uso das análises de Big Data no possível direcionamento da opinião coletiva.

Na perspectiva proposta, recursos de análise de Big Data poderiam permitir o fortalecimento de hábitos coletivos subjacentes à dinâmica de formação da opinião, ajudando, por exemplo, a estruturar padrões informacionais que expressam os direitos das minorias na luta pela autonomia. No entanto, o uso da análise de Big Data também pode ameaçar a privacidade e a autonomia das pessoas, principalmente por identificar as características emocionais e ideológicas das disposições de usuários das TIC e utilizar as técnicas de Big Data para vigilância e controle, o que afetaria negativamente a dinâmica disposicional da formação da opinião individual e coletiva.

A relevância das propriedades disposicionais para orientar os processos de formação de opinião foi ressaltada nas seções anteriores. No entanto, o que pode ser entendido por disposição? Em geral, as disposições são caracterizadas como a tendência de um objeto ou sistema de agir ou reagir de maneira específica, dadas certas circunstâncias (RYLE, 1949; SAPIRE, 1999; HANDFIELD, 2009). Dentre os exemplos clássicos, os quais ilustram a natureza das disposições, destacam-se a fragilidade do vidro e a solubilidade do açúcar. As disposições são sempre relacionais; elas não constituem propriedades diretamente observáveis, como a forma ou o tamanho de um objeto, mas seus efeitos não são inobserváveis, pois têm o poder de mudar os estados de coisas no mundo. Nesse sentido, as propriedades disposicionais não devem ser consideradas “etéreas ou misteriosas” (CHOI; FARA, 2018), pois indicam tendências ou possibilidades em relação às propriedades do tipo observável. Como argumenta Ryle (1949/2000, p. 43):

Uma declaração que atribui uma propriedade disposicional a uma coisa tem muito, embora não tudo, em comum com uma declaração que subordina a coisa a uma lei. Possuir uma propriedade disposicional não é estar em um estado particular ou sofrer uma mudança particular; deve ser vinculado ou sujeito a estar em um estado particular, ou a sofrer uma mudança particular, quando uma condição particular for realizada. Isso também é verdade sobre disposições especificamente humanas, como qualidades de caráter. O fato de eu ser um fumante habitual não significa que eu esteja fumando neste ou naquele momento; é minha tendência permanente para fumar quando não estou comendo, dormindo, dando palestras ou indo a funerais e não tenho fumado recentemente.

 

Assim, quando nos referimos à racionalidade formal e aos hábitos humanos e habilidades racionais como disposições incorporadas, estamos designando tendências para realizar certas ações em determinadas circunstâncias, ou, em outras palavras, designamos a inclinação do agente a atualizar suas disposições em certos contextos. Conforme ressaltado por Schwitzgebel (2019), essa abordagem é conhecida como disposicionalismo. No caso de crenças, entendidas como disposição para a ação, os disposicionalistas argumentam que “[...] uma pessoa acredita na proposição P porque ela tem uma ou mais disposições comportamentais pertencentes a P, [...] ou porque ela tem a disposição de agir como se fosse o caso” em circunstâncias dadas.

Objeções à caracterização acima da natureza disposicional no domínio das crenças humanas são apresentadas por Schwitzgebel (2019) ao ressaltar que tal perspectiva reduz crença a comportamento, o que seria inapropriado porque pessoas com a mesma crença podem se comportar de maneiras diferentes. Isso tornaria difícil estabelecer qual crença seria a causa de uma dada conduta. Uma segunda objeção envolve situações de pessoas cujas possibilidades de ação são limitadas (em casos de paralisia severa, por exemplo) ou que desejam deliberadamente ocultar uma crença (como fazem algumas pessoas em contextos totalitários). Nesses casos, como a abordagem disposicional explicaria a relação entre crença e ação? Uma possível resposta a esta pergunta seria que as emoções, por exemplo, estariam associadas às disposições do agente para aderir a um tipo de crença, facilmente identificável, que não traga maiores complicações. Além disso, simplesmente dissociar crença e conduta é também problemático, como já apontou Bain (2017), para quem a única forma de distinguir crenças de meras concepções seria aplicar uma espécie de “teste da ação” (p. 595).

Uma explicação para o sucesso do direcionamento da opinião coletiva, como sugerido no caso do referendo do Brexit, é que a desinformação agiu sobre elementos emocionais que costumam operar na dinâmica dos processos de formação de opinião, ativando disposições enraizadas em hábitos culturais seculares. Conforme enfatizado por Bateson (1956), certas emoções, como interesse, medo, perplexidade e dúvida, entre outras, podem interferir em crenças justificadas racionalmente. Essa interferência pode resultar do uso de técnicas de propaganda enganosa para distorcer disposições que desempenham papéis sociais importantes. No caso do Brexit, apelos propagandísticos a formas distorcidas de patriotismo parecem se basear em disposições nacionalistas dos cidadãos britânicos (considerando emoções ligadas ao papel desempenhado pelo país, na 2ª Guerra Mundial, por exemplo), porém, distorcendo-as e transformando-as em xenofobia.

A natureza complexa das emoções envolvidas na dinâmica da formação de opinião e nos processos deliberativos está longe de ser totalmente compreendida. Entretanto, é claro que as emoções muitas vezes são o alvo da desinformação eficaz, como pode ser visto pelo sucesso das estratégias de publicidade para influenciar a formação da opinião e as decisões do consumidor, auxiliadas pela análise dos Big Data. Nessa perspectiva, uma das causas centrais do sucesso da propagação intencional de desinformação é o direcionamento das emoções, gerando deliberadamente polarizações e distorções nas expectativas habituais dos agentes, aprisionando-os temporariamente em uma situação de duplo vínculo.

Em resumo, nossa hipótese é que investigações das técnicas de desinformação (como instrumentos que podem distorcer elementos emocionais nos processos de formação de opinião e orientação da conduta) permitem entender, pelo menos em parte, por que agentes racionais são capazes, simultaneamente, de expressar opiniões aparentemente irracionais e agir de modo favorável à razão: a conduta (geralmente pautada pela complementaridade de componentes racionais e emocionais) pode ser desorientada. A desinformação, nesse caso, pode atuar como um amplificador de uma fonte de ruído, de acordo com o modelo de comunicação centrado no significado (Figura 2), ou como um instrumento para distorcer disposições socialmente relevantes para a conduta incorporada em agentes racionais. Em ambos os casos, os agentes racionais podem ser temporariamente aprisionados em situações de duplo vínculo.

Se a hipótese acima expressa corretamente aspectos da dinâmica da opinião e da conduta, quais seriam as implicações éticas do uso das TIC e, principalmente, da análise de Big Data em tais processos? Considerando as possíveis implicações futuras para a conduta de agentes morais usuários de TIC, uma perspectiva ética inspirada no consequencialismo (BENTHAM, 2000; SIDGWICK, 1907; ANSCOMBE, 1958) nos auxiliará na investigação dessa questão.

Na perspectiva consequencialista, especialmente na proposta por Elizabeth Anscombe (1958), o raciocínio moral deve promover a elaboração de diferentes cenários nos quais se possa prever implicações positivas e/ou negativas decorrentes da conduta que se pretende realizar. Nesse tipo de raciocínio moral, a antecipação de possíveis consequências de uma ação, sobretudo as indesejadas ou colaterais, desempenha um papel central, pois enseja avaliar a legitimidade moral da conduta para além de objetivos ou interesses imediatos do agente moral. Ressalte-se a dificuldade de que certas emoções, como entusiasmo, autoconfiança e esperança, eticamente valiosos em muitas circunstâncias, às vezes podem interferir indevidamente no compromisso ético de antecipar possíveis implicações indesejáveis de uma decisão específica ou na capacidade de avaliá-la de maneira responsável e bem-informada.

O reconhecimento de elementos emocionais no processo de formação de opiniões e na orientação da conduta possibilita considerar, a partir da perspectiva consequencialista: (a) aspectos não imediatamente explicitados do raciocínio moral, em geral, e (b) possíveis implicações de manipulação intencional e distorção de elementos emocionais, além de disposições pessoais/sociais que podem ativar uma situação de duplo vínculo.

A antecipação de cenários que delineiam possíveis implicações éticas de diferentes linhas de conduta pode incluir considerações sobre a influência de emoções (em princípio positivas, como as já citadas esperança e entusiasmo, ou negativas, como ódio ou intolerância) nos processos de deliberação racional. Nesse sentido, uma abordagem consequencialista, ao enfatizar o papel da antecipação de possíveis resultados indesejáveis, auxiliaria a detecção e a denúncia de táticas envolvendo o engano deliberado da opinião pública usando recursos de Big Data.

Na vida pública, especialmente quando há grande quantidade de dados disponíveis, por exemplo, sobre as causas do descontentamento social, uma campanha política poderia ser direcionada para canalizar esse descontentamento, sem especificar as ações que devem ser tomadas ou as políticas a serem adotadas para resolver os problemas que o causaram, em primeiro lugar. Pessoas que votam em candidatos que aparentemente compartilham suas mesmas emoções (como indignação ou repulsa) em relação a um determinado problema social ou político exemplificam essa situação. Nesse contexto, eles podem acreditar que esses candidatos têm o mesmo desejo racional e sincero de resolver um problema comum, mesmo sem terem alguma indicação concreta para tanto.

A aplicação do modelo de comunicação centrada no significado (Figura 2) e do modelo de mensuração da influência da mídia na formação de opinião, conforme proposto na Figura 3 abaixo, permite examinar, por exemplo, o impacto do conteúdo de tópicos sobre a dinâmica da opinião pública, bem como a análise das emoções que estão associadas a tais tópicos. Considerando a natureza das emoções associadas a diferentes temas (no caso do Brexit, por exemplo, há a associação amplamente explorada entre o tema “imigração” e a emoção “desconfiança”), seria eticamente desejável criar e divulgar amplamente modelos que mostrem claramente a associação deliberada entre temas e emoções usada para desviar a opinião pública, a fim de contrabalançar e corrigir o impacto de distorções propositalmente produzidas.

 

Figura 3: Modelo para estimar a influência da mídia na opinião pública

Gráfico de bolhas

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: Modelo elaborado por Guiou Kobayashi.

 

Em suma, de acordo com a abordagem aqui esboçada, um modelo para estimar a influência da mídia no contexto da ética consequencialista poderia auxiliar no desenvolvimento de uma perspectiva interdisciplinar para a compreensão da dinâmica de formação da opinião coletiva utilizando as técnicas de análise de Big Data. Tal modelo também poderia ser utilizado para analisar a conduta individual e coletiva de forma eticamente responsável, indicando os possíveis círculos viciosos de duplo vínculo que aprisionam as pessoas, principalmente em circunstâncias de polarização.

 

Conclusões provisórias

Iniciamos este artigo com a sugestão de que a dinâmica de formação da opinião muitas vezes parece ser mal orientada por ferramentas de mídia cuidadosamente projetadas, como as disponíveis na análise dos Big Data. Dentre os aspectos negativos do uso de correlações massivas detectadas por meio da análise de Big Data, sugerimos a possibilidade de acentuar disposições (in)desejáveis, incentivando tipos padronizados de comportamento. No lado positivo, indicamos o emprego de recursos dos Big Data para ativar e fortalecer grupos de minorias silenciados durante séculos.

No domínio das práticas cotidianas, argumentamos que as pessoas podem ser racionais, na maior parte do tempo, mas ter sua opinião/ação influenciada por informação insuficiente e distorcida ou pela manipulação deliberada de disposições sociais relevantes previamente adquiridas. Propusemos modelos para investigar esses efeitos, com base na perspectiva dos sistemas complexos qualitativos, segundo os quais a informação significativa é um produto emergente de relações qualitativas estabelecidas na dinâmica recorrente de ações habituais dos agentes, em vários planos. Nessa perspectiva, indicamos o papel das escolhas racionais e da responsabilidade ética na dinâmica contemporânea dos processos autônomos de formação de opinião, os quais podem ser afetados pelo uso de análises de Big Data.

No início do século XX, havia grande expectativa, do ponto de vista científico, de que a racionalidade humana possibilitaria evitar grandes catástrofes, como guerras, causadas pelos próprios seres humanos. Muitos cientistas compartilhavam o otimismo de Goya, que considerava que o sono da razão produziria monstros. Weber, por exemplo, escreveu sobre a racionalidade da sociedade norte-americana, influenciado pelo otimismo de sua época, mas como ele reagiria se tivesse podido testemunhar o bombardeio atômico das cidades de Nagasaki e Hiroshima?

Atualmente, não existe esse otimismo esperançoso sobre a racionalidade, como havia, desde o iluminismo europeu até o início do século XX, segundo o qual a maioridade da razão garantiria a ação autônoma. Se uma razão adormecida pode produzir monstros, a razão humana também pode produzir eventos atrozes, como Agnes Heller nos alerta (ALTARES, 2017). Efetivamente, a noção de razão formal, voltada para equacionar meios e fins, é limitada em sua aplicação a situações específicas. No entanto, a razão plena, falibilista, ciente da possibilidade de ocorrerem distorções emocionais de conduta intencionalmente provocadas, quando permite determinar metas e deliberar sobre o melhor modo de alcançar o bem comum, continua sendo uma grande esperança para a humanidade. Esse ideal é expresso na abordagem falibilista interdisciplinar aqui esboçada para analisar a influência dos Big Data, no contexto da dinâmica de formação da opinião autônoma.

 

Habits and rationality: An interdisciplinary philosophical study on autonomy in the Big Data era

Abstract: The following dilemma is discussed: On the one hand, the growing impact of Technology of communication and information (ICT) in everyday habits seems to influence the dynamics of public opinion by reinforcing irrational beliefs and creating the impression that the autonomy of people’s opinion and decisions is just a myth. On the other hand, people seem to act most of the time, under the normal circumstances of daily life, in a rational way, as if their habitual actions result from relatively autonomous decisions. A way out of this dilemma is suggested with the hypothesis that people can be rational most of the time, but nevertheless have their opinions influenced by insufficient, distorted information, or by previously acquired emotional dispositions. This hypothesis, in turn, is going to be scrutinized by considering, from a philosophical-interdisciplinary perspective, the role of rational choices in the dynamics of autonomous opinion. With illustrations of diagrams, we claim that the qualitative Complex Systems paradigm might help us to understand the possible role of emotional dispositions in the dynamics of autonomous opinion formation.

Keywords: Autonomy. Big Data. Emotions. Habits. Information and communication technologies. Qualitative complex systems.

 

Referências

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WIENER, N. Cybernetics: or the Control and Communication in the Animal and the Machine. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1948.

 

Agradecimentos: Agradecemos as contribuições de Ettore Bresciani Filho e Juliana Moroni e as parcerias do GAEC – Grupo Acadêmico de Estudos Cognitivos da UNESP e do Grupo Auto-Organização do CLE – Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da UNICAMP. Também agradecemos o apoio da UNESP e do CNPq.

 

Recebido: 27/08/2023

Aceito: 16/01/2023


COMENTÁRIO A “HÁBITOS E RACIONALIDADE: UM ESTUDO FILOSÓFICO-INTERDISCIPLINAR SOBRE AUTONOMIA NA ERA DOS BIG DATA”: BUSCANDO O EQUILÍBRIO NO FIO DA NAVALHA DIGITAL

 

Maxwell Morais de Lima-Filho[159]

 

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do

[labirinto

Esse eterno levantar-se depois de cada queda

Essa busca de equilíbrio no fio da navalha

Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo

Infantil de ter pequenas coragens.

Vinicius de Moraes

 

Referência do artigo comentado: GONZALEZ, M. E.; BROENS, M. C.; KOBAYASHI, G.; QUILICI-GONZALEZ, J. A. Hábitos e racionalidade: um estudo filosófico-interdisciplinar sobre autonomia na era dos Big Data. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 367-386, 2023.

 

A Professora de Filosofia Marielle Costa chega de viagem e pede um Uber para levá-la da rodoviária de Juazeiro do Norte até a Universidade Federal do Cariri (UFCA). No trajeto, ela confere rapidamente sua caixa de e-mail, envia mensagens de WhatsApp e escuta Beth Carvalho pelo Spotify. Chegando ao câmpus, ela caminha para seu gabinete, conecta-se à internet da instituição, corrige as avaliações dos(as) estudantes e registra as notas no Sigaa/UFCA. Posteriormente, dirige-se à sala de aula, conecta o notebook ao projetor de mídia e inicia sua aula sobre autonomia humana na era dos Big Data. A despeito de Marielle Costa ser uma personagem ficcional, o mundo digital no qual ela está mergulhada é uma realidade – e é a respeito de algumas implicações desse cenário virtual que vamos tratar, neste texto.

Especificamente, abordaremos o modelo de comunicação centrado no significado e o modelo para estimar a influência da mídia na opinião, explorados no artigo de Maria Eunice Gonzalez, Mariana Broens, Guiou Kobayashi e José Artur Quilici-Gonzalez (2023), publicado neste número especial sobre Filosofia Autoral brasileira. Não obstante, faremos preliminarmente uma contextualização histórico-conceitual dos trabalhos pioneiros de Charles Babbage, Ada Lovelace, Alan Turing e Norbert Wiener, bem como dos conceitos de datificação e ideologia do dataísmo e das controversas performances do ChatGPT, no mundo pós-software dos Big Data. Mesmo sabendo que tal percurso é um tanto quanto arbitrário, fragmentário e extenso, torcemos para que a paciência do(a) leitor(a) seja, de algum modo, recompensada.

Durante a Revolução Industrial, houve um estímulo para que aplicações científicas fossem traduzidas em inventos tecnológicos, no intuito de que as máquinas substituíssem, a menor custo, certas atividades manuais humanas. No início do século XIX, Joseph Marie Charles (Jacquard) patenteou um tear mecânico que funcionava à base de informações contidas em cartões perfurados. O tear de Jacquard influenciou Charles Babbage, que projetou, entre 1822 e 1847, três máquinas calculadoras de funcionamento mecânico: Difference Engine No. 1, Analytical Engine e Difference Engine No. 2. Um dos objetivos de Babbage era fornecer à máquina instruções prévias que lhe permitissem produzir rápida e precisamente tabelas numéricas, através da realização de numerosos cálculos.

Ora, cartões perfurados semelhantes aos do tear de Jacquard poderiam ser utilizados para prescrever como a máquina deveria se comportar mecanicamente – isto é, através dos movimentos de barras, discos, engrenagens etc. – e chegar à conclusão, por exemplo, de que 2303 tem como logaritmo 3622939. Entre 1828 e 1839, Babbage foi Professor Lucasiano de Matemática na Universidade de Cambridge – na prestigiosa cátedra que fora ocupada por Isaac Newton e, mais recentemente, por Stephen Hawking. Segundo Costa (2012, p. 10), Babbage foi pioneiro, ao estimular a cultura comunicacional entre a humanidade e seus complexos rebentos tecnológicos:

Apesar do brilhantismo dos projetos de Babbage, acreditamos que seus esforços dispensados nas áreas da mecânica e da técnica não resultaram num impulso à ainda inexistente ciência da computação, como querem alguns, principalmente se considerarmos suas soluções engenhosas e intricadas na área da mecânica aplicada. O grande legado de Babbage ao projetar suas máquinas não foi exatamente tecnológico, mas sim uma grande abertura para uma atividade humana que era novidade e que começou a exercer fascínio: o diálogo do homem com a máquina que ele próprio criou.

 

Filha do famoso poeta e fervoroso opositor do tear mecânico, Lord Byron, Augusta Ada Byron (também conhecida como Lady Lovelace ou Ada Lovelace) era uma jovem de 17 anos, quando conheceu Babbage. Ela traduziu do francês para o inglês uma esmiuçada descrição acerca da Máquina Analítica que fora redigida por Luigi Menabrea (o qual se tornaria futuramente Primeiro-Ministro da Itália). Mais importante do que a tradução em si, todavia, foram os extensos comentários realizados por Ada Lovelace, no formato de notas, nas quais estão expostas algumas noções fundamentais de computação e programação. Essa fecunda contribuição científico-tecnológica é assim descrita por Matos (2019, p. 70):

Por seu trabalho, Ada Lovelace é considerada a patrona da arte e ciência da programação. Mesmo não estando a máquina de Babbage construída, as sub-rotinas de loops e saltos são largamente utilizadas na programação de computadores de hoje. Em suas anotações sobre o projeto de Charles Babbage, Ada incluiu suas próprias observações para o cálculo da sequência de Bernoulli. Essas séries de instruções constituem, de fato, o primeiro programa escrito e documentado na história da humanidade.

 

            Na concepção de Ada Lovelace, não existe espaço para a criatividade maquínica, isto é, o aparato tecnológico se restringiria a executar as instruções que os(as) inventores(as) humanos(as) lhe disponibilizam. Dando um salto histórico para o ano de 1950, vemos Alan Turing[160] se debruçando sobre a espinhosa questão acerca da possibilidade de máquinas (computadores eletrônicos ou computadores digitais) pensarem. Após propor um jogo da imitação com um(a) interrogador(a), um homem e uma mulher – o objetivo do homem é se passar pela mulher; já a mulher tem por função auxiliar o(a) interrogador(a) a identificá-la como tal –, o matemático inglês faz uma variação do experimento mental, para que um computador digital assuma uma daquelas posições e jogue no sentido de se passar por humano e, por conseguinte, seja exitoso em ludibriar o(a) interrogador(a). A conclusão de Turing (1950) é que, se o(a) interrogador(a) não for capaz de diferenciar estatisticamente as respostas humanas daquelas dadas pelo computador digital, este último também poderia ser considerado um sistema inteligente. Consoante Miguens (2019, p. 112), esse modo de raciocinar enriquece duplamente a perspectiva filosófica, por Turing defender

[...] uma ideia acerca da natureza do pensamento como processo, e uma postura anti-apriorista quanto à definição de inteligência, um descolamento da ideia de inteligência relativamente a substratos materiais específicos, e portanto, a ideia segundo a qual o mental não tem que ter necessariamente hardware biológico.

 

Para que o experimento de pensamento que ficou conhecido como Teste de Turing seja executado, vemos ser necessária uma contínua permuta de informações entre sistemas do tipo humano e artificial, permuta informacional esta que também chamou a atenção dos ciberneticistas. Norbert Wiener e colaboradores perceberam que a Mecânica Estatística é de fundamental relevância para a técnica de comunicação, porque a viabilidade de transmitir informações está irremediavelmente ligada à disponibilidade de opções variadas que podem ser passadas para frente.

Quanto mais organizado for um sistema, menor a sua entropia e maior a quantidade de informação que ele possuirá: um organismo vivo e um computador novo, em pleno funcionamento, são informacionalmente superiores a um organismo em decomposição e a um computador desmontado, por exemplo. Ademais, a quantificação estatística da informação é relevante tanto para o estudo da informação quanto para o do controle de sistemas biológicos e artificiais, donde a escolha do nome Cibernética, pelo grupo de Wiener (1970, p. 36-37):

Decidimos designar o campo inteiro da teoria de comunicação e controle, seja na máquina ou no animal, com o nome de Cibernética, que formamos do grego κυβερνήτης ou timoneiro. Ao escolher este termo, quisemos reconhecer que o primeiro trabalho significativo sobre mecanismos de realimentação [feedback] foi um artigo sobre reguladores, publicado por Clerk Maxwell em 1868, e que governor (regulador) é derivado de uma corruptela latina de κυβερνήτης. Desejávamos também referir ao fato de que os engenhos de pilotagem de um navio são na verdade uma das primeiras e mais bem desenvolvidas formas de mecanismos de realimentação.

 

Conforme Jean-Pierre Dupuy, a Cibernética se originou nos anos 1940 e teve como fundamentos os artigos Behavior, purpose and teleology (1943), de Arturo Rosenblueth, Norbert Wiener e Julian Bigelow, e A Logical Calculus of the Ideas Immanent in Nervous Activity (1943), de Warren McCulloch e Walter Pitts, além das Conferências Macy, iniciadas em 1946. Defendendo a tese de que as Ciências Cognitivas nasceram no encalço da Cibernética[161], Dupuy (1996, p. 36) nos lembra da influência do trabalho de Turing, a respeito da relação entre pensamento e máquina na geração multidisciplinar de pesquisadores do período, a qual nos atinge até hoje:

O pensamento, essa atividade psíquica, essa faculdade do espírito que tem o conhecimento como objeto, nada mais é, afinal, do que um processo mecânico ordenado, um automatismo “cego” – devemos acrescentar “burro”? Trata-se de desvalorizar o homem? De elevar a máquina? Ou, pelo contrário, de fazer do homem um demiurgo capaz de criar um cérebro ou um espírito artificial? Cada uma destas interpretações tem, certamente, sua parte de verdade, maior ou menor conforme os indivíduos e as épocas.

 

Historicamente, é recorrente mencionar que a linguagem[162] nos distingue dos demais seres biológicos e sistemas artificiais. Não à toa, o jogo da imitação de Turing a elege como sendo crucial para definirmos se uma máquina (computador digital) é capaz de pensar. Passadas sete décadas, essa temática continua a despertar interesse. Recentemente, foi publicado um editorial no conceituado periódico Nurse Education in Practice, com o instigante título: Open artificial intelligence platforms in nursing education: tools for academic progress or abuse? Para além do conteúdo, um diferencial desse texto é que ele foi “escrito a quatro mãos” pela Doutora Siobhan O'Connor, da Universidade de Manchester, e pelo ChatGPT, tecnologia de inteligência artificial.[163] Só para ilustrarmos do que esse programa é capaz, acessamos a página da companhia OpenAI e, a partir do título “hábitos e racionalidade: um estudo filosófico-interdisciplinar sobre autonomia na era dos Big Data”, o ChatGPT[164] nos forneceu o seguinte texto:

Este tópico combina a filosofia da autonomia com a era dos Big Data. A autonomia é a capacidade de uma pessoa de tomar decisões livres e conscientes, enquanto os Big Data se referem à coleta e análise de grandes conjuntos de dados. O estudo filosófico-interdisciplinar mencionado provavelmente busca explorar como os hábitos e a racionalidade se relacionam com a autonomia em um mundo cada vez mais controlado por dados e tecnologia. Isso pode incluir questões sobre privacidade, ética e liberdade individual em relação ao uso crescente de dados para tomar decisões.

 

Uma preocupação ocasionada por programas como o ChatGPT é que uma pessoa, ao omitir que o utilizou, apresente-se como autora de um texto produzido por uma ferramenta digital. Esse programa é apenas um exemplo de comunicação desempenhada por um artefato tecnológico que processa informação disponibilizada na rede mundial de computadores. Porém, os impactos sociais e éticos provocados pelos frutos de nosso gênio demiúrgico podem se estender para além do que burlar trabalhos escolares-acadêmicos, sendo a massiva e rápida propagação de notícias falsas um infortúnio do nosso atual estágio digital.

A disseminação de mensagens inautênticas pode turvar nossa racionalidade, despertar emoções negativas, prejudicar a autonomia humana, corroer processos democráticos e, infelizmente, contribuir direta e indiretamente para a morte.[165] Como nos previne Accoto (2020, p. 34), os programas de computador não são meros instrumentos auxiliares, haja vista que eles são onipresentes, permeiam as mais diversas atividades humanas e moldam, de modo singular, a nossa configuração civilizatória, levando-nos a questionar

[...] não apenas o que são as mídias após a chegada do software, mas o que é o “mundo” após o advento do software que se alimenta de sensores e dados, que incorpora algoritmos, que são empurrados cada vez mais para a inteligência artificial, e que hoje se materializa em poderosas plataformas socioeconômicas.

 

Nessa época de datificação, estamos rodeados de programas glutões que, a todo momento, se empanturram com incontáveis dados servidos pelos sensores e pela rede mundial de computadores desse gigantesco refeitório semiótico, metabolizando-os na forma de intricadas análises quantitativas, de estabelecimento de padrões normativos (individuais e coletivos) e de predição de comportamentos. Na esteira do fenômeno de datificação irrompeu uma ideologia que, de tão encantada com o admirável mundo novo digital, julga que é no tratamento dos Big Data[166] que se encontram a explanação e a compreensão universal: o dataísmo.

Ora, como muitos de nós apreciamos ver e escutar o que está em sintonia com as nossas próprias convicções e atitudes, não é de se espantar que o exame estatístico, a estipulação de parâmetros e a antecipação comportamental levados a cabo pelos algoritmos acabem por gerar bolhas de notícias. Como bem mostra Lúcia Santaella (2021, p. 137), os programas de computador são bem eficazes em fomentar o viés de confirmação:

O poder da crença – em uma ideia, religião, afinidade política e afins – sempre existiu. Contudo, nossa nova existência nos ambientes em rede amplifica esse poder, também chamado de viés de confirmação, especialmente porque passamos a ser monitorados por algoritmos de IA que, progressivamente, sabem mais de nós do que nós mesmos e só nos enviam aquilo que sabem e advinham que queremos e gostamos.

 

Feita essa contextualização histórica e conceitual, passamos agora à exploração do artigo “Hábitos e racionalidade: um estudo filosófico-interdisciplinar sobre autonomia na era dos Big Data”. Nesse texto, Gonzalez et al (2023) aludem a um dilema hodierno: na era das tecnologias da informação e comunicação (TIC) e dos Big Data, as mesmas pessoas que cotidianamente se comportam de maneira autônoma e racional são passíveis de serem negativamente sugestionadas por hábitos prévios, crenças inverídicas e relatos falsos, os quais, por sua vez, as impelem a tomar ações que vão de encontro à autonomia e à racionalidade.

Partindo de elementos fornecidos por Claude Shannon (Teoria Matemática da Comunicação), por Gregory Bateson (conceito de duplo vínculo), por Max Weber (noção de racionalidade formal) e pela perspectiva dos Sistemas Complexos Qualitativos (SCQ), Gonzalez et al (2023) propõem um novo modelo de tomada de decisões racionais, com o intuito de perscrutar como a ubíqua utilização das TIC e a massiva análise de Big Data são capazes de (de)formar a opinião pública, modelo este que adaptamos em nossa Figura 1.

Figura 1: Modelo de Comunicação Centrado no Significado

Interface gráfica do usuário, Texto

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Adaptado a partir de Gonzalez et al (2023).

 

Como podemos constatar, temos uma situação simplificada de um fluxo de mensagens[167] entre duas pessoas que usam uma TIC (celular, tablet, computador etc.): (t1) mensagem enviada – fluxo do(a) emissor(a) para a interface comunicacional, (t2) mensagem recebida – fluxo da interface comunicacional para o(a) receptor(a) e (t3) mensagem reenviada[168] – fluxo do(a) receptor(a) [original] para o(a) emissor(a) [original].

Nessa perspectiva, imaginemos que Pantaleão enviou uma mensagem para seu caro amigo Inocêncio, dizendo que, se a candidata Letícia ganhasse a eleição, distribuiria mamadeiras com bicos pênis-miméticos para crianças das creches.[169] A seguir, suponhamos que tal notícia viralize e se propague rapidamente pelas redes sociais e pelos aplicativos de conversa, tendo como consequência uma migração considerável de votos de Letícia para o seu inominável concorrente, o qual acaba por se sagrar vitorioso na eleição.

Obviamente, são muitos os fatores envolvidos num processo tão complexo como o eleitoral, todavia, essa situação nos indicaria que Pantaleão, Inocêncio e inúmeras outras pessoas que se aterrorizaram e que propagaram a ideia fraudulenta da “mamadeira de piroca” parecem, à primeira vista, viver num duplo mundo: por um lado, agem de modo racional, quando resolvem um problema do trabalho, pedem o almoço, pagam boletos e jogam dominó; por outro, são capazes de acreditar, aterrorizar-se e propagar irracionalmente mensagens que fariam qualquer pessoa minimamente sensata corar de vergonha e/ou de raiva. Como isso é concebível? De acordo com a hipótese aventada por Gonzalez et al (2023, p. 379),

[...] investigações das técnicas de desinformação [...] permitem entender, pelo menos em parte, por que agentes racionais são capazes, simultaneamente, de expressar opiniões aparentemente irracionais e agir de modo contrário à razão: a conduta (geralmente pautada pela complementaridade de componentes racionais e emocionais) pode ser desorientada por desinformação, que atua como um amplificador de uma fonte de ruído [...] ou como um instrumento para distorcer disposições socialmente relevantes para a conduta incorporada em agentes racionais.

 

Com o objetivo de esclarecermos como a disposição comportamental é estabelecida pela associação de elementos racionais e emocionais, retornaremos a meados do século XIX, explorando rapidamente seus fundamentos neurobiológicos. Durante seu trabalho na construção de uma estrada de ferro, o enérgico e competente Phineas Gage executava sua costumeira função de explodir rochas para abrir caminho à malha ferroviária. Em virtude de uma desatenção, Gage cometeu um erro, ao socar a pólvora com seu bastão de ferro, ocasionando uma súbita explosão que fez com que a barra transpassasse sua cabeça e fosse arremessada a uma longa distância. Além de não ter morrido, ele permaneceu consciente logo após esse violento trauma craniano. Apesar de ter ficado cego do olho esquerdo, Gage não perdeu suas capacidades linguística, visual (do olho direito), olfativa, gustativa, auditiva e tátil. A despeito disso, ele sofreu uma profunda mudança de hábitos e de caráter: comunicava-se através de um palavreado chulo, tornou-se desrespeitoso e passou a ser indócil.

O caso de Gage foi pioneiro por mostrar que a racionalidade pode ser afetada por um dano neurológico específico. Apoiado não apenas nesse episódio histórico, mas também na prática médica e numa profunda pesquisa acadêmica, António Damásio (1996, p. 277) conjectura que é apropriado falar numa “paixão pela razão” devido a um vínculo anátomo-fisiológico entre os sistemas da razão, das emoções e da regulação corporal, chamando-nos a atenção para o seguinte:

Conhecer a relevância das emoções nos processos de raciocínio não significa que a razão seja menos importante do que as emoções, que deva ser relegada para segundo plano ou deva ser menos cultivada. Pelo contrário, ao verificarmos a função alargada das emoções, é possível realçar seus efeitos positivos e reduzir seu potencial negativo. Em particular, sem diminuir o valor da orientação das emoções normais, é natural que se queira proteger a razão da fraqueza que as emoções anormais ou a manipulação das emoções normais podem provocar no processo de planejamento e decisão.

 

A influência exercida pelas emoções sobre a razão tem sido abundantemente explorada, nessa fase pós-software. Nossos dados são continuamente coletados e analisados, quando acessamos uma página da internet, curtimos vídeos e fotos nas redes sociais, assistimos a um filme na plataforma de streaming, utilizamos o GPS para nos guiar, compramos com o cartão de crédito, usamos a pulseira inteligente, durante a atividade física etc. Dessa maneira, toda pessoa que não é tecnologicamente excluída tem como correspondente uma duplicata digital. Além do mais, a existência do cidadão digital é um continuum caracterizado pela interpenetração dos domínios físico-biológico e digital. Di Felice (2020, p. 98) assevera que esse cenário tem revolucionado – de modo positivo e negativo – todos os âmbitos de nossa vida, alterando inclusive as estratégias políticas atuais:

Dentro das ecologias de dados, a estratégia comunicativa política assume a forma da escuta. Sendo possível acessar em tempo real dados de todos os tipos, relacionados a estados de ânimo, tendências emergentes e solicitações dos cidadãos (a partir de informações digitais produzidas pelos softwares de análises que oferecem dados sobre “rastreamento de usuários”, ou “training do internauta”), a prática comunicativa predominante da política torna-se a da antecipação, semelhante ao sistema gerado por third-party cookies.

 

A disputa das eleições presidenciais estadunidenses de 2016 aparenta ser um caso cuja análise dos Big Data amparou o viés comunicativo da escuta, o que acabou comprometendo a autonomia de muitos(as) eleitores(as), ao ofuscar seu discernimento e, por conseguinte, direcionar seu voto. Enquanto era assessor de Donald Trump, Steve Bannon também ocupava um cargo junto ao conselho da Cambridge Analytica. Essa empresa adquiriu do Facebook numerosas informações – nome, atuação profissional, endereço, costumes e preferências – de quase 300 mil pessoas que usaram o aplicativo thisisyourdigitallife; esse montante é somente a ponta do iceberg, pois também foram coletados dados dos contatos daqueles(as) usuários(as), o que eleva a estimativa para 50 milhões de pessoas com a privacidade invadida!

Christopher Wylie, que à época trabalhava na Cambridge Analytica, tornou-se denunciante desse crime cibernético e afirmou que a coleta se dava desde 2014. É importante notarmos que os dados foram utilizados em duas vias, isto é, tanto para construir informes favoráveis ao candidato do Partido Republicano quanto para direcionar mensagens nocivas a Hillary Clinton. De acordo com Wylie, os dados vendidos à Cambridge Analytica teriam sido usados para catalogar o perfil das pessoas e, então, direcionar, de forma mais personalizada, materiais pró-Trump e mensagens contrárias à adversária dele, a democrata Hillary Clinton, sendo extremamente relevantes para traçar estratégias para conquistar o público indeciso. Como nos lembra a BBC News Brasil (2018), a campanha divulgada pela própria Cambridge Analytica deixa transparecer o poder de seus tentáculos algorítmicos: “Fornecer a informação certa à pessoa certa, no momento certo é mais importante do que nunca”.

Retornando ao modelo de comunicação centrado no significado (Figura 1), ao que tudo indica, a Cambridge Analytica se valeu dos perfis catalogados de dezenas de milhões de pessoas para encaminhar mensagens que poderiam influenciar o(a) eleitor(a) dos seguintes modos: (i) fortalecer seu voto em Donald Trump, (ii) retirar seu voto de Hillary Clinton e (iii) fazer com que você se decida a votar em Trump. Nesse sentido, os potenciais influenciadores semânticos são relevantes tanto para quem recebe uma mensagem como para quem resolve compartilhá-la. Por exemplo, a falsa notícia[170] de que Trump seria apoiado pelo Papa Francisco[171] pode mexer com as emoções e ser bem recebida pelo(a) eleitor(a) que é cristão (sistema de crenças), que já votou em candidato(a) apoiado(a) por líderes religiosos(as) (experiências anteriores), que fica preso(a) a bolhas[172] que sempre recebem o mesmo tipo de conteúdo – e são incapazes de avaliar outros pontos de vista (habilidade analítica) – e que associa tal apoio a pautas específicas, como a condenação do aborto e à contraposição à descriminalização das drogas (informações relacionadas).

            Com isso em vista, Gonzalez et al (2023, Figura 3) dão um passo adiante e também nos oferecem um modelo para estimar a influência da mídia, na opinião. Enquanto o primeiro é um modelo geral, este segundo é específico, no sentido de funcionar como um desenho de pesquisa. Em outras palavras, esse segundo modelo tenciona analisar estatisticamente como fontes de notícia (jornais, revistas, páginas da internet etc.) podem influenciar pessoas, através da quantificação dos tipos de comentários (positivos, neutros e negativos) que são postados em redes sociais – tanto por aquelas que examinam a referida fonte (grupo experimental) quanto pelas que não a consultam (grupo-controle). Transpusemos a ideia dessa proposta com alguns exemplos midiáticos para a Tabela 1.

 

Tabela 1: Influência da mídia na formação de opinião pública

Tabela

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Adaptado a partir de Gonzalez et al (2023).

 

            Não negligenciemos que a imensa quantidade de dados a serem analisados é meramente uma face da medalha, no que se refere à complexidade programática prescrita por Gonzalez et al (2023), pois basta vermos que necessitamos de uma profusão de áreas dialogando – Filosofia, Ciências Humanas, Ciências Sociais, Ciências Naturais e Ciências Formais – para continuarmos prosseguindo nesse projeto. O primeiro passo já foi dado: a estruturação conceitual e a proposição de modelos. Com mais uma passada, os modelos serão testados experimentalmente.[173] Após isso, a análise dos resultados balizará as conclusões no tocante aos alcances e aos limites da proposta, que, por seu turno, retroalimentará a discussão: isso quer dizer que os modelos originais são passíveis de sofrer mudanças. Explicitada essa caminhada concepção-teste-redesenho dos modelos, exprimiremos a urgência de exercermos uma fiscalização severa sobre os desenvolvedores de artefatos digitais.

Os produtos tecnológicos da era da computação transfiguraram, para o bem[174] e para o mal, a sociedade humana. Por reconhecer esse enorme potencial (especialmente o destrutivo), devemos exigir das empresas que se comprove que seus artefatos são seguros e benéficos, antes de serem disponibilizados para a população. Ninguém que conheça os efeitos teratogênicos da talidomida pode ser acusado de tecnófobo, ao reivindicar testes rigorosos com fármacos. Por que algo semelhante não ocorre com empresas produtoras de tecnologia informático-eletrônica? É imperativo que essas companhias também sejam regulamentadas, proclama Stuart Russell (2021, p. 239):

Inevitavelmente, porém, a indústria tech terá que reconhecer que seus produtos são importantes; e, se os produtos são importantes, é importante também que não tenham efeitos danosos. Isso significa que haverá regras para reger a natureza das interações com humanos, proibindo designs que, digamos, manipulem consistentemente preferências ou que produzem comportamentos viciantes.

 

Certa vez, McLuhan (2020, p. 166) afirmou satiricamente que “hoje os novos meios colocam o homem um passo acima dos anjos”. Essa asserção é verdadeira, mas devemos adicionar que as pessoas podem se comportar de maneira sorrateiramente demoníaca, com o auxílio desses modernos artifícios. Isso significa que o labirinto algorítmico é uma realidade ubíqua de nossos tempos, seja para o bem (acesso a mensagens qualificadas, monitoramento biomédico, comunicação simultânea com pessoas distantes, diversas modalidades de entretenimento virtual, facilitação com transações bancárias, robô antibomba etc.), seja para o mal (rápida disseminação de notícias falsas, falta de privacidade, robôs que se passam por pessoas, cibervícios, golpes virtuais, armas autônomas letais etc.). Dessa maneira, temos a incumbência de nos reerguermos dos tombos emotivo-racionais, para que possamos percorrer essa navalha digital. Àquelas pessoas que qualificam de utópica tal perspectiva, Quintanem-se!

 

Se as coisas são inatingíveis...ora!

Não é motivo para não querê-las...

Que tristes os caminhos, se não fora

A presença distante das estrelas!

 

Referências

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WIENER, N. Cibernética: ou controle e comunicação no animal e na máquina. Tradução de Gita K. Ghinzberg. São Paulo: Polígono e Universidade de São Paulo, 1970.

Recebido: 21/05/2023

Aceito: 26/05/2023


 

Leis de ponte na Filosofia da Mente e nas Ciências Físicas

 

Osvaldo Pessoa Jr.[175]

 

Resumo: No debate sobre a redutibilidade da mente ao corpo, argumenta-se que não é plausível supor que tal redução possa se dar apenas a partir das condições físicas basais, mas que é necessário levar em conta também as leis de ponte psicofisiológicas. Essa posição é geralmente considerada antirreducionista, na Filosofia da Mente, mas se prefere aqui chamá-la de “reducionismo indutivo”, devido à analogia com duas outras formas de determinação nas Ciências Físicas: o determinismo causal e o reducionismo escalar espacial. A discussão é feita com base em “sondas epistemológicas” abstratas, como o demônio de Laplace, o demônio escalar e o demônio psicofisiológico. Critica-se também a noção de causalidade sincrônica usada por Searle.

Palavras-chave: Problema mente-corpo. Reducionismo. Emergência. Leis de ponte. Lacuna explicativa. Causalidade sincrônica.

 

Introdução

A discussão sobre reducionismo, na Filosofia da Mente, versa principalmente sobre a questão de se os estados mentais podem ser explicados somente a partir da base física (chamado por Kim de “reducionismo teórico”), ou se são necessárias leis de ponte psicofisiológicas, a serem descobertas de maneira empírica (“reducionismo indutivo” ou emergentismo fraco). Por outro lado, na discussão sobre reducionismo entre escalas das Ciências Físicas, a ênfase não está no caráter empírico das leis de ponte, mas em questões mais pragmáticas de dedutibilidade matemática em face de não linearidades.

Após fazermos essa comparação, apresentamos a analogia entre a relação de determinação na dimensão temporal (a causalidade e o determinismo) e a relação de determinação na dimensão escalar espacial (reducionismo). No caso da determinação temporal, o análogo das leis de ponte são as leis de evolução temporal da mecânica, cujo estabelecimento é claramente independente do estado inicial. Examinando o caso da determinação na escala espacial, argumentamos que, nesse caso, é essencial levar em conta as leis de escala, as quais funcionam como leis de ponte. Assim, levando adiante a analogia com as duas situações das Ciências Físicas, conclui-se a favor da tese do reducionismo indutivo na relação mente-corpo.

 

1 Materialismo e superveniência

Consideremos o experimento mental da duplicação material humana perfeita (PESSOA, 2010), em que uma cópia material perfeita é feita de uma determinada pessoa em um certo instante, juntamente com o ambiente à sua volta. A primeira questão a ser colocada é se a cópia teria consciência ou não. A resposta afirmativa define a posição “materialista”, e a negativa, a posição “espiritualista” (ou o dualismo de substância). Tendo em vista a resposta materialista, uma segunda questão pode ser colocada: no instante da criação, quando os estados materiais têm identidade de propriedades, os estados mentais dos dois também teriam todas as propriedades mentais idênticas? A resposta positiva define a posição que aceita a tese da superveniência da mente ao corpo.

Aceitando essa posição, a terceira pergunta a ser feita é: qual é a natureza da relação de superveniência entre o mental e o fisiológico? Será que a consciência pode ser “reduzida” ao estado físico-químico do corpo? Será que, em tal redução, devemos associar um protopsiquismo às partes do encéfalo? Ou será que a mente possui algum tipo de autonomia irredutível, de maneira que se falaria que a mente “emerge” do corpo material, sem ser redutível a este? Para analisar essa questão e definir mais precisamente o que significa “redução” e “emergência”, apresentaremos um outro experimento mental, envolvendo o “demônio psicofisiológico”.

 

2 O demônio psicofisiológico

Em sua discussão sobre a tese da superveniência da mente ao corpo, a qual chamou de “paralelismo psicofisiológico”, Henri Bergson ([1904] 1974, p. 163) a caracteriza de diversas maneiras.

Para fixar as ideias, formularíamos a tese da seguinte maneira: “Sendo dado um estado cerebral, segue-se um estado psíquico determinado”. Ou ainda: “Uma inteligência sobre-humana, que assistisse ao movimento dos átomos de que é feito o cérebro humano e que tivesse a chave da psicofisiologia, poderia ler, num cérebro trabalhando, tudo o que se passa na consciência correspondente”. Ou enfim: “A consciência não diz nada mais do que se passa no cérebro; ela apenas o exprime numa outra língua”.

 

A primeira formulação se ajusta à definição que demos de superveniência, desde que o termo “segue-se” seja entendido em um sentido ontológico, no qual um domínio “fixa” o outro. Já a segunda caracterização vai mais além, pois ela exprime a possibilidade de que a passagem de um domínio para outro possa ser traçada racionalmente.

O recurso a uma “inteligência sobre-humana” já tinha precedentes, na filosofia da ciência, quando o físico Pierre-Simon de Laplace caracterizou um universo determinista como aquele no qual, para uma inteligência superior, “[...] nada seria incerto e o próprio futuro, assim como o passado, estariam evidentes a seus olhos.” (Laplace, [1814] 2010, p. 43).

Podemos caracterizar o “demônio de Laplace” como um ser abstrato que possuiria pelo menos quatro atributos: (i) Onisciência instantânea: conheceria o estado de todo o Universo em um instante do tempo, em todas as escalas (micro, macro etc.), com resolução e acurácia perfeitas; (ii) Erudição nomológica: conheceria com exatidão todas as leis que regem o Universo; (iii) Supercomputação: seria capaz de realizar o cálculo mais complicado em um intervalo de tempo insignificante; (iv) Não distúrbio: a atuação do demônio não afetaria em nada o funcionamento do Universo. Com essas quatro propriedades, pode-se definir o “determinismo estrito” da seguinte maneira: se o demônio de Laplace partir do conhecimento do estado atual do Universo e fizer uma previsão sobre qual será o estado exato do Universo, depois de um certo tempo t, então, se ele sempre acertar 100% de suas previsões, o Universo será determinista, se não, será tiquista (indeterminista) (PESSOA, 2012).

O demônio psicofisiológico pode ser caracterizado de maneira semelhante. Ele atuaria sem provocar distúrbio (iv) e teria a capacidade de supercomputação (iii). Porém, no item (ii), não é preciso incluir o conhecimento das leis causais do Universo, pois o demônio psicofisiológico atuaria de maneira sincrônica, em um instante temporal ou em um intervalo muito pequeno de tempo. Ele conheceria todas as leis psicofísicas (às vezes, chamadas de “leis de ponte”, que Bergson descreve como “a chave da psicofisiologia”, leis das quais temos ainda um conhecimento muito parco), ou seja, as leis que correlacionariam uma configuração material do corpo vivo (tomada em todas as suas escalas físicas, indo do mais micro para a escala macro do corpo) com um estado mental. Podemos chamar a esse item de “erudição nomológica psicofísica”.

Por fim, o item (i) poderia ser mantido, correspondendo a uma base de superveniência igual a todo o universo; por outro lado, se escolhermos restringir a base de superveniência ao corpo, então o item (i) poderia ser simplificado, de sorte que o demônio teria conhecimento exato apenas de todo o corpo material orgânico (em todas as suas escalas físicas). Uma simplificação adicional seria interessante de investigar: será que a base de superveniência física poderia ser restrita a uma dada escala (molecular, celular ou tecidual)?

A aplicação do demônio de Laplace ao problema mente-corpo já era comum, na época de Bergson, sendo sugerida, por exemplo, por Emil du Bois-Reymond (1874, p. 26-27):

Em nossa incapacidade para compreender matéria e força, o conhecimento astronômico de um sistema material é o conhecimento mais completo que podemos esperar adquirir dele. Com isso, nosso instinto de causalidade está acostumado a ser satisfeito, e este é o tipo de conhecimento que seria possuído mesmo pela Inteligência imaginada por Laplace, se ela fizesse uso de sua fórmula universal. [...] Seria profundamente interessante se pudéssemos assim, com os olhos da mente, [...] dizer que jogo de carbono, hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, fósforo e outros átomos corresponde ao prazer que vivenciamos ao ouvir sons musicais; [...] Mesmo assim, no que tange às próprias operações mentais, está claro que mesmo com o conhecimento astronômico do órgão mental, elas seriam tão ininteligíveis quanto são agora.

 

Nota-se que a citação termina com a admissão de uma “lacuna explicativa” (LEVINE, 1983).[176] Tal posição violaria um reducionismo mais forte, a ser chamado REDUCIONISMO-1, mas é consistente com uma forma mais branda, REDUCIONISMO-2, na qual a lacuna é coberta por princípios não explicados a serem descobertos empiricamente. Esta última posição não é geralmente chamada de “reducionismo”, na discussão contemporânea de Filosofia da Mente (ver, por exemplo, Howell; Alter, 2009), mas argumentaremos que esse termo é apropriado, a partir das analogias com a situação nas Ciências Físicas, utilizando experimentos mentais envolvendo “sondas epistemológicas” (PESSOA, 2012), ou seja, diferentes “demônios”, como o laplaciano, o psicofisiológico e o escalar.

 

3 Três posições a respeito do reducionismo psicofisiológico

Caracterizado o demônio psicofisiológico, podemos fazer a seguinte pergunta: se o demônio conhecer o estado material exato de um corpo orgânico, ele “poderia ler tudo o que se passa na consciência correspondente”?

Uma resposta positiva pode ser classificada de reducionista, ou seja, um mundo no qual o demônio psicofisiológico seria capaz de “prever” o estado detalhado da mente (no mesmo instante), com base no conhecimento completo do corpo. No exemplo de Bergson, tal demônio teria também “a chave da psicofisiologia”, ou seja, conheceria todas as “leis de ponte” que ligariam estados materiais e estados mentais. Supondo um mundo em que isso ocorre, se de fato o demônio previsse corretamente tudo a respeito dos estados mentais, teríamos um mundo com redução às condições basais mais leis de ponte, que iremos chamar de REDUCIONISMO-2 ou “reducionismo indutivo” (seguindo Kim, 1999, p. 8, que usa os termos “previsibilidade indutiva” e “previsibilidade teórica”; ver citação abaixo).

Suponha-se agora que o demônio não tenha posse do conhecimento das leis de ponte (ou seja, não satisfaça o item ii da sua definição): conseguiria ele prever os estados mentais apenas a partir das condições basais (sem leis psicofisiológicas adicionais)? Um mundo onde isso ocorresse teria REDUCIONISMO-1, ou “reducionismo teórico”. Para que essa forma mais forte de reducionismo valesse, seria preciso que as leis de ponte estivessem, de alguma forma, contidas nas condições basais.

Jaegwon Kim (2006, p. 553) considera essa possibilidade e sugere que uma “redução funcionalista” poderia satisfazer a redução a apenas as condições basais (Reducionismo-1), pois o que se busca num projeto de redução funcionalista é caracterizar um estado mental, como dor, em termos de comportamento e de causas que regem a base de realizadores da mente (independentemente da natureza do substrato).

Kim não concebe que o REDUCIONISMO-2 seja de fato “reducionismo”, atribuindo essa concepção (de que o REDUCIONISMO-2 não é reducionismo) a emergentistas, como C. D. Broad:

O que se exige de uma explicação e previsão que vai além da mera superveniência ou determinação? Emergentistas estavam bastante cientes de que há um sentido em que a ocorrência de um fenômeno emergente pode ser prevista. Considere uma inferência como a seguinte:

As fibras C de Jones serão estimuladas em t.

Qualquer um cujas fibras C são estimuladas terá a experiência de dor.

Portanto, Jones terá a experiência de dor em t.

Isso pode ser chamada de previsão “indutiva” de dor – baseada em nosso conhecimento indutivo da correlação entre dor e estimulação de dor/fibra C. Deve ficar claro por que uma previsão de dor desta espécie não irá impressionar um emergentista que pergunta: “Pode um fenômeno emergente ser previsto com base no conhecimento de suas condições basais?” O que está errado com a mencionada previsão de dor é que a base de evidência, na segunda premissa da inferência, faz uso de conhecimento de fatos que vão além daqueles no nível basal; ela supõe conhecimento da “lei de emergência” que liga dor e estimulação da fibra C. (KIM, 2006, p. 551).[177]

 

Uma terceira posição negaria que o demônio pudesse prever o estado detalhado da mente, mesmo com conhecimento das leis de ponte disponíveis na natureza. Se tal concepção aceitar a tese da superveniência da mente ao corpo, teríamos um materialismo com “emergentismo forte”. Por fim, haveria posições que negam a tese da superveniência da mente ao corpo, as quais podem ser ainda materialistas ou então espiritualistas (dualistas de substância), como a posição de Bergson.

 

4 Analogia com a determinação causal

A definição do demônio psicofisiológico, para a relação de determinação sincrônica entre o domínio físico e o mental, foi feita por analogia à definição do demônio de Laplace, para a relação de determinação temporal entre estados do Universo, em dois instantes diferentes. Há também uma terceira situação de interesse, a qual é a determinação sincrônica entre diferentes escalas espaciais do domínio físico, explorada em Pessoa (2012). A Tabela 1 faz um resumo dessa situação para os três “quadros-gerais” (frameworks, ou dimensões) mencionados: temporal, escala espacial e corpo-mente. Deixamos de lado aqui a dimensão espacial e a escala temporal, discutidas em Pessoa (2012).

 

Tabela 1 – Analogias entre três quadros-gerais com respeito à relação de determinação e leis de ponte

Quadro-geral

Tempo

Escala espacial

Corpo-mente

 

Quadros (fatias)

Instantes ou intervalos temporais arranjados continuamente.

Fatias de escala espacial arranjadas continuamente.

Dois quadros discretos:

corpo e mente.

Relação de determinação

Causalidade.

Redutibilidade.

Relação mente-corpo.

Correlação estrita

Determinismo estrito.

Superveniência do macro ao micro.

Superveniência da mente ao corpo.

 

Leis de ponte

Leis dinâmicas

(2ª lei de Newton,

eq. de Schrödinger etc.)

Leis de transição de escala espacial.

 

Leis psicofisiológicas.

Fonte: Elaboração nossa

 

Na seção anterior, distinguimos duas posições reducionistas no problema mente-corpo, dependendo de se o demônio psicofisiológico poderia prever o estado mental (1) apenas a partir do conhecimento completo das condições físicas basais, sem necessidade de conhecer as leis de ponte psicofisiológicas (reducionismo teórico), ou (2) se ele necessitaria também conhecer as leis de ponte (reducionismo indutivo).

Fazendo a analogia com o quadro-geral temporal, a relação de determinação temporal entre um certo instante e um instante posterior é claramente dada pelas equações dinâmicas das teorias físicas relevantes. O demônio de Laplace só pode acertar suas previsões sobre o futuro, se ele conhecer essas leis dinâmicas. Assim, se a analogia com o quadro-geral corpo-mente se mantiver, seria necessário para o demônio psicofisiológico conhecer as leis de ponte, a fim de acertar suas previsões.

 

5 Determinação na escala espacial

No caso do quadro-geral da escala espacial, a questão análoga é se um demônio escalar, que conhece o estado nanoscópico do Universo, consegue prever o comportamento de qualquer coisa macroscópica. Ele é definido de maneira análoga ao demônio psicofisiológico. Ele atuaria sem provocar distúrbio (iv) e teria a capacidade de supercomputação (iii). No item (ii), novamente, não é preciso incluir o conhecimento das leis causais do Universo, pois o demônio escalar também atuaria de forma sincrônica, em um instante temporal ou em um intervalo muito pequeno de tempo (como o demônio psicofisiológico). Mas ele conheceria todas as leis de transição de escala espacial, ou seja, as leis do Universo que correlacionam uma descrição nanoscópica (por exemplo) com a correspondente descrição macroscópica. Podemos chamar a esse item de “erudição nomológica escalar espacial”. Por fim, o item (i) de onisciência instantânea seria análogo ao do demônio de Laplace, cobrindo o conhecimento de todo o Universo, em um instante, mas tal conhecimento seria restrito apenas a uma única escala espacial (a nanoscópica). Com isso, o demônio seria capaz de descrever o comportamento do Universo, em uma escala macroscópica?

Para exemplificar a discussão sobre o debate “redução vs. emergência”, nas Ciências Físicas, consideremos uma barra metálica alongada em pé (cf. GATTI; PESSOA, 2012). Supondo que uma carga é adicionada ao topo da barra, exercendo uma força vertical e apontada para baixo, e que a intensidade da força vai lentamente aumentando, de início, a barra permanece imóvel, contudo, a partir de um certo valor crítico da carga, a barra irá “flambar”, ou seja, irá se dobrar, ou para a esquerda ou para a direita. A questão é explicar para qual lado se dará a flambagem.

A teoria dos fenômenos críticos irá ignorar os detalhes microscópicos do sistema e simplesmente estipular qual é o ponto crítico e qual é a probabilidade de o sistema seguir diferentes caminhos possíveis. Esta é uma abordagem emergentista, e a flambagem para cada sentido (esquerda ou direita) pode ser considerada uma propriedade emergente. A explicação reducionista apresenta um outro relato para essa situação. Ela precisa levar em conta as posições de todos os átomos da barra metálica, todas as imperfeições microscópicas da barra e também as posições e velocidades de todas as moléculas do gás que circunda a barra. Se a barra for perfeitamente simétrica, pode-se talvez identificar qual foi a molécula individual de oxigênio (ou de outro tipo) que forneceu, num determinado instante, o impulso que foi determinante para o início da flambagem. Esta seria, então, a análise mecânico-causal feita pela abordagem reducionista.

O filósofo Robert Batterman (2002, p. 11) argumenta que a explicação emergentista é superior, por ser mais econômica, por desprezar detalhes inacessíveis para nós e por fornecer uma explicação de por que outras barras se comportam de modo semelhante. O reducionista concede que sua explicação é mais complicada, mas salienta que o que as diferentes barras têm em comum (formando uma “classe de universalidade”) é sua estrutura microscópica global, ou seja, sua organização. Se aceitarmos essa análise, vemos que a grande vantagem da abordagem emergentista é ser pragmática: ela ignora o que é irrelevante e inobservável, descrevendo um fenômeno imprevisível, com base em uma teoria indeterminista. O relato reducionista é realista, podendo ser concatenado em uma versão consistente com a mecânica clássica, ou em uma versão consistente com uma versão realista da mecânica quântica.

Na discussão acima, nos Fundamentos da Física, não se colocou a questão de se as leis de ponte entre o mundo nanoscópico e o macroscópico são deriváveis da Física que descreve as condições basais nanoscópicas, ou se são “empíricas”, no sentido de serem conhecidas apenas pela experiência (como foi feito na discussão em Filosofia da Mente). Aceita-se que haja um formalismo matemático o qual descreva a passagem do nanoscópico para o macroscópico, mesmo sendo “[...] quase impossível deduzir a complexidade e a novidade que podem emergir a partir da composição [de partículas]” (SCHWEBER, 1993, p. 36), devido à presença de não linearidades.

O que se aproxima do argumento que vimos em favor do Reducionismo-2, na Filosofia da Mente (de que as leis de ponte psicofisológicas só podem ser obtidas empiricamente) é o argumento emergentista de que os esquemas para realizar cálculos aproximados não são deduções de primeiros princípios, mas requerem dados experimentais e detalhes locais: “[...] os esquemas de aproximação não são deduções de primeiros princípios, mas são criações encaixadas [art keyed] aos experimentos, e assim tendem a ser pouco confiáveis, exatamente onde a confiabilidade é mais necessária.” (LAUGHLIN; PINES, 2000, p. 28).

Nesse caso, o reducionista na Física aceita que há dados desconhecidos sobre as propriedades dos materiais que, na prática, só podem ser conhecidos empiricamente. Mas, no experimento mental do demônio escalar, este teria conhecimento não só das leis fundamentais da Física (na escala em que ele atua), mas também conheceria as variáveis dinâmicas (posições, velocidades etc.) de todos os entes físicos (naquela escala), em um dado instante. Além disso, o item (ii) da definição do demônio escalar lhe dá conhecimento das “leis de transição de escala”, as quais permitem a passagem da descrição nanoscópica para macroscópica.

Assim, parece razoável que ele seria capaz de inferir o comportamento coletivo das partículas, “fazendo uma média” das variáveis e desprezando aquelas que se tornam irrelevantes, na descrição macroscópica. Uma boa descrição desse procedimento de “granulação grossa” (coarse graining) de variáveis é aquela dada por Schweber (1993, p. 37-38):

[...] para sistemas de muitos corpos, pode-se, integrando e eliminando os modos de comprimento de onda curto e frequência alta (que estão associados com a constituição atômica e molecular), chegar em uma descrição hidrodinâmica que é válida para uma ampla classe de fluidos, e que é insensível aos detalhes da composição atômica do fluido.

 

Se o demônio escalar não conseguisse fazer sua previsão com 100% de acerto, teríamos de supor que as leis de transição de escala não são suficientes para fixar univocamente o mundo macroscópico, a partir do nanoscópico. Isso seria análogo ao caso do tiquismo (indeterminismo), no quadro-geral temporal em que atua o demônio de Laplace. Diríamos, por conseguinte, que o mundo macroscópico não supervém perfeitamente ao mundo nanoscópico, uma situação contraintuitiva, mas talvez racionalmente aceitável.

Todavia, voltando à situação em que o demônio escalar tem sucesso em descrever o mundo macroscópico, em função do nanoscópico, será que ele teria sucesso sem o item (ii) de sua definição, ou seja, sem conhecer ou aplicar os procedimentos de granulação grossa? É difícil imaginar como ele poderia fazer isso, pois a onisciência instantânea que ele possui (item i) não envolve nenhuma lei física, mas apenas o registro das variáveis dinâmicas de todos os entes nanoscópicos. Sem um algoritmo de cálculo de médias, como ele poderia inferir a situação macroscópica?

Concluímos, assim, que a erudição nomológica (item ii) é tão importante para o demônio de Laplace quanto para o demônio escalar, o que sugere que deva ser igualmente importante para o demônio psicofisiológico, favorecendo o reducionismo indutivo (reducionismo-2), no problema mente-corpo. Por outro lado, pode-se argumentar que o algoritmo de cálculo de médias, necessário para o demônio escalar fazer suas previsões, pode ser estabelecido a priori (sendo puramente matemático), sugerindo o reducionismo-1 para a escala espacial. Porém, argumentaremos contra essa possibilidade, na seção 7.

Em nossa discussão, geralmente consideramos o caso no qual o demônio escalar analisa a escala nanoscópica e faz uma previsão para a escala macroscópica. Mas é claro que diferentes escalas podem ser levadas em conta, e que as conclusões poderiam diferir. Por exemplo, talvez a análise de uma escala subquântica possa levar a conclusões distintas, se houver uma fronteira escalar especial associada ao quantum de ação h. Entretanto, não iremos investigar aqui essa possibilidade.

 

6 Leis alométricas de escala

Mencionamos, como lei de transição de escala, o procedimento de granulação grossa da Mecânica Estatística. Porém, há uma outra acepção de “lei de escala”, na Ciência e na Engenharia, que é interessante de investigar, sendo que o pioneiro dessa tradição foi Galileo.

As leis de escala, nesse sentido mais usual, exprimem a relação entre duas grandezas, à medida que seu tamanho se altera. Por exemplo, a razão entre o peso da estrutura óssea e o peso total de animais varia com o tamanho do animal, exibindo “alometria”, ou seja, o desvio da isometria (razão constante entre as duas grandezas). Outro exemplo vem da engenharia estrutural, em que se constroem modelos em pequena escala de grandes estruturas, nas quais os parâmetros definidores dos materiais utilizados devem levar em conta as leis de escala (GHOSH, 2011). Para distinguir das “leis de transição de escala”, discutidas na seção anterior, chamarei estas de “leis alométricas de escala” e, quando estivermos nos referindo aos dois, usarei simplesmente “leis de escala”.

Uma questão interessante é se essas leis alométricas de escala podem ser derivadas a partir de princípios geométricos e primeiros princípios físicos, ou não. Na prática, muitas leis alométricas de escala, por exemplo na biologia, são determinadas empiricamente, mas deixamos em aberto se tais relações poderiam ser determinadas em função de um conhecimento mais detalhado da estrutura e composição dos tecidos biológicos.

Outra questão é se o demônio escalar precisaria conhecer as leis alométricas de escala, para fazer suas previsões. Aparentemente não, pois ele não faz previsões para o futuro; dada uma certa estrutura animal em uma certa escala, não interessa para ele o que acontecerá, quando surgir uma versão maior desse animal, ou seja, se este conseguirá sustentar sua estrutura eficientemente ou não. A tarefa do demônio seria apenas analisar a escala nanoscópica do animal; se ele tiver colapsado ou não, isso estará patente na distribuição espacial nanoscópica das moléculas do bicho.

 

7 Leis de escala em diferentes geometrias

Na Geometria Euclidiana, um aumento de escala isotrópico leva a uma figura semelhante à original, só que maior. Por outro lado, em geometrias não euclidianas, o resultado de um aumento de escala isotrópico resulta em uma figura que não é semelhante à original, por exemplo, a soma dos ângulos internos de um triângulo irá variar.

Podemos supor que a geometria do espaço-tempo na região em que habitamos possa ser euclidiana ou não euclidiana, e que esta é uma questão a ser decidida empiricamente. Qualquer que seja a situação, o demônio escalar, conhecendo as leis de transição de escala (que seriam distintas no caso euclidiano e não euclidiano), poderá prever o estado macroscópico a partir do nanoscópico.

Por outro lado, se o demônio não tem acesso às leis de transição de escala (item ii da definição), ele não terá como saber qual delas (euclidiana ou não euclidiana) é a correta. Assim, concluímos que, também no caso escalar espacial, a erudição nomológica (item ii) é essencial para o demônio escalar, favorecendo o reducionismo-2, o que sugere que deva ser igualmente importante para o demônio psicofisiológico, o que favorece o reducionismo indutivo no problema mente-corpo.

 

8 Discussão sobre causalidade sincrônica

Nesta seção, queremos justificar por que a relação de redução escalar, a qual ocorre em um único instante de tempo, não deve ser entendida como uma relação causal, que tomamos como sendo uma relação entre situações em dois instantes distintos do tempo.

John Searle (2004, p. 123) defende a tese de que “microfenômenos de nível mais baixo causam macrocaracterísticas de nível mais alto” em um sentido sincrônico, ou seja, no mesmo instante de tempo. Essa afirmação é usada para justificar sua tese de que encéfalos causam mentes. Searle defende que “[...] em muitos casos de causação a causa é simultânea ao efeito” (p. 124), e dá exemplos cotidianos envolvendo a força da gravidade, por exemplo, uma mesa que causa um objeto a permanecer em cima dela. Esta afirmação remete a exemplos dados por Immanuel Kant ([1781] 2001, A203), o qual também defendeu que a causa pode ser simultânea ao efeito. Um de seus exemplos é de uma bola de chumbo em repouso, em uma almofada, de maneira que a bola é a causa da deformação da almofada.

Tais afirmações entram em conflito com a Teoria da Relatividade Restrita, a qual estipula que processos causais não podem se propagar a uma velocidade maior do que a velocidade da luz. Pode-se talvez raciocinar que a bola de chumbo está em contato com a almofada, e que a distância entre elas é nula, de sorte que a causa poderia ser simultânea ao efeito. Mas, olhando em uma escala nanoscópica, há uma separação espacial não nula entre os átomos da superfície do chumbo e as moléculas da almofada que se encontram mais próximas à bola, uma separação talvez da ordem de 1 nanômetro.

Não há dúvidas de que a bola causa a deformação. Contudo, para avaliar a relação causal, basta um pequeno truque: removamos rapidamente a bola da almofada. Após um tempo curtíssimo, por exemplo, 1 milissegundo, a almofada continuará deformada, mesmo sem a presença da bola! Nesse caso, está claro que a causa da deformação da almofada é a presença da bola em um instante anterior (no passado), já que, no presente, a bola já não está mais lá. Ou seja, a causa é temporalmente anterior ao efeito. O mesmo raciocínio se aplica à situação em que a bola está presente: a deformação atual da almofada é causada pela presença da bola, em um instante anterior. (Uma avaliação de qual é esse intervalo temporal entre causa e efeito vai depender das propriedades elásticas da almofada.)

No caso da relação mente-encéfalo, pode-se argumentar que os processos encefálico e mental que estariam (segundo Searle) em uma relação causal sincrônica ocupam o mesmo ponto do espaço e, portanto, não estão sujeitos à restrição imposta pela Teoria da Relatividade. Tal possibilidade pode ser explorada, mas parece mais razoável chamar tal relação por um outro nome, não “causalidade”, mas “redutibilidade”.

 

Considerações finais

Exploramos a analogia entre diferentes relações de determinação em diferentes quadros-gerais, em especial a causalidade no tempo, a relação de determinação entre escalas espaciais físicas e a relação entre estados do corpo e da mente. A discussão foi feita com base em “sondas epistemológicas” abstratas, como o demônio de Laplace, o demônio escalar e o demônio psicofisiológico. Nosso foco principal foi argumentar que, no caso do debate sobre a redutibilidade da mente ao corpo, não é plausível supor que tal redução possa se dar apenas a partir das condições físicas basais, mas que é necessário levar em conta também as leis de ponte psicofisiológicas. Isso constitui, assim, uma defesa da redutibilidade “indutiva” no problema mente-corpo, o que pode ser considerado uma forma fraca de emergência. Argumentamos também contra a noção de causalidade sincrônica.

 

Agradecimentos

A ideia para este artigo surgiu em discussões com Vitor Sholl Lima. O argumento contra a causalidade sincrônica surgiu a partir de discussões com André Noara.

 

Bridge laws in the Philosophy of Mind and in the Physical Sciences

 

Abstract: In the debate on the reducibility of mind over body, we argue that it is not plausible to assume that such a reduction can be made only over the basal physical conditions, but rather that one must also take into account the psychophysiological bridge laws. This position is usually considered in the Philosophy of Mind to be antireductionist, but we prefer to call it “inductive reductionism”, due to the analogy with two other forms of determination in the Physical Sciences: causal determinism and spatial scalar reductionism. The discussion is made with the use of abstract “epistemological probes”, such as Laplace’s demon, the scalar demon, and the psychophysiological demon. We also criticize the notion of synchronical causality used by Searle.

 

Keywords: Mind-body problem. Reductionism. Emergence. Bridge laws. Explanatory gap. Synchonical causality.

 

Referências

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Recebido: 20/08/2022

Aceito: 16/01/2023


COMENTÁRIO A “LEIS DE PONTE NA FILOSOFIA DA MENTE E NAS CIÊNCIAS FÍSICAS”

 

José Gladstone Almeida Júnior[178]

 

Referência do artigo comentado: PESSOA JR., O. Leis de ponte na filosofia da mente e nas ciências físicas. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 405-420, 2023.

 

A reflexão a respeito do reducionismo ocupa lugar de destaque na Filosofia da Mente, por ser uma estratégia, construída a partir de diferentes concepções, para responder ao problema mente-corpo. Este é um claro indicativo da pertinência da discussão suscitada pelo artigo de Osvaldo Pessoa Junior (2023), mas esse texto é particularmente relevante para pesquisadores dessa temática, por não se limitar à exposição do estado da arte dessa discussão. O autor avança argumentos em favor de uma abordagem que busca conciliar o caráter essencialmente subjetivo da mente com uma explicação reducionista, ao traçar um paralelo com casos observados na Física. Seu objetivo consiste em demonstrar que o conhecimento completo sobre a atividade eletroquímica que ocorre no córtex cerebral não é suficiente para explicar o surgimento de estados mentais. Na verdade, tais estados se caracterizam por serem fenômenos sui generis que emergem da atividade cerebral, contudo, que não são idênticos a essa base física, de modo que sua explicação requer o exame de leis de ponte conectando o substrato físico aos estados emergentes. Pessoa (2023) denomina esse tipo de explicação “reducionismo indutivo”.

No que se segue, pretendo dar continuidade ao debate proposto pelo autor, com foco no que está em jogo na noção de “leis de ponte”, em como devemos compreendê-la e qual o seu alcance explicativo, no problema mente-corpo. Antes disso, porém, é importante discorrer sobre o emergentismo.

A teoria emergentista remonta à filosofia britânica desenvolvida no início do século XX e tem como cerne a relação de superveniência. Esta pretende retratar uma relação de dependência/determinação entre dois conjuntos de propriedades – o primeiro composto pelas propriedades de base e o segundo, pelas propriedades supervenientes –, em que o primeiro conjunto determina as propriedades supervenientes e estas, por sua vez, dependem das propriedades de base. As propriedades pertencentes ao segundo conjunto sobrevêm às propriedades pertencentes ao primeiro, de sorte que qualquer alteração no nível superveniente implica necessariamente uma alteração no nível básico. Em decorrência, é comum afirmar que, uma vez fixadas todas as propriedades e relações básicas, todas as propriedades e relações no nível superveniente estarão determinadas. É importante destacar, como o autor fez, no artigo, que a relação de superveniência é compatível tanto com a redutibilidade quanto com a irredutibilidade das propriedades supervenientes.

Em linhas gerais, o emergentismo consiste na ideia de que o processo evolutivo tornou certos sistemas físicos extremamente complexos, de tal forma que dão origem a propriedades genuinamente novas, as quais não são possuídas pelos componentes mais básicos do sistema (cf. KIM, 2010, p. 67). Em outras palavras, o emergentismo está alicerçado em duas teses fundamentais: (I) as propriedades emergentes são dependentes desse sistema físico, no entanto, (II) não são dedutíveis a partir dos componentes do sistema. Isso quer dizer que, por um lado, essa perspectiva assume um compromisso minimamente fisicista, ao pressupor a primazia do domínio físico e, por outro lado, reconhece a natureza subjetiva e irredutível do domínio mental. Embora sejam formuladas em diferentes versões, na literatura[179], estas são teses comuns a todas as propostas emergentistas.

Isto nos põe diante do problema da lacuna explicativa, discutido por Joseph Levine (1983). Por mais detalhado que seja, o conhecimento sobre os processos neurofisiológicos ocorridos no cérebro não é suficiente para explicarmos por que estão associados a certo estado mental. Apesar de sabermos haver uma conexão entre a ativação das fibras nervosas do tipo C e a experiência de dor, assim como a conexão existente entre a liberação do neurotransmissor adrenalina e o estado de euforia, não está clara a razão de esses processos cerebrais estarem conectados especificamente com tais estados mentais. Quer dizer, há uma expressiva diferença epistêmica entre o relato reducionista fundamentado apenas nas condições físicas de base e os estados mentais supervenientes. Nem mesmo o conhecimento completo sobre os processos neurofisiológicos, como no experimento de pensamento do demônio psicofisiológico (PESSOA, 2023), seria capaz de explicar sua correlação com determinados estados mentais subjetivos. Em decorrência dessa irredutibilidade, somos levados a afirmar a existência de uma lacuna explicativa entre o domínio físico e o mental.

Pessoa (2023) argumenta que essa limitação da abordagem reducionista seria superada com a incorporação de leis de ponte descobertas empiricamente pelas neurociências. Essas leis estabeleceriam a correlação físico-mental, ao vincular cada descrição dos processos cerebrais aos seus respectivos estados mentais associados, ou seja, indicariam os correlatos neurais da consciência, as propriedades físicas de base relacionadas aos estados conscientes supervenientes. Leis de ponte não são obtidas a partir apenas da análise das propriedades de base: são construtos moldados por experimentos, os quais, de modo semelhante ao que ocorre com frequência, na Física, possibilitariam “cálculos aproximados” e permitiriam a passagem entre os domínios, prevendo seu comportamento através de um procedimento com menor grau de acurácia.

Portanto, as leis de ponte atuam como premissas auxiliares que, ao afirmarem a ligação psicofísica constatada empiricamente, ensejariam derivar descrições do nível superveniente, em função das descrições do nível físico básico. O conhecimento sobre a atividade cerebral complementado por leis de ponte permitiria prever (inferir) o estado mental instanciado pelo indivíduo. Pessoa chama essa abordagem de reducionismo indutivo.

A pergunta que parece oportuna é a seguinte: quais são exatamente as informações veiculadas pelas leis de ponte? A depender da resposta dada a essa questão, podemos vislumbrar qual o alcance explicativo do reducionismo indutivo. Se compreendermos as leis de ponte como limitadas a ratificar uma relação de superveniência, então, a teoria supramencionada terá reduzida capacidade explicativa. A noção de superveniência desperta forte interesse filosófico, especialmente por se tratar de uma tentativa de atribuir uma relação de dependência à covariação estabelecida entre conjuntos de propriedades, embora não se comprometa com a redução de um ao outro. Contudo, a covariação de propriedades, por vezes, ocorre na ausência de qualquer tipo de relação de dependência. Nem todos os casos de covariação ou correlação entre propriedades de base e propriedades supervenientes implica um caso de dependência. Vejamos esta passagem de Jaegwon Kim (2000, p. 14):

Outro modo de pôr este ponto seria este: superveniência não é um tipo de relação de dependência – não é uma relação que pode ser colocada ao lado da dependência causal, dependência redutiva, dependência mereológica, dependência fundamentada na definibilidade ou implicação, e semelhantes. Ao invés, qualquer uma destas relações de dependência gera a covariação de propriedades requerida por meio da qual se qualifica como uma relação de superveniência.

 

A superveniência indica apenas a existência de um padrão de covariação entre determinados conjuntos de propriedades, sem, contudo, explicitar que tipo de dependência a fundamenta. Aliás, emergentistas como Samuel Alexander, por exemplo, defendiam que a superveniência psicofísica consistia em um fato bruto regido por “leis de emergência” primitivas. De acordo com Kim:

Portanto, as demandas do emergentismo tornam a relação de superveniência envolvida na emergência necessariamente inexplicável; não podemos saber qual tipo de dependência fundamenta e explica a relação de superveniência envolvida na emergência. (KIM, 2010, p. 79, 80)

 

Assim, cabe perguntar: o que informam as leis de ponte? Em que consiste a erudição nomológica que elas expressam? Se a ligação que instauram se limitar a indicar apenas uma correlação, o reducionismo indutivo ficará, pois, aquém de superar a lacuna explicativa. Nesse caso, a previsibilidade indutiva será possível em algumas situações, porém, possuiria pouco alcance explicativo, uma vez que a relação de superveniência permaneceria um fato bruto, o qual meramente supõe haver uma conexão nomológica ainda desconhecida. A explicação exige mais do que a simples previsibilidade.

Por outro lado, as leis de ponte possuiriam importante relevância explicativa, se esclarecessem o porquê dessa correlação, isto é, se esclarecessem qual o fundamento sólido subjacente à superveniência. É preciso que as leis de ponte explicitem qual a conexão nomológica entre as condições físicas de base e os estados mentais, qual mecanismo possibilita a determinados processos cerebrais darem origem a estados subjetivos, e não apenas assumir que há tal conexão, devido à constatação reiterada de sua coocorrência. Esse entendimento da erudição nomológica superaria a lacuna explicativa. Nas palavras de Kim: “Pois é a explicação das leis de ponte, uma explicação de por que existem apenas estas correlações mente-corpo, que está no cerne da demanda por uma explicação da mentalidade. ” (KIM, 2000, p. 96).

Em suma, o artigo de Osvaldo Pessoa Junior contribui de modo considerável ao debate, na medida em que esboça uma abordagem que visa a explicar a mente, sob um viés reducionista, o qual, ainda assim, preservaria seu caráter emergente. Não obstante, a noção de “leis de ponte”, central para o reducionismo indutivo, permanece ambígua. De acordo com a interpretação que assumirmos, o reducionismo poderá ter sua capacidade explicativa comprometida.

 

Referências

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KIM, Jaegwon. Emergence: core ideas and issues. In: KIM, Jaegwon. Essays in the metaphysics of mind. New York: Oxford University Press, 2010. p. 66-84.

LEVINE, Joseph. Materialism and qualia: the explanatory gap. Pacific philosophical quarterly, v. 64, p. 354-361, 1983.

PESSOA Jr., Osvaldo. Emergência e redução: uma introdução histórica e filosófica. Ciência & Cultura, v. 65, n. 4, p. 22-26, 2013.

PESSOA Jr., Osvaldo. Leis de ponte na filosofia da mente e nas ciências físicas. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 405-420, 2023.

 

Recebido: 12/05/2023

Aceito: 21/05/2023


 

A CULTURA PODE EVOLUIR?

 

Paulo C. Abrantes[180]

 

Resumo: O artigo parte de uma distinção entre tipos de descrição que podem ser propostos para uma dinâmica populacional, incluindo uma descrição “darwiniana”, em termos de variação, herança e aptidão diferencial, envolvendo as entidades que compõem a população relevante. Em seguida, propõe-se uma categorização de tipos de populações culturais e investigam-se as condições mais gerais que precisam ser satisfeitas, para que as dinâmicas dessas populações tenham um caráter evolutivo e darwiniano, com ênfase na população composta pelos próprios traços culturais. Destacam-se algumas abordagens da evolução na linhagem hominínea, como a teoria da dupla herança e a memética, que concedem à evolução cultural um lugar privilegiado nos seus cenários. Essas abordagens contribuem, desse modo, para o desenvolvimento de uma teoria geral da evolução cultural, e aqui se comparam, nesse tocante, com outras abordagens. Esses confrontos também permitem ilustrar analogias entre a evolução biológica e a evolução cultural, bem como falhas na analogia.

 

Palavras-chave: Evolução cultural. Populações darwinianas. Populações culturais. Seleção cultural. Teoria da dupla herança. Memética.

 

 

Introdução[181]

Este ano comemoramos o sesquicentenário da publicação de A Origem do Homem. Nada mais apropriado, portanto, do que começar este artigo mencionando que o próprio Darwin traçou, nessa obra, alguns paralelos entre a evolução biológica e a dinâmica cultural.[182] Até hoje perduram, contudo, controvérsias sobre a pertinência e a fertilidade desse paralelismo entre os mecanismos que atuam na evolução biológica e os implicados na “evolução” cultural (e colocamos esse termo entre aspas, para não cometer petição de princípio supondo, justamente, o que está em questão).

A pesquisa sobre a evolução cultural só foi retomada, de modo regular e mais difundido, a partir dos anos 1970, com a construção de modelos importados da genética de populações por Cavalli-Sforza, Feldman, Richerson e Boyd, entre outros (ABRANTES, no prelo).

Na primeira e na segunda partes do artigo, apresentamos vários tipos de explicações populacionais, incluindo uma explicação “darwiniana”, e indicamos como podem aplicar-se a populações culturais, de modo a deixar claro o sentido preciso que damos à expressão “evolução cultural”. Na terceira parte do artigo, a mais central e longa, colocamos o foco em uma dessas populações – a população composta pelos traços culturais dos agentes – e explicitamos as condições mínimas que devem ser satisfeitas para que essa população, em particular, seja tomada como “darwiniana”. Sublinhamos, também, as analogias e desanalogias com os parâmetros que descrevem, minimamente, a evolução das populações biológicas. Na quarta parte, discutimos se haveria algo como uma “seleção cultural”, por analogia com a seleção natural, e comparamos diferentes entendimentos daquela expressão, conforme a abordagem adotada para a evolução na linhagem hominínea e o papel que atribuem à cultura, nesse processo.

Nas seções finais do artigo, apontamos para outras causas que podem afetar a dinâmica cultural, como a deriva, e distinguimos fenômenos culturais micro e macroevolutivos. Por último, indicamos como se pode ampliar o foco inicial do artigo, para se investigar as populações culturais situadas no nível dos grupos culturais, e a forma como suas dinâmicas podem contribuir para a evolução cultural como um todo, isto é, envolvendo o conjunto das populações culturais. No fechamento do artigo, voltamos a circunscrever o presente estudo, indo além do que é focalizado na primeira seção, chamando a atenção para as diferenças entre o tópico das origens evolutivas da cultura, o da coevolução gene-cultura e o da evolução cultural, propriamente entendida, a despeito de serem intimamente relacionados.

 

I. Evolução e Cultura

A expressão “evolução cultural” é duplamente ambígua, pois incorpora a polissemia de cada um dos termos que a compõem. Neste artigo, empregamos o termo “evolução”, no sentido que adquiriu a partir de Darwin e que veio sofrendo modificações, dentro desse quadro teórico geral, como veremos. O naturalista inglês não conhecia os mecanismos que estão na base do processo de seleção natural – como os responsáveis pelo surgimento da variação e pela herança –, o que, posteriormente, facilitou e abriu espaço para formulações mais abstratas desse processo, as quais se mostraram convenientes para aplicações da sua teoria em âmbitos não biológicos, como o da cultura.

O termo “cultura” não é menos ambíguo, comportando dezenas de definições (ABRANTES, 2014a, 2020c). Para os nossos fins, neste artigo, não precisamos adotar uma definição particular. Se emprestarmos à biologia o conceito de “fenótipo” – como o conjunto de traços (ou características) apresentados pelo indivíduo (organismo ou agente) –, é legítimo incluir no fenótipo, quando pertinente, os traços culturais, ao lado de outros tipos de traços: anatômicos, fisiológicos etc. O que é distintivo de um traço cultural é o fato de que a aprendizagem social está envolvida na sua expressão fenotípica (ao longo da ontogenia do seu portador). Variantes culturais (VCs) incluem tipos tão diversos, como estados mentais, comportamentos, narrativas, religiões, línguas, formas de organização social, instituições, artefatos materiais etc. (GODFREY-SMITH, 2009, p.150-151; MAMELI; STERELNY, 2009; LEAL-TOLEDO, 2013, p. 192).[183]

Há diversas modalidades de aprendizagem social, o que permite afirmar que certos animais não humanos também possuem cultura (ver ABRANTES; DE ALMEIDA, 2018, p. 355; LEÓN et al., 2021). É importante frisar que a aprendizagem individual não é capaz, por si só, de explicar o comportamento humano e o dessas outras espécies, bem como sua variação em um mesmo grupo, ou entre grupos diferentes.

 

I.1 - Tipos de descrição de dinâmicas populacionais

É apropriado adotar uma abordagem populacional, quando temos um sistema composto por elementos suficientemente discretos e autônomos, os quais compartilham propriedades e alteram sua frequência (ou distribuição), ao longo do tempo, nesse sistema (que pode ser tratado, então, como uma população). A abordagem populacional aplica-se, de modo especial, a indivíduos biológicos que expressam certos traços fenotípicos, pois o que ocorre no ciclo de vida de um indivíduo tem efeitos na distribuição dos traços na população que ele integra. Por sua vez, essa distribuição afeta, potencialmente, o que se passa nos diversos ciclos de vida dos indivíduos que compõem a população, isto é, nos traços que eles expressam, no decorrer do seu desenvolvimento.

Uma descrição populacional é dita “evolutiva”, quando a distribuição, em um determinado momento, de certos traços (ou características) em uma população de indivíduos é função da sua distribuição, em um momento anterior.

Para ser considerada “darwiniano” requer-se que a dinâmica evolutiva de uma população possa ser descrita em termos de variação, herança e aptidão (fitness) diferencial. Esta seria uma “descrição mínima” de uma dinâmica populacional darwiniana (GODFREY-SMITH, 2009).

A síntese da genética com a versão da teoria originalmente proposta por Darwin – o chamado “neodarwinismo” –, possibilitou conhecer os mecanismos envolvidos na geração da variação, na herança das características dos organismos e na sua reprodução. A introdução de mais parâmetros, associados a esses mecanismos, enseja refinar e complementar aquela descrição mínima, de sorte a descrever-se a enorme diversidade de formas e ciclos de vida, bem como diferentes modalidades de dinâmicas evolutivas. Godfrey-Smith (2009) propõe, nessa linha, uma descrição multidimensional dos processos evolutivos, o que permite distinguir populações darwinianas “paradigmáticas” de “marginais”, abrindo espaço para um gradualismo na descrição desses processos em vários âmbitos, incluindo o cultural (cf. ABRANTES, 2011, 2013).

Uma característica da herança e da reprodução de organismos biológicos é que se baseiam em genes que se copiam com alta fidelidade. Estes podem, então, ser descritos, de modo mais abstrato, como “replicadores” (DAWKINS, 1989; HULL, 2001).

A partir dessas considerações, uma dinâmica populacional é passível de ser descrita, em ordem decrescente de generalidade, como populacional, evolutiva, darwiniana ou em termos de replicadores (GODFREY-SMITH, 2009, p. 148). Esses tipos de descrição estão representados na figura seguinte:

 

Figura 1: Tipos de descrição populacional[184]

 

 


replicadores

darwinianaevolutivapopulacional

 

 

 

 

 


Fonte: Adaptada de Godfrey-Smith (2009, p. 148, fig. 8.1)

 

A descrição de tipo evolutivo seria intermediária, em grau de generalidade, às descrições de tipo populacional e de tipo darwiniano. O tipo mais restrito de descrição é adequado, quando replicadores são identificados nos mecanismos subjacentes aos padrões detectados nas descrições mais gerais. Claidière et al. (2014, p.1) distinguem modelos populacionais evolutivos, selecionistas e “replicativos”. O que chamam de modelos selecionistas corresponde, fundamentalmente, à descrição darwiniana, conforme exposta acima.

 

I.2 - O caso de traços e populações culturais

Podemos aplicar esses tipos de descrição, mais ou menos gerais e abstratos, aos fenômenos culturais?

Independentemente da fertilidade em se ampliar o escopo dessas descrições – o que somente os resultados do trabalho científico permitem avaliar –, acreditamos que esse empreendimento rende, ao menos, frutos conceituais. Ele nos força a tornar explícitas as condições mais gerais que devem ser atendidas, para que um certo fenômeno seja descrito segundo as várias categorias acima apresentadas, sem necessariamente nos atermos às especificidades do caso biológico. Essa é uma tarefa filosófica, além de científica (ABRANTES, 2020a, 2020b). Em um segundo momento, especificam-se os parâmetros relevantes para se distinguir as dinâmicas de tipos particulares de fenômenos, como os culturais, e os mecanismos que respondem por eles.

Comecemos, então, por indagar as condições para que o pensamento populacional possa ser aplicado à cultura, comparando esse procedimento com o caso biológico. Os traços culturais são passíveis, efetivamente, de uma descrição em termos populacionais: alguns deles aumentam de frequência e outros diminuem, ao longo do tempo; há traços culturais que persistem em uma certa população e outros que desaparecem completamente, podendo-se estabelecer relações entre os estados sucessivos dessas dinâmicas. Os traços culturais que um indivíduo exibe, no decorrer do seu desenvolvimento (ciclo de vida), são condicionados pelos traços que se encontram distribuídos nas várias populações em que ele se insere e, por sua vez, afetam essa distribuição.

As mudanças nas crenças e rituais religiosos da população de escravos negros, após serem traficados para o Brasil, é um exemplo de fenômeno populacional – no caso, especialmente marcado por múltiplas formas de violência, indicando a importância, nesse fenômeno, dos fatores sociais e ambientais em um sentido amplo, além dos psicológicos.

A descrição populacional pressupõe, entretanto, que as VCs, além de terem propriedades em comum, sejam razoavelmente discretas, não por demais coesas ou integradas, o que tem sido alvo de questionamento, pois é adequada para alguns fenômenos culturais mas não para outros (GODFREY-SMITH, 2009, p. 148-149).

Pode-se distinguir diferentes tipos de populações culturais, e cabe investigar as descrições a que cada uma delas se presta. Este será o objeto das próximas seções.

 

II. Populações culturais

Há quatro tipos de população no domínio cultural, envolvendo agentes humanos e os grupos que integram. O quadro abaixo permite visualizar essas populações, as entidades que as compõem (se biológicas ou culturais) e os níveis em que se situam (se do indivíduo, ou do grupo).

 

Quadro 1 – Populações no domínio cultural[185]

          Nível

Entidade

Indivíduo

Grupo

Biológica

(reprodução biológica e herança cultural vertical)

PoBi - população composta por agentes com traços culturais

PoBg - população composta por grupos com traços culturais

Cultural

(reprodução não biológica e herança cultural horizontal e oblíqua)

PoCi - população composta pelos traços culturais dos agentes

PoCg - população composta pelos traços culturais dos grupos

Fonte: Inspirado em Godfrey-Smith (2009, p. 150).

 

O primeiro tipo de população cultural, PoBi, é composto por agentes com fenótipos culturais. Os traços culturais afetam a taxa de reprodução dos seus portadores e são passíveis de transmissão à sua descendência, durante o ciclo de vida desses agentes. Nessa população, os “filhos” culturais são, ao mesmo tempo, filhos biológicos.

Embora não estejamos, aqui, considerando as características fenotípicas propriamente biológicas (anatômicas, fisiológicas etc.), a população PoBi admite uma descrição biológico-evolutiva convencional, porque a reprodução que a caracteriza é biológica (já que os agentes em tela são entidades biológicas), embora a herança seja cultural (e, não, genética), o que tipifica essa população como propriamente cultural (GODFREY-SMITH, 2009, p. 150). Nessa população, a herança cultural dá-se pelo mesmo canal da herança genética, ou seja, por um canal vertical: os filhos herdam dos seus pais não só genes, mas também VCs. Invocando a expressão de Wilson e Sober usada, contudo, em contexto diferente, genes e VCs “[...] compartilham o mesmo destino.” (they share the same fate... WILSON; SOBER, 1994, p. 591-592).

Nesse tipo de população, exclui-se a possibilidade de que também haja reprodução cultural, o que será a característica distintiva da outra população, PoCi, e suscitará vários problemas, conforme veremos. Uma das limitações, portanto, de nos restringirmos a PoBi é que, ao excluir-se a reprodução cultural, essa população não admite um tratamento darwiniano dos canais horizontal e oblíquio (incluindo, também, indivíduos de diferentes gerações) de herança cultural, que funcionam em populações culturais reais, em especial nas humanas.

Temos, por conseguinte, que partir para um segundo tipo de população, composta agora por entidades culturais: os traços culturais dos agentes (PoCi). Cogita-se, em princípio, uma reprodução dos próprios traços culturais e não mais, simplesmente, a dos seus portadores. Mais adiante veremos, contudo, que essa reprodução tem um caráter formal, e não material.

A população PoCi é composta, portanto, pelos próprios traços culturais. A transmissão de traços culturais (a herança) pode ser, também, horizontal e oblíqua: os “pais” culturais não são, necessariamente, os pais biológicos.

Mesmo na população PoCi, os agentes portadores das VCs não podem, evidentemente, ser dispensados. A população de VCs não é “desencarnada” e tem que ser implementada em cérebros ou, talvez, em outros meios, como redes de computadores (BLACKMORE, 2000). Nesse tocante, a diferença fundamental entre as populações PoBi e PoCi é que, nesta última, se admite como portadores não só os pais biológicos, mas também os pais culturais.

As duas populações descritas até aqui se situam no nível do indivíduo. Se passarmos ao nível do grupo, temos duas populações congêneres: PoBg, uma população composta por grupos com traços culturais, e PoCg, uma população constituída pelos traços culturais desses grupos. Chamamos a atenção para o fato de que, agora, os traços culturais não são os traços dos indivíduos-membros desses grupos, mas os traços de cada grupo, tomados como um todo.

Abrantes (2011, 2013) explora a dinâmica evolutiva em PoBg para investigar as condições nas quais poderia ter ocorrido alguma transição em individualidade (MAYNARD SMITH; SZATHMÁRY, 1997), nessa população, em especial no âmbito de grupos de caçadores-coletores do Pleistoceno. A hipótese investigada é que esses grupos podem ter funcionado como indivíduos, no sentido propriamente biológico-evolutivo do termo.[186] O caráter biológico de PoBg não é evidente, todavia, pois envolve a difícil questão do que seria uma reprodução de grupos.[187]

Exemplos de traços em uma população do tipo PoCg seriam línguas, instituições, sistemas jurídicos, formas de governo etc. que caracterizem o grupo em tela.[188] Esses traços não têm maior ou menor representação dentro de um grupo, como ocorre com outras VCs, pois são, em princípio, compartilhados por todos os membros do grupo. O conjunto desses traços constitui algo como o “fenótipo” do grupo. Frequentemente, esses traços diferem de um grupo para outro e, nesse caso, estamos diante de uma (meta)população de fenótipos culturais de grupos. Essa população não deve ser confundida com a população de traços culturais dos membros de cada um desses grupos, o que define a população PoCi.

A população PoCi será especialmente enfocada no presente artigo. Em algumas oportunidades, faremos menções, pontuais, às populações no nível do grupo. A questão que nos interessa, sobretudo, é se PoCi evolui em um sentido genuinamente darwiniano, a saber: se há variação nas entidades que compõem a população, se há herança, e em que medida essas entidades apresentam diferenças em sua aptidão.

Veremos que esses parâmetros têm que ser definidos de diferentes modos, segundo a população considerada, o que talvez comprometa a construção de uma teoria darwiniana geral para a cultura, abrangendo as quatro populações.

Pode-se objetar que as várias populações representadas no Quadro 1 estão sendo demarcadas de forma artificial. Trata-se, sem dúvida, de uma idealização, mas esperamos mostrar que essa categorização tem valor heurístico, ao permitir analisar as especificidades de cada uma das populações culturais, bem como sua dinâmica evolutiva particular, em função de um conjunto de parâmetros (GODFREY-SMITH, 2009; ABRANTES, 2011). Além disso, condições de vários tipos, psicológicas, sociais, ambientais, entre outras, afetam de diferentes modos as dinâmicas dessas populações.

 Claro está que a dinâmica cultural “agregada”, digamos assim, será a resultante das dinâmicas evolutivas que ocorrem, simultaneamente, nessas diversas populações. Mas essas dinâmicas podem ser muito diferentes umas das outras, assim como a contribuição de cada uma delas para o que ocorre no agregado cultural. É provável, também, que haja uma interação complexa entre as dinâmicas dessas quatro populações e, nesse caso, não seria correto adicionar, simplesmente, os efeitos desses processos como se fossem independentes.

 

III. A população composta pelos traços culturais dos agentes é darwiniana?

Para responder a essa pergunta, temos que ter em vista cada um dos subprocessos envolvidos na evolução por seleção natural, de maneira a avaliar em que medida PoCi evolui de modo análogo às populações de seres vivos.

Não há espaço, neste artigo, para nos determos nas condições, sejam elas psicológicas, sejam sociais, para que emerja uma dinâmica evolutiva relativamente autônoma na população PoCi (GODFREY-SMITH, 2009, p. 164). Vamos nos restringir à questão de se essa dinâmica é passível de ser descrita e, eventualmente, explicada em termos darwinianos.

Nesta altura, mantém-se em aberto, portanto, a questão de se uma evolução cultural (EC), caso ocorra, apresenta tantas desanalogias com a evolução biológica (EB) que nos leve a questionar a pertinência de se falar em uma EC, e a fertilidade em se aplicar, no domínio da cultura, os instrumentos conceituais que a teoria darwiniana, em alguma das suas versões, nos oferece.

 

III.1 - Variação

Há duas questões, bastante diferentes, as quais podem ser levantadas com respeito à variação cultural, por analogia com a variação biológica:

i) Como é gerada a variação cultural?

ii) Como a variação cultural é preservada, ao longo do tempo?

A segunda questão será abordada mais adiante, quando tratarmos das modalidades de herança cultural em PoCi.

Com respeito à primeira questão, a da geração de traços ou VCs, há uma desanalogia patente com a EB: a geração de VCs não é, em geral, “cega” (isto é, desacoplada das condições ambientais), como no caso da variação genética, mas sim “guiada” ou “direcionada”.[189]

Entenda-se por “variação guiada” que um agente é capaz de gerar intencionalmente variações (culturais, no caso; por exemplo, de gerar novos comportamentos), para responder a um problema colocado pelo ambiente físico e/ou social do qual ele obtém informação. A depender do ambiente, as variações culturais guiadas tendem a aumentar, com maior probabilidade, a aptidão dos agentes, quando comparada a uma geração cega de VCs.[190] Claidière et al. (2014, p. 4) exemplificam com os tipos de anzóis usados pelos pescadores, que estes modificam em função do tipo de peixe existente na região onde vivem.

A variação cultural guiada pressupõe capacidades de aprendizagem individual e social (além de intencionalidade, racionalidade etc., capacidades que outras espécies animais não possuem, ou as têm em menor grau). Um agente pode gerar uma nova VC, por tê-la aprendido individualmente, mas também é dita “guiada” alguma modificação que o agente introduza em uma VC que tenha assimilado de outros agentes. Caso tenha sucesso em transmitir essas VCs, em ambos os casos, a composição cultural da população será alterada.[191]

A partir nessa desanalogia com a EB, é comum afirmar-se que a EC é “lamarckiana” (ou “instrucionista”), em vez de “darwiniana” (ou “selecionista”), embora o uso desses qualificativos possa confundir, mais do que esclarecer (TOSCANO; ABRANTES, 2011; TOSCANO, 2009). Em uma evolução lamarckiana, a variação gerada não é cega mas, sim, guiada pelo ambiente, o que, em princípio, aumenta a probabilidade de que seja adaptativa neste ambiente. Na EC ocorre, portanto, algo desse gênero, devido às capacidades cognitivas dos agentes que integram a população.[192]

 

III.2 - Herança

A herança é, indiscutivelmente, um dos requisitos para que tenhamos uma evolução de tipo darwiniano. A questão que se coloca é se existem diferentes sistemas de herança e se podem, ao mesmo título, ser inscritos nesse tipo de dinâmica populacional. Há toda uma literatura dedicada à existência de sistemas de herança (LAMM, 2014; JABLONKA; LAMB, 2006) e sobre como interagem, especialmente no caso da linhagem hominínea. Nesta seção, estamos interessados em saber se existe um sistema de herança cultural, e se ele é darwiniano.

Diferentemente de PoBi, na população PoCi, a transmissão cultural pode ser horizontal e oblíqua. No caso da população PoBi o indivíduo herda os traços culturais somente dos seus pais biológicos; em PoCi, pode também herdar de qualquer outro indivíduo na população, que seriam os seus “pais culturais”.[193]

Uma outra desanalogia entre a EC e a EB é que a herança cultural não tem a mesma fidelidade da herança genética. Genes são ditos “replicadores” por terem a propriedade de se copiarem muito fielmente (embora erros de cópia também ocorram, o que é, aliás, necessário para que surjam variações e se dê uma evolução por seleção natural). Essa desanalogia pode, efetivamente, comprometer a exportação, para o domínio da cultura, dos instrumentos conceituais disponíveis na teoria da evolução biológica.

A evolução de tipo darwiniana não requer, contudo, replicação com alta fidelidade. Replicadores constituem o mecanismo reprodutivo que está na base de um sistema particular de herança. Um processo evolutivo é passível de acontecer, mesmo se o sistema de herança não é genético (BOYD; RICHERSON, 2005; GODFREY-SMITH, 2012, p. 2161; GODFREY-SMITH, 2009, p. 155; TURCHIN, 2007; 2013). Basta que haja “herdabilidade”, isto é, uma estabilidade nos padrões de similaridade fenotípica entre as gerações que se sucedem.

A memética é uma abordagem da evolução humana que pressupõe que as VCs sejam replicadores, à imagem dos genes. Essa abordagem alinha-se, portanto, com uma descrição mais circunscrita de um fenômeno cultural-populacional, dentre as várias que distinguimos anteriormente (ver a figura “Tipos de descrição populacional”).

Hull (2001) acreditava que a existência de replicadores é necessária para que se tenha uma evolução acumulativa, mas essa é uma outra questão. Não há espaço, neste artigo, para tratarmos da acumulação cultural e, tampouco, do surgimento de novidades culturais em consequência, eventualmente, de uma evolução por seleção natural (SN) ou por seleção cultural (SC).[194]

Uma distinção conceitual que fazemos, a bem da clareza, é entre “reprodução cultural” e “herança cultural”: a herança é a correlação entre os traços culturais de pais e de filhos (quer pais biológicos, em PoBi, quer pais culturais, em PoCi), devido à reprodução de VCs. Essa reprodução pode dar-se por imitação ou por outros mecanismos de aprendizagem social. Em outras palavras, a reprodução refere-se ao mecanismo causal que promove a herança, com seus efeitos fenotípicos.

A reprodução biológica pode ser assexuada ou sexuada, e a evolução por SN é passível de ocorrer em ambos os casos. A “reprodução cultural” pode, analogamente, ser tanto “assexuada” quanto “sexuada”: neste último caso, o agente combina VCs que assimila de diferentes pais culturais.

 

III.2.1 - Imitação na evolução cultural humana e vieses psicológicos

A imitação (enquanto modalidade de aprendizagem social) é o mecanismo psicológico por excelência que subjaz à herança ou transmissão cultural no caso humano e, talvez, em menor grau, em algumas outras espécies biológicas, especialmente entre macacos e símios.

Como frisamos anteriormente, a herança não precisa ter alta fidelidade, como no caso da replicação genética, para que uma população seja considerada darwiniana. Mutatis mutandis, a reprodução cultural por imitação não necessita garantir alta fidelidade para termos uma população cultural darwiniana. Além disso, conforme já ressaltamos, uma VC pode ser imitada de um pai biológico ou de um pai cultural com o qual não se tem qualquer relação de parentesco (GODFREY-SMITH, 2012, p. 2164). 

Por outro lado, um agente não assimila indiscriminadamente as VCs que se apresentam a ele. Segundo a teoria da dupla herança, a qual apresentaremos abaixo, pelo menos três tipos de vieses afetam a transmissão cultural: i) o viés de conteúdo (ou direto), (ii) vieses dependentes da frequência e (iii) o viés de seguir modelos, isto é, de assimilar preferencialmente traços culturais de pessoas de prestígio ou que são vistas pelo agente como tendo tido sucesso e que são, consequentemente, tomadas como modelos pelo agente.

(i) O viés de conteúdo atua no sentido de fazer com que o agente assimile preferencialmente uma VC, dentre as alternativas disponíveis, em função do seu conteúdo. Este pode, por exemplo, facilitar ou dificultar a memorização da VC pelo agente;

 (ii) os vieses dependentes da frequência estão envolvidos na adoção de uma VC com base em quão disseminada está na população. Quando, por exemplo, o agente tem uma tendência a adotar as características culturais mais comumente exibidas em seu grupo, temos um viés dito “conformista”;

(iii) o viés de seguir modelos atua quando são copiadas, preferencialmente, as VCs adotadas por pessoas com alguma posição destacada na população; ou, ainda, aquelas variantes associadas a pessoas mais assemelhadas àquela que copia a VC.

Esses vieses psicológicos podem ser produtos da própria EB, da EC (BIRCH; HEYES, 2021), ou resultarem do desenvolvimento do agente em um determinado ambiente social e cultural – dos seus hábitos, mais ou menos automatizados ou conscientes.[195]

 

III.2.2 - Memética e teoria da dupla herança

Acreditamos ser esclarecedor ampliar o foco desta discussão sobre herança cultural e comparar duas abordagens da evolução na linhagem hominínea: a memética e a teoria da dupla herança.[196]

A memética adota o “ponto de vista do meme”, por analogia com “o ponto de vista do gene”. Os memes seriam discretos, replicar-se-iam com bastante fidelidade, e sua frequência na população dependeria, exclusivamente, das propriedades que lhes são inerentes (como o seu conteúdo). Isso pode ocorrer em detrimento da aptidão biológica dos portadores: os cérebros destes funcionariam como meros veículos para a replicação dos memes, como se fossem “robôs desajeitados” (lumbering robots) culturais, parafraseando a famosa expressão de Dawkins (1989), que assim qualifica os organismos portadores de “genes egoístas”. Além de ter alta fidelidade, um sistema de herança baseado em replicadores também pressupõe que estes sejam como partículas bem definidas – propriedade que as VCs dificilmente possuem, ou a têm em menor grau –, e que a reprodução seja assexuada, no sentido de que cada VC do agente é herdada de um único “pai” cultural.

Além do conceito de replicação de memes, dois outros são fundamentais para a memética: o de aptidão de memes e o de competição entre memes. Há problemas, contudo, em defini-los, de modo a se aplicarem a VCs, como apontamos neste artigo, em várias oportunidades.

Segundo a teoria da dupla herança, proposta por Richerson e Boyd, a cultura tornou-se um novo sistema de herança a partir de um certo ponto da linhagem hominínea, passando a funcionar paralelamente à herança genética e interagindo com esta última, com enormes consequências para a espécie humana, de forma particular (ABRANTES; DE ALMEIDA, 2018). Nesse sentido, essa teoria pode ser classificada como um tipo de teoria de coevolução gene-cultura. O que nos interessa, neste artigo, é, de modo mais circunscrito, o conjunto de hipóteses e modelos relativos à evolução cultural, estritamente falando, e que estão embutidos na teoria mais ampla (voltaremos a enfatizar isso, na Conclusão deste artigo).[197]

No que concerne à evolução cultural, a teoria da dupla herança explica, em contraste com a memética, a maior ou menor transmissibilidade de uma VC em função da psicologia dos agentes culturais, quando estes aprendem socialmente e, depois, transmitem uma VC, eventualmente a modificando (o que seria um caso de variação guiada, como vimos).

Um último ponto a ser destacado nesta comparação é que a memética coloca ênfase no conteúdo de um meme, para explicar a sua maior ou menor disseminação em PoCi. A teoria da dupla herança, por seu lado, mostra que, além do viés de conteúdo, outros vieses psicológicos dos agentes culturais, referidos na seção anterior, são relevantes para explicar a dinâmica evolutiva dessa população, e não somente as propriedades supostamente inerentes às VCs. Os articuladores da teoria da dupla herança não aceitam que a evolução em PoCi possa ser abordada de forma “desencarnada”, sem levar em conta a psicologia dos agentes culturais, além das condições sociais e ecológicas em que vivem.

 

III.2.3 - Herdabilidade

Recapitulemos que a SN só atua, mudando a frequência dos traços fenotípicos na população, se a variação se mantiver estável por muitas gerações, ou seja, se houver herdabilidade.[198] A visão mais comum é que somente a herança genética vertical é capaz de garantir a herdabilidade. Entretanto, mesmo se a herança não for genética, pode haver herdabilidade (MAMELI, 2004, p. 36). Para que se possa aplicar o conceito a modalidades não genéticas de herança, como a herança cultural, esse filósofo destaca a necessidade de respondermos às seguintes questões:

(i) quais são os processos responsáveis pela geração de variação fenotípica em aptidão?;

(ii) quão estável intergeracionalmente é essa variação?[199]

Lembramos que a questão (i) foi levantada na subseção sobre “Variação” em PoCi, nos seguintes termos: “Como é gerada a variação cultural?”

A questão (ii), relativa à herdabilidade cultural, é a que importa abordar agora, pois da resposta a ela depende a possibilidade de uma seleção atuando no domínio da cultura.

A condição de herdabilidade cultural não parece, contudo, ser satisfeita em PoCi, pelo fato de aí ocorrer herança cultural horizontal, o que embaralha, por assim dizer, as linhagens de VCs, incluindo as linhagens de artefatos (GODFREY-SMITH, 2009, p. 155). Ter muitos pais culturais pode comprometer a herdabilidade. Como consequência, se a seleção atua sobre a variação cultural em PoCi, isso seria, em princípio, com pouca intensidade.[200] Além da questão da herança horizontal, Godfrey-Smith argumenta que o conformismo e a “inteligência” também destroem as linhagens culturais. A variação guiada depende de “inteligência”, o que compromete a simples imitação e, portanto, a herança fidedigna entre pais culturais e sua descendência.[201] No que diz respeito ao conformismo, os pais culturais constituiriam, no caso, a maioria da população, e, se esse viés predominar, a variação se estiola. Se a variação guiada, o conformismo e a herança horizontal predominarem em PoCi, as diferentes linhagens de traços culturais tenderão a desaparecer, mesmo que inicialmente se formem (GODFREY-SMITH, 2012, p. 2165). Nessas condições, não haveria base estável de variação sobre a qual a seleção possa atuar.[202]

Portanto, saltam aos olhos, também na dimensão “herdabilidade”, as desanalogias entre a EC e a EB. Passemos à análise do terceiro pilar de uma teoria darwiniana da evolução, segundo a descrição mínima: a aptidão diferencial.

 

III.3 - Aptidão

Embora o conceito de aptidão seja um dos mais centrais, na teoria da evolução biológica – por estar intimamente relacionado com o conceito de seleção natural –, tem sido alvo de muitas controvérsias e admitido várias definições. As discussões tornam-se ainda mais acirradas, quando o conceito de aptidão é mobilizado na construção de uma teoria da evolução cultural. Apontaremos somente alguns dos problemas que são gerados nessa frente, sem a pretensão de os explicitarmos todos, ou de resolvê-los conclusivamente.

Uma definição de aptidão biológica implica, tipicamente, o conceito de reprodução: diferenças em aptidão são diferenças na taxa de reprodução das entidades (e.g. organismos), ou seja, no número de descendentes que geram. Outra maneira de colocar isso seria dizer que a aptidão biológica é um indicador do sucesso de um ser vivo em se reproduzir. A aptidão cultural seria, por analogia, a “taxa de reprodução” de uma VC.[203]

Henrich et al. (2008) argumentam, entretanto, que o simples sucesso na difusão de uma VC não é uma medida adequada de aptidão. É necessário buscar as causas do sucesso, sob pena de circularidade e de o conceito tornar-se inócuo, sem poder explicativo, no corpo da teoria. A previsão das diferenças no sucesso em difundirem-se, sejam genes, sejam memes, deve ser feita com base em fatores causais investigados de modo independente. No caso da aptidão cultural, há múltiplos fatores que influenciam o aumento na frequência de uma VC na população pertinente como, por exemplo, os vieses psicológicos dos agentes-portadores ou, então, fatores sociais, e ecológicos de forma geral. Henrich et al. rejeitam a ideia de que esse aumento seja pura consequência de alguma propriedade inerente à VC, como o seu conteúdo, segundo pretendem os memeticistas. Vimos que, de acordo com o ponto de vista adotado pela memética, o portador seria, simplesmente, um meio do qual se servem os memes para se reproduzir.

Há outros problemas em se definir aptidão cultural em termos do número de cópias que uma VC “gera”. Bastaria contabilizar o número de cópias – por exemplo, o número de cópias de uma fotografia que tenhamos gravado em um disco rígido? Ramsey e De Block (2017) argumentam que isso seria mero “crescimento” (growth) e deve ser distinguido de uma genuína reprodução cultural, como uma medida da probabilidade de uma VC, como a fotografia, no exemplo, ser transmitida a um outro agente e o afetar de algum modo. Eles propõem, ademais, que se contabilize somente uma única VC por agente influenciado por ela, para efeito de medir a aptidão cultural.

Ramsey e De Block diferenciam conceitos de aptidão baseados no agente-portador do meme e aqueles baseados na VC, ou no meme. Eles defendem a primeira opção como a mais adequada, na grande maioria dos casos, para efeito de se construir uma teoria da EC. Mas admitem que conceitos de aptidão baseados no meme, ou baseados no grupo, possam ser úteis.

Um outro aspecto interessante da posição defendida por esses autores é que associam esses vários conceitos de aptidão a níveis de seleção. Para cada nível de seleção biológica (do gene, do organismo, do grupo etc.) se aplicaria uma noção de aptidão. No caso de uma SC, os níveis seriam os do meme, do seu agente portador e do grupo cultural, os quais teriam seus correspondentes conceitos de aptidão.

Se partirmos da distinção que fizemos entre diferentes populações culturais e aplicarmos o que propõem Ramsey e De Block, a aptidão cultural em PoBi deveria tomar como base o sucesso do pai biológico em transmitir, para a sua descendência, uma VC – na medida em que esta afete, de alguma maneira, as representações e o comportamento dos seus filhos/filhas e, como consequência disso, a aptidão biológica destas últimas.

Mutatis mutandis, no caso de PoCi, a aptidão cultural seria função do sucesso do pai cultural, que é o agente-portador de uma VC, em ser imitado por um outro agente – na medida em que a VC assimilada afete as representações e o comportamento deste último, com impacto na sua aptidão biológica. Ainda com respeito à população PoCi, é concebível uma aptidão da própria VC, conforme pretendem os memeticistas, independentemente de como afete a aptidão biológica dos agentes-portadores dessa VC? Essa noção de aptidão cultural enfrenta, contudo, os problemas levantados acima, mas não deve ser descartada de antemão.

Como no caso dos parâmetros investigados anteriormente, a aptidão tem que ser definida de distintas maneiras, conforme a população cultural em foco e o seu nível, na categorização que adotamos (ver o quadro do início deste artigo). No que diz respeito às populações no nível do grupo, a proposta de Ramsey e De Block se traduziria, em nosso entendimento, pelo sucesso de um grupo cultural – que é o portador de um conjunto de VCs –, de transmitir um subconjunto destas a um outro grupo cultural, afetando a distribuição das VCs que caracterizam esse outro grupo, na medida em que elas impactem a sobrevivência e a capacidade de reprodução desse grupo.

O caso de PoBg é especialmente problemático, pois a noção de reprodução não se aplica de forma óbvia a grupos (ABRANTES, 2013). No caso de PoCg, os problemas que levantamos para se usar a noção de aptidão cultural em PoCi se agravam ainda mais. Voltaremos em outra seção aos casos dessas populações no nível do grupo.

Um outro aspecto relevante para uma análise do conceito de aptidão é que a reprodução biológica pode ter um caráter tanto material quanto formal. Mesmo sendo excepcionais, há casos na biologia (como os retrovírus) que servem de modelo para a idéia de uma reprodução formal, na qual não há transmissão de matéria, além de o ser “vivo” não ter autonomia para fazê-lo, porque depende da maquinaria de uma outra entidade (e.g. a célula do organismo infectado). Se visamos PoCi, a reprodução de VCs é claramente do tipo formal, pois não se dá de modo autônomo, mas depende da “maquinaria” cognitiva dos agentes biopsicológicos envolvidos no processo (GODFREY-SMITH, 2009, p. 133-137; p. 152-155). Em outras palavras, o portador de um traço cultural dispõe de, pelo menos, parte do papel causal envolvido na reprodução cultural. Não obstante, o simples fato de a reprodução ser formal não retiraria o caráter darwiniano da evolução em PoCi, ao menos no que tange à aptidão (GODFREY-SMITH, 2009, p. 79 et seq.).

Todavia, Sperber et al. rejeitam, pura e simplesmente, a noção de reprodução cultural (CLAIDIÈRE et al., 2014). Para eles, não ocorre propriamente reprodução de VCs (por exemplo, quando um agente imita o outro), mas sim a reconstrução dessas variantes pelos agentes que as adotam.

Heinz e Claidière (2011) distinguem a imitação de outros mecanismos de “re-produção” ou “recorrência”. Em biologia, o mecanismo de reprodução favorece a fidelidade, ou a preservação (no caso, do material genético), e, em cultura, há vários mecanismos, tanto os que tendem a preservar, mais ou menos intactas, as VCs, quanto os que são “construtivos”. Trata-se de uma crítica à memética, na medida em que a reprodução de VCs depende do agente que as reconstrói, com os seus vieses, capacidades cognitivas, crenças, interesses etc. Os memes não se transmitem autonomamente, e os seus portadores não são meros lumbering robots culturais.

Voltando à questão inicial: a população PoCi é, afinal, darwiniana? Daríamos uma resposta afirmativa a essa questão, mas, para tanto, teríamos que aceitar uma gradação, proposta por Godfrey-Smith (2009), a qual leva de populações darwinianas paradigmáticas a marginais. Ao nosso ver, a população PoCi seria darwiniana somente a título marginal, já que os parâmetros “variação”, “herança” e “aptidão” têm especificidades, ou desanalogias, se preferirem, se comparados aos que se aplicam a populações darwinianas paradigmáticas, em especial a de muitas espécies de seres vivos.[204] Além disso, a reprodução de VCs é, como vimos, de tipo formal, embora também existam casos desse tipo de reprodução no domínio biológico, conforme já mencionado. No caso das populações culturais no nível do grupo, essas desanalogias são ainda mais salientes.

O caráter darwiniano de uma dinâmica populacional, por outro lado, é passível de sofrer alterações substanciais, ao longo do tempo. Na linhagem hominínea, por exemplo, as populações culturais e, em especial, PoCi, podem ter-se aproximado e, eventualmente, distanciado do modelo de uma população darwiniana paradigmática, em função de múltiplos fatores: da evolução da psicologia dos agentes culturais hominíneos, bem como das circunstâncias sociais e ecológicas em que viviam (GODFREY-SMITH, 2009, p. 164). Em períodos mais recentes da evolução do Homo sapiens, as diversas formas de organização social e sua base institucional condicionaram a dinâmica cultural e seu caráter, mesmo que mantenhamos como referência um quadro evolutivo-darwiniano (DE ALMEIDA, 2020).

 

III.4 - Competição

O termo “competição” aplica-se, normalmente, a uma situação em que há superprodução de descendência combinada com escassez de recursos. Ao menos no caso biológico, muitos consideram que a competição é uma condição necessária, para além de uma descrição mínima, a fim de que tenhamos evolução por SN. Em algumas formulações, a competição substitui, inclusive, a aptidão diferencial como condição para que se dê aquele processo (MESOUDI, 2011, p. 26; cf. GODFREY-SMITH, 2009).

Há que se distinguir, contudo, competição direta e indireta. A situação extrema de uma competição direta seria a luta física entre dois animais. Entretanto, dois indivíduos podem ter diferenças em suas aptidões, em um certo ambiente, sem que haja interação entre eles (por exemplo, sem terem um enfrentamento belicoso). A “luta pela existência” (struggle for life) pode dar-se na simples lida com as condições ambientais em um sentido restrito – por exemplo, se os recursos alimentares forem escassos e/ou o clima muito inóspito. Um indivíduo pode sair-se melhor do que o outro e ter maior aptidão, mesmo no quadro de uma “competição indireta” (e.g. MESOUDI, 2011, p. 29-30). Darwin também admitiu essa possibilidade (ABRANTES; BERNAL, 2020).

Godfrey-Smith (2009, p. 51) faz uma distinção, com mais nuances, entre um cenário no qual o aumento na aptidão de um indivíduo acarreta, como consequência, o decréscimo na aptidão de um outro – dadas as interações que estabelecem entre si e/ou a disponibilidade de recursos –, e um outro cenário no qual isso não acontece. Essa distinção não corresponde exatamente, ao nosso ver, à distinção entre competição direta e indireta que fazem autores como Mesoudi, entre outros (ver ABRANTES; BERNAL, 2020, p. 68, nota 17).

Por analogia com o caso biológico, na população PoCi, é concebível uma “competição” entre VCs em consequência das limitações cognitivas do agente que é o portador dessas variantes, no tocante à memória e à atenção, assim como ao tempo despendido para assimilá-las, entre outros fatores.[205] Richerson e Boyd (2005, p. 69 et seq.) distinguem dois tipos de competição entre VCs: pela atenção do agente e pelo controle do comportamento. Os recursos cognitivos do agente condicionariam a medida na qual uma dada VC afeta o seu comportamento. Esses recursos escassos (cognitivos, no caso) favoreceriam o aumento ou a diminuição da frequência de uma dada VC na população PoCi, em competição com outras variantes.[206]

Darwin empregou a expressão struggle for life, metaforicamente, para referir-se a uma competição entre palavras e elementos gramaticais em uma linguagem. Ele invocou, nesse contexto, as preferências dos falantes e suas limitações de memória:                                                                                                             

We see variability in every tongue, and new words are continually cropping up; but as there is a limit to the powers of the memory, single words, like whole languages, gradually become extinct. As Max Müller has well remarked:- “A struggle for life is constantly going on amongst the words and grammatical forms in each language. The better, the shorter, the easier forms are constantly gaining the upper hand, and they owe their success to their own inherent virtue.” To these more important causes of the survival of certain words, mere novelty and fashion may be added; for there is in the mind of man a strong love for slight changes in all things. The survival or preservation of certain favoured words in the struggle for existence is natural selection. (DARWIN, 2004, p. 113).

 

Mesoudi (2011, p. 31) menciona a competição que teria ocorrido entre tipos de ferramentas líticas, na pré-história, situando-a no contexto das limitações cognitivas dos seus usuários hominíneos.

Não acreditamos que faça muito sentido falar de uma competição direta entre memes, se a entendemos literalmente por referência à competição que se dá entre os seres vivos, mas tampouco parece aplicar-se à cultura a ideia de uma competição indireta. Uma “competição” entre VCs deve ser concebida como um epifenômeno de processos cognitivos complexos que ocorrem nos agentes seus portadores e no contexto das interações sociais que esses agentes estabelecem entre si.

 

IV. Seleção natural e seleção cultural

Haveria uma causa específica atuando no domínio cultural que poderíamos denominar “seleção cultural” (SC), por analogia com a SN? Não excluímos a possibilidade de que atuem duas modalidades de seleção no domínio cultural: uma SN no sentido biológico, clássico, do termo, e uma SC a ser definida.

Nessa discussão, também nos parece frutífero distinguir entre as várias populações culturais. O que está em foco, nesta seção, são as populações no nível do indivíduo e, especialmente, PoCi. A SN aplica-se diretamente a PoBi, pois, nessa população, a reprodução é biológica, a aptidão é igualmente biológica, embora a herança relevante seja cultural. A SN não atua sobre as próprias VCs, mas sobre os agentes-portadores dessas variantes.[207]

É uma questão altamente controversa se haveria uma modalidade de seleção que atuasse diretamente sobre as VCs (ao menos em PoCi) e que não se confundisse com a SN. A teoria da dupla herança diverge, nesse tocante, da sociobiologia e da psicologia evolucionista. Estas últimas abordagens assumem que a SN atua sobre a psicologia dos indivíduos, produzindo os vieses que condicionam a transmissão cultural (e que, como vimos, condicionam a aprendizagem social).[208] Por esse intermédio, a SN atuaria sobre a cultura, mas só indiretamente. Também nesse aspecto a teoria da dupla herança difere dessas abordagens.

Cavalli-Sforza, Feldman e Durham entendem, por sua vez, a transmissão enviesada como um tipo de “seleção cultural”. Richerson e Boyd rejeitam, contudo, essa expressão, por escamotear, segundo eles, a diferença entre a influência, inegável, dos vieses na transmissão cultural e o papel de um tipo sui generis de seleção que atuaria no domínio da cultura (cf. BARAVALLE, 2021, p. 444). Os proponentes da teoria da dupla herança defendem que há fatores externos aos agentes-portadores das VCs, os quais afetam a SC, para além do seu processamento cognitivo.[209]

Qual seria esse novo conceito de SC? Para a teoria da dupla herança, se o sucesso de um agente em ser um modelo (um “pai cultural”) para outros agentes estiver correlacionado com a adoção, por esse “pai”, de uma determinada VC, a participação relativa desta última no pool cultural tende a aumentar (RICHERSON; BOYD, 2005, p.79, p. 400; ABRANTES; DE ALMEIDA, 2018). Um exemplo do tipo de VC que Richerson e Boyd têm em vista seria: para se obter um doutorado e seguir uma carreira acadêmica de prestígio, não se deve ter filhos muito cedo. Se os que adotam essa VC atingem, com maior probabilidade, um doutorado e se tornam professores, passam a ser, consequentemente, modelos para os seus estudantes, aumentando a difusão dessa VC em detrimento das “competidoras” (RICHERSON; BOYD, 2005, p. 152-154).

A aproximação com algumas das teses da memética nos parece, aqui, sugestiva, pois a VC afeta, no caso, o comportamento do agente (o seu engajamento profissional e suas relações sociais, no exemplo dado), de sorte a torná-lo um “pai cultural” eficiente, ou seja, capaz de transmitir essa variante para um grande número de outros agentes (cf. BIRCH; HEYES, 2021).

Nos casos em que a variação guiada e a transmissão enviesada, as quais dependem de processos psicológicos, sejam suficientemente fortes, os efeitos dessa SC em PoCi poderiam ser desconsiderados. Por isso, Claidière et al. (2014, p. 2) acreditam ser dispensável se falar de seleção, no caso da cultura, argumentando que os vieses na transmissão cultural bastam para explicar por que determinadas VCs aumentam sua frequência relativa na população. Isso seria resultado do que chamam de “atração cultural”. Os “atratores” (atractors) são tipos culturais para os quais convergem os indivíduos em função dos seus vieses psicológicos e de fatores ambientais, como os demográficos. A SC seria um caso especial de “atração”.[210] Mesoudi (2021) defende que a seleção e a atração são, ambos, fatores relevantes para explicar a EC, empregando modelos matemáticos que colocam isso em evidência. Dependendo do tipo de traço cultural e das condições mais gerais nas quais se tem a EC, a seleção ou a atração podem ter mais peso relativo.

Os que advogam a teoria da dupla herança argumentam, entretanto, que vieses e uma seleção agindo sobre as VCs são, ambos, fatores relevantes e irredutíveis. Pressupõem, para tanto, que a dinâmica cultural teria uma autonomia relativa e não estaria atrelada aos genes, como acreditam os sociobiólogos (RICHERSON; BOYD, 2005, p. 18-9; RICHERSON; BOYD; HENRICH, 2003).

Os memeticistas descreveriam de outra maneira a proposta de SC, como a entendem Richerson e Boyd: o meme tem uma capacidade inerente de replicação e o faz, muitas vezes, em detrimento da aptidão biológica dos seus portadores. Os memes “pegam carona”, por assim dizer, nos agentes, e se servem desses robôs desajeitados para se replicarem.[211]

Para a memética, a aptidão de memes é um conceito central, conforme já destacamos, ao lado dos conceitos de replicação de memes e de competição entre memes. Os memes estariam, portanto, sujeitos a um crivo análogo à SN, mas que seria distinto do crivo ao qual estão submetidos os seus agentes-portadores. Um descompasso entre a aptidão de uma VC e a do seu portador estaria, por conseguinte, na origem de mal-adaptações biológicas. A despeito das suas divergências com os memeticistas, Richerson e Boyd concordam com esse argumento (2005, p. 154-156). Indo nessa direção, Mameli e Sterelny (2009) consideram a memética, fundamentalmente, como uma explicação para mal-adaptações (cf. LEÓN et al., 2021, p. 30-31).

Viemos usando a expressão “mal-adaptação biológica”, no contexto cultural, para nos referir a VCs que reduzem a aptidão biológica dos seus agentes-portadores. Existiriam, contudo, mal-adaptações propriamente culturais, no sentido de VCs (por exemplo, artefatos) que não se mostram funcionais em um determinado ambiente (incluindo ambientes culturais)? O teclado QWERTY exemplifica esse tipo de mal-adaptação cultural, no contexto dos teclados que utilizamos em nossos computadores atuais. Esse teclado foi funcional à época em que as máquinas de escrever emperravam, quando se datilografava muito rapidamente: o teclado QWERTY reduzia a ocorrência disso. Esse desenho de teclado deixou, entretanto, de ser vantajoso nos computadores que usamos atualmente. Há, portanto, uma analogia entre esse conceito de mal-adaptação cultural e as mal-adaptações biológicas causadas por órgãos vestigiais, como o apêndice do intestino humano (MESOUDI, 2011, p. 35-6).[212]

 

V. Deriva cultural

A SN é o mecanismo mais importante em uma explicação darwiniana da evolução dos seres vivos, mas atua em conjunto com outras causas, como a deriva genética, a migração e causas aleatórias, de modo geral. A deriva refere-se a mudanças que ocorrem na frequência de determinados alelos em função da amostragem, o que é tanto mais significativo quanto menor for a população.

Uma “deriva cultural” é concebível por analogia. Por exemplo, em pequenos grupos, certas habilidades, ou técnicas, se perdem completamente, se aqueles poucos indivíduos que as dominam não as transmitem a outros, seja por morrerem antes de fazê-lo, seja por não terem aprendizes, seja ainda por existirem obstáculos que impeçam a herança dessa bagagem cultural.

Pode haver um efeito de deriva pela diminuição da população como um todo, o que afeta não só o surgimento de novidades culturais, mas também a manutenção da cultura acumulada pelas gerações anteriores. Richerson e Boyd (2005, p. 138) exemplificam a deriva cultural com o caso da Tasmânia. Quando os colonizadores ingleses tiveram contato com os grupos locais, o seu aparato cultural era muito menos sofisticado do que o das gerações anteriores desses grupos, como veio a atestar a pesquisa arqueológica. Essa deriva cultural teria sido consequência da diminuição da população desses grupos (cf. MESOUDI, 2011, p. 31).

 

VI. As populações no nível do grupo são darwinianas?

Para responder a essa questão, teríamos que, em princípio, seguir um procedimento semelhante ao adotado no caso da população PoCi: investigar como se aplicam os conceitos de variação, de herança e de aptidão às populações PoBg e PoCg. Este é um projeto ambicioso e não temos a pretensão de levá-lo a cabo, neste artigo, e nem haveria espaço para tanto. Abrimos frentes de trabalho nessa direção, em outros artigos (ABRANTES, 2011, 2013). Vamos nos contentar em fazer, nesta seção, algumas observações genéricas que mostram, a nosso ver, o poder heurístico da distinção proposta entre tipos de populações culturais. O ponto que nos parece mais relevante diz respeito à herdabilidade cultural.

Agora temos condições de abordar, de frente, a segunda questão que foi colocada no início da seção III.1, sobre “Variação”: como a variação cultural é preservada ao longo do tempo? Esta é, como enfatizamos, uma condição sine qua non para que a SN possa atuar (MAMELI, 2004).

Embora a herdabilidade cultural venha a ser baixa, na população PoCi, como argumentamos na seção III.2.3, este não parece ser, necessariamente, o caso em PoCg. Ressaltamos que não se trata, nesse contexto, da questão da variação entre linhagens culturais dentro de um grupo, já tratada, mas da variação entre grupos culturais. O problema do “embaralhamento” das linhagens culturais em PoCi, em consequência da herança horizontal de VCs (da existência de muitos pais culturais), não se colocaria com a mesma intensidade, no plano do grupo.

A baixa fidelidade da transmissão cultural de indivíduo para indivíduo, devido a erros de “cópia”, por exemplo, é compensada, no nível do grupo, por vieses como o conformista. Efetivamente, Henrich e Boyd (1998, 2002) construíram modelos matemáticos nos quais o conformismo compensa os erros na transmissão da informação cultural e cria, ao lado de outros mecanismos, a variação na (meta-)população dos grupos culturais, variação esta sobre a qual a SN pode agir. Este também é o modo como Sterelny (2006, p. 144) avalia tais resultados.[213]

Por esses mecanismos, a SN passa a atuar no nível do grupo, devido às diferenças entre os seus “fenótipos” culturais, que constituem, justamente, PoCg. A baixa intensidade da SN atuando sobre a variação cultural dentro de cada grupo não impede que ela tenha intensidade, quando atua sobre a variação entre grupos culturais, ou seja, em PoBg. Temos aqui um caso de SN atuando simultaneamente em vários níveis, correspondendo às várias populações culturais que distinguimos (ABRANTES, 2011, 2013; cf. MAMELI, 2004; CLAIDIÈRE et al., 2014).

A construção de nicho também assegura a fidelidade da transmissão cultural, e isso vale, a nosso ver, especialmente para grupos culturais como um todo. Legados ecológicos das gerações anteriores, como resultado da construção de nicho que essas gerações empreenderam, pelo fato de serem legados, em geral, a toda a população, não criam uma variação estável entre linhagens culturais para que a SN possa atuar dentro de um grupo cultural (MAMELI, 2004, p. 57; MAMELI; STERELNY, 2009). Esses legados promovem, ao contrário, uma homogeneização cultural. Entendemos, portanto, que a construção de nicho reduz a variação cultural em PoCi e, logo, a herdabilidade, mas aumenta a variabilidade cultural entre grupos e, consequentemente, a intensidade da SN atuando sobre a variação cultural nesse nível (cf. HENRICH, 2014, p. 1).[214]

Até este ponto, nós nos restringimos a discutir a herdabilidade nas populações culturais categorizadas no nível do grupo. No que concerne a uma aplicação do conceito de aptidão a essas populações, em particular a PoBg – embora o qualificativo “biológico” seja utilizado para nomeá-la –, há problemas em se definir “reprodução” para grupos, de modo geral, e grupos culturais, de maneira especial, segundo já referido.

 

VII. Em defesa de uma descrição abstrata

As várias desanalogias que apontamos entre a EB e a EC levam Mesoudi (2011, 46-47), entre outros, a defender que a modelagem da EC não deve tomar como ponto de partida os mecanismos específicos envolvidos na EB, como descritos pelo neodarwinismo – os quais incluem os genes enquanto replicadores e, também, fatores no desenvolvimento dos organismos –, mas a versão da teoria proposta, originalmente, por Darwin (depurada das suas especulações a respeito de alguns desses mecanismos).

De certa forma, foi o que fizemos, neste artigo, ao assumir uma descrição mínima do processo de evolução por SN e a aplicar às populações culturais. Efetivamente, as descrições populacionais darwinianas são, como vimos, mais gerais do que as que pressupõem replicadores, por exemplo.

Mesoudi retira, daí, a consequência de que uma teoria da EC é analógica, pois aplica à cultura exclusivamente os conceitos que descrevem o processo abstrato de evolução por SN, evitando exportar para o domínio cultural os conceitos que se referem às particularidades da instanciação desse processo, no domínio dos seres vivos, conforme descritos pelo neodarwinismo.[215]

Heinz e Claidière (2011) aludem a um darwinismo literal e a um metafórico. Em nossa interpretação, este último seria tributário de um darwinismo universal e de raciocínio analógico; o darwinismo literal corresponderia àquele aplicado à EB.[216]

 

VIII. Macroevolução cultural

Em biologia evolutiva, classificam-se os processos que ocorrem em uma população de organismos como microevolutivos. A macroevolução refere-se a processos em grande escala e de longa duração, como a especiação e a extinção, as quais envolvem várias populações e suas relações filogenéticas.

Quando tratamos das populações PoBi e PoCi, estava em jogo a microevolução cultural, que diz respeito a processos ocorrendo em um mesmo grupo cultural. Nessa microevolução, a psicologia dos agentes, as suas habilidades individuais, as VCs que constituem seus fenótipos e as relações que se dão entre esses agentes na população desempenham papéis cruciais.

Por analogia com a macroevolução biológica, a macroevolução cultural se refere às populações no nível do grupo (GODFREY-SMITH, 2012, p. 2160) e como evoluem, nesse âmbito. Padrões de cooperação e de conflito entre grupos culturais nos quais um grupo pode, por exemplo, servir de modelo cultural para outro grupo e, desse modo, transmitir suas VCs (instituições, formas de organização social etc.), seriam fenômenos macroevolutivos, bem como a extinção de uma cultura. A possível emergência de filogenias culturais na população PoCg também constitui um processo macroevolutivo.

Os que se dedicam a essa congênere macroevolução cultural usam métodos filogenéticos importados da biologia para descobrir padrões nos fenômenos culturais que se dão em grande escala e se estendem por longos períodos de tempo. Com o uso desses métodos, pode-se construir árvores filogenéticas culturais que representam, por exemplo, as relações históricas entre ramos linguísticos (GODFREY-SMITH, 2009, p. 163), tipos de organização social ou diferentes padrões exibidos pelos instrumentos líticos, durante o Pleistoceno. Essas árvores permitem distinguir as similaridades entre traços culturais “homólogos” (os quais resultam de descendência a partir de um ancestral comum) daquelas similaridades que seriam simplesmente “homoplasias” culturais (similaridades resultantes de evolução convergente).

As questões que se colocam para uma teoria da macroevolução cultural são diferentes das que se colocam no nível microevolutivo, e as condições que definem as dinâmicas culturais das populações PoBg e PoCg são outras:

Imitation might be rare, as Sperber says. Culture might be holistic in its influence on each person, as Fracchia and Lewontin say. Those situations are consistent with there being reasonably discrete segments in the larger network of cultures. A more cohesive, less population-like form of culture may even have a better fit to the requirements of phylogenetic methods than looser forms of culture, because a more cohesive culture may be less likely to draw on outside influences, and maintain better boundaries. (GODFREY-SMITH, 2012, p. 2168).

 

Há casos de artefatos que dependem, para a sua construção, do trabalho de muitas pessoas de um grupo, sendo mais frutífero ver esses artefatos como parte do fenótipo do grupo como um todo, e não dos seus membros. Godfrey-Smith dá o exemplo do desenho de um barco que resulta da contribuição de várias pessoas, frequentemente de diferentes gerações (GODFREY-SMITH, 2012, p. 2167). As mesmas considerações podem ser feitas a respeito das formas dos instrumentos líticos – como os machados de mão que caracterizaram a chamada cultura “Acheulense”, associada ao Homo ergaster (1,7 a 0,25 Maa) –, assim como aos procedimentos de talha desses artefatos.

Outros exemplos seriam a construção de instrumentos musicais, como o violão e o piano. Além da dimensão “cultural-ontogenética”, na qual o foco é colocado em um único instrumento construído por um ou vários artesãos, sabemos que as características desses instrumentos mudaram ao longo de várias gerações de construtores, bem como os métodos de sua construção. Essa dinâmica cultural apresenta um caráter evolutivo ao qual se aplicam métodos filogenéticos importados de outras áreas.

 

Conclusões

Antes de finalizarmos, convém ressaltar que não se deve confundir o tópico da evolução cultural, que é o objeto do presente artigo, com outros dois tópicos, embora intimamente relacionados: o da origem da cultura enquanto sistema não genético de herança, por um lado, e o da “coevolução gene-cultura”, por outro. Esses tópicos – que dizem respeito, especialmente, à evolução na linhagem hominínea –, não foram aqui abordados, a despeito da sua relevância.[217]

A investigação científica a respeito da evolução cultural requer uma análise prévia dos conceitos fundamentais, em um esforço de abstração que permita ampliar o escopo descritivo e explicativo da biologia evolutiva. O tratamento da dinâmica cultural em termos evolutivos, efetivamente, tirou proveito da investigação que vem sendo feita, há décadas, sobre os fundamentos da biologia evolutiva, para a qual filósofos têm dado contribuições decisivas. Neste trabalho, servimo-nos também dessas investigações, de modo a explicitar as condições mais gerais que precisam ser satisfeitas, para que se descrevam as dinâmicas apresentadas por diferentes tipos de populações culturais – com ênfase na população integrada por variantes culturais (PoCi) –, enquanto dinâmicas evolutivas e darwinianas.

Cada uma dessas populações culturais (embora marginais”, no que diz respeito ao seu caráter darwiniano, devido às desanalogias que ressaltamos entre a evolução biológica e a evolução cultural), provavelmente se aproximou, em maior ou menor grau, dos padrões de uma população darwiniana “paradigmática”, no decorrer da evolução na linhagem hominínea, em função de diversos fatores elencados na seção III.3. Em períodos recentes, outros fatores (institucionais, econômicos etc.) afetaram o caráter das populações culturais e sua dinâmica.

A teoria darwiniana da evolução possibilitou dar alguma unidade à diversidade de fenômenos estudados pela biologia, nas suas mais diversas áreas, e isso continua sendo amplamente reconhecido. A diversidade dos fenômenos culturais é, provavelmente, ainda maior, o que torna um tanto quimérico o objetivo de se alcançar, através de um arcabouço conceitual evolucionista, uma unidade semelhante no domínio dos fenômenos culturais, a despeito da expectativa de autores como Mesoudi (2011) e Leal-Toledo (2013).

Os padrões eventualmente observados nas dinâmicas microevolutivas e macroevolutivas culturais se devem aos mais diversos mecanismos e, provavelmente, variam segundo o tipo de traço cultural e a granularidade admitida na sua definição.

Feitas essas ressalvas, acreditamos ser fértil importar o arcabouço conceitual da teoria darwiniana da evolução, sobretudo em sua versão mais abstrata e com as devidas adaptações, para descrever porções da esfera cultural em termos populacionais, evolutivos e darwinianos. A pesquisa atual sobre microevolução e macroevolução culturais, em suas vertentes empírica e teórica, tem demonstrado isso.[218]

 

Can culture evolve?

 

Abstract: The paper starts with a distinction between kinds of description that can be proposed for a populational dynamics, including a ‘Darwinian’ description, in terms of variation, inheritance and differential fitness, engaging the entities that make up the relevant population. It follows with a categorization of different kinds of cultural populations and an investigation of the most general conditions that have to be fulfilled for an evolutionary and Darwinian dynamics to take place in those populations, especially in the population comprised by the cultural traits themselves. We make salient some approaches to the evolution in the human lineage, such as dual inheritance theory and memetics, that place cultural evolution at the center of their scenarios. In this way, those approaches contribute to the development of a general theory of cultural evolution, and we compare them, in this respect, with other approaches. Those confrontations grant also illustrations of the analogies between biological evolution and cultural evolution, as well as failures in the analogy. 

 

Keywords: Cultural evolution; Darwinian populations; Cultural selection; Cultural populations; Dual inheritance theory; Memetics.

 

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Recebido: 12/08/2023

Aceito: 19/12/2022


COMENTÁRIO A “A CULTURA PODE EVOLUIR”: A EVOLUÇÃO CULTURAL DA CULTURA CUMULATIVA – A HIPÓTESE DA “AUTOMONTAGEM” COMO UMA TEORIA DE “COEVOLUÇÃO CULTURA-CULTURA”

 

João Pinheiro[220]

 

Referência do artigo comentado: Abrantes, Paulo. A Cultura Pode Evoluir? Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 427-464, 2023.

 

Paulo Abrantes procura responder à pergunta “A Cultura Pode Evoluir?”, que requer desde logo uma especificação do que está em causa. Em causa não está se a cultura evolui no sentido lato, em que muda de forma gradual, ao longo do tempo – a que nenhum cientista social antievolucionista se oporia –, mas se a sua evolução pode ser explicada à luz das teorias evolutivas que fizeram escola em torno dos desenvolvimentos da teoria proposta por Darwin. Mais se diz. Em causa está que a teoria dita darwiniana tem uma história multifacetada, sendo que aquilo que Darwin entendia por evolução não tem uma correspondência biunívoca com a teoria que muitas vezes se diz ter integrado as diferentes disciplinas que compõem a Biologia moderna e que hoje serve de base aos currículos de escolas e universidades. Por exemplo, se tomássemos como ponto de partida uma interpretação restrita da “Síntese Moderna” (HUXLEY, 1942), depressa chegaríamos à conclusão inequívoca de que o foco central do estudo da biologia evolutiva, populações genéticas, é sobremaneira distinto daquele das ciências sociais e humanas, a cultura (vide LEWENS, 2015, § 2-3).

Não obstante, muitos teóricos acreditam que a natureza da selecção natural é tal que pode explicar até as dinâmicas de evolução cultural. Isto porque – em conforme com o que se tornou o entendimento mais comum da teoria evolutiva –, para que uma população possa evoluir por selecção natural, basta que três condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes sejam obtidas, nomeadamente: (1) os indivíduos de uma população deverão apresentar variação fenotípica; (2) esta mesma variação fenotípica deverá apresentar aptidão diferencial; e, por sua vez, (3) a aptidão deverá ser herdável, no sentido em que prole e progenitores apresentam um valor de aptidão correlacionado (LEWONTIN, 1970; GODFREY-SMITH, 2007).

Ora, no seu artigo, Abrantes analisa a possibilidade de uma população composta meramente pelos traços culturais de agentes evoluir num sentido darwiniano restrito e não meramente metafórico, isto é, se é possível que tal população reúna as três condições que definem o processo de selecção natural. Este trabalho teórico e de desenvolvimento conceptual é substancial e não pode ainda ser dado por terminado. É no sentido de deslindar este problema que o artigo de Abrantes se desenrola. Com o cuidado e detalhe proporcionáveis apenas por uma longa carreira dedicada ao estudo destes temas, Abrantes partilha connosco uma análise desenvolta em torno de uma extensa revisão de literatura acerca da possibilidade de uma teoria da evolução cultural. Dada a presença ainda ténue deste tópico, entre a produção lusófona, o artigo é deveras oportuno e, parece-me, poderá ser inclusive tomado como ponto de partida para os interessados neste tópico que, internacionalmente, continua a deflagrar pela academia, qual “ácido universal” (sensu DENNETT, 1995, p. 145).

Talvez o mais interessante, no caso avaliado por Abrantes, seja o facto de que, para aplicar o conceito de aptidão a populações deste tipo, esta tenha de ser entendida (pelo menos parcialmente) em função do “sucesso reprodutivo” cultural propriamente dito, ao invés de pelo contributo das variantes culturais para a reprodução biológica, como nos casos clássicos de evolução biológica. O artigo de Abrantes é uma excelente introdução das problemáticas encaradas por este tipo de hipótese.

Todavia, a pergunta pela evolução da cultura não se esgota na análise oferecida por Abrantes (e ele está bem ciente disso). Há muitos tópicos de relevo para a pergunta que, por necessidade prática, ora não pôde mencionar ou mencionou apenas ao de leve (de que é exemplo a possibilidade de os vieses psicológicos serem produtos da evolução cultural). Assim, neste comentário, irei abordar alguns destes tópicos que, apesar de circunstancialmente tangenciais ao seu artigo, têm uma importância não menos fundamental. Neste sentido, a reflexão aqui partilhada melhor se afigura como um complemento, ao invés de uma crítica.

Mais concretamente, irei aqui expor a hipótese da “automontagem” (self-assembly), proposta por Birch e Heyes (2021), a fim de explicar a evolução da cultura cumulativa. A transmissão da cultura diz-se cumulativa, quando pequenos incrementos se dão, ao longo do tempo, não só na frequência das variantes culturais como na nossa habilidade de as produzir, de tal forma que a cultura tende a aumentar de complexidade, chegando eventualmente a um ponto em que nenhum indivíduo, em isolamento, poderia produzir as mesmas variantes culturais.

Conforme afirma Abrantes, terá havido um momento a partir do qual a evolução cultural, entendida como uma mudança das frequências de variantes culturais, no nível de uma população, se deu não mais somente devido (a) às vantagens que conferiam à aptidão biológica (o que terá correspondido a um primeiro momento, lento, de herança sobremodo vertical), mas porque (b) as variantes em si, de algum modo, atraíram os demais indivíduos a adoptá-las ou porque estes as aprenderam a partir doutros indivíduos, os quais obtiveram mais sucesso na competição por aprendizes. É esta segunda forma de evolução cultural que Abrantes examina mais pormenorizadamente. Notavelmente, uma vez que animais não humanos parecem ser capazes de evolução cultural, no primeiro sentido, é este segundo tipo de evolução cultural que mais fortemente associamos com a evolução cumulativa da cultura. Mas como, então, se deu a transição?

A hipótese da automontagem diz-nos que a transição não foi, contracorrente, devida sobretudo a alterações genéticas nos nossos mecanismos cognitivos (ainda que importantes), mas catapultada por um mecanismo de feedback positivo cultural. Isto é, em resposta a ambientes culturais distintos, dá-se a evolução diferencial e cultural de mecanismos cognitivos que constituem eles próprios o ambiente cultural para uma continuada evolução cultural dos mecanismos. Por este motivo, designa-se esta hipótese como uma teoria de “coevolução cultura-cultura” (sensu MUTHUKRISHNA; HENRICH, 2016), em contraposição a uma teoria de “coevolução gene-cultura” (e.g., RICHERSON; BOYD, 2005).

A hipótese parte do princípio de que partilhamos uma base comum com muitos outros animais, nomeadamente, capacidades cognitivas de domínio generalista (isto é, que não se subordinam à cognição de somente um domínio), as quais modelam a nossa atenção, tendo impacto sobre aquilo que aprendemos (as)socialmente – embora possa ser o caso que os mecanismos cognitivos de domínio generalista mais sofisticados estejam bem correlacionados com o crescimento da caixa encefálica entre os Hominini (em particular, no género Homo) e com um período de maturação mais longo. Seja como for, os humanos podem, desde bebés, aprender a associar um certo tipo de comportamento com um certo tipo de resultado (bom ou mau) e reconhecer ser esse resultado independente do indivíduo que demonstrar esse comportamento. Por consequência, começamos a copiar ou a evitar esse comportamento, se o seu resultado for bom ou mau, respectivamente. De facto, podemos desenvolver vieses deste tipo, por meio de aprendizagem associal. Todavia, mecanismos deste tipo parecem ser suficientes para despoletar um processo rudimentar de evolução cultural.

Assim, num primeiro instante de evolução cultural, dá-se a evolução de algum conhecimento e habilidades com base nestes mesmos vieses, os quais vão sendo aprimorados pela selecção, precisamente porque aqueles indivíduos que melhor aprendem a reproduzir comportamentos ou técnicas mais vantajosos, melhores probabilidades têm de vir a reproduzir-se, transmitindo assim os seus próprios vieses de atenção associal e mecanismos responsáveis pela aprendizagem dos comportamentos ou técnicas vantajosos. Isto é já pouco comum em animais não humanos, em parte porque os seus períodos de gestação e desenvolvimento tendem a ser mais curtos, o que diminui a sua probabilidade de aprenderem variantes culturais com fidelidade, a partir dos seus progenitores. Não obstante, obtém-se assim uma forma simples, mas lenta de acumulação cultural, pois esta ocorre sobretudo por meio de transmissão vertical, entre um progenitor e a sua prole, que passam mais tempo juntos (a velocidade será então semelhante à genética).

Num segundo momento, dá-se a evolução de vieses de atenção na aprendizagem social. Isto é, os indivíduos começam a aprender quais os demais vieses de atenção que são mais benéficos, e podem fazer isto simplesmente tomando atenção à própria atenção dos seus progenitores. É fácil tornar esta ideia intuitiva, com um exemplo: imagine-se uma tribo a colher alimentos, e que os adultos desta tribo, em geral, prestam peculiar atenção a um outro adulto em específico, quando este colhe alimentos, talvez porque eles aprenderam que este adulto em particular é especialmente bom a apanhar alimentos; então, prestando atenção à atenção dos pais (e os bebés humanos parecem ter uma tendência genética para seguir caras e vozes), este viés de aprendizagem pode ser aprendido. Notavelmente, para que isto aconteça, não é necessária uma Teoria da Mente, bastando imitar os olhares, e os animais não humanos, até um certo ponto, também são capazes de aprender vieses deste modo.

Na história que contámos até agora, tendo havido melhorias genéticas à nossa cognição, ela não seria ainda assim tão qualitativamente distinta, nas suas capacidades gerais relativamente à de outras espécies. Isto é evidenciado pelo facto de que alguns animais não humanos exibem este mesmo tipo de evolução cultural (ainda que as capacidades humanas possam, comparativamente, ser melhores). Todavia, especula-se que a emergência da produção lítica Acheulense – dos famosos bifaces – e sua conseguinte dispersão, há cerca de 700 000 anos, poderá dever-se à emergência de uma mutação responsável pela capacidade de pensar explicitamente acerca de variantes culturais e de normas comportamentais, a qual, ao que tudo indica, não é partilhada com animais não humanos (vide BIRCH, 2021). Assim, debruçamo-nos agora mais atentamente sobre a evolução cultural na linhagem hominínea, novamente complementando o ensaio de Abrantes (2023).

Existindo agora uma capacidade para a cognição explícita, propiciou-se um terceiro momento de evolução cumulativa, no qual os vieses de aprendizagem se tornaram eles próprios explícitos. Passou a ser possível aprender regras de aprendizagem, isto é, regras culturais tão genéricas, como “copia a maioria”, ou tão específicas, como “copia indivíduo X para aprender a fabricar objecto Y com especificidade Z”. Isto terá sido vantajoso num momento em que os grupos humanos aumentavam de tamanho (GOWLETT; GAMBLE; DUNBAR, 2012), o que tornou mais difícil a um simples viés de atenção implícito conferir uma maior aptidão biológica comparativamente a um viés explícito, cuja especificidade e acuidade proporcionadas são superiores. A evolução da cultura cumulativa começa, então, a ganhar velocidade.

E um quarto momento, crucial, realiza-se. Pois, note-se que as regras de aprendizagem explícitas não têm elas próprias o objectivo explícito de maximizar a aptidão, mas outra qualquer medida de sucesso característica à regra em particular (e.g., em “copiar o indivíduo que manufactura os bifaces mais simétricos”, a simetria está bem correlacionada, mas não é idêntica, com a performance e contributo para a aptidão biológica). Assim, a aptidão cultural desprende-se da biológica: as variantes culturais e as próprias regras de aprendizagem evoluem consoante o número de indivíduos que atraem. É então aqui que a análise feita por Abrantes às “populações compostas pelos traços culturais dos agentes” se torna particularmente premente.

Porém, a teoria de Birch e Heyes dá um passo extra – e mais radical –, distinguindo-a das abordagens características da Psicologia Evolutiva e do evolucionismo cultural (cf. LALAND; BROWN, 2011, § 5-6) e caracterizando uma nova vertente denominada “Psicologia Evolutiva Cultural” (HEYES, 2018, p. 3-4): eles acreditam que não só os vieses de aprendizagem mas também os mecanismos de aprendizagem cultural (como a capacidade de imitação, de ler outras mentes, e a metacognição) foram herdados culturalmente, ao invés de serem instintivos, de terem evoluído geneticamente ou de serem geneticamente assimilados. Por esta razão, evitam designá-los de mecanismos cognitivos propriamente ditos e, ao invés, chamam-lhes “dispositivos cognitivos” (cognitive gadgets), para os distinguir destoutros.

Não podemos aqui explorar em detalhe a evidência da psicologia do desenvolvimento e neurociências (e.g., HEYES; CHATER; DWYER, 2020), nem o longo e detalhado argumento que apoia esta conclusão (vide HEYES 2018, § 3, e § 5-7), porém, eles acreditam (BIRCH; HEYES, 2021, p. 6-7) que a evolução cultural no seio de “populações compostas pelos traços culturais dos grupos” (ABRANTES) poderá ter sido de especial relevância para esta faceta da cumulação cultural com base em dispositivos cognitivos. A hipótese de Birch e Heyes pressupõe apenas que os progenitores poderiam migrar entre grupos, seguindo regras explícitas, como “migra para o grupo com pessoas mais saudáveis”, e que os grupos com melhores capacidades de imitação seriam, por consequência, mais cooperativos e, enquanto tais, teriam uma maior probabilidade de assegurar a sua saúde face a desafios ambientais. Resumidamente, aqueles grupos que forem melhores a selecionar modelos e a copiá-los com fidelidade terão maior probabilidade de atrair migrantes, o que lhes proporcionará, comparativamente, uma maior “aptidão cultural”.

É notável ainda que, com os passos quatro e cinco, tanto o conhecimento, as habilidades, e os mecanismos cognitivos evoluem agora horizontalmente (a transmissão ocorre no seio de um grupo, mas entre indivíduos de uma mesma geração e, possivelmente, não aparentados) e obliquamente (com transmissão entre grupos e entre indivíduos que, por norma, não são aparentados e pertencem a gerações distintas), devido às próprias qualidades das variantes culturais que as tornam mais atractivas para quem as aprende. Mas isto, como Abrantes bem argumenta, representa desafios para uma formalização da “aptidão cultural” e, em particular, para o conceito de herdabilidade.

Concluindo, Abrantes assevera que é importante não confundir o tópico da evolução cultural com, por exemplo, o tópico da origem da cultura e o da coevolução gene-cultura. Todavia, no nosso comentário, deixámos claro que eles estão intimamente interligados e que uma resposta à pergunta pelas origens da cultura cumulativa revela a relevância de análises conceptuais específicas, de que a de Abrantes é um óptimo exemplo. No meu comentário, fui fiel à sua sugestão de adoptar uma descrição darwiniana abstracta, ao explicar a evolução da cultura cumulativa. Ademais, não só respondi que, Sim, a cultura pode evoluir, como acrescentei, E a evolução da cultura também. A hipótese da automontagem explica então também o fenómeno da “evolvabilidade cultural” (cultural evolvability) (vide STERELNY, 2006), isto é, a mudança qualitativa da evolução cumulativa da cultura, a qual, no caso desta hipótese, é ela própria (parcialmente) cultural. Enfim, a hipótese explica, em cinco passos graduais, como, a partir de capacidades cognitivas generalistas e lentas, se pode propiciar a evolução cultural acelerada das nossas capacidades cognitivas específicas actuais.

 

Financiamento

João Pinheiro contou com o apoio da bolsa de investigação individual da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P, Portugal (SFRH/BD/145291/2019).

 

Referências

Abrantes, Paulo. A Cultura Pode Evoluir? Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 427-464, 2023.

BIRCH, Jonathan. Toolmaking and the Evolution of Normative Cognition. Biology and Philosophy, v. 36, n. 1, p. 1-26, 2021.

BIRCH, Jonathan; HEYES, Cecilia. The cultural evolution of cultural evolution. Philosophical Transactions of the Royal Society, B, v. 376, p. 1-9, 2021.

DENNETT, Daniel. Darwin’s Dangerous Idea: Evolution and the Meanings of Life. New York: Simon & Schuster, 1995.

GODFREY-SMITH, Peter. Conditions for Evolution by Natural Selection. Journal of Philosophy, v. 104, p. 489-516, 2007.

GOWLETT, J.; GAMBLE, C., DUNBAR, R. Human evolution and the archaeology of the social brain. Current Anthropology, v. 53, p. 693-772, 2012.

HEYES, Cecilia. Cognitive Gadgets – The Cultural Evolution of Thinking. Cambridge, MA; London, England: The Belknap Press of Harvard University Press, 2018.

HEYES, Cecilia; CHATER, N.; Dwyer, D.M.; Sinking in: the peripheral Baldwinisation of human cognition. Trends in Cognitive Science, v. 24, p. 884-899, 2020.

HUXLEY, Julian. Evolution: The Modern Synthesis. London: George Allen e Unwin, 1942.

LALAND, Kevin N.; BROWN, Gillian R. Sense and Nonsense: Evolutionary Perspectives on Human Behaviour. 2. ed. Oxford University Press, 2011 (2002).

LEWENS, Tim. Cultural Evolution: Conceptual Challenges. Oxford: Oxford University Press, 2015.

LEWONTIN, Richard. The Units of Selection. Annual Review of Ecology and Systematics, v. 1, p. 1-18, 1970.

MUTHUKRISHNA, Michael; HENRICH, Joseph. Innovation in the collective brain. In: READER, Simon M.; FLYNN, Emma; MORAND-FERRON, Julie; LALAND, Kevin N. (ed.). Special Issue «Innovation in animals and humans: understanding the origins and development of novel and creative behaviour», Philosophical Transactions of the Royal Society, B, v. 371, p. 1690, 2016.

RICHERSON, Peter J.; BOYD, Robert. Not By Genes Alone: How Culture Transformed Human Evolution. Chicago: University of Chicago Press, 2005.

STERELNY, Kim. The Evolution and Evolvability of Culture. Mind & Language, v. 21, n. 2, p. 137-165, 2006.

 

Recebido: 01/06/2023

Aceito: 05/06/2023


 

SOBRE O STATUS METAFÍSICO DAS CORES

 

Plínio Junqueira Smith[221]

 

Resumo: Neste artigo, pretende-se desenvolver uma concepção sobre as cores como parte de uma visão cética do mundo. Para isso, investiga-se como alguns dos principais céticos, ao longo da história da filosofia, conceberam as cores, seja em relação a outras qualidades sensíveis, seja em relação ao objeto físico. Depois, à luz do debate entre Barry Stroud e John McDowell, descreve-se aquela que parece ser a concepção comum das cores, sustentando-se que o cético não apenas aceita que os objetos são coloridos, mas que ele pode saber qual é a sua cor, por meio da percepção.

Palavras-chave: Qualidade secundária. Qualidade primária. Metafísica. Visão cética do mundo. Dogmatismo. Percepção.

 

1 Suspensão do juízo e visão cética do mundo[222]

Os céticos foram vistos como críticos da metafísica. Contudo, historicamente, eles combateram o dogmatismo, não a metafísica. É comum confundir os termos “metafísica” e “dogmatismo”. A palavra “metafísica” adquiriu muitos sentidos diferentes, ao longo dos séculos, mas um de seus principais sentidos, hoje, é o de que a “metafísica” é uma área da filosofia: ao lado da ética, da política, da estética, da epistemologia etc., haveria um domínio específico que seria a “metafísica”. Enquanto, por exemplo, a epistemologia trata do conhecimento e a ética do bem e do mal, a metafísica trataria da realidade. Todavia, o dogmatismo é um tipo de reflexão que pretende transcender o domínio da experiência, de modo que uma teoria dogmática se diferencia radicalmente de uma teoria científica. Com efeito, Sexto define “dogma” como “[...] assentimento a uma proposição não-evidente (adelon)” (2000, 1.16) e Hume condena às chamas todo livro que não tratar de matemática ou não contiver “[...] raciocínios experimentais sobre questão de fato ou existência.” (1985, 12.iii.132, p. 165).

Mas é preciso manter essas duas expressões separadas. Neste artigo, usarei “metafísica” no sentido de uma área específica da filosofia, aquela que se ocupa em saber como é a realidade e, por “dogmatismo”, entenderei um tipo de teoria que envolve de maneira crucial a aceitação de entidades naturalmente não observáveis, isto é, que não podem nunca ser observadas, ou um discurso explicativo não submetido a um controle empírico. Assim, em qualquer investigação filosófica, um filósofo pode ser dogmático ou cético: dogmático, quando aceita entidades controversas e que não fazem parte da experiência do mundo; ou cético, quando suspende o juízo a respeito delas, mas pode aceitar explicações empíricas sobre o mundo em que vivemos e que percebemos (neste caso, entidades aceitas pelas teorias científicas, na medida em que são passíveis de controle empírico, podem ser aceitáveis para o cético). Como veremos, suspender o juízo sobre entidades não empíricas e controversas não impede o filósofo cético de ter crenças, e até conhecimento, sobre as coisas que fazem parte de nossa experiência do mundo. Convém insistir nessa ideia, porque ela diverge da ideia de ceticismo que boa parte dos filósofos tem.

Os céticos investigam questões filosóficas tanto quanto os dogmáticos. Sexto destaca que estes pretendem ter encontrado a resposta correta, enquanto aqueles não têm nenhuma resposta a oferecer e continuam investigando (2000, 1.1-4). Mas essa posição inicial de Sexto precisa ser mais bem explicada, porque há ao menos dois tipos de investigação. A investigação filosófica, tal como praticada pelos dogmáticos, concerne a algo obscuro ou não evidente (na terminologia estoica que Sexto utiliza). Na medida em que é controverso (diferentes dogmáticos dão diferentes respostas), um assunto é obscuro ou “não evidente”. Porém, há investigações que lidam com as coisas manifestas, claras e evidentes e que, enquanto tais, não suscitam controvérsia. Essas investigações são empíricas, visto que lidam com aquilo que se revela na experiência. Os dogmáticos, para estabelecer a verdade de uma tese sobre o não evidente, pretende transcender o domínio da experiência. Teses sobre as coisas obscuras só podem ser estabelecidas, segundo os próprios dogmáticos, com argumentos não empíricos. A suspensão cética do juízo só diz respeito a essa pretensão dogmática de transcender a experiência por meio de um discurso argumentativo. Quando se tem essa pretensão, os céticos lembram que há argumentos para teses opostas e, assim, a investigação não chegou a um consenso.

Isso vale, por exemplo, para a epistemologia e para a ética. Os céticos investigam os principais tópicos em cada uma dessas áreas da filosofia e não chegam a nenhum veredito, não defendendo nenhuma teoria do conhecimento, em particular, nem advogando uma doutrina sobre valores morais como objetivos ou subjetivos. Isso não os impede, contudo, não somente de ter conhecimentos empíricos em sua vida cotidiana ou de sustentar valores que digam respeito à sua prática, como também podem ter uma concepção filosófica do conhecimento ou dos valores morais, desde que não envolva “coisas não evidentes” ou um saber não empírico. A meu ver, um cético pode ter uma teoria empirista ou naturalista do conhecimento, desde que essa teoria fosse construída empiricamente e se sujeitasse aos resultados empíricos e científicos.

O que vale para a epistemologia e para a ética também vale para a metafísica. O cético não aceita nenhuma teoria dogmática sobre uma realidade obscura, porque controversa, e, no entanto, pode ter uma concepção sobre o mundo, quais coisas existem (pessoas, rios, pedras) e quais são imaginárias (bruxas, formas platônicas e os átomos de Demócrito), pois, em nossa experiência do mundo, traçamos essa distinção. O dogmático, entretanto, transforma essa distinção comum entre a realidade e a aparência numa distinção dogmática. Qual a diferença? Primeiro, a diferença reside nos objetos que caem em cada lado da distinção: o que, na distinção comum, é um objeto real (um livro), na distinção filosófica, é considerado uma aparência. De fato, todos os objetos reais, segundo a nossa distinção comum, passam a ser vistos como meras aparências e, no melhor dos casos, indícios da “verdadeira” realidade.

Isso leva a uma segunda diferença entre a distinção comum e a dogmática. O próprio conceito de realidade parece mudar, embora talvez seja difícil explicar essa mudança. É certo que, para as duas distinções, toda realidade é independente do que percebemos ou pensamos; se não fosse independente, não diríamos se tratar de uma realidade. Enquanto, na distinção comum, o que percebemos ou concebemos é independente de nós, para o filósofo dogmático, contudo, é algo dependente. Assim, o dogmático parece dar um passo a mais: além de ser independente, a realidade também seria, por assim dizer, absoluta. Então, para deixar clara a diferença entre a concepção comum e a concepção dogmática, seria conveniente usar a expressão “realidade absoluta” para a última, falando só da “realidade”, quando se tratar da concepção comum. Os dogmáticos exigem que, além da experiência, seria preciso de um argumento que demonstrasse que as coisas são realmente como as percebemos, ao passo que os céticos aceitam, como todo mundo, que a experiência basta para estabelecer a realidade de alguma coisa.

A essa concepção empírica e não dogmática do mundo, Porchat (2007, p. 136) deu o nome de “visão cética do mundo”, embora, por prudência, tenha se recusado a chamá-la de “metafísica” (2007, p. 137). Porém, tendo esclarecido o significado em que uso “metafísica”, não vejo por que não a caracterizar como tal. Parte importante da visão cética do mundo depende de uma compreensão de como nós concebemos o mundo, em nossa vida cotidiana (SMITH, 2017, p. 159-196; 2020, p 162-171). Não vejo como começar uma investigação filosófica sem aceitar a nossa visão cotidiana do mundo. É preciso partir de algum lugar, e esse lugar não pode ser a suposição de alguma teoria filosófica, ou mesmo científica, porque isso seria arbitrário, ou dependeria da aceitação prévia da visão comum do mundo. Se, no final dessa investigação filosófica, acabamos por nos tornar céticos, isso se deve, ao menos em parte, por não termos aceitado as teorias dogmáticas que fatalmente envolvem uma reformulação de nossa visão inicial. Portanto, sem termos razões filosóficas para abandonarmos as crenças de que partimos, a filosofia “[...] deixa tudo como está.” (WITTGENSTEIN, 2009, p. 124).

Não é claro, no entanto, como descrever essa visão comum do mundo que compartilhamos na vida cotidiana. Neste artigo, eu gostaria de investigar um tópico específico, para tentar descrever um aspecto certamente secundário, mas ainda assim relevante, da nossa visão comum do mundo e, dessa maneira, começar a elaborar uma parte da visão cética do mundo. A questão a ser investigada é: numa metafísica cética, qual o status das cores? Eis, a meu ver, uma questão filosófica instigante que um cético contemporâneo, isto é, o neopirrônico, pode responder positivamente, mesmo que suspenda o juízo sobre as respostas dogmáticas.

Todavia, no cenário contemporâneo, o ceticismo é visto, com frequência, como uma doutrina negativa ou uma forma de dogmatismo negativo, isto é, como a tese de que não temos conhecimento ou de que não sabemos nada. Essa concepção do ceticismo (a meu ver, equivocada) favorece uma determinada posição na questão das cores. Para um cético contemporâneo, poder-se-ia pensar, as cores são meras sensações subjetivas, e não propriedades objetivas das coisas materiais ou objetos físicos, como mesas, livros, frutas e árvores. Uma maçã não seria vermelha, mas o vermelho seria uma característica fenomênica da nossa sensação, ao perceber a maçã; uma flor não seria amarela, mas teria a disposição de produzir em nós a sensação do amarelo. Afirmar que as coisas materiais ou objetos físicos têm uma determinada propriedade (por exemplo, essa ou aquela cor) seria comprometer-se com um dogmatismo inaceitável para um cético, porque implicaria uma crença sobre como as coisas são, no mundo à nossa volta.

Talvez se pudesse mesmo dizer que essa foi, desde sempre, a opinião de todos os céticos. Os céticos antigos admitiriam que as coisas aparecem de tal ou tal cor para nós, porém, isso seria admitir somente que é em relação a nós que elas aparecem com essa ou aquela cor, mas, sobre se as coisas têm realmente essa ou aquela cor, eles suspenderiam o juízo. Do mesmo modo, os céticos modernos, como Hume, sustentam que as qualidades secundárias estão na mente; ora, as cores são qualidades secundárias; portanto, estão apenas na mente, não nos objetos externos a ela.

Não me parece, entretanto, que o assunto se resolva de maneira tão fácil, seja do ponto de vista histórico, seja da reflexão contemporânea. Porque o subjetivismo das cores pode parecer, para um cético pirrônico antigo, uma forma de dogmatismo, uma vez que o subjetivismo afirma a tese filosófica de que as cores são propriedades de sensações (ou percepções), não das coisas materiais ou dos objetos físicos. Um cético deveria, antes, suspender o juízo a respeito do status metafísico das cores. A seção 2 deste artigo é dedicada a um estudo do que os céticos antigos e modernos disseram sobre as cores.

A seção 3 apresenta o debate entre Barry Stroud e John McDowell. Ambos tentam, cada um à sua maneira, descrever nosso conceito comum de cor. Mas encontramos descrições conflitantes. McDowell defende uma concepção subjetivista e Stroud faz a crítica do subjetivismo. Esse debate me permite balizar a discussão sobre qual seria uma concepção cética das cores. Talvez seja importante assinalar, desde já, que esse é um debate que pretende prescindir das ciências naturais ou de qualquer argumento que dependa da investigação empírica do mundo. Isso, certamente, limita o interesse do debate, mas, de outro, enseja determinar com mais precisão o conceito comum de cor, antes mesmo de qualquer investigação científica.

O objetivo da seção 4 é descrever qual seria, numa visão cética do mundo, o status metafísico das cores. Supondo que Stroud e McDowell apresentem respostas compatíveis com o neopirronismo, qual dessas respostas expressa de forma mais adequada e coerente uma visão cética do mundo? Qual dessas descrições das cores capta melhor a concepção comum das cores e, dessa maneira, constitui o ponto de partida para a elaboração de uma visão cética das cores? A meu ver, uma concepção cética do mundo não se limita a uma descrição do conceito comum de cor, contudo, deve começar com ela, para, em seguida, avaliar as contribuições da ciência ao nosso conceito comum de cor (SMITH, 2020, p. 162-171).

 

2 A tradição cética e as cores

Qual teria sido a posição de um pirrônico antigo a respeito das cores? Nos Dez Modos de Enesidemo, as cores são exemplos frequentes de oposição entre nossas percepções do mundo físico e dos objetos externos (por ex., SEXTO EMPÍRICO, 2000, 1.94, 1.120). Um exemplo clássico é o dos olhos de quem sofre amarelão ou de quem tem olhos avermelhados, os quais alterariam a percepção das cores de um objeto. Nesses casos, o cético concluiria que podemos dizer que os objetos aparecem com esta ou aquela cor para nós, mas não podemos dizer qual é realmente a sua cor. Entretanto, os céticos antigos têm argumentos que parecem ir mais longe: se o que percebemos é uma mistura do objeto externo com o meio externo, com nossos órgãos sensoriais e com nossa mente (2000, 1.126) ou se tudo é relativo a quem percebe e julga (2000, 1.135-136), então pode ser que, não somente não sabemos qual é a cor que um objeto tem, mas sequer sabemos se os objetos têm cor. Haveria uma suspensão do juízo a respeito das cores entendidas como propriedades objetivas das coisas, porém, o cético admitiria com que cor elas nos aparecem.

Além disso, na investigação da parte física da filosofia, Sexto não trata da realidade das cores. Os tópicos de que trata a física são: Deus, causa, corpo, espaço, movimento, número, tempo etc., mas não há uma preocupação específica com as cores. Não estaria Sexto admitindo implicitamente que as cores não fazem parte do mundo físico ou, pelo menos, que os objetos físicos poderiam não ter cor? Com base nessas passagens, poder-se-ia inferir que as cores são, para um pirrônico antigo, uma mera sensação que não corresponde a nada objetivo.

Nos Dez Modos, entretanto, as cores são exemplos menos frequentes do que se poderia esperar, à primeira vista. Não há nenhum privilégio da variação das percepções de cores, e outros exemplos, como o gosto do vinho e a sensação causada pelo vento, são tão, ou até mais, frequentes quanto as cores dos objetos. Por exemplo, quando trata das oposições entre as percepções dos sentidos usadas por Heráclito (2000, 1.210-211) e por Demócrito (2000, 1.213-214), Sexto não menciona as cores. O gosto do mel é seu exemplo preferido. Sexto estabelece oposições entre percepções referentes aos cinco sentidos com igual insistência e, mesmo entre percepções visuais, as cores não gozam de nenhum privilégio. Sexto opõe também percepções visuais das assim chamadas qualidades primárias, como movimento e repouso (2000, 1.107), e a forma de um objeto (2000, 1.118). Desse ponto de vista, as cores seriam tão “subjetivas” quanto o movimento e a forma de um objeto.

De fato, o cético opõe percepções visuais a percepções táteis, já que, diante de um quadro, a visão percebe um objeto tridimensional, enquanto o tato percebe um objeto bidimensional (2000, 1.92). Noutras palavras, Sexto não dá nenhuma indicação de traçar a distinção entre qualidades primárias e secundárias, incluindo as cores nesta última categoria. Assim, ou todas as propriedades dos corpos são igualmente subjetivas, ou não há nenhuma razão para afirmar que as cores, em oposição à forma e movimento, o são. Embora haja controvérsia entre os estudiosos de Sexto, a interpretação mais plausível, a meu ver, sustenta que o fenômeno (o que aparece) não é uma mera entidade mental, contudo, é o objeto que aparece. Se isso for correto, pode-se dizer que, assim como o mel aparece doce, uma maçã aparece vermelha.

Com relação à parte física, convém lembrar que Sexto investiga o que está nas doutrinas dogmáticas, e são estas que definem os tópicos a serem investigados, não o cético. Nesse sentido, quem exclui as cores como um assunto privilegiado a ser investigado pela filosofia é o dogmático, não o cético. A nenhum momento vemos Sexto traçar alguma distinção entre tipos de qualidades dos objetos, tal como estamos discutindo aqui, ou tratar as cores e outras qualidades de modo diferente das assim chamadas qualidades primárias. Seguindo os dogmáticos, Sexto ordena sua investigação de outra maneira, em torno de noções como princípios ativos e passivos, corpóreos e incorpóreos. Tudo leva a crer que essa distinção entre qualidades primárias e secundárias é, a seu ver, uma distinção dogmática, cujo representante na Antiguidade é o dogmatismo atomista de Demócrito. Essa é, portanto, uma distinção de um dogmatismo particular, não uma distinção relevante (naquele contexto) para ordenar uma investigação geral sobre a parte física da filosofia. O cético pirrônico faz um ataque metódico ao dogmatismo, não se preocupando, em geral, com doutrinas dogmáticas particulares (2000, 2.21, 2012, 1-3).

Os céticos modernos viram-se confrontados com a distinção entre qualidades primárias e qualidades secundárias como um tópico central da filosofia moderna. Hume chega mesmo a dizer que “[...] o princípio fundamental dessa filosofia é a opinião a respeito das cores, sons, sabores, aromas, calor e frio, os quais afirma serem apenas impressões na mente, derivadas das operações dos objetos externos e sem qualquer semelhança com as qualidades dos objetos.” (2004, 1.4.4.3). Após referir-se à importância de Gassendi na retomada do ceticismo antigo, Bayle deixa esse ponto muito claro: “Hoje, a nova filosofia tem uma linguagem mais positiva: o calor, o odor, as cores etc. não estão nos objetos de nossos sentidos, são modificações de minha alma, sei que os corpos não são como me parecem.” (2005, “Pirro”, B).

Como essa distinção foi empregada por diversos filósofos, para sustentar uma visão dogmática da realidade, a saber, que os objetos físicos seriam essencialmente extensos e suas propriedades (forma, movimento etc.) poderiam ser matematizadas, os céticos modernos trataram de atacar essa distinção:

[...] gostar-se-ia de excluir a extensão e o movimento, mas não se pode, pois, se os objetos dos sentidos nos parecem coloridos, quentes, frios, cheirosos, embora não o sejam, por que não poderiam parecer extensos e figurados, em repouso e em movimento, ainda que não tivessem nada disso? (BAYLE, 2005, “Pirro”, B).

 

Talvez seja importante notar, para deixar mais claro qual é o foco do problema, que os céticos não atacaram o uso da matemática na explicação da natureza, mas tão somente a ideia dogmática de que a natureza seria em si mesma escrita em linguagem matemática; o recurso à matemática, para explicar os fenômenos naturais, não é questionado pelos céticos (HUME, 1985, 4.i.27, p. 31). Mesmo que não se aceite a tese de que os corpos materiais são extensos na sua essência, isso não impede uma ciência que lance mão da matemática para explicar o seu comportamento. A questão, portanto, diz respeito somente à essência da matéria.

Bayle desferirá um poderoso ataque à ideia de que a extensão é a essência dos corpos materiais, em seu verbete “Zenão de Eléia”. Primeiro, Bayle relembra os argumentos de Zenão contra o movimento (2005, “Zenão de Eléia”, F). Mas a crítica de Zenão atinge somente uma modalidade do corpo material, a saber, o movimento, mas não a sua essência, isto é, a extensão. É preciso, então, levar essa batalha até o seu âmago e mostrar que a extensão não pode ser uma propriedade dos corpos. Para Bayle, a extensão é somente algo “ideal”, não uma propriedade dos objetos em uma realidade independente. Primeiro, Bayle desenvolve um longo raciocínio, idêntico na forma a muitos argumentos empregados por Sexto, para provar que a extensão não existe. Eis o silogismo hipotético de Bayle:

Se a extensão existisse, seria composta, ou por pontos matemáticos, ou por pontos físicos, ou por partes infinitamente divisíveis;

Ora, a extensão não é composta, nem por pontos matemáticos, nem por pontos físicos, nem por partes infinitamente divisíveis;

Portanto, a extensão não existe. (2005, “Zenão de Eléia”, G)

 

A forma lógica, assevera ele, é claramente válida, restando somente estabelecer as premissas. A primeira premissa enumera exaustivamente as possibilidades lógicas da questão: ou a matéria é divisível, ou não é; se for divisível, sua divisão termina num ponto com extensão (ponto físico) ou sem extensão (ponto matemático). O problema, por conseguinte, gira em torno da segunda premissa. Segundo Bayle, “[...] cada uma dessas três seitas, quando somente ataca, triunfa, arruína, abate, mas, por sua vez, é abatida e destruída quando se coloca na defensiva.” (2005, “Zenão de Eléia”, G). É fácil ver que, com base em pontos matemáticos, nunca se produzirá uma reta, pois a soma de infinitos zeros é zero; assim, a extensão não pode ser constituída de pontos matemáticos. Também é fácil ver que a ideia de pontos físicos (ou átomos) é absurda, pois um ponto físico admite partes (o lado direito, mais perto de outro ponto físico à sua direita, e o lado esquerdo, mais longe desse outro ponto físico; assim, pode-se dividir o ponto físico). Mais longa é a refutação da doutrina da infinita divisibilidade. Deixo-a de lado, por nos afastar demais do nosso assunto. Se as duas premissas são verdadeiras e a forma lógica é válida, a conclusão se segue inevitavelmente: a extensão não existe.

Após estabelecer essa conclusão, Bayle dá um passo a mais e afirma:

É preciso reconhecer, com relação ao corpo, o que os matemáticos reconhecem com relação às linhas e superfícies, dos quais demonstram tantas coisas belas. Eles aceitam de bom grado que um comprimento e largura sem profundidade são coisas que não podem existir fora de nossa alma. Digamos o mesmo das três dimensões. Estas só poderiam encontrar lugar em nossa mente, podem existir apenas idealmente. (2005, “Zenão de Eléia”, G)

 

Portanto, a posição de Bayle não somente nega a existência real da extensão, mas também admite que ela existe apenas na mente. Enquanto Sexto se utilizava de argumentos hipotéticos para negar a existência de alguma coisa, a fim de equilibrar o debate, contrapondo-os a argumentos igualmente fortes a favor da existência real do espaço (e do corpo material), Bayle parece julgar que esse argumento hipotético é o mais forte, impondo uma conclusão negativa.

De modo coerente, já que não traça a distinção entre qualidades primárias e secundárias, Bayle afirma que as cores também existem apenas idealmente, mas não realmente. “Nossa mente é um certo fundo em que cem mil objetos de cor diferente, de figura diferente e de situação diferente se reúnem, pois podemos ver todos de uma só vez do alto de uma colina uma vasta planície salpicada de casas, árvores, rebanhos etc.” (2000, “Zenão de Eléia”, G). Dessa forma, Bayle dá um passo que Sexto não deu, porque nega que a extensão e as cores sejam propriedades objetivas dos corpos materiais, afirmando que existem apenas na nossa mente, enquanto Sexto suspende o juízo sobre esse tópico. Há, portanto, uma forma de idealismo, na posição de Bayle.

Talvez seja interessante fazer uma breve comparação entre o idealismo fenomênico de Bayle e o idealismo transcendental de Kant, porque se pode sustentar o idealismo, seja com a distinção entre qualidades primárias e secundárias, seja sem essa distinção. Bayle parece ter antecipado, ao menos em parte, a filosofia transcendental kantiana, segundo a qual devemos distinguir entre as coisas em si mesmas e as coisas enquanto fenômenos que aparecem para nós. Kant (2000, A28-9/B44), contudo, traçará a distinção entre qualidades primárias e secundárias no interior desse mundo que aparece à mente humana: o vermelho da rosa não é uma propriedade da rosa que aparece, mas somente sua forma.

Bayle, ao contrário de Kant, rejeita essa distinção e, no interior do mundo fenomênico, tratará todas as qualidades sensíveis em pé de igualdade. Berkeley (1998, I, 9-15, p. 105-8) levará adiante a posição de Bayle, elaborando de maneira mais detalhada o que significa que qualidades primárias (extensão, movimento, forma etc.) e qualidades secundárias (cores, odores, sabores etc.) são somente propriedades de objetos que existem na mente, não na matéria. Essa divergência mostra que o status metafísico das cores pode reaparecer, num debate entre idealistas.

Vejamos como Hume lidou com essa questão. O ceticismo humiano claramente se distingue do de Bayle (RYAN, 2013). Para Hume, é possível encontrar uma maneira de resolver o impasse entre aquelas três teorias sobre a extensão que foram criticadas por Bayle. Se este, raciocinando à maneira dos céticos antigos, destruía as três teorias e concluía, de maneira pouco cética, que a extensão não existe, Hume deixará de lado o raciocínio hipotético que rejeita as três teorias, e defenderá uma delas, porém, paradoxalmente, restaurará a suspensão do juízo por uma via original. Para evitar as dificuldades levantadas por Bayle, Hume admitirá que existem pontos matemáticos coloridos (ou táteis) e, assim, será possível gerar uma reta com base em pontos matemáticos coloridos, caindo por terra a dificuldade levantada por Bayle (2004, 1.2.2.9, T 1.2.3.14). Hume, obviamente, não tinha a intenção de reviver a teoria dogmática de que a extensão é a essência da matéria, mas pretendia mostrar que a nossa ideia de extensão é uma ideia adequada dos corpos físicos (2004, 1.2.2.1). A seu ver, a ideia que temos da extensão e que representa adequadamente a extensão é uma ideia que não pode ser separada das cores.

Essa solução humiana para o problema cético da extensão possibilita reavaliar o status metafísico das cores. Como a ideia de extensão é uma ideia adequada, pode-se dizer do objeto aquilo que concebemos na sua ideia. Logo, se a ideia de extensão que temos envolve necessariamente a cor, então, os corpos materiais, por serem extensos, também são coloridos. A indissociabilidade da extensão e da cor estaria na base da nossa ideia do que é um corpo material e, sem essa indissociabilidade, o ceticismo de Bayle triunfaria. Não somente concebemos que o corpo material extenso é colorido, como também é impossível para nós conceber os corpos de outra maneira, sob o risco de cair no trilema suscitado por Bayle. Se retirarmos as cores dos objetos físicos, não teremos como concebê-los adequadamente. Na verdade, ao retirar qualidades primárias e secundárias, não restará nada que possamos conceber como a causa de nossas percepções (1985, 12. i.123, p. 155).

Assim, longe de relegar as cores à categoria de qualidades secundárias que existiriam apenas na mente, em oposição à extensão (como fazem dogmáticos realistas, como Descartes, Locke e Malebranche), ou de considerá-las como meramente mentais ao lado das demais qualidades que seriam igualmente mentais (como fazem dogmáticos idealistas, como Bayle, Berkeley e Kant, embora este recupere a distinção dogmática realista no interior do “mundo fenomênico”), o cético humiano se limita a reconhecer que os corpos materiais extensos são também coloridos, tentando explicar como a mente humana concebe esses corpos.

Há, portanto, quatro posições básicas. Entre os que aceitam a distinção entre qualidades primárias e secundárias, estão sobretudo os realistas (Galileu, Descartes, Hobbes, Locke, Malebranche etc.), mas também idealistas transcendentais (Kant). Entre os que não aceitam a distinção entre qualidades primárias e secundárias, estão principalmente os idealistas fenomênicos (como Bayle) ou “idealistas dogmáticos”, como Kant (2000, B274) chamava Berkeley (Berkeley chamava sua própria filosofia de “imaterialismo”), mas também os céticos (Sexto Empírico e Hume), os quais aceitam a vida cotidiana e a existência de objetos físicos extensos e coloridos (entre outras qualidades).

Em suma, os céticos, quer antigos, quer modernos, jamais assentiram à proposição de que as cores são sensações produzidas em nós pelos objetos físicos. Embora se notem diferenças entre suas posições, resta que, de um modo geral, cores são concebidas por eles como uma qualidade, entre tantas outras, com que os corpos materiais se apresentam a nós. Diante das controvérsias entre os dogmáticos, os céticos não podem afirmar que cores são propriedades intrínsecas dos corpos, e eles dispõem mesmo de argumentos que parecem estabelecer que não o são, todavia, podem dizer, segundo sua concepção, que os corpos são coloridos, que lhes aparece que os corpos têm cores, assim como têm forma, que a maçã, por exemplo, além de ser redonda, também é vermelha. Para o cético, concebemos e percebemos as cores como qualidades que os objetos têm.

 

3 Uma investigação do conceito comum de cor

Passemos ao problema das cores, tal como tratado pela filosofia contemporânea. A questão que nos ocupará é a de saber se, fora do contexto dogmático e dentro do contexto da vida cotidiana, aceita-se a distinção entre qualidades primárias e secundárias e, mais especificamente, se as cores são tomadas como qualidades secundárias ou como primárias, isto é, se, de acordo com a nossa concepção comum de cor, as cores existem no objeto ou apenas em nossa mente. Claramente, as coisas aparecem como tendo cores. Não somente percebemos as folhas das árvores como sendo verdes, mas também efetivamente pensamos que os corpos são coloridos. Mas no que consiste, exatamente, esse pensamento? Qual é a concepção comum que temos das cores?

O fio condutor de minha reflexão será o debate entre Stroud e McDowell sobre o status metafísico das cores. Ambos os autores são difíceis e suas posições, complexas. O debate tem uma dinâmica própria. Antes, porém, eu gostaria de tecer algumas considerações iniciais, para situar melhor suas divergências e justificar o meu interesse particular por esse debate. Não entendo o debate entre Stroud e McDowell como um debate entre dois dogmáticos. A meu ver, Stroud é um neopirrônico e McDowell, embora um pensador mais obscuro e ambíguo, tem afinidades com o neopirronismo. Vejamos isso mais de perto.

Stroud (2000) considera três possibilidades de desmascarar as cores, isto é, de argumentar para provar que as cores não são propriedades intrínsecas ou objetivas dos corpos materiais: as cores poderiam ser somente entidades mentais subjetivas ou meras sensações internas, como a dor; as cores poderiam ser uma percepção intencional produzida por um objeto físico, de modo que elas existiriam nesse objeto como uma disposição a causar a percepção; as cores poderiam ser propriedades do objeto, só que o objeto físico não teria a propriedade que vemos, mas outra diferente. Se alguma dessas tentativas de desmascarar a opinião de que os corpos são coloridos for bem-sucedida, os filósofos se tornariam dogmáticos e diriam: “as cores não existem realmente”, sugerindo que a opinião inicial de que existiriam foi, após a investigação filosófica, abandonada (“as cores parecem existir, mas não existem realmente”).

Para cada maneira de tentar desmascarar as cores como propriedades dos corpos materiais, Stroud esgrime um argumento diferente. Não é o caso de passá-los em revista aqui. Suponhamos que sua argumentação seja bem-sucedida. O que se segue? De um lado, que o veredito negativo dos filósofos, segundo o qual “as cores não são propriedades intrínsecas dos objetos”, não se justifica, pois os argumentos não o sustentam. De outro, tampouco se seguiria o veredito positivo, “as cores existem realmente”, porque o fracasso da tentativa filosófica de desmascarar a objetividade das cores não implica que elas sejam propriedades intrínsecas dos objetos, isto é, não há uma argumentação dogmática que estabeleça a conclusão de que as cores existem. Permanecemos com a crença cotidiana, dado que não há por que abandoná-la, mas isso não significa que a investigação filosófica descobriu algum argumento que a justifique (STROUD, 2000, p. 192-209).

McDowell (2011, p. 218-219) concorda, em linhas gerais, com essa posição de Stroud. Também ele pensa que o projeto filosófico de rejeitar ou justificar a crença cotidiana de que os objetos são coloridos está fadado ao fracasso. O famoso “quietismo” de McDowell pode ser interpretado desta maneira: permanecer “quieto” é não afirmar, nem negar nada, é simplesmente não se pronunciar sobre uma questão filosófica concebida como uma “busca da realidade”, ao mesmo tempo que se preserva a crença comum. Quando Stroud não emite um juízo negativo, nem um positivo, ele está ipso facto suspendendo o juízo; quando McDowell adota uma postura quieta, ele também está retendo o seu juízo. Portanto, McDowell parece aceitar a ideia de que, na busca filosófica da realidade, não caberia afirmar, nem negar a objetividade das cores. Isso não os impede, como visto, de continuar a manter a crença comum, sem, no entanto, dar-lhe um peso dogmático.

O caráter cético dessa posição é reconhecido por McDowell. Com efeito, este “[...] aplaude o ceticismo de Stroud sobre a ideia de que desmascarar a realidade das cores como propriedades dos objetos, com o argumento de que cores são subjetivas, pode servir como um meio para dar substância àquela suposta noção especial de realidade.” (2011, p. 218-9). Para McDowell, o [...] “ceticismo de Stroud sobre a adequação dela [distinção entre qualidades primárias e secundárias] para esse propósito está bem fundamentado.” O que talvez explique essa afinidade é que, até onde posso ver, esses dois filósofos se nutrem de Wittgenstein, cuja filosofia exibe uma certa desconfiança das teses dogmáticas. Stroud e McDowell parecem, ambos, cada um à sua maneira, suspender o juízo no que diz respeito à pergunta filosófica sobre o status metafísico das cores.

Podemos ver tanto Stroud como McDowell envolvidos num projeto não dogmático (portanto, cético) de descrever ou explicar nossa concepção comum das cores. O próprio Stroud (2018a) reconhece uma série de afinidades entre o seu pensamento e o de McDowell, embora procure ressaltar que essas são somente superficiais. Ambos aceitam que os objetos causam em nós uma determinada percepção, que, por exemplo, um tomate produz em nós a percepção de um tomate vermelho. Ambos aceitam que a percepção da cor de um objeto envolve algum elemento subjetivo, temos uma experiência. E ambos recusam que se trate de uma “experiência interna” (MCDOWELL, 1996, p. 31, n. 7; 2005, p. 68, n. 7).

Além disso, ambos concordam que os objetos físicos têm a disposição para produzir em nós essa percepção. Um objeto físico, dadas certas circunstâncias e certos seres com certos órgãos de percepção, tem a capacidade de produzir nesses seres percepções de determinado tipo. Stroud admite até que se possa ver que objetos físicos têm disposições, como podemos verificar, por exemplo, que o açúcar tem a disposição de se dissolver em água, quando colocamos uma colher de açúcar na água e a mexemos com uma colher. A meu ver, uma explicação cética do conceito comum de cor tem de admitir todos esses pontos, sem incorrer em dogmatismo. Por exemplo, um cético não pode pensar que a cor é “essencialmente perceptível”. A tese neutra de Stroud, de que a cor é somente visível, parece fazer jus ao conceito comum e, ao mesmo tempo, é perfeitamente compatível com o ceticismo.

Passemos ao debate e às divergências entre eles. Seguirei a seguinte ordem: (a) primeiro, apresentarei o que McDowell (1996) diz sobre as cores e, em seguida, como McDowell (2004, 2011) elabora um subjetivismo com “conexão direta” das cores; (b) depois, volto-me a Stroud (2000), que já antecipa e refuta a posição posterior de McDowell, sustentando que um subjetivismo com “conexão direta” é incoerente; (c) cabe, então, retomar McDowell (2004, 2011) para ver em que medida ele pretende ter afastado as objeções de Stroud (2000), mostrando a coerência de sua posição; (d) Stroud (2004, 2018a), diante dos argumentos de McDowell (2004, 2011), procura mostrar que este não conseguiu elaborar uma concepção adequada do subjetivismo; (e) para encerrar esta seção, proponho uma avaliação desse debate.

(a) Nas três primeiras conferências de seu já clássico Mente e mundo, McDowell sustenta a tese de que a experiência está impregnada de conceitos. Nesse contexto, ele trata das cores como possíveis contraexemplos para sua tese, porque, aparentemente, elas seriam não conceituais. Mas, argumenta McDowell (1996, p. 29-33, 56-60; 2005, p. 66-71, 93-97), a sua tese vigora até onde pareceria não valer, isto é, mesmo as cores exibiriam algum elemento conceitual. Frases altamente observacionais também conteriam um elemento conceitual. Há, para McDowell, uma conexão racional entre “S vê que a maçã é vermelha” e “S pensa que a maçã é vermelha”, uma vez que ambas compartilham o mesmo conteúdo, isto é, a mesma frase “a maçã é vermelha”. Nessa obra, portanto, McDowell não está interessado especificamente nas cores, exceto na medida em que elas não somente ilustram a sua tese, mas também afastam aquela que poderia ser a objeção mais forte, já que nossos conceitos alcançariam até quando se está o mais próximo possível do observacional. Ele não está interessado em defender que cores são qualidades secundárias, mas simplesmente supõe que o são.

É somente quando é instado a criticar o livro de Stroud sobre as cores que McDowell (2004, 2011) elabora sua concepção do que são as cores. Como já se disse, sua concepção das cores não se insere dentro do projeto tradicional de desmascará-las, porém, preserva a distinção entre qualidades primárias e secundárias. A seu ver, “[...] para um objeto ser, por exemplo, amarelo, é para ele ser tal como parecer amarelo...” (2011, p. 219) Os três pontinhos servem para indicar uma especificação (para quem ou em que circunstâncias aparece amarelo). Não se deve entender o amarelo como uma sensação, mas como uma percepção (2011, p. 220). Para McDowell, o que caracteriza o subjetivismo a respeito das cores é a tese de que os conceitos de cores são distintamente subjetivos, isto é, cores são propriedades dos objetos que dependem essencialmente de seres que as percebem. Na frase citada acima, a palavra “amarelo” ocorre duas vezes: “ser amarelo” e “parecer amarelo”, e McDowell sugere que se deve identificar ser amarelo com parecer amarelo. Assim, essa frase exprime uma concepção disposicional da cor (“tal como”) e subjetiva (“parece”).

De maneira um pouco mais precisa, pode-se dizer que o subjetivismo das cores defendido por McDowell envolve dois elementos: uma formulação e uma explicação da relação dessa formulação. Eis a formulação subjetivista para a cor amarela:

Um objeto é amarelo se e somente se for tal que é capaz de produzir a sensação amarela em determinadas pessoas e em determinadas circunstâncias.

Talvez valha a pena simplificar esse bicondicional para facilitar a discussão:

O é C se e somente se O tem a disposição de produzir C em P nas M.

Nessa fórmula, O é um objeto, C é uma cor, P é uma pessoa normal e M são as melhores circunstâncias de percepção. A formulação tem um lado esquerdo [“O é C”] e um lado direito [“O tem a disposição de produzir C em P nas M”].

A questão é saber qual a relação entre C do lado esquerdo e C do lado direito dessa formulação. A ideia que temos de uma cor é igual à cor do objeto ou não? Se vemos uma maçã vermelha, nossa ideia de vermelho (uma qualidade perceptível) é igual à propriedade da maçã ou dela difere: a maçã tem a qualidade de ser vermelha ou tudo o que existe na maçã é a disposição de produzir em nós a cor vermelha?

(b) De acordo com Stroud (2000), o subjetivismo instaura uma “conexão indireta” entre os dois lados do bicondicional, isto é, a conexão entre a cor como qualidade e a cor como disposição não é direta. Stroud considera diversas formas de subjetivismo e conclui que nenhuma é satisfatória. Duas são as razões para essa condenação. Primeira, para sustentar a conexão indireta, seria preciso tornar a cor percebida inteligível independentemente da cor do objeto, e isso não seria possível: não se pode identificar a cor que percebemos independentemente de objetos vermelhos. Segunda, mesmo se fosse possível, a relação entre cada lado do bicondicional é meramente contingente e, se houvesse mudança na estrutura perceptiva de P ou nas circunstâncias de percepção, um objeto amarelo produziria, por exemplo, a sensação de azul. No entanto, como argumenta Stroud, a relação é contingente, pois, em diferentes circunstâncias ou em diferentes seres, o objeto físico produziria percepções diferentes e, por conseguinte, os objetos teriam cores diferentes. Por exemplo, em circunstâncias diferentes, o tomate produziria o azul, e não o vermelho, de modo que, dada a tese da identidade, o tomate seria azul, e não vermelho. O tomate, então, seria vermelho e azul, o que é absurdo.

(c) McDowell (2004, 2011) defende uma explicação subjetivista das cores, combinando-a com uma “conexão direta”. Essa é a sua originalidade. Para isso, ele aceita uma versão diferente da fórmula bicondicional:

O é C se e somente se O for tal que aparenta (looks) C em P nas M.

A modificação não é irrelevante. A meu ver, a substituição de “é capaz de produzir C” ou “tem a disposição para produzir C” por “aparenta C” tem a intenção de garantir que se trata de um subjetivismo sem precisar de uma interpretação redutivista da relação da cor, em um lado do bicondicional com a cor do outro lado do bicondicional. A tese redutivista diz que a cor se reduz à disposição, isto é, a cor de um objeto é meramente a sua disposição a produzir em nós a sensação ou percepção da cor. Mas também McDowell quer preservar a objetividade das cores, mesmo que isso possa parecer paradoxal, à primeira vista. A seu ver, é preciso fazer justiça à concepção comum de que os objetos são coloridos. Para preservar essa concepção comum, McDowell elabora a tese de que a cor é uma propriedade “essencialmente subjetiva”, já que nossa ideia de cor envolveria “essencialmente” a cor com a qual o objeto aparece para nós: ser vermelho e aparentar vermelho seriam indissociáveis. O conceito de uma cor é indissociável de como essa cor aparece para nós e, dessa maneira, não poderia ser reduzido a uma mera disposição.

Portanto, a formulação específica de McDowell seria uma concepção subjetivista das cores, sem o reducionismo da conexão indireta, o que permitiria a McDowell rejeitar a conexão indireta, a qual parecia aos olhos de Stroud uma tese indispensável para o subjetivismo das cores, e aceitar a conexão direta, isto é, a identidade entre a cor de um lado do bicondicional e a do outro. De seu ponto de vista, trata-se de uma única e mesma propriedade: a propriedade que pensamos que o objeto tem é a mesma propriedade que o objeto aparenta ter. Por exemplo, a ideia que temos de um objeto amarelo é idêntica à sensação de amarelo que temos, quando vemos esse objeto nas melhores condições.

Segundo McDowell (2004, 2011), o erro de Stroud estaria no fato de que ele teria considerado essa questão somente no contexto de um projeto metafísico (isto é, dogmático), em que se busca a realidade absoluta, corrigindo nossa visão comum do mundo. Dentro desse projeto metafísico (a meu ver, dogmático), o argumento de Stroud seria convincente, porque o subjetivista tentaria “reduzir” a propriedade do objeto (Ce) à sensação que temos dele (Cd). De fato, concorda McDowell, a redução não funciona. No entanto, continua McDowell, a motivação para sustentar o subjetivismo não precisa depender desse projeto metafísico (dogmático): não é preciso defender a redução da propriedade objetiva a uma propriedade subjetiva e disposicional para manter a distinção entre qualidade primária e secundária. O subjetivismo só implica reducionismo no contexto dogmático, porque, fora dele, seria possível ser subjetivista sem ser reducionista. No subjetivismo das cores de McDowell, as cores percebidas são as cores reais e, ainda assim, são também disposições do objeto.

Terá McDowell descrito adequadamente nossa concepção comum de cor? A visão comum do mundo é subjetivista a respeito das cores? Pode-se identificar a cor como uma qualidade do objeto e a cor como uma disposição do objeto?

(d) Stroud (2004, 2018a) não aceita a tese da identidade de McDowell como uma descrição adequada para o conceito comum de cor. Há, pelo menos, dois problemas fundamentais na posição de McDowell. Primeiro, mesmo que a tese da identidade tente preservar a objetividade da cor, o mero fato de pensar a cor como algo subjetivo já a tornaria incorreta. Conforme sua concepção, aceitar que os objetos são coloridos significa aceitar que a cor é uma qualidade que está no objeto físico e não no ser que o percebe com tal cor. Segundo, atribuir simultaneamente ao objeto a cor como sua aparência e a cor como sua disposição a produzir a percepção dessa aparência, o que parece conduzir a absurdos. Se a cor do objeto é a sua aparência, então, não é a sua disposição para produzir uma sensação ou percepção em nós; e se a cor é essa disposição, logo, não é a qualidade que lhe atribuímos. Ou se defende que a cor é a qualidade aparente que vemos, ou se defende que a cor é uma disposição. Não seria possível defender as duas coisas, ao mesmo tempo. Em suma, Stroud rejeita tanto que a cor de um objeto seja algo subjetivo quanto que ela possa ser identificada com uma disposição.

Para Stroud, as condições nas quais uma cor é percebida não fazem parte do conceito de cor, como argumenta McDowell. Não é porque a percepção de cor se produz em certos seres com certos órgãos perceptivos e em certas circunstâncias que a cor será uma propriedade subjetiva ou disposicional. De forma mais específica, Stroud nega que o conceito de cor inclua esses fatores contingentes.

Stroud substitui a tese subjetivista de McDowell, segundo a qual a cor seria “essencialmente perceptível”, pela tese neutra, por assim dizer, de que a cor é “essencialmente visível”. Ser “essencialmente perceptível” significa que a cor depende essencialmente de um ser que a perceba ou seja capaz de percebê-la em certas circunstâncias. Para essa tese ser correta, a relação entre o objeto físico que produz a percepção de cor e a percepção de sua cor deveria ser necessária (“rígida”) e não contingente. Mas já vimos os dois argumentos com base nos quais Stroud rejeitou essa tese. No seu lugar, Stroud defende a ideia muito mais modesta de que a cor é “essencialmente visível”. Aqui, o “essencialmente” não tem peso dogmático, porque significa que a cor é percebida somente pela visão, enquanto a forma de um objeto (por exemplo, ser redondo) pode ser percebida tanto pela visão como pelo tato. A forma, portanto, não é “essencialmente visível”, já que também é tátil. “Essencialmente” significa apenas “unicamente”: as cores são percebidas unicamente pela visão, não são percebidas por outros sentidos. Ora, essa é uma descrição do que ocorre, é uma tese trivialmente correta.

Do mesmo modo, Stroud critica a teoria disposicionalista das cores, tal como McDowell a defende. Mesmo que sejamos capazes de perceber a disposição dos objetos físicos para produzir em nós percepções de cores (se o formos), disso não se segue que a cor de um objeto, do ponto de vista objetivo, seria essa disposição. A cor, entendida como propriedade de um objeto físico, não é uma propriedade disposicional, mas é uma propriedade de outro tipo: assim como é redondo, o tomate é vermelho. Ser redondo e ser vermelho são propriedades do objeto, que este tem independentemente da capacidade de produzir uma percepção num outro ser. Um tomate tem a disposição de produzir em nós a percepção do redondo, porém, ser redondo não se identifica com essa disposição. O mesmo valeria para a disposição de produzir a percepção do vermelho: o tomate tem essa disposição, mas sua propriedade de ser vermelho não se identifica com essa disposição.

(e) É hora de tomar posição nesse debate. O que queremos saber é qual é o nosso conceito comum de cor, como elucidá-lo. Confesso que a explicação de McDowell me parece inadequada à nossa concepção de cor. Ele tenta combinar uma concepção subjetivista das cores, ao mesmo tempo que sustenta sua objetividade e, para isso, elabora a tese de que há uma identidade entre a aparência colorida de um objeto e a sua disposição para produzir em nós uma percepção. Essa tese parece gerar uma relação quádrupla, por assim dizer. Ou seja, a tese da identidade conduz a uma explicação que envolve quatro elementos: dois no objeto (a aparência e a disposição), dois no sujeito (a percepção da aparência e a percepção da disposição). É essa explicação das cores com quatro elementos que me parece estranha, não só por ser demasiado complexa, mas também por ir contra nosso conceito comum de cor. Parece-me que McDowell enfrenta um dilema, no qual essa consequência estranha da explicação de McDowell desempenha um papel crucial.

No que diz respeito ao objeto, a cor se bifurca em aparência e disposição. Ora, ter uma aparência colorida não é equivalente a ter uma disposição, pois uma aparência não é uma disposição. Uma disposição é algo que pode ou não ocorrer; uma aparência é algo que está ocorrendo. McDowell poderia dizer que ter uma disposição é algo tão permanente quanto uma aparência e, nesse sentido, um objeto tem permanentemente uma cor, mesmo que não a esteja produzindo em alguém. Mas não é assim que pensamos o que as cores são: como uma disposição para produzir uma aparência, e sim a própria aparência do objeto. Nós distinguimos a aparência e a disposição, e compreendemos que a cor é somente a aparência do objeto, não sua disposição. Ao negar essa distinção, McDowell vai contra o que pensamos; se, ao contrário, ele a sustenta (em conformidade com o que pensamos), então, a cor não seria uma coisa só, mas duas, o que também vai contra o que pensamos.

Correspondentemente, no que concerne à pessoa que percebe uma cor, essa percepção se bifurca, ocasionando o mesmo dilema: ou McDowell nega uma distinção óbvia ou, se a aceita, duplica de maneira incompreensível a percepção que temos ao perceber uma cor. Ao perceber uma cor, nós teríamos uma única percepção, na qual perceberíamos tanto a aparência da cor do objeto quanto a sua disposição a produzir em nós a sua aparência colorida; afinal, haveria uma identidade entre elas. O problema não é admitir a ideia de que percebemos também uma disposição; por exemplo, pode-se dizer que percebemos a disposição do açúcar se dissolver em água.

O ponto é que a percepção de uma disposição não é idêntica à percepção de uma aparência. Nós simplesmente não pensamos assim. Uma coisa é perceber a aparência colorida de uma coisa, outra coisa é perceber a sua disposição para produzir uma percepção dessa aparência. Se McDowell distinguir que, na percepção das cores, percebemos duas coisas (a percepção da aparência e a percepção da disposição), logo, segundo nossa concepção comum de cor, só a primeira constitui nossa percepção da cor. De novo, ou McDowell vai contra o que pensamos, ou propõe uma descrição estranha da percepção da cor.

Poder-se-ia dizer que o ponto da tese da identidade é, justamente, evitar essa duplicação da cor no objeto e da percepção no sujeito, garantindo que os objetos são coloridos e que as cores são essencialmente subjetivas, como, no entender de McDowell, seria a nossa concepção comum. Todavia, essa não me parece ser a concepção comum de cor e parece ir contra uma distinção que traçamos, na vida cotidiana, entre a aparência de uma coisa e a disposição de uma coisa. E simplesmente afirmar a tese da identidade parece um passe de mágica, que, no entanto, não faz desaparecer as dificuldades reais de tentar combinar a tese de que as cores são “essencialmente perceptíveis” e, contudo, estão no objeto na forma de uma disposição. Essa tese de McDowell reincide, talvez contra a expressa intenção de seu autor, no dogmatismo.

 

4 Uma concepção cética das cores

Resta, agora, descrever nossa concepção comum da cor e elaborar como um cético explicaria a percepção das cores. O primeiro ponto que eu gostaria de ressaltar é que as posições de Stroud e McDowell, apesar da grande divergência apontada, no final da seção anterior, contêm importantes elementos comuns na descrição da cor e da percepção da cor, como vimos no começo da seção anterior. A meu ver, esses elementos comuns podem ser incorporados numa visão cética das cores. Além disso, precisarei me posicionar diante de suas divergências. Tentarei, na sequência, esboçar a minha posição cética.

Em artigos sobre a percepção (SMITH, 2000, 2005, 2014, 2020, cap. 5), defendi, seguindo Austin, a ideia de que a percepção é um fenômeno complexo, como que um padrão de eventos. O esquema da percepção pressupõe dois polos, o objeto (ou evento) e a pessoa, e as relações que se estabelecem entre eles. Simplificadamente, pode-se dizer o seguinte: a pessoa que percebe um objeto (ou evento) busca informação sobre o mundo; ao dirigir seu olhar para um objeto (ou evento), este causa uma percepção, nessa ocasião determinada; produz-se um efeito na pessoa que percebe o objeto, o qual é sua experiência; e a pessoa age no mundo com base nessa percepção. Eu gostaria de aplicar esse esquema, ainda que brevemente, ao caso das cores.

Suponha-se que eu queira saber se um tomate já está maduro para ser cortado e posto na salada. Ele estava ainda meio amarelado, até um ou dois dias atrás. Vou até a cozinha, acendo a luz, pego o tomate na mão e olho para ele, prestando atenção na sua cor (e também na sua consistência, se ainda está muito duro ou se já amoleceu um pouco). O tomate, nessas circunstâncias, produz em mim a percepção de um tomate vermelho (e sinto que não está mais tão duro). Então, corto-o em rodelas e ponho na salada. Vejamos como o esquema se aplica a uma situação corriqueira como essa.

Comecemos pelo lado do objeto, que causa em nós a percepção de uma determinada cor. O objeto certamente tem a disposição para causar em nós a percepção da sua cor e só exerce sua capacidade em determinadas situações, as quais são as ocasiões em que sua disposição se realiza. Se as ocasiões não ocorrerem (haver luz suficiente, não haver nenhum obstáculo que impeça sua visão etc.), o tomate não produzirá a percepção do vermelho ou até não produzirá nenhuma percepção. Para que essa disposição se realize, é preciso também que determinadas coisas ocorram no lado da pessoa, a qual só o perceberá com a aparência do vermelho, se estiver de olhos abertos, se tiver sua cabeça voltada para o tomate e se estiver prestando atenção ao tomate. Dessa maneira, estabelecem-se ao menos duas relações entre o objeto físico e a pessoa: uma relação causal, por meio da qual o objeto atua sobre a pessoa; e uma relação em que a pessoa dirige seu olhar para ele e presta atenção à sua cor.

Se isso for correto, vemos que, de fato, a disposição do tomate em causar em nós a experiência perceptiva do vermelho é um elemento componente da percepção. Segue-se que essa disposição é idêntica à cor? De maneira nenhuma. Ao contrário, a disposição de causar uma experiência perceptiva é diferente da própria experiência que causa. Enquanto a disposição está no objeto, a experiência está na pessoa; a disposição para produzir a experiência do vermelho pode ou não ocorrer e, se não ocorrer, não há experiência do vermelho.

De acordo com o esquema, uma pessoa percebe que o tomate é vermelho, vê o tomate vermelho, tem uma sensação de vermelho. Essa experiência (a qual pode ir de uma percepção mais complexa até uma mera sensação) está na pessoa, é um efeito na pessoa, isto é, aquilo que o objeto produz, quando produz a experiência perceptiva de cor, é algo que ocorre num ser percipiente. Segue-se que a cor é subjetiva? De forma nenhuma. Não se deve supor que se trata de uma “experiência interna”, como se o que a pessoa experiencia é somente o que ocorre nela, uma representação do objeto colorido. O fato de o objeto produzir um efeito na pessoa não implica que é esse efeito que a pessoa experiencia. O que é subjetivo é a experiência (a sensação do vermelho ou a percepção de um tomate vermelho ou de que o tomate é vermelho), mas não a cor. A experiência que se tem é a de que o tomate se apresenta a nós como sendo vermelho.

Desse modo, temos uma experiência, e essa experiência é a de que o tomate é vermelho, de que o tomate aparenta ser vermelho, de que ele tem a aparência vermelha. “Aparência”, aqui, tem um significado objetivo, como quando dizemos que alguém tem uma aparência elegante ou aparenta estar doente. A “aparência” se distingue da “experiência”, posto que esta é o efeito produzido pelo objeto na pessoa, enquanto aquela está no objeto. Não se deve, portanto, identificar a cor a esse elemento subjetivo da percepção, como se fosse uma representação, mas a cor é uma maneira pela qual o objeto se apresenta para nós.

No esquema proposto, distingue-se também entre a relação causal, que parte do objeto e afeta a pessoa, e a relação ativa, a qual parte da pessoa e alcança o objeto. Isso permite acomodar tanto a disposição para causar determinado tipo de percepção, que é uma relação causal, quanto a aparência colorida do objeto. De um lado, por meio da relação causal, o objeto exerce a sua disposição, se as circunstâncias forem apropriadas, e, de outro, através de uma relação na qual a pessoa exerce suas capacidades perceptivas, ela dirige a sua atenção a um objeto e o vê como tendo uma determinada cor. A pessoa fica sabendo qual é a aparência do tomate (se já está vermelho ou não), por intermédio do exercício de sua capacidade perceptiva (que é uma capacidade cognitiva).

Assim, uma coisa é a disposição do objeto de causar uma experiência e outra é sua aparência; cada uma está associada a um tipo de relação entre o objeto e a pessoa, que se estabelece na relação perceptiva. A propriedade de ter uma certa disposição, portanto, não é idêntica à propriedade de ter uma certa aparência. A cor é, precisamente, essa aparência que o objeto tem e que percebemos, quando ele produz em nós uma experiência, quando sua disposição se exerce sobre nós, nas situações apropriadas.

Cabe às ciências examinar como ocorre esse processo causal. Para isso, o cientista lança mão de teorias, como a teoria ótica (a fim de explicar como os objetos refletem a luz, como o cristalino projeta os raios de luz na retina) e nossas teorias sobre a fisiologia humana (como os cones e bastonetes na retina absorvem a luz e transmitem para o cérebro). A psicologia pode estudar nossa capacidade perceptiva e descobrir como o ser humano investiga o mundo, através de sua percepção, como esta se relaciona com a ação, não somente fornecendo informações sobre o mundo, mas buscando essas informações como resultado de nossas questões e preocupações. Nessa perspectiva, as ciências pressuporão nossa concepção comum de percepção e investigarão como esse processo acontece, propondo hipóteses explicativas mais ou menos bem corroboradas, de modo que entenderemos cada vez melhor como percebemos e conhecemos o mundo.

Também se pode examinar cientificamente a experiência que se tem, quando percebemos algo. Por exemplo, se nossas experiências são penetráveis por crenças ou não, se só contêm informações “pobres” ou se incluem conteúdos “ricos”, se têm módulos ou não, se os módulos só têm conteúdo “pobre” ou se têm conteúdo “rico”, qual a sua relação com as crenças. Cada um dos elementos da percepção pode ser investigado empiricamente, o que nos possibilitará sua compreensão mais detalhada e exata.

Tudo isso é um campo fértil de investigação científica, da qual os filósofos podem participar, e está aberto a hipóteses e discussões teóricas, talvez confirmáveis empiricamente. A meu ver, todo esse campo de investigação científica está condicionado pelo nosso conceito comum de percepção. As cores são um exemplo disso. Naturalmente, os resultados científicos podem levar a um refinamento de nossa concepção comum de percepção e a um entendimento detalhado de como a percepção das cores ocorre e de como nos orientamos por elas. Não vejo nenhuma oposição entre os resultados alcançados pelas ciências e nossa concepção comum de percepção. Justamente por isso, não haveria por que mudá-la fundamentalmente, contudo, somente refiná-la e entender melhor cada um dos seus elementos e como eles se articulam em nossa concepção comum.

Poder-se-ia afirmar que se, de um lado, argumentos filosóficos são insuficientes para mudar nossa concepção comum, porque a oposição entre eles leva à suspensão do juízo, resultados experimentais, de outro, podem nos fazer rever aspectos de nosso conceito comum. Para avaliar esse impacto das ciências naturais, seria preciso um estudo específico e detido. A visão cética do mundo, vale a pena repetir, começa com uma descrição da concepção comum, todavia, deve também investigar os resultados alcançados pelas ciências e refletir filosoficamente sobre eles.

A concepção que acabo de delinear me parece inteiramente compatível com o que assevera Sexto Empírico, ao menos na interpretação de Porchat (2013, p. 305-309). Segundo Porchat (2013, p. 307), “[...] os objetos (phainómena) levam o sujeito a dar assentimento a afecções (páthe) por eles causadas e que se configuram como phantasía em sua diánoia [intelecto].” Porchat (2013, p. 308) repete essa ideia, logo em seguida: “Quando o phainómenon impacta a diánoia e nela dá origem à phantasía, o assentimento a esta se impõe de necessidade, isto é, o sujeito não pode não reconhecer que está experienciando a phantasía que corresponde ao phainómenon em questão.” Por conseguinte, o objeto causa em nossa mente uma phantasia, a qual é uma experiência perceptiva que temos desse objeto. Espero que esse breve resumo baste para que se perceba a notável semelhança com o que se frisou acima.

A única diferença com o que propus está na tradução de phantasia. Porchat (2013, p. 308) propõe traduzir por “representação”. Não me parece boa tradução. Se o cético entender a phantasía como uma “representação”, seguem-se todos os problemas denunciados por Sexto, em sua crítica às noções estoicas e acadêmicas de phantasia (2000, 2.70-79; 2012, 7.370-439; PORCHAT, 2007, p. 101-107). Bury (1983) traduz por presentation e Porchat, antes de publicar seu artigo, pensou em seguir Bury e traduzir por “presentação”. Mas argumentei que, segundo um dicionário que consultei, era um português arcaico e ninguém entenderia o que ele quer dizer. Sugeri “apresentação”, mas Porchat não gostou e preferiu voltar a “representação”. Entretanto, a meu ver, quando a mente é afetada por um objeto, o objeto se apresenta à mente, isto é, a mente percebe o objeto, não sua “representação”. Por isso, não me parece feliz a afirmação de Porchat (2013, p. 307), segundo a qual “[...] nosso acesso ao mundo, isto é, nosso acesso aos phainómena, tem lugar em nossa diánoia.”

Porchat parece voltar, ao menos em parte, à sua antiga interpretação de um mentalismo no pirronismo antigo, quando a noção de phainómenon era interpretada como uma entidade mental e, portanto, como um dogmatismo implícito dos pirrônicos antigos (PORCHAT, 2007, p. 100, 108-110). Agora, o phainómenon é, decerto, um objeto no mundo, mas a sua phantasia na diánoia é compreendida como uma representação por meio da qual a mente teria acesso ao objeto. Ora, se a phantasia fosse uma representação, o problema do mundo exterior ressurgiria com toda a sua força. Tivesse Porchat entendido a phantasia como uma apresentação do objeto na mente, então, a impressão de um retorno àquela velha interpretação se dissiparia e, portanto, a objeção ao pirronismo continuaria sem nenhuma força. O neopirronismo, concebendo a phantasia meramente como a apresentação do phainómenon à diánoia, não incide em dogmatismo, nem levanta o problema do mundo exterior. De fato, para voltar ao nosso tópico, está perfeitamente de acordo com a ideia de que os objetos se apresentam a nós como coloridos.

 

THE METAPHYSICAL STATUS OF COLORS

Abstract: My intention, in this paper, is to elaborate a conception of colors as part of a skeptical view of the world. In order to do that, I examine how some of the major skeptics throughout the history of philosophy conceived colors, in relation both to other sensible qualities and to the physical object. Next, in the light of the exchange between Barry Stroud and John McDowell, I describe what seems to me to be the common conception of color, which the skeptic not only accepts, but goes even further claiming that he may know the color of objects through sense-perception.

Keywords: Secondary qualities. Primary qualities. Metaphysics. Skeptical view of the world. Dogmatism. Perception.

 

Referências

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Recebido: 12/09/2022

Aceito: 21/02/2023


COMENTÁRIO A “SOBRE O STATUS METAFÍSICO DAS CORES”: SOBRE O PROJETO DE UMA METAFÍSICA CÉTICA SOBRE AS CORES

 

Luiz A. A. Eva[223]

 

Referência do artigo comentado: SMITH, P. J. Sobre o status metafísico das cores. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 473-500, 2003.

 

            Primeiramente, fico feliz de saber que os meus comentários anônimos foram acolhidos simpaticamente, como úteis e cuidadosos. Não sendo isto um parecer, não vou reiterar as ótimas qualidades do artigo que o leitor seguramente terá visto por si mesmo, para chegar a este comentário. Chegou a hora de acrescentar a eles outras considerações que não cabem num parecer, estimuladas pela proposta de uma metafísica cética das cores, por P. J. Smith. As notas que seguem são mais extensas do que eu pretendia (e esse defeito do meu texto resulta também das qualidades do artigo), mas não pretendem mais que convidar ao debate que essa proposta merece.

            É possível uma metafísica cética? Como bem nos indicou Hume, no cap. 12 do EHU, diante do ceticismo, convém começarmos nos perguntando: que cético é esse? Smith nos mostra com clareza que usualmente as respostas negativas a essa questão se apoiam numa imagem limitada caricatural do cético: supor que o cético estaria condenado a um subjetivismo não faz justiça à riqueza do debate acerca da natureza das nossas percepções, na filosofia moderna (examinado de forma clara e instrutiva nas filosofias de Bayle, Berkeley, Hume e Kant), nem às reflexões pirrônicas de Sexto Empírico e de suas atualizações contemporâneas, explícitas no neopirronismo de Porchat, e mais enviesadas no pensamento de Wittgenstein, Stroud e McDowell.

            Mais do que recusar essas interpretações, Smith sustenta a possibilidade efetiva de uma metafísica cética, esclarece qual seria essa natureza (uma metafísica, em princípio, compatível com o tratamento que Sexto Empírico atribui a nossa experiência de mundo) e oferece, ademais, como se viu, uma incursão pessoal nesse terreno, posicionando-se no debate contemporâneo sobre o estatuto metafísico das cores, tal como compreendido no debate entre Stroud e McDowell – isto é, como uma metafísica que descreva adequadamente a “lógica” da nossa percepção comum desse fenômeno. Pretendo discutir essa proposta, tendo em mente uma questão de fundo acerca de como compreender o sentido desse ceticismo: até que ponto uma metafísica pode ser cética e satisfazer adequadamente as exigências impostas pela sua própria dimensão cética?

            Como bem vê o autor, muito está em jogo no modo como se compreendem os termos da discussão. Já de saída, ele se ocupa de esclarecer uma distinção crucial entre “dogmatismo” (o alvo preciso da crítica cética pirrônica sextiana) e “metafísica” (apenas uma área da investigação filosófica à qual Sexto nunca se refere explicitamente), bem como uma linha demarcatória entre, de um lado, o domínio do “não evidente”, do que transcende a experiência, sobre o qual se pronuncia a filosofia dogmática, e o domínio da experiência, a respeito do qual o cético poderia ter crenças e mesmo conhecimento. Essa mesma linha demarcatória se desdobra em outra distinção menos trivial, entre duas maneiras de encarar filosoficamente a realidade: haveria uma maneira “comum” (pela qual a realidade se opõe à ficção), chancelada pelo cético, e uma maneira dogmática (pela qual “[...] todos os objetos reais, segundo a nossa distinção comum, passam a ser vistos como meras aparências e, no melhor dos casos, indícios da ‘verdadeira’ realidade” (SMITH, 2003, p. 475), e assim se oporiam a uma realidade que os transcende, uma “realidade absoluta”.)

            Essas definições são importantes para que o leitor não se desvie em juízos precipitados decorrentes de uma má compreensão dos termos, mas penso que elas podem soar suspeitas. Primeiro, porque, de uma parte, talvez não descrevessem adequadamente a distinção entre os filósofos céticos e dogmáticos, como compreendida por Sexto Empírico. Não deveríamos situar Aristóteles, por exemplo, na turma dos que adotam a distinção comum entre realidade e aparência? Afinal, para ele, a realidade dos objetos da experiência comum não é uma ilusão nem indício de outra realidade oculta.

Mas, em segundo lugar, porque talvez o autor nos peça que concedamos demasiado no nível das definições, e que elas assumam teses não triviais como verdadeiras, as quais talvez precisassem ser demonstradas. Admitir que o dogmatismo se manifesta apenas nessas teses parece criar de antemão um terreno estreito, onde ele pode ser isolado, e outro bastante robusto para uma dimensão propositiva e construtiva de uma filosofia cética. Contudo, penso que isso seria, a esta altura, injusto e precipitado. Mesmo que a interpretação aqui subjacente do pirronismo fosse inovadora ou divergente, diante do que teria sido o ceticismo de Sexto, isso naturalmente não comprometeria o seu valor intrínseco. Ademais, essa proposta se expõe a ser avaliada por seus produtos (a saber, os seus próprios juízos metafísicos considerados no contexto do debate contemporâneo).

            Seja como for, a metafísica cética de Smith pretende oferecer uma reconstrução ou atualização pertinente da filosofia de Sexto e, para tanto, baseia-se em uma interpretação particular dessa filosofia. Já no primeiro parágrafo, lemos que “[...]o dogmatismo é um tipo de reflexão que pretende transcender o domínio da experiência, de modo que uma teoria dogmática se diferencia radicalmente de uma teoria científica.” Se bem entendi, quando se refere a “transcender a experiência”, o autor aqui pensa sobretudo em uma distinção de posturas filosóficas, a partir de seu conteúdo: há proposições que se referem a fatos da experiência, ou a ela, de modo mais geral, e outras que concernem a coisas que não estariam nela situadas ou não poderiam ser testadas através dela. Segue-se que, segundo o autor, “[...] um cético pode ter uma teoria empirista ou naturalista do conhecimento, desde que essa teoria fosse construída empiricamente e se sujeitasse aos resultados empíricos e científicos”, estendendo, a seguir, a mesma consideração para a metafísica, como ele a entende. Assim, o domínio da experiência se converte, para esse cético, em um porto seguro para crenças e conhecimento e pode mesmo ser objeto de teorias epistemológicas e metafísicas.

            Não há lugar aqui para uma discussão exegética mais desenvolvida. Todavia, uma forma de propor meu exame da metafísica cética seria a de interrogar como se deve entender o “transcender da experiência”, na filosofia de Sexto. Talvez o ceticismo, bem considerado em suas potencialidades críticas, deixe menos espaço para elaborações construtivas e Sexto esteja aí nos alertando para os riscos do terreno pantanoso da própria experiência. Segundo Sexto, “[...] quando (nós, céticos) investigamos se as coisas são como aparecem, nós garantimos que elas aparecem, e o que nós investigamos é não o que é aparente mas o que é dito sobre o aparente.” (HP I, 19) Essa investigação cética a que ele alude é, naturalmente, a investigação crítica, argumentando pró e contra, pela qual o cético obtém a suspensão do juízo. Obviamente, o simples fato de nos pronunciarmos sobre a experiência não acarreta nenhum dogmatismo; ele se refere amplamente ao “aparente”, o qual adota como critério prático, e isso estaria em coerência com seus esclarecimentos sobre o uso cético da linguagem (HP I, 187-209; II, 1-12). Mas, então, o que seria esse “dizer sobre o aparecer” de modo problemático?

            Sexto não parece estar aí se referindo a “coisas” num sentido específico, dogmático, mas, simplesmente, aos objetos da experiência. E são essas coisas que podem ser objeto de um discurso sobre a experiência que, mesmo assim, paradoxalmente, transcende a experiência em um sentido dogmático. Ora, esse transcender, ao que parece, não precisa incluir um conteúdo específico, pois, para suspender o juízo, o cético pode também argumentar contra a experiência: “[...] se a razão é tão enganadora a ponto de suprimir o aparecer diante de nossos próprios olhos, não devemos certamente devemos ficar atentos nos assuntos obscuros para evitar a precipitação ao segui-lo?” (HP I, 20)

Noutras palavras: quando se alega dogmaticamente a experiência, o cético argumenta contra ela para mostrar como a razão pode negar o aparecer e suspender o juízo; ele assim o faz para suprimir a “precipitação” dos dogmáticos. A questão, pois, é a de saber se uma pretendida “metafísica cética”, mesmo que pretenda apenas descrever esse aparecer, deveria ser ou não compreendida como um exemplo de dogmatismo. Deveria a metafísica cética de Smith ser situada no âmbito do aparente ou do que “é dito sobre o aparente”, no sentido que está aqui sub judice?

            Não vejo bem como a proposição de uma metafísica possa, nesse sentido, não corresponder ao que “é dito sobre o aparente”. Afinal, ela pretende se pronunciar, de modo geral, sobre a experiência como um critério para a obtenção de conhecimento sobre as coisas, em contraposição ao que os dogmáticos diriam sobre essas mesmas coisas (propondo raciocínios sobre o que é não evidente). Entretanto, não cabe aqui reconhecer a proposição de uma forma de critério de conhecimento?

            Como vimos, Sexto nos informa que a suspensão do juízo pirrônica conduz à aceitação do phainómenon. Seria a metafísica cética um desenvolvimento consequente desse mesmo passo? Sexto assevera que, para esses céticos, há dois sentidos para o termo “critério”: há um critério que nos permite falar dos objetos como são (e sobre esse, o cético suspende seu juízo) e outro que possibilita simplesmente agir (ver HP I, 21) A qual desses dois sentidos de critério poderia corresponder a “metafísica descritiva” denominada cética? Parece que podemos plenamente agir conforme o que nos aparece, sem nos aventurarmos em nenhuma espécie de metafísica (descritiva ou não).

Ademais, a metafísica cética não é apenas uma descrição da experiência enquanto tal, na medida em que essa descrição parece poder ser feita sem que se proponha nenhuma metafísica. (Ou estaria essa metafísica cética supondo que o simples aparecer traz em si embutida uma metafísica, que não seria até aqui evidente para aqueles para quem ele aparece? Se assim for, parece ainda mais difícil não reconhecer nessa proposta uma forma de dogmatismo, pois ela deverá se confrontar com outros discursos dogmáticos que propõem metafísicas diversas.) Propor uma metafísico é propor, em algum sentido, uma teoria a respeito do phainómenon. Parece aqui possível dizer que, ao menos, o modo como Sexto se refere ao phainómenon não parece oferecer nada que nos motive diretamente a entender a admissão cética da experiência como compatível com uma metafísica. O que está em causa é saber como interpretá-las de um modo que evite a precipitação dogmática de que trata Sexto.

            Talvez seja oportuno aqui lembrar outros textos. Noutra passagem das Hipotiposes, Sexto afirma que o cético usa o discurso do ser para se referir ao aparecer: “Indeterminação é um pathos intelectual pelo qual nós nem negamos nem afirmamos nada que se investiga de modo dogmático. Assim, quando um cético diz ‘Tudo é indeterminado’ ele toma ‘é’ no sentido de ‘aparece-me que’.” (HP I, 198) Salvo engano de nossa parte, a metafísica cética estaria fazendo, de certa forma, o caminho inverso – isto é, tomando, não o “ser” que é dito como significando o simples aparecer, mas tomando o aparecer das coisas como significando o ser. Não seria essa metafísica resultado de um páthos intelectual pelo qual se pretende dizer o que as coisas são (mesmo que apenas no domínio da experiência) e, nessa medida, produto de uma investigação de modo dogmático?

            O metafísico cético poderia, talvez, simplesmente recusar esta minha leitura de Sexto Empírico (a qual precisa se defrontar com outras exigências exegéticas), simplesmente por conduzir a uma leitura imprecisa da sua própria metafísica cética. Naturalmente, esses textos podem ser lidos de outra forma, mas se o cético metafísico alega agora que eles devem ser lidos a partir de uma linha demarcatória prévia (entre objetos dogmáticos e não dogmáticos), não estaria ele supondo o que estaria em causa? Mas o que se perderia afinal com isso? Minha sugestão é a de que talvez se comprometa aqui, de saída, não a possibilidade em geral de reconhecer proposições dogmáticas, porém, a de reconhecer dogmatismo naquilo que se proporia como isento dele. Mais ainda, pretendo sugerir que isso pode ocorrer de modo involuntário, a despeito da pretensão de se propor um ceticismo (e isto parece ser um bom motivo para inspecionar essa possibilidade). Não poderiam assim as decisões filosóficas do metafísico cético acabar encobrindo, aos seus próprios olhos, a natureza dogmática de sua própria filosofia?

            Estou aqui reeditando uma questão velha, a qual já propus acerca da filosofia de O. Porchat. Porchat transitou por filosofias diversas, ceticismos e dogmatismos, e essas mudanças de posição decorreram, ao menos em parte, de descobertas que ele mesmo fez sobre as implicações da filosofia antes admitida. Eu sugeri que isso poderia decorrer, ao menos em parte, do poder instaurado que ele conferiu às suas próprias decisões filosóficas (EVA, 2007, 2008). Mas a reconstrução que Smith oferece do debate entre Stroud e McDowell também mostra que esse é um risco constante. Ambos, de modos diversos, expressam sua aversão pelo dogmatismo, sua simpatia pelo ceticismo, e o próprio Smith entende que “Stroud é um neopirrônico e McDowell, embora um pensador mais obscuro e ambíguo, tem afinidades com o neopirronismo.”

Porém, McDowell reformula a sua própria posição, porque Stroud “[...] teria considerado essa questão somente no contexto de um projeto metafísico (isto é, dogmático), em que se busca a realidade absoluta, corrigindo nossa visão comum do mundo” (SMITH, 2003, p. 490) – uma má compreensão que, se isso for verdade, não teria sido assim percebida por Stroud (que renovou suas críticas céticas diante das novas versões desse projeto supostamente não dogmático). Como enfatiza Smith, McDowell teria incidido involuntariamente numa posição dogmática, e isso parece ser um indício de que, mesmo quando se pretende determinar a natureza metafísica das cores, sem recair em um dogmatismo, as evidências podem ser igualmente frágeis.

            Smith entende, todavia, que não se trata de um debate entre “dois dogmáticos” e, decerto, em conformidade com um verdadeiro espírito cético, a questão parece merecer uma investigação aprofundada, na esperança de que se encontre alguma verdade (não sobre os objetos não evidentes ou a realidade oculta, mas sobre a natureza de nossas percepções comuns de cores, consideradas apenas à luz de uma pretendida descrição de nossa experiência). No entanto, a mim não me parece que estejamos de um debate próximo do fim. McDowell sustenta um subjetivismo não reducionista, pelo qual propõe que as cores seriam “essencialmente perceptíveis”.

Com isso, ele se enreda em dificuldades conceituais e é alvejado por argumentos aparentemente intransponíveis, tanto da parte de Stroud quanto de Smith. No meu entender, isso não significa que sua posição não possa vir a ser refinada e defendida por outros argumentos, pois ela faz justiça a importantes intuições de nossas percepções de cor. Nós tendemos a associar regularmente as cores aos objetos e podemos supor que, mesmo quando não os estamos vendo, eles preservam suas cores. Por outro lado, parece também razoável dizer que, se não houver uma interação perceptiva subjetiva com as cores, não saberíamos dizer o que são elas. Em certa medida, talvez sejam essas mesmas intuições que Smith tenta preservar, com sua própria teoria, ao distinguir a disposição de um objeto causar percepções de cor e a própria percepção da cor.

            Stroud, de sua parte, parece dar um passo mais seguro, quando recua e se limita a sustentar, não que as cores são “essencialmente perceptíveis” mas apenas “essencialmente visíveis”. Mas se pode indagar que significado podemos atribuir a essa referência a “essência” das cores. Salvo engano, penso que essa indagação acaba por nos conduzir a um impasse. Ou bem essa asserção é a reformulação de uma trivialidade, a de que as cores são visíveis, e a alegação da “essencialidade” talvez seja vazia, nada acrescente. O que se ganha, ao se afirmar que a cor é, de modo geral, algo visível? Ou bem, se ela pretende ir além disso, em uma direção teórica pela qual pretende ir além, em algum sentido, dessa afirmação, sustentando que, em geral, a percepção do que chamamos cor exclui por si a possibilidade de uma percepção não visível.

Todavia, nesse caso, não estaríamos extrapolando aquilo que oferece nossa experiência das cores para o não evidente (no sentido cético: para uma dimensão possível da experiência sobre a qual não podemos nos pronunciar). Podemos decretar a impossibilidade de que as mesmas cores, que humanamente apreendemos apenas como visíveis, sejam percebidas por seres possuidores de outros órgãos sensíveis, de modos que não concebemos? Não podemos recorrer a um cego para dizer o que são as cores, entretanto, se outro ser percipiente reconhecesse regularmente outros aspectos perceptivos que desconhecemos, associados ao que apenas percebemos como cor (suponhamos, por exemplo, que um cego fosse capaz de perceber, de modo tátil, diferenças entre cores), talvez devêssemos reconhecer que estamos nós na condição daquele primeiro cego diante desse outro aspecto perceptivo.

            Penso que Smith tem razão de argumentar que a percepção das cores é um fenômeno mais complexo do que pode parecer e requer investigação. Para encerrar este comentário, limito-me aqui a apresentar algumas questões diante da sua proposta de solucionar o problema.

            1. Smith afirma, com segurança, que a “disposição” de um objeto em causar a cor é distinta da própria cor. Se o que se pretende é distinguir a experiência subjetiva de ver a cor e o fato de que um objeto seja colorido (isto é, que ele possua a mesma capacidade de produzir essa experiência subjetiva, quando for visto), não me parece que isso requeira uma metafísica. O mesmo vale para o entendimento de que se trataria aí de causas no sentido físico, segundo as teorias científicas disponíveis, pela mesma razão. Por isso, não sei se compreendi bem a que corresponderia o termo “disposição” (um termo de cunho antropomórfico), como algo distinto da cor (e, como frisei, distinto das causas físicas pelas quais a ciência explica a nossa percepção de cores – mais sobre isso, adiante). Até onde percebo, isso parece introduzir novos problemas. Quando vejo presentemente a cor, não parece haver alguma razão para dizer que a cor vista seria diversa da “disposição” que esse objeto tem de ser colorido para mim, nesse momento. Estaria ela encoberta sob a cor vista? Mas, se a “disposição” está lá, quando não vejo o objeto, e se transforma em cor, quando o vejo, como posso saber que essas duas coisas possuem alguma relação, dado que nunca se apresentam juntas? Note-se que estamos falando de propriedades diferentes das coisas: “[...] a propriedade de ter uma certa disposição, portanto, não é idêntica à propriedade de ter uma certa aparência.” (SMITH, 2003, p. 496). Não estarei aqui multiplicando propriedades que não podem ser distinguidas no ato perceptivo em si e talvez não possam ser integradas, se a disposição for algo distinto da aparência?

            2. Tenho uma hesitação parecida diante da proposta de que existe uma dupla relação na percepção das cores: “[...] a relação causal, que parte do objeto e afeta a pessoa, e a relação ativa, que parte da pessoa e alcança o objeto.” (SMITH, 2003, p. 495). Ninguém duvidaria, eu suponho, de que temos capacidades de perceber que podem permanecer não exercidas e as coisas oferecem por si mesmas ocasiões de percepção distintas das percepções particulares. Deixando de lado a vantagem que esse esquema pode ter, em justificar a distinção anterior, também não vejo bem como dissociar essas duas relações, no momento em que se dá a percepção enquanto tal. Por que não bastaria aqui apenas uma relação “perceptiva”? Se nos ativermos à oposição entre “causa” e “ação”, penso que, a rigor, não é algo trivial determinar as causas das percepções das cores, e elas não se reduzem a algo que parte do objeto em direção à pessoa. Elas envolvem, segundo teorias da visão hoje aceitas, também elementos presentes na própria experiência perceptiva subjetiva e na relação que se estabelece entre as próprias cores, concebidas como elementos visuais. Por outro lado, deixando de lado o fato de que uma pessoa age, e nesse curso de ação ela pode mover seus olhos diante dos objetos, o fenômeno da percepção das cores pareceria ele mesmo ser basicamente passivo. Se ele pode sofrer transformações conforme as ações daquele que percebe, parece que essas ações deveriam, em vez disso, ser compreendidas como parte das relações causais que determinam a percepção.

            3. Por fim, Smith procura demarcar o campo da investigação metafísica e o da investigação científica sobre as cores: “Não vejo nenhuma oposição entre os resultados alcançados pelas ciências e nossa concepção comum de percepção.” (SMITH, 2003, p. 497). Decerto, a ciência não permitirá negar os fatos perceptivos enquanto percepções subjetivas, mas entendo que ela não se acomoda tão facilmente com a “nossa concepção comum de percepção”. Como usualmente ocorre, o que a ciência e as teorias artísticas sobre as cores nos dizem é bastante contraintuitivo. Nós identificamos, na nossa percepção comum, uma diversidade de cores – azul, verde, magenta – com seus diversos tons e podemos mesmo estar em dúvida sobre como denominar certa cor. Mas, especialmente no que diz respeito à atribuição das cores aos objetos, a ciência nos indica, a partir de considerações sobre o funcionamento dos bastonetes oculares e as frequências de onda pelas quais a luz provoca a percepção de cores, que algumas cores, como magenta ou marrom, são apenas percebidas pela nossa mente (subjetivamente), sem corresponderem a algo de objetivo (isto é, uma frequência específica do espectro da luz branca). (v. p. ex., TOMA et alii., 2005; KÜPPERS, 2005). Gostaria de saber tanto o que a metafísica cética diria sobre esse caso específico quanto, principalmente, sobre sua tese de que a percepção comum das cores não está de fato em conflito com o que dizem as ciências. Não seria o seu projeto mesmo um exemplo de uma proposta dogmática que se precipitaria diante do que a ciência pode vir nos propor, a esse respeito?

            A mim me parece particularmente curioso (talvez por conhecer esse debate de forma limitada ou não tê-lo suficientemente compreendido) que a discussão metafísica sobre as cores tenha o hábito de partir de um exemplo trivial (a maçã é verde) e supor, sem mais, que ele possa ser generalizado para o fenômeno da percepção colorida como tal. Em mais de uma ocasião, os exemplos se referem à percepção de cores nas melhores circunstâncias: é o que os estoicos alegavam em favor do seu critério de verdade e é o que Descartes nega, na primeira Meditação, através do argumento do sonho, que nos possa garantir conhecimento objetivo.

Deixando isso de lado, seriam propriamente irrelevantes para essa discussão os casos em que as percepções não se dão nas melhores circunstâncias? Tem-se, por vezes, a impressão de que a discussão como um todo avança sem perceber que pressupõe uma teoria “comum” sobre a objetividade das cores, a qual pode simplesmente não estar correta. Talvez a metafísica descritiva cética se mova num mundo que se assemelha mais a um quadro renascentista, onde cada objeto tem uma cor específica e delimitada, do que às descrições pictóricas do mundo, o barroco, o impressionismo e o expressionismo, que posteriormente questionaram esse modelo.

 

Referências

EVA, L. A. A. Neopirronismo e Estruturalismo. In: SILVA FILHO, W. J.; SMITH, P. J. (org.). Ensaios sobre o Ceticismo. São Paulo: Alameda, 2007. p. 91-106.

EVA, L. A. A. Filosofia da Visão Comum de Mundo e Neopirronismo: Pascal ou Montaigne? Sképsis, Ano II, n. 3-4, p. 29-66, 2008.

KÜPPERS, H. Fundamentos de la teoría de los colores. México: Gustavo Gili, 2005.

PEDROSA, I. Da cor à cor inexistente. São Paulo: SENAC, 2009.

SMITH, P. J. Sobre o status metafísico das cores. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 473-500, 2003.

TOMA, H. E.; BONIFÁCIO, L. da S.; ANAISSI, F. J. Da cor à cor inexistente: uma reflexão sobre espectros eletrônicos e efeitos cromáticos. Química Nova, v. 28, n. 5, p. 897-900, 2005. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-40422005000500030.

 

Recebido: 12/05/2023

Aceito: 21/05/2023


 

COMENTÁRIO A “SOBRE O STATUS METAFÍSICO DAS CORES”: A CONCEPÇÃO COMUM DAS CORES E A CIÊNCIA DAS CORES[224]

 

Raquel Krempel[225]

 

Referência do artigo comentado: SMITH, P. J. Sobre o status metafísico das cores. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 473-500, 2003.

 

Cores são propriedades intrínsecas dos objetos físicos? Elas existem realmente nas coisas, de tal modo que tomates são realmente vermelhos e bananas, amarelas? Ou elas só existem na mente? Em “Sobre o status metafísico das cores”, Plínio Smith evita o debate dogmático sobre a natureza das cores e elabora o que ele considera ser a nossa concepção comum das cores, tendo como inspiração concepções céticas sobre as cores. Ele formula também alguns comentários sobre a relação entre a nossa concepção comum de cores e a ciência das cores, afirmando que não há incompatibilidade entre elas. Trata-se de um texto muito rico, o qual ilumina algumas das concepções céticas sobre as cores, incluindo as visões mais recentes de Barry Stroud e John McDowell, e apresenta uma contribuição autoral relevante para a discussão filosófica sobre as cores, além de contribuir para a filosofia feita no Brasil. Neste texto, minhas observações críticas se concentram no modo como Smith descreve a concepção comum de cores (na seção 1) e na forma como ele concebe a relação entre a concepção comum de cores e a ciência das cores (na seção 2).

 

1 A concepção comum de cores

Smith (2023) concebe a percepção como um fenômeno complexo que contém dois polos: o objeto e o sujeito, e determinadas relações entre eles. Tal como ele descreve, no caso da percepção de cores, um tomate maduro, por exemplo, tem a disposição de produzir em nós a experiência perceptiva do vermelho. Quando abrimos nossos olhos e dirigimos nossa atenção para o tomate (nas condições adequadas de iluminação, sem oclusão etc.), o tomate de fato causa em nós a experiência perceptiva do vermelho. Smith considera que, “[...] enquanto a disposição está no objeto, a experiência está na pessoa.”

Apesar de a experiência ser um efeito do objeto na pessoa, de estar na pessoa, disso não se segue, segundo ele, que a cor ela mesma seja algo subjetivo. Embora a experiência de cor seja subjetiva, a própria cor não é. Smith (2023, p. 495) acrescenta que “[...] a experiência que se tem é a de que o tomate se apresenta a nós como sendo vermelho.” Ele distingue experiência de aparência e sugere que, enquanto a primeira é subjetiva, a segunda “está no objeto”. Ao caracterizar a cor, Smith afirma que ela não é idêntica à experiência; ao contrário, “[...] a cor é uma maneira pela qual o objeto se apresenta para nós.”

Há alguns pontos que podem ser questionados aqui. Em primeiro lugar, ao mesmo tempo que Smith quer descrever a concepção comum de cores como sendo uma de acordo com a qual a cor está no objeto, ele introduz locuções como “a nós” ou “para nós”, para descrever a aparência do objeto. Essas formulações sugerem uma concepção relacional das cores, segundo a qual elas existem apenas em relação a seres percipientes, e não de modo independente deles. Se essa for a interpretação pretendida por Smith, não é claro que essa concepção de fato corresponda à concepção comum das cores. É razoável supor que as pessoas concebem cores como estando nos objetos, quer eles sejam percebidos, quer não. O tomate continuará sendo vermelho, mesmo se todos os seres percipientes forem extintos.

Isso me leva a outro ponto que considero problemático: a aproximação que Smith promove entre a visão comum das cores e uma visão cética sobre as cores. Como vimos, Smith caracteriza cores como “aparências” dos objetos, e penso que o faz pelo seu alinhamento com a tradição cética. Apesar disso, Smith (2023, p. 495) afirma que “[...] ‘aparência’, aqui, tem um significado objetivo, como quando dizemos que alguém tem uma aparência elegante ou aparenta estar doente.” Mas, mesmo assim, a afirmação de que algo aparenta ser X é tipicamente compatível com esse algo não ser de fato X. Mas nossa concepção comum parece ser mais assertiva, e as cores que percebemos são, em situações típicas, consideradas propriedades que os objetos têm, propriedades como tantas outras (peso, formato etc.)[226]. Minha impressão é a de que a visão comum está mais para dogmática do que para cética, no sentido de envolver a crença de que os objetos realmente são coloridos, de que eles têm cores que não dependem de seres percipientes, e não a crença (cética) de que os objetos aparecem coloridos para nós.

Além disso, mesmo que seja verdade que, na visão comum, cores sejam uma aparência do objeto, não é claro que nossa concepção comum de percepção e de cores envolva uma separação entre um elemento subjetivo (a experiência) e um elemento objetivo (a aparência do objeto). Essa pode ser uma boa análise filosófica da estrutura geral da percepção de cores, todavia, ela me parece sofisticada demais para ser um retrato da nossa concepção comum de percepção. Se concebemos cores como propriedades dos objetos, independentes de nossa percepção, talvez a concepção comum de percepção dispense a necessidade da introdução de um elemento subjetivo, i.e., a experiência. Não quero aqui negar que esse elemento subjetivo exista na percepção (até porque acho que existe), mas apenas observar que, se nossa concepção de percepção for uma alinhada ao realismo ingênuo, então, da perspectiva comum, a “experiência” como algo subjetivo que está no sujeito seria apenas um mito filosófico.

No fundo, embora eu tenha dúvidas sobre a descrição de Smith dos nossos conceitos comuns de percepção e de cor, e acredite que a concepção comum seja de certa forma dogmática, acho que é difícil decidir, com base na introspecção apenas, qual seja de fato essa concepção comum. A utilização das ferramentas da filosofia experimental poderia ser útil, aqui, a fim de compreendermos melhor qual é de fato essa concepção comum.

 

2 A concepção comum de cores e a ciência das cores

 

Smith considera que a ciência das cores pressupõe, ou está condicionada, por nossa concepção comum de percepção. Além disso, segundo Smith (2023, p. 495),

[...] os resultados científicos podem levar a um refinamento de nossa concepção comum de percepção e a um entendimento detalhado de como a percepção das cores ocorre e de como nos orientamos por elas. Não vejo nenhuma oposição entre os resultados alcançados pelas ciências e nossa concepção comum de percepção.

 

A meu ver, essa compatibilidade entre os resultados da ciência das cores e a nossa concepção comum (supondo que ela seja uma segundo a qual cores são propriedades dos objetos) não é tão óbvia. Diversos filósofos e cientistas, ao menos desde a modernidade, consideram que as descobertas científicas desafiam nossas crenças comuns sobre as propriedades dos objetos. Conforme observam Byrne e Hilbert (2003, p. 03), os cientistas da visão frequentemente afirmam que cores são subjetivas e não existem nos objetos. Dentre os diversos autores citados para corroborar essa afirmação está Stephen Palmer, para quem “[...] cor é uma propriedade psicológica de nossas experiências visuais quando olhamos para objetos e luzes, e não uma propriedade física desses objetos ou luzes.” (PALMER, apud BYRNE; HILBERT, 2003, p. 04, grifos no original). Dessa maneira, do ponto de vista dos cientistas das cores, é comum que haja uma rejeição da concepção comum de que cores são uma propriedade dos objetos. Esses cientistas não acham que estejam apenas refinando nossa concepção comum, com uma concepção mais sofisticada mas ainda compatível com aquela. Pelo contrário, a ciência das cores, de acordo com eles, mostra que cores não existem nos objetos.

É possível questionar (como o fazem Byrne e Hilbert, por exemplo) se os resultados científicos realmente autorizam uma conclusão tão dramática, a qual implica a falsidade de nossas crenças comuns sobre cores. Mas meu ponto é que a compatibilidade entre os resultados científicos e a nossa visão comum não é óbvia. Algumas descobertas científicas nos dão motivos para suspeitar da concepção comum. Por exemplo, sabe-se que cores que são percebidas como iguais podem ter padrões de reflexão de luz muito diferentes. E, como observa Fish (2021, p. 167), isso dificulta a identificação da cor com algo que está no objeto, já que, para explicar o fato de que percebemos padrões muito diferentes de reflexão como a mesma cor, não é suficiente especificar propriedades do objeto. Precisamos fazer referência ao sistema visual do sujeito.

Pautz (2023) argumenta também que não há uma boa correlação entre experiências de cor e o padrão de reflexão de luz dos objetos. Por exemplo, apesar de um objeto azul ter a cor mais parecida com a de um objeto roxo do que com a de um objeto verde, do ponto de vista físico, da reflexão da luz, não há nada que reflita essa similaridade – ao contrário, as curvas do azul e do verde são mais similares do que as do azul e do roxo. Entretanto, segundo Pautz (2023), há uma boa correlação entre as experiências de cores e as atividades neurais correspondentes, de tal sorte que cores julgadas semelhantes têm padrões de atividade neural semelhantes. Isso também desafia a ideia de que, na percepção, simplesmente apreendemos propriedades que os objetos têm, de modo independente de nossa percepção, já que, para explicar a semelhança entre cores, precisamos fazer referência ao sistema visual e a estados neurais. Assim, a suposição de Smith, de que não há incompatibilidade entre os resultados científicos e a visão comum das cores, não é tão facilmente defensável.

 

Referências

BYRNE, A.; HILBERT, D. Color realism and color science. Behavioral and brain sciences, v. 26, p. 3-64, 2003.

FISH, W. Philosophy of perception: A contemporary introduction. 2. ed. New York: Routledge, 2021.

PAUTZ, A. Naïve Realism and the Science of Sensory Consciousness. Analytic Philosophy [no prelo].

SMITH, P. J. Sobre o status metafísico das cores. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 473-500, 2003.

 

Recebido: 20/05/2023

Aceito: 30/05/2023


 

POR QUE SOMOS O NOSSO CÉREBRO: O ENATIVISMO POSTO EM QUESTÃO

 

Roberto Horácio de Sá Pereira[227]

Sérgio Farias de Souza Filho[228]

Victor Machado Barcellos[229]

 

Resumo: Neste ensaio, defendem-se as seguintes teses: 1- o know-how não é uma forma de saber prático destituído de sentido proposicional; 2- a relação entre cada percepção e o corpo próprio é metafisicamente contingente (os organismos e corpos podem variar, como podem inclusive variar os espaços que ocupam em uma mesma experiência), 3- cabe ao cérebro configurar ou moldar um corpo físico (Körper) em um corpo vivo (Leib) e não o inverso; 4- o externismo fenomenal de base enativista, mesmo na sua forma branda, é empiricamente implausível: a correlação entre o caráter consciente da experiência sensorial com padrões neuronais espaço-temporais é muito mais sistemática e regular do que a correlação com qualquer coisa fora do cérebro. Mas sua forma radical é inteiramente implausível: duplicatas fenomenais não são necessariamente duplicatas de agência; em suma, 5- somos o nosso próprio cérebro que possui um corpo, avatares e artefatos, devidamente configurados e moldados pelo cérebro, e não um corpo que possui um cérebro, dentre outros órgãos.

 

Palavras-chave: Enativismo. Externismo Fenomenal Enativista. Know-How.

 

 

Introdução

A expressão “enativismo” foi introduzida na ciência cognitiva por Francisco Varela e colegas, em 1991. A fonte de inspiração dos autores é explicitamente a fenomenologia de Maurice Merleu-Ponty:

Gostamos de considerar nossa jornada neste livro como uma continuação moderna de um programa de pesquisa fundado há uma geração pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty. Por continuação, não queremos dizer dar seguimento acadêmico ao pensamento de Merleau-Ponty no contexto da ciência cognitiva contemporânea. Queremos dizer, antes, que os escritos de Merleau-Ponty inspiraram e guiaram nossa orientação aqui. (VARELA et al., 1991, p. XV, tradução nossa).

 

Mas a doutrina só conhece prestígio uma década mais tarde, com as contribuições decisivas de Alva Noë (2004, 2005), Shaun Gallagher (2005, 2014), Evan Thompson (2007), Matt Bower (2014) e, mais recentemente, de Daniel Hutto e Erik Myin (2013, 2017). Enquanto a fenomenologia de Merleau-Ponty segue sendo uma referência fundamental, não há como negar que o operacionalismo de Ludwig Wittgenstein (2001) também tenha se tornado uma referência obrigatória para certos autores, como Noë, Hutto, Myin e outros.

Gallagher e Bower (2014, p. 233) dividem o movimento enativista em três grandes fases: o enativismo “precoce”, de Varela e colegas, o enativismo “intermediário”, representado por Alva Noë, em 2004, e o enativismo “mais recente” e radical de Hutto e Myin. A primeira fase compreende o compêndio de 1991, de Varella e colegas. As preocupações iniciais eram e ainda são com a crítica ao cognitivismo de Jerry Fodor (1975, 1983), centrado no conceito fundamental de representação mental. A esse cognitivismo, os enativistas propõem como modelo alternativo a ideia de cognição como ação incorporada.

A segunda etapa abarca as contribuições de Nöe. É nessa segunda fase que se introduz a noção de inspiração wittgensteiniana da percepção como um know-how sensório-motor desprovido de sentido cognitivo. Entretanto, Noë ainda oscila entre abandonar o conceito de representação (NÖE, 2005) ou atribuir-lhe um papel apenas secundário (NÖE, 2004). Ademais, Nöe entende o externismo fenomenal enativista em oposição à chamada concepção do estado interno físico. Retomaremos essa questão, na penúltima seção.

A terceira e última fase é marcada por uma ruptura radical com a ideia de conteúdo representacional. As contribuições relevantes aqui são de Hutto e Myin. Eles defendem a chamada versão “radicalizada” do enativismo – “REC”. Não se trata mais apenas de renunciar ao conceito de imagem mental, mas mesmo do que hoje concebemos por conteúdo representacional. Entretanto, enquanto Nöe hesita em abandonar a noção de conteúdo, Hutto e Myin hesitam em estender o REC a uma teoria da consciência. Abarcaria o REC também uma teoria da consciência ou o REC acabaria por assumir uma forma de internismo fenomenal? Caso não abarque, o seguinte problema se coloca. Se é ao menos concebível que experiências não instanciem propriedades representacionais, parece-nos um contrassenso se negar que experiências não sejam essencialmente conscientes. Ora, se REC, com a sua estratégia do going wide, não pretende explicar as propriedades fenomenais das experiências e nega que tais experiências instanciem propriedades representacionais, em que sentido o REC ainda é uma teoria da experiência perceptual?

Mas, para não cometermos nenhuma injustiça, o mais correto, nos parece, é tomar as “três fases” de Gallagher como três versões possíveis do enativismo; nessa perspectiva, bem nos lembram Hutto e Myin (2013, p. 4, tradução nossa):

Nem cognição enativista nem cognição incorporada são rótulos para uma teoria bem definida da mente; ao contrário, a cognição enativista e a cognição incorporada denotam estruturas amplas para entender a natureza básica das mentes e como elas se tornam mais elaboradas.

 

Em face das diferentes versões ou fases e da afirmação segundo a qual o enativismo não constitui uma teoria definida da percepção, poderíamos ainda falar de uma ou mais teses que constituiriam o enativismo em sua essência? Acreditamos que sim. Genericamente, todos os enativistas sustentam (i) que a percepção seria constituída por forma de agir incorporado de um organismo (NOË, 2004; DI PAOLO et al., 2010/2014, p. 39-40). (ii) Este ou dispensaria por completo a noção de representação, ou a relegaria a um papel secundário, na explicação da percepção. (iii) Todos rejeitam a tese para a qual a percepção consistiria em uma mera recepção passiva do mundo (STEWART, 2010/2014, p. 3). (iii) Todos também estão de acordo quanto ao credo de que a consciência não reside no cérebro. (IV) Por último, sustentam igualmente a tese de que, para se explicar a tal atividade incorporada, teríamos que considerar a interação do organismo com os aspectos ambientais (STEWART, 2010/2014, p. 1-4; THOMPSON, 2007). Como veremos, contudo, essa tese é ambígua, comportando ao menos duas leituras.

Ora, mesmo sem constituir uma teoria acabada, o enativismo suscita logo de início inúmeras controvérsias. Primeiro, o enativismo precoce de Varela e colegas parece abraçar um antirrealismo ingênuo: sujeito e mundo se constituiriam pelas ações incorporadas do primeiro (sujeito). Esse construtivismo epistemológico antirrealista é extraído diretamente de Merleau-Ponty (1945, p. XV, tradução e grifos nossos):

O filósofo tenta conceber o mundo, os outros e a si mesmo e suas inter-relações. Mas o ego meditativo, o “espectador imparcial” (uninteressierte Zuschauer) não redescobre uma racionalidade já dada, eles “se estabelecem”, e a estabelecem, por um ato de iniciativa que não tem garantia de ser, sua justificação repousando inteiramente no poder efetivo que nos confere de levar nossa própria história sobre nós mesmos.

 

Em segundo lugar, a crítica enativista à teoria da representação é inteiramente insatisfatória. Primeiro, ela toma a noção de representação de forma ambígua. Com efeito, representação é entendida (a) como uma imagem mental que “re-apresentararia o mundo exterior no interior do cérebro”. Nesse caso, (a) ainda pode ser compreendida como registro de informação ou como um dado sensível segundo o modelo ato-objeto. Ora, “representação” é concebida (b) como um conteúdo representacional. A ambiguidade fica patente pelo próprio Varela e colegas (1991, p. 135, tradução e grifos nossos) afirmam:

Esse sentido de representação (Conteúdo representacional) é fraco porque não apresenta compromissos epistemológicos ou ontológicos fortes. Portanto, [...] é perfeitamente aceitável pensar em uma afirmação como representando algum conjunto de condições sem fazer suposições adicionais sobre se a linguagem como um todo funciona dessa maneira ou se realmente há fatos no mundo separados da linguagem que podem ser reapresentados pelo frases da língua.

 

No primeiro caso, o que a crítica visaria seriam aos “compromissos ontológicos fortes”, supomos nós, a tese cognitivista segundo a qual percepções se explicariam mediante processos internos ao cérebro. Entretanto, ela também objetivaria “compromissos epistemológicos fortes”. Quais seriam esses? Tudo parece nos levar a crer que o enativista estaria assumindo aqui a tradicional teoria dos “dados sensíveis”, conforme o modelo ato-objeto, bem como um construtivismo antirrealista segundo o qual mundo e sujeitos seriam dados e não construídos epistemologicamente pelas ações incorporadas. Nem tais “compromissos epistemológicos” nem a contrapartida enativista merecem ser discutidos.

No segundo caso, o que se realça é a tese segundo a qual experiências possuiriam um conteúdo representacional (análogo ao conteúdo das atitudes proposicionais): a experiência apresentaria o mundo segundo determinadas condições que seriam ou não satisfeitas pelo próprio mundo. Como Varela e colegas reconhecem (citação acima), essa segunda noção como um conteúdo representacional não apresenta “compromissos ontológicos e epistemológicos fortes.” O que temos, ao fim e ao cabo, é que nem (a) implica (b), nem o inverso: (b) não implica (a).

Na nossa crítica ao enativismo, realizaremos uma crítica indireta a (a). Todavia, e quanto ao segundo sentido de representação como um conteúdo? Não compreendemos como poderíamos prescindir do conceito de conteúdo representacional, uma vez que temos de assumir como um fato a possibilidade de erros antipredicativos, se quisermos entender o fracasso das nossas ações. Hutto e Myin (2013) apelam à crítica de Tyler Burge (2010) relativas às tentativas de naturalização de tal conteúdo de Dretske, Millikan e outros. A crítica de Burge, endossada pelos autores, reza que a seleção natural não se preocupa com a verdade, mas com o sucesso reprodutivo. Essa crítica, no entanto, está longe de ser convincente. Com efeito, é trivial que a verdade em nada importa para a seleção inúmeros traços biológicos: possuir um coração, rins, pulmões etc. Todos eles cumprem funções que nada têm a ver com a verdade. Porém, tudo muda de figura, quando consideramos cognições em geral e o nosso sistema perceptivo, em particular (PEREIRA, 2021). Mas o que nos causa espécie é que, após assumir a crítica de Burge às tentativas de naturalização de tal conteúdo, Hutto e Myin abandonam o próprio conceito de conteúdo representacional por ser, segundo Burge, um conceito primitivo e assim irredutível (HUTTO; MYIN, 2013, p. 114).

Terceiro, a tese operacionalista perceptual segundo a qual a percepção seria como um know-how sensório motor (Nöe) é semanticamente insustentável. Stanley e Williamson (2001) desconstroem esse credo operacionalista em geral (ou seja, a tese de que possuir um conceito é saber como operá-lo ou usá-lo corretamente), com uma das análises semânticas mais finas que conhecemos das orações da forma know-how. Segundo Stanley e Williamson, o “saber como” seria irredutível a um saber prático, destituído de sentido cognitivo, dependendo antes de diversas formas de saber proposicional, ou seja, saber que quando, como, onde e por que uma proposição é verdadeira (saber-quem, saber-onde, saber-quando e saber o quê). Dedicamos uma seção inteira para combater tal credo. Entretanto, ao invés de seguirmos com a análise semântica, apelaremos a experimentos empíricos e às nossas intuições pré-teóricas face a tais experimentos.

Por último, o credo enativista inspirado na psicologia ecológica de James J. Gibson (1986), para a qual a percepção seria metafisicamente constituída por “proporcionadores” (affordances), é inteiramente contraintuitivo. Por tudo que sabemos (inference to the best explanation), são representações de objetos e propriedades como constantes perceptuais que constituem objetos e propriedades, como proporcionadores de ações incorporadas, e não o inverso.

Muito já foi expresso acerca desses e outros credos do enativismo perceptual. A lista é infindável: Ned Block (2001, 2005): Piere Jacob (2006), Jesse Prinz (2006). Ainda teríamos muito a acrescentar às críticas já consagradas na literatura, contudo, isso nos levaria para além dos limites de um ensaio no formato proposto. Cada um dos credos exige um artigo em separado, em razão da complexidade e da imensa ambiguidade dos conceitos e, consequentemente, das questões envolvidas. Nós as mencionamos aqui apenas à guisa de ilustração.

Entretanto, uma das inúmeras críticas merece destaque: Book Review do trabalho de Nöe (2004), levada a cabo por Ned Block (2005). Segundo Block, a tese controversa do enativismo reza que a experiência perceptual não sobrevém constitutivamente ao que se passa no cérebro, mas apenas a atividade corporal que seria necessária para o exercício habilidoso do conhecimento sensório-motor (BLOCK 2005, p. 265-266). Todavia, aí se incorre em uma confusão trivial entre causação e constituição metafísica. Nas palavras de Block:

Como Richard Held e Alan Hein mostraram na década de 1960, gatinhos que são ativos na exploração do ambiente têm sistemas visuais normais em comparação com gatinhos que têm a mesma estimulação, mas são passivos. O uso de óculos de inversão resulta em considerável reorganização da percepção. Conectar uma câmera de televisão a um conjunto de pixels apreendidos na boca de uma pessoa cega permite a navegação pelo espaço, provavelmente recrutando áreas “visuais” do cérebro. Esses resultados são impressionantes, mas o que eles mostram é que as contingências sensório-motoras têm um efeito sobre a - experiência, não que a experiência seja parcialmente constituída por – ou sobrevém, constitutivamente à – atividade corporal. (Dizer que, por exemplo, os fatos morais sobrevêm aos fatos físicos é dizer que não pode haver diferença moral sem diferença física). (BLOCK, 2006, p. 263).

 

Sejamos claros sobre qual é o problema. A questão da base de superveniência constitutiva para a experiência é a questão do que é – e não é – uma parte metafisicamente necessária de uma condição metafisicamente suficiente da experiência perceptiva. Ou seja, é a questão do que é – e não é – parte da condição mínima metafisicamente suficiente para a experiência perceptiva (a base mínima de superveniência). A visão enativista de Nöe reza que o corpo ativo habilidoso faz parte dessa base mínima de superveniência, enquanto a visão, que defendo e que rotulei de visão ortodoxa, é que nada fora do cérebro faz parte dele. (BLOCK, 2006, p. 264).

 

Em suma, experiências perceptuais não sobrevêm à atividade corporal simplesmente porque é falso que não possa haver diferenças perceptuais (que elas sejam metafisicamente impossíveis), caso não haja diferenças nas atividades sensório-motoras. O ensaio presente encontra nessa crítica lapidar de Block a sua principal fonte de inspiração. Defenderemos as seguintes teses:

1- O know-how não é uma forma de saber prático, destituído de sentido proposicional; 2- a relação entre cada percepção e o corpo próprio é metafisicamente contingente (os corpos envolvidos em uma mesma experiência podem variar, como podem inclusive variar os espaços que ocupam); 3- cabe ao cérebro configurar ou moldar um corpo físico (Körper) em um corpo vivo (Leib), e não o inverso; 4- o externismo fenomenal enativista, mesmo na sua forma branda, é empiricamente implausível: a correlação entre o caráter consciente da experiência sensorial com padrões neuronais espaço-temporais é muito mais sistemática e regular do que com a correlação com qualquer coisa fora do cérebro. No entanto, na sua forma radical, o externismo fenomenal enativista não é apenas completamente contraintuitivo, mas, sobretudo, inteiramente falso: duplicatas fenomenais não são necessariamente duplicatas de agência. A conclusão metafísica fundamental reza, então: 5- somos o nosso próprio cérebro, que possui um corpo físico (um corpo biológico, avatares, ou artefatos devidamente configurados e moldados pelo próprio cérebro etc.) e não um corpo que possui um cérebro, dentre outros órgãos.

O ensaio está concebido em mais três seções e uma conclusão sumária. Na próxima seção, buscaremos mostrar que o operacionalismo enativista é um equívoco behaviorista: o know how não pode ser entendido como uma atividade desprovida de sentido proposicional e, a fortiori, a percepção não pode tampouco ser compreendida como um know-how sensório-motor. Na seção seguinte, argumentaremos em favor de duas teses antienativistas: (a) a relação entre cada percepção e corpo próprio não é essencial, mas contingente; (b) cabe ao nosso cérebro moldar ou configurar um corpo físico (biológico, avatar etc.) em um corpo vivo, e não o inverso.

A terceira e penúltima seção antes da conclusão é dedicada à crítica do externismo fenomenal enativista. A suposição controversa é que a experiência consciente se reduz, a suma, aos aspectos da atividade corporificada do sujeito percipiente. Em outras palavras, a natureza da experiência consciente reduziria aos aspectos da atividade incorporada do sujeito percipiente. Como observamos, Nöe, por um lado, Hutto e Myin, por outro, parecem defender teses opostas a respeito. Seja como for, a tese comporta duas interpretações. Sustentaremos que as duas variantes são equivocadas. Assim, nada mais resta do enativismo.

 

1 Tese Geral: O Know-How como uma Atividade sem Sentido Cognitivo

Segundo Nöe (2014, p. 89), a percepção nada mais seria do que um know-how sensório-motor. Segundo as suas próprias palavras:

Não é preciso pensar ou ter habilidade intelectual para saber que, para trazer o item para a esquerda, você deve virar sua cabeça para a esquerda... [ou] quando você ouve um som como se estivesse à esquerda, não precisa pensar em qual caminho virar sua cabeça para se orientar em direção ao som. Você precisa pensar em como manobrar um sofá para espremê-lo através de uma pequena passagem. Mas você não precisa, da mesma forma, pensar em como manobrar seu corpo para espremê-lo através da porta. Apenas perceber a porta como tendo certos laços de qualidade espacial é percebê-la como exigindo ou permitindo certos tipos de movimentos com relação a ela.

 

Um agente se tornaria visualmente consciente de um objeto, quando duas condições fossem satisfeitas. A primeira seria que a percepção visual do agente deveria exercer ativamente seu conhecimento das leis sensório-motoras. A percepção visual só ocorreria “[...] quando o organismo dominasse o que chamamos as leis governantes da contingência sensório-motora.” (O'REGAN; NOË, 2001, p. 939). O'Regan e Noë sustentam que a cognição envolvida no exercício de nossas habilidades motoras não é uma forma de conhecimento proposicional (o que eles denominam de “intelectualismo”), mas um conhecimento prático (NOË, 2004, p. 11). De acordo com a segunda condição, deveria haver um item no ambiente que acionaria as reações sensório-motoras do percipiente (NOË, 2005).

Mas podemos, de fato, afirmar que o próprio know-how seria um saber prático destituído de sentido cognitivo ou proposicional? Como mencionamos na introdução deste ensaio, Stanley e Williamson apresentam uma análise semântica do know-how que põe por terra todo esse credo operacionalista ou anti-intelectualista. Nesta seção, consubstanciaremos as conclusões dos autores, com base em exemplos cotidianos.

João Carlos Martins é um conhecido pianista brasileiro, cuja vida foi marcada por uma série de tragédias pessoais que, pouco a pouco, foram impossibilitando a sua carreira como pianista clássico. Em 1965, Martins vivia em Nova Iorque, quando foi convidado para integrar o time amador da Portuguesa Paulista, em um jogo treino realizado no Central Park. Toda felicidade por jogar pelo seu time de coração se transformou em desespero, em apenas um segundo. Uma jogada isolada, uma queda aparentemente boba, resultou em uma perfuração na altura do cotovelo que atingiu o nervo ulna.

Esse “pequeno acidente” provocou atrofia em três dedos de sua mão, impossibilitando-o de tocar por um ano inteiro. A recuperação foi longa e complicada, fazendo com que o maestro tocasse com dificuldade até os 30 anos. Contudo, esse foi apenas um dos muitos percalços que Martins teve que superar, durante sua trajetória. Após longos períodos de fisioterapia, o pianista voltou aos palcos e, mesmo com a dificuldade, as críticas foram bem favoráveis. No entanto, Martins novamente foi impossibilitado de tocar o piano, devido a distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho.

Mesmo com mais uma adversidade, o pianista não desistiu de sua carreira, adaptando-se às restrições que o problema lhe causava. Retomou a sua carreira, voltando a tocar de 1979 a 1985. Realizou 10 gravações de Bach, conseguindo concluir o restante de todas as gravações da obra do compositor. Entretanto, em 1995, mais uma vez, Martins foi vítima do destino. Durante um assalto na cidade de Sofia, o pianista foi golpeado com uma barra de ferro. A pancada comprometeu seriamente o seu braço direito. Depois de alguns processos cirúrgicos, fez-se necessário cortar a conexão neural entre o seu braço direito e o seu córtex sensório-motor, impossibilitando os seus movimentos para sempre.

O que fez o pianista depois disso? Gravou o álbum “Só para Mão Esquerda”. Todas as composições contidas nesse álbum foram compostas em homenagem a Paul Wittgenstein, irmão do célebre filósofo, que perdeu o mesmo membro na Segunda Guerra Mundial. A ideia de Martins era gravar oito álbuns com essa temática. Porém, foi descoberto um tumor em sua mão esquerda. Foi quando ouviu do seu médico que nunca mais tocaria piano. Seccionaram as conexões nervosas entre a sua mão esquerda e o seu córtex sensório-motor.

Nesse momento, morre um pianista e nasce um maestro. No dia seguinte, Martins se inscreveu em aula de regência. Por causa da dificuldade de coordenação dos movimentos de seus dedos, com a incapacidade de segurar a batuta e virar as páginas das partituras dos concertos na velocidade necessária, Martins tinha que memorizar nota por nota. Mas, inegavelmente, Martins se tornou um bom maestro, sobretudo, regendo o compositor que ele mais admirava: Bach.

A pergunta interessante para o nosso debate aqui é a seguinte: o que diríamos intuitivamente? Quando Martins teve conexões nervosas entre seu córtex sensório-motor e as suas duas mãos desconectadas, ele deixou de saber como se toca piano? Quando Martins perdeu as supostas “leis governantes da contingência sensório-motora”, teria ele deixado de saber como se toca piano? Diríamos que Martins sabia como tocar Bach com grande maestria, mas agora ele não sabe mais como tocar, por não poder mais executá-lo? Ele teria simplesmente se esquecido de como se faz para tocar piano, simplesmente por não poder mais fazê-lo?

Nonsense! Isso nos soa completamente contraintuitivo: tudo indica que Martins ainda hoje sabe como tocar piano, a despeito das inúmeras tragédias pessoais que o tenham tornado inepto para tocar o instrumento. Ele ainda sabe exatamente o que tem que ser feito e como deve ser feito, para executar as obras de Bach, Chopin, Beethoven etc. Ele apenas não pode mais fazer o que ainda sabe fazer. No entanto, a pergunta é: o que ele sabe fazer? A resposta será sempre um saber proposicional: ele sabe como, quando e o que é tocar (tese de Stanley e Williamson).

O primeiro ponto a observar é o seguinte: caso Martins não soubesse mais como tocar, a sua queixa teria a forma:

·       “Bah, se eu ainda soubesse tocar piano!”

Mas essa não é a sua queixa, mas antes:

·       “Bah, se eu ainda pudesse tocar o Cravo bem temperado de Bach!”

·       Bah, se eu ainda pudesse executar as polonesas e prelúdios de Chopin!”

Ou ainda:

·       “Ah, se eu ainda pudesse tocar as sonatas para piano solo de Beethoven!”

Se levarmos a sério essas queixas de Martins (hipotéticas), o que diríamos? Que Martins deixou de saber como (know-how) tocar! Nonsense: Martins simplesmente não pode mais fazer o que ele ainda sabe fazer.

Suponhamos agora que o tumor na sua mão esquerda tivesse sido curado e, ademais, que a neurociência pudesse restabelecer as conexões nervosas rompidas entre o córtex sensório-motor do Martins e as suas mãos. O que ocorreria? Ele seria capaz de tocar piano? Ora, com algum treino, provavelmente ele retomaria o piano como sempre o fez. O que dizer, nesse caso?

Segundo Nöe, deveríamos dizer o seguinte. Com efeito, Martins sabia como tocar piano, mas, devido ao rompimento cirúrgico das conexões nervosas entre as suas mãos e seu córtex sensório-motor, Martins deixou de saber como tocar piano. Todavia, agora refeitas as conexões nervosas rompidas entre as mãos e o córtex sensório-motor, Martins teria voltado a saber como se toca piano!

Com base nessas intuições pré-teóricas ou pré-filosóficas, podemos formular um simples argumento por redução ao absurdo:

 

1-     Martins sabia como tocar piano, antes que as conexões nervosas entre seu córtex sensório-motor e as suas mãos fossem rompidas por uma intervenção cirúrgica, em razão do tumor ocorrido.

2-     Suposição enativista: o know-how é uma mera forma de saber prático sem sentido cognitivo ou proposicional.

3-     Quando as conexões nervosas entre seu córtex sensório-motor e as suas mãos foram rompidas cirurgicamente, Martins deixou de saber como se toca piano.

4-     Absurdo: Ora, mas depois que as conexões nervosas entre seu córtex sensório-motor e as suas mãos foram restabelecidas por uma nova intervenção cirúrgica, Martins voltou a saber como se toca piano!

 

Imagino que muitos enativistas iriam considerar a hipótese da recuperação das conexões nervosas entre o córtex sensório-motor e as mãos de Martins fantasiosa como um argumento filosófico! Se assim for, basta considerarmos um exemplo paralelo em todos os detalhes relevantes. Trata-se do caso do paraplégico Juliano Pinto chutando uma bola com o exoesqueleto, no Maracanã, em 2014.

 

1-     Juliano Pinto (aos seus 29 anos) sabia como chutar uma bola de futebol, como qualquer pessoa adulta, até sofrer um grave acidente que o tornou paraplégico. Rompida a coluna vertebral, romperam-se as ligações nervosas entre o seu córtex sensório-motor e as suas pernas.

2-     Suposição enativista: o saber prático não tem sentido proposicional.

3-     À luz de 1 e 2, quando Juliano Pinto se torna paraplégico, Juliano simplesmente deixou de saber como se chuta uma bola de futebol.

4-     Ora, mas mediante um exoesqueleto, Juliano Pinto, nos EUA, dá o pontapé inicial da Copa do Mundo de 2014 no Maracanã (Brasil). Eis que Juliano Pinto volta a saber como se chuta uma bola de futebol!

5-     Absurdo: como Juliano Pinto uma vez, paraplégico, apenas com um exoesqueleto, volta a saber como chutar uma bola?

 

Por último, suponhamos o seguinte contrafactual. Martins não teria sido acometido por nenhuma das tragédias pessoais supramencionadas (que, de fato, ocorreram). Ele teria permanecido executando Bach, Chopin e Beethoven, como sempre. Entretanto, com a idade avançada, Martins passa a sofrer do mal de Alzheimer. Este não afeta primariamente o córtex sensório-motor, mas o hipocampo, o qual controla a memória, e o córtex cerebral, essencial para a linguagem e o raciocínio, memória, reconhecimento de estímulos sensoriais e pensamento abstrato.

Suponhamos agora que Martins, logo no início da sua demência (Alzheimer), se sentasse ao piano e iniciasse uma das inúmeras fugas de Bach que ele conhecia de cor. O cenário mais plausível seria o seguinte: já demenciado, após os primeiros compassos, Martins interromperia a execução, mas por quê? Resposta mais plausível: porque não se recordaria mais do resto da fuga.

A pergunta fundamental que agora se coloca é: Martins, demenciado pelo mal de Alzheimer, ainda sabe como tocar piano? Sabe como executar as fugas de Bach? A resposta intuitiva é: não, ele não sabe mais! Com a perda da memória de trabalho e a deterioração do seu córtex pré-frontal, ele não sabe mais o que ele sabia fazer de cor. Todavia, o que agora lhe falta? Resposta: um saber proposicional: ele não sabe mais o que tem que fazer com as mãos, para executar a fuga (uma proposição). E aí temos mais uma redução ao absurdo da tese behaviorista de que know-how é um mero saber prático sem nenhum componente proposicional:

 

6-     Martins sabia como tocar piano de cor, antes de padecer do mal de Alzheimer.

7-     Suposição enativista: o know-how é uma mera forma de saber prático sem sentido cognitivo ou proposicional.

8-     Quando Martins padece do mal de Alzheimer, ao menos inicialmente, o seu córtex sensório-motor se mantém intacto (fato empírico).

9-     Absurdo: padecendo do mal de Alzheimer, mas ainda possuindo o córtex-sensório-motor intacto, Martins ainda sabe como tocar piano.

10- Conclusão: ainda que tenha preservado o seu córtex sensório-motor, Martins, acometido pelo mal de Alzheimer, não sabe mais como tocar piano.

 

Moral da história: em termos gerais, o know-how não se reduz a um saber prático sem sentido proposicional. Ora, como o enativismo perceptual de Nöe e outros se apoia decisivamente na tese geral, segue-se que não podemos reduzir tampouco a percepção a um know-how sensório-motor sem sentido proposicional.

 

2 O Cérebro e o Corpo

Segundo o enativismo, nas suas diferentes formas, a percepção é essencialmente uma atividade incorporada de um organismo. Nesse sentido, deveria haver uma relação metafísica essencial entre a percepção e o corpo próprio. O pressuposto metafísico fundamental aqui é que somos essencialmente o nosso próprio corpo. Essa nossa suposição encontra amparo na afirmação de Gallagher, segundo a qual caberia ao corpo (próprio) dar a forma à mente (“the body shapes the mind”. Cf. SHAUN GALLAGHER, 2006) e organizar o campo perceptual.

Nesta seção, defenderemos a tese contrária: a relação entre a percepção e o corpo é metafisicamente contingente mais de um corpo biológico ou mesmo avatares distantes no espaço poderiam estar associados a uma mesma experiência. Mas sustentamos que cabe ao cérebro moldar o corpo biológico ou físico (Körper) como corpo vivo (Leib). O corpo vivo emerge apenas de uma representação subliminar (esquema corporal) do próprio corpo físico. Dito isso, não é o meu corpo biológico que preside o campo perceptual, porém, ao contrário, é a representação de algum corpo como meu próprio pelo meu cérebro. Assim, não é o movimento do corpo que torna a percepção em geral possível, mas o inverso: representações do corpo biológico como corpo vivo é que tornam antes possível o agir corporal. Em suma, não somos um corpo que possui um cérebro, mas, antes, um cérebro que possui um corpo.

Nossos argumentos nesta seção apelam a experimentos e a intuições. Gostaria de iniciar esta seção, enumerando experimentos conduzidos pelo grande neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis. Em um primeiro, foram desenvolvidos sensores que captaram essas atividades nos ratos, decodificaram e transmitiram para outros ratos, onde foram decodificadas e compreendidas. Nicolelis e colegas descrevem o experimento, nos seguintes termos:

Uma interface cérebro-cérebro (BTBI) permitiu uma transferência em tempo real de informações sensório-motoras comportamentais significativas entre os cérebros de dois ratos. Neste BTBI, um rato “codificador” executava tarefas sensório-motoras que exigiam que ele selecionasse duas opções de estímulos táteis ou visuais. Enquanto o rato codificador executava a tarefa, amostras de sua atividade cortical eram transmitidas para áreas corticais correspondentes de um rato "decodificador", usando microestimulação intracortical (ICMS). O rato decodificador aprendeu a fazer seleções comportamentais semelhantes, guiado apenas pelas informações fornecidas pelo cérebro do rato codificador. Esses resultados demonstraram que um sistema complexo foi formado pelo acoplamento dos cérebros dos animais, sugerindo que os BTBIs podem possibilitar que díades ou redes de cérebros dos animais troquem, processem e armazenem informações e, portanto, servir como base para estudos de novos tipos de interação social e para dispositivos de computação biológica. (PAIS-VIEIRA et al., 2013, p. 1, tradução nossa). [230]

 

Um rato recebia comandos mentais de outro (localizado em outro espaço) e acionava uma alavanca. O rato codificador era recompensado, caso o outro realizasse a tarefa de forma correta. Foi esse duplo estímulo que levou à colaboração entre os dois ratos. Quando o segundo rato cometia algum erro, o primeiro tratava de reformular a ordem, sendo mais atento e enviando ordens mais precisas. Desnecessário se dizer que nada disso se passa em um plano reflexivo, conceitual ou proposicional. Ora, mas a pergunta é: o que podemos extrair desse experimento?

Em primeiro lugar, como são dois ou mais corpos em espaços distintos se utilizando de uma mesma rede neuronal, a relação entre cada percepção e corpo não é essencial, mas metafisicamente contingente. Pouco importa qual corpo (qual organismo vivo), ao fim e ao cabo, irá realizar a tarefa. O que importa é aquilo que o enativista quer negar: a rede neuronal intracraniana. Mutatis mutandis, a relação entre cada córtex sensório-motor específico e a ação realizada também é metafisicamente contingente. Na interface cérebro-cérebro, o que importa são as informações sensório-motoras transmitidas de um córtex para outro. Isso nos permite formular dois breves argumentos contra o enativismo:

 

1.         Primeira tese enativista: “[...] perceber não é uma atividade no cérebro, mas um tipo de atividade habilidosa da parte do animal como um todo.” (NÖE, 2004, p. 2, tradução e grifos nossos).

2.         Ora, segundo a interface cérebro-cérebro (BTBI): um rato percebe a alavanca, sem que ele próprio a mova com o seu próprio corpo, e sem que a alavanca esteja no seu espaço, contudo, ele a move através do corpo de um terceiro rato ao qual transmite informações sensório-motoras.

3.         Assim, primeiro, perceber é, sim, uma atividade no cérebro (rede neuronal), e a ação realizada é contingente para a percepção.

4.         Conclusão: o enativismo é falso.

5.         Segunda tese enativista: “A atividade do organismo - envolvendo-se com as características de seus ambientes de maneiras específicas ​​- é suficiente para os tipos mais básicos de cognição. Tal atividade não depende de indivíduos recuperando conteúdo informativo do mundo.” (HUTTO; MYIN, 2013, p. 4-5, tradução e grifos nossos).

6.         Ora, segundo o BIBT, o rato que aciona a alavanca só o faz, na medida em que “recupera um conteúdo informativo” sensório-motor do primeiro rato.

7.         Conclusão: o enativismo é falso.

 

Poder-se-ia alegar aqui, em defesa do enativismo, que mesmo o BIBT supõe a tese da corporeidade cognitiva – afinal, ambos os ratos desempenham suas tarefas com os seus diferentes corpos. Na verdade, essa réplica trivial me parece um equívoco. Primeiro, nem mesmo um dualista cartesiano supõe que atividades cognitivas possam ser realizadas sem corpo (menos ainda um cognitivista). No entanto, o essencial é o seguinte: o que é metafisicamente constitutivo da atividade cognitiva não é esse ou aquele corpo que realiza a atividade corporal, mas a rede neural que está sendo transmitida de um corpo para outro. Aqui voltamos à objeção central de Block: enativistas de todas as tribos sucumbem a uma confusão elementar: confundem relações metafísicas constitutivas com relações causais! É óbvio que a execução de atividades perceptuais dependa, em termos causais, de um corpo. Porém, elas não são constituídas por este ou aquele corpo, uma vez que estes podem ser substituídos sem nenhum prejuízo da atividade cognitiva em si.

O segundo experimento digno de nota é aquele que Nicolelis realizou com uma rede neuronal de primatas. Eles aprenderam a utilizar a interface em tarefas bem mais complexas. Dois ou mais primatas passaram a controlar artefatos, mediante um avatar. Nas palavras de Nicolelis e colegas:

Tradicionalmente, as interfaces cérebro-máquina (IMC) extraem comandos motores de um único cérebro para controlar os movimentos de dispositivos artificiais. Aqui, apresentamos um Brainet que utiliza a atividade cerebral em larga escala (VLSBA) de dois (B2) ou três (B3) primatas não humanos para se envolver em um comportamento motor comum. Um B2 gerou movimentos 2D de um braço de avatar, onde cada macaco contribuiu igualmente para as coordenadas X e Y; ou um macaco controlava totalmente a coordenada X e o outro controlava a coordenada Y. Um B3 produzia movimentos de braço no espaço 3D, enquanto cada macaco gerava movimentos em subespaços 2D (X-Y, Y-Z ou X-Z). Com o treinamento de longo prazo, observamos um aumento da coordenação do comportamento, aumento das correlações na atividade neuronal entre diferentes cérebros e modificações na representação neuronal do plano motor. No geral, o desempenho do Brainet melhorou devido ao comportamento coletivo dos macacos. Esses resultados sugerem que os cérebros dos primatas podem ser integrados em um Brainet, que se auto-adapta para atingir um objetivo motor comum. (RAMAKRISHNAN, 2015, p. 1).

 

Após controlar o avatar com o cérebro, os primatas conseguiram processar um feedback táctil. Assim, com corpos distintos e separados por continentes no espaço, um dos macacos tinha experiência tátil com algum objeto e imediatamente passava a informação para o parceiro. A primeira conclusão que se extrai desse experimento é a mesma do experimento anterior: um mesmo corpo não é necessário para a experiência tátil: os corpos podem variar, como podem inclusive variar os espaços que ocupam, em uma mesma experiência. A relação entre cada percepção e o corpo próprio é metafisicamente contingente. O que é necessário é aquilo que o enativista quer negar: a existência de uma rede neuronal instanciada em uma série indefinida de corpos em espaços distintos.

Todavia, a segunda conclusão nos parece ainda mais importante. Os experimentos revelam a possibilidade de adicionarmos “dispositivos artificiais” ao cérebro, o qual, assim, passa a representá-los tais como membros orgânicos do corpo. É relativamente trivial reconhecermos que dispositivos artificiais estendem a mente para além dos limites do córtex. Mas o mais interessante nos parece ser o seguinte: pelo experimento de Nicolelis e colegas, podemos concluir que é o próprio cérebro que se estende para além dos limites dados pelo corpo biológico. O que é ou deixa de ser parte do meu corpo vivo depende essencialmente das configurações do meu cérebro. Podemos adicionar dispositivos artificiais, ao representá-los como membros do nosso corpo, tal como adicionamos múltiplos acessórios aos nossos computadores, via Bluetooth. Os primatas “incorporam” os dispositivos como partes do seu próprio corpo, tal como adicionamos fones sem fio ao nosso computador, fazendo apenas configurações nas “preferências do sistema”.

Ora – poder-se-ia objetar mais uma vez – na medida em que afirmamos que os cérebros dos primatas “incorporam” dispositivos como partes do seu próprio corpo, não estaríamos a defender a tese do cérebro expandido de Chalmers? A nossa polêmica aqui não é com a tese (hoje para lá de trivial) da mente expandida. A tese que rejeitamos enfaticamente é metafisicamente muito mais substantiva. Ela reza que a cognição e, em particular, a percepção são metafisicamente constituídas pelas chamadas contingências sensório-motoras. Em outras palavras, metafisicamente e cognitivamente, somos todo o nosso corpo.

No entanto, o experimento mais significativo de Nicolelis e colegas é aquele que coloca uma pá de cal em todas as formas de enativismo. O experimento de Nicolelis e colegas suportam teses em que a representação cerebral do próprio corpo, o esquema corporal, antecede e constitui a percepção tátil dos objetos:

A representação cerebral do corpo, chamada de esquema corporal, é suscetível à plasticidade. Por exemplo, sujeitos que experimentam uma ilusão de mão de borracha desenvolvem um senso de propriedade de uma mão de manequim, quando a veem sendo tocada, enquanto estímulos táteis são aplicados simultaneamente em sua própria mão. Aqui, a base cortical de tal modalidade foi investigada através de gravações simultâneas de conjuntos neuronais corticais primários (isto é, S1) e motores (isto é, M1) enquanto dois macacos observaram um braço de avatar sendo tocado por uma bola virtual. Após um período em que os toques virtuais ocorreram sincronizadamente com as escovadas físicas dos braços dos macacos, os neurônios em S1 e M1 começaram a responder aos toques virtuais aplicados sozinhos. As respostas ao toque virtual ocorreram 50 a 70ms mais tarde do que ao toque físico, consistente com o envolvimento de vias polissinápticas que ligam o córtex visual a S1 e M1. Propomos que S1 e M1 contribuam para a ilusão da mão de borracha e que, aproveitando a plasticidade dessas áreas, os pacientes possam assimilar membros neuroprostéticos como partes de seu esquema corporal. (SHOKUR et al., 2013, p. 1, tradução e grifos nossos).

 

Com efeito, Gallagher replicaria aqui, dizendo que a neurociência estaria confundindo “imagem corporal” com o “esquema corporal”: “O conceito de imagem corporal ajuda a responder à pergunta sobre a aparência do corpo no campo perceptivo; em contraste, o conceito de esquema corporal ajuda a responder a pergunta sobre como o corpo molda o campo perceptivo.” (2006, p. 18, tradução e grifos nossos). A ideia aqui é que o esquema corporal não seria uma representação do próprio corpo (a imagem corporal), mas algo que seria essencialmente constituído por capacidades e hábitos motores.

Entretanto, essa concepção motora do esquema corporal proposta por Gallagher é incompatível com os dados do experimento de Nicolelis e colegas. Nenhuma habilidade motora está envolvida! O que o experimento assinala é um cruzamento de informações visuais de uma mão de borracha com informações táteis da própria mão que conduz o sujeito a representar ilusoriamente a mão de borracha, como sendo parte do seu próprio corpo: “Sujeitos experimentam uma ilusão de mão de borracha desenvolvem um senso de propriedade de uma mão de manequim quando a veem sendo tocada enquanto estímulos táteis são aplicados simultaneamente em sua própria mão.” (SHOKUR et al., 2013, p. 1, tradução nossa).

Não é nenhum hábito motor que constitui o campo perceptual, mas representações subliminares ou não conceituais de um corpo, a partir do cruzamento de informações oriundas de diferentes fontes. Logo, o corpo que importa à cognição não é um “Körper” (corpo físico), mas um “Leib” (corpo vivo). Essa é uma distinção introduzida pelo antropólogo Helmuth Plessner nos anos vinte, em colaboração com o psicólogo behaviorista holandês Frederick J. Buytendijk (cf. STRUYKER BOUDIER, 1993). Essa distinção é incorporada por Merleau-Ponty (cf. MERLEUAU-PONTY, 1945, p. 327).

No entanto, o ponto crucial que os enativistas ignoram é o seguinte: esse corpo vivo é constituído metafisicamente pela representação subliminar e/ou não conceitual de um corpo biológico ou de substitutos, como avatares e membros mecânicos, os quais têm a forma de um esquema corporal gerado pelo próprio cérebro, de forma subpessoal e subliminar. Em suma, não é o corpo que molda a mente, mas, antes, é o cérebro que molda o corpo vivo.

Casos patológicos conhecidos apontam na mesma suposição, como, por exemplo, o da dor no membro-fantasma. Quase todas as pessoas que tiveram um membro amputado ou um nervo removido relatam ter experimentado algum tipo de membro-fantasma, mas apenas algumas relatam dor persistente nesse membro. A primeira pergunta que se coloca ao enativista: como entendermos o tal membro-fantasma, sem supormos um conteúdo representacional? Qual interação incorporada poderia explicar como e por que sinto um membro que não existe e, pior, que dói? Se a função da experiência é nos pôr em contato com o mundo, como ressalta Nöe, onde estaria o contato, no caso do membro-fantasma?

Muitos que realizam a experiência de um membro-fantasma aludem a uma dor muito forte – geralmente não é aliviada por medicamentos ou dispositivos implantados. A interpretação mais plausível é a seguinte: o membro amputado não mais existe, biologicamente. Contudo, ele é ainda sentido pelo cérebro como parte do esquema ou representação corporal. Pessoas nessa condição reportam sentir dor no membro ausente, porque tal membro estaria, de alguma maneira, “preso”. A terapia mais engenhosa é simples e sem custo. Ela foi proposta por Vilayanur S. Ramachandran: utiliza-se um espelho e a pessoa diante do espelho realiza movimentos com o membro restante, projetado de forma inversa no espelho (RAMACHANDRAN; RAMACHANDRAN, 1996).

Em um trabalho recente, Jack Tsao e colegas descrevem uma das melhores tentativas de elucidar o verdadeiro valor da terapia do espelho, para dor em membros-fantasmas. Os pesquisadores escolheram aleatoriamente 22 pessoas com membros inferiores amputados e com dor-fantasma e as classificaram em três grupos:

 

1.     Movimentos de espelho: os pacientes observavam a imagem refletida de seu pé intacto em um espelho, enquanto moviam os dois pés simultaneamente. (Obviamente, os amputados não podem mover o pé perdido, mas podem mover o pé-fantasma.)

2.     Movimentos do espelho coberto: os pacientes realizavam os mesmos movimentos, mas o espelho estava coberto, para que não vissem um membro em movimento.

3.     Movimentos imaginários: sujeitos eram retratados mentalmente movendo o pé-fantasma, com os olhos fechados.

 

Todos os pacientes realizaram 15 minutos por dia de sua terapia designada e registraram o número, a duração e a intensidade dos episódios de dor. Após quatro semanas, houve duas descobertas cruciais. Em primeiro lugar, a dor diminuiu significativamente em todos os seis pacientes que fizeram os movimentos do espelho, com a redução média, conforme relatado em uma escala de 100 pontos, sendo de 30/100 para cerca de 5/100. Em segundo lugar, três em cada seis pacientes no grupo de movimentos do espelho coberto, e quatro em cada seis pacientes no grupo de movimentos imaginários pioraram, não melhoraram.

A conclusão mais plausível desses experimentos é que os movimentos do espelho diminuem a dor do membro-fantasma. Por que o tratamento se mostrou exitoso? Na realidade, não há uma resposta clara para isso, uma vez que não sabemos como funciona totalmente o cérebro. Mas uma coisa é certa e é o que importa para a discussão deste ensaio: de uma forma ou de outra, o cérebro, através do espelho, passou a representar o membro-fantasma de forma diferente.

O enativista poderia sugerir, em réplica, que os movimentos do braço refletidos no espelho é que reconfiguram a imagem corporal. Ora, essa réplica não nos parece fazer sentido, por duas razões. Primeiro, muito antes do início do movimento do membro refletido no espelho, já havia uma representação ilusória não conceitual do membro-fantasma e nenhum movimento corporal induziu o sujeito a tal representação. Em segundo lugar, o que está em jogo aqui não é o movimento do membro, porém, antes, o cruzamento de representações visuais com representações proprioceptivas, como no caso anterior. Mais uma vez, quem comanda o espetáculo não é o corpo físico (Körper), mas o corpo vivo (Leib), ou seja, o que quer que seja que o cérebro venha a representar como seu corpo.

Há inúmeros outros exemplos, mas nos limitaremos apenas a mais um: casos de distúrbios alimentares. Todo anoréxico se percebe “obeso”, no espelho, mesmo que ele esteja tal como um sobrevivente de um campo de concentração nazista! Moral da história: não é o corpo biológico (Körper) que constitui a percepção de objetos mundanos e dos estados de terceiros nem a autopercepção, mas, pelo contrário, é a percepção do corpo biológico como próprio (Leib) que torna possível a percepção de objetos e de estados mentais de terceiros.

 

3 O Paradeiro da Consciência

Nesta última seção, buscaremos eliminar o último dos credos do enativismo, aquele que constitui a sua quintessência: o externismo fenomenal ou consciente enativista. Enativistas de diferentes estirpes sustentam que a experiência consciente (ou a fenomenalidade) poderia ser explicada no seu quadro teórico (HUTTO; MYIN, 2013, p. 155). Dizem-nos que a consciência possui uma “ampla base de superveniência”: ela envolveria constitutivamente parte do ambiente. Ou ainda, segundo Thompson e Varela, a consciência seria um produto do trabalho conjunto entre cérebro, corpo e mundo (THOMPSON; VARELA, 2001). Nöe ainda é mais contundente: “[...] a percepção e a consciência perceptiva dependem das capacidades de ação [...]” (NÖE, 2004, p. Vii, tradução nossa); e, por fim: “[...] o carácter fenomenal é um aspecto dessa atividade” (NÖE, 2009, p. 9, tradução nossa).

Embora concordem que os processos cerebrais sejam necessários para o caráter fenomenal, enativistas sustentam que a consciência “[...] não se encontraria na cabeça” (um dogma segundo Nöe – cf. NÖE 2004, p. 2016). Ela seria, ao menos em parte, individuada metafisicamente pela interação incorporada do organismo com “circunstâncias externas”. Logo, o caráter fenomenal exigiria não apenas a ocorrência de processos cerebrais, mas, sobretudo, de condições extracranianas (cf. HUTTO; MYIN, 2013, p. 158). Mas quais seriam essas condições extracranianas? Quais seriam “compromissos mundanos interativos”? O que significa dizer que a “consciência não estaria na cabeça”?

Ao que tudo indica, o oponente aqui é o internista fenomenal, para quem a consciência seria “interna” ao cérebro. Nöe nos fornece um exemplo sugestivo:

Talvez a única maneira - ou a única forma biologicamente possível - de produzir apenas a sensação de sabor que se desfruta, quando se toma um gole de vinho, é rolando o líquido na língua. Nesse caso, o líquido, a língua e a ação de rolamento seriam parte do substrato físico para a ocorrência da experiência. (NÖE, 2004, p. 227, tradução nossa).

 

Entretanto, a tese de que a consciência não sobrevém localmente ao cérebro (ou seja, fixadas as propriedades do cérebro, não teríamos fixado o caráter fenomenal das experiências) comporta ao menos duas interpretações, uma menos controversa, ainda assim implausível, enquanto a outra claramente falsa (além de contraintuitiva). A interpretação menos controversa é endossada por Nöe (2004, p. 221, tradução nossa):

Sobre o externismo que estou defendendo aqui, ele não coloca em xeque uma série de verdades internistas. Por exemplo, o externismo enativista que defendo aqui é compatível com o fato de que a única maneira de o mundo produzir mudanças na consciência animal é produzindo mudanças no cérebro; que as mudanças apropriadas no cérebro produzirão mudanças na consciência, mesmo que o ambiente permaneça inalterado. Na verdade, o externismo que defendo aqui é compatível com o fato de que as duplicatas neurais serão duplicatas a respeito da consciência.

 

À luz dessa leitura, o externismo fenomenal enativista estaria se opondo à chamada concepção do estado interno físico. Proponentes recentes da visão do estado físico interno incluem Ned Block (2019), C. L. Hardin (1988), Geoff Lee (2020), David Papineau (2014), Thomas Polger (2004) e Hilary Putnam e Hilla Jacobson (2014). Não é surpresa para ninguém que tal concepção do estado interno físico seja amplamente endossada (ainda que de maneira tácita) pelos neurocientistas. Por exemplo, Guillermos Tononi e Kristof Koch (2015) propuseram a “teoria da informação integrada” da experiência, a qual é uma das concepções do estado interno físico. A concepção do estado interno físico pode ser definida nos seguintes termos, conforme proposto por Adam Pautz (2021, p. 60):

Concepção do estado interno físico. Toda experiência com um determinado caráter fenomenal é necessariamente idêntica a uma propriedade física “interna”, ou seja, um padrão neural determinado. Essa propriedade é uma propriedade intrínseca do cérebro que não guarda relação alguma com nada fora do cérebro. As diferenças no caráter fenomenal da experiência se reduziriam a diferenças nas propriedades físicas intrínsecas dos sujeitos.

 

Nesse sentido, O’Regan e Nöe sustentam a própria coerência do caráter fenomenal; por exemplo, a coerência da experiência visual seria impossível, sem a manutenção da interação real com um ambiente atual concreto (O’REGAN; NÖE, 2001). Isso explicaria por que a experiência visual nos sonhos e nas alucinações seria menos coerente do que na vigília.

Com efeito, não restam dúvidas de que inúmeros casos de alucinações são fenomenalmente distintos de percepções genuínas. Entretanto, tal suposição não é universalizável. Por exemplo, existe uma condição chamada “síndrome de Charles Bonnet” (CBS). Ela é muito comum entre aqueles que perderam a visão, muitas vezes devido a uma condição relacionada à idade (por exemplo, degeneração macular). No entanto, devido à atividade neural interna espontânea, eles têm alucinações que são tão vívidas e detalhadas que, na maioria das vezes, eles não conseguem distingui-las da vida real. Em uma página da web sobre a CBS, especificamente sobre “Personal experiences of CBS”), é possível encontrar o seguinte testemunho de um idoso sobre a sua condição:

Tenho degeneração macular há cerca de seis meses, comecei a ver essas formas e figuras supercoloridas. Felizmente, meu oftalmologista me contou sobre a CBS, então, comecei a apreciá-la. Às vezes, eu vejo essas trepadeiras ou plantas de um verde tão rico! Eu adoro ver as cores fortes, mas, às vezes, elas são muito, muito coloridas, como quando você aumenta o controle de cores da TV ao máximo.[231]

 

 

Haveria alguma ação incorporada que os organismos pudessem realizar, a qual tornasse o caráter fenomenal das suas experiências alucinatórias distinto das suas percepções genuínas? Não há nenhuma evidência, na literatura. O idoso está fazendo os mesmos movimentos oculares, quando tem alucinação e quando percebe genuinamente. Ele se aproxima e se distancia das trepadeiras e plantas alucinadas, do mesmo modo como faz em relação a trepadeiras e plantas reais, no seu campo visual. Com efeito, o idoso só se apercebe do caráter alucinatório de suas experiências graças ao relato de seu oftalmologista sobre a sua condição. Isso por si só já seria suficiente para descartarmos de uma vez por todas o externismo fenomenal de O’Regan e Nöe. Mas a posição dos autores ainda se torna mais indefensável, quando consideramos que há fortes evidências empíricas de que a atividade neural subjacente a essas alucinações é amplamente semelhante à atividade subjacente à experiência (PENFIELD; PEROT, 1963; FFYTCHE, 2013).

Com efeito, a suposição de que o caráter consciente da experiência depende de uma forma sistemática e regular do caráter de sua atividade neural interna encontra amplo suporte empírico, atualmente. Enfatiza Pautz (2021, p. 68, tradução e grifos nossos):

Como, em muitos casos, as relações estruturais entre as experiências (semelhança e diferença, intervalos iguais, proporção) não correspondem às relações estruturais entre as propriedades físicas externas complexas às quais nosso cérebro está respondendo, mas correspondem às relações estruturais entre os correlatos neurais internos, então, isso certamente aumenta a probabilidade da visão de que nossas experiências são simplesmente idênticas àqueles correlatos neurais.

 

Se conhecêssemos o padrão espaço-temporal de atividade em alguma população de neurônios que representam cores, e se conhecêssemos o “código neural” sistemático dessas representações, poderíamos determinar o caráter consciente da experiência de cores. Da mesma forma, se conhecêssemos o padrão de atividade em alguma outra população de neurônios que representam características espaciais, e conhecêssemos o “código neural” sistemático para um formato ou figura, poderíamos determinar, quando alguém realiza uma experiência de algo redondo, ao invés de algo quadrado. Como afirma o neurocientista Stanislas Dehane (2014, p. 143-145, tradução nossa): “[...] o código [neural] contém um registro completo da experiência do sujeito” e, “[...] se pudéssemos ler este código, teríamos acesso total ao mundo interior de uma pessoa.”

No entanto, a interpretação controversa se opõe não apenas à concepção do estado interno físico. Ao que tudo indica, Hutto e Myin (2013, p. 158, tradução e grifos nossos) sustentam que a consciência seria superveniente, de maneira forte e ampla, face ao ambiente:

Alguns enativistas argumentam que a fenomenalidade tem uma ampla base de superveniência - que ela envolve constitutivamente partes do ambiente. Chamamos seus argumentos mais fortes de Argumentos de Envolvimento Essencial. Eles afirmam que os processos cerebrais necessários para a fenomenalidade ocorrem quando, e somente quando, há interação com certas circunstâncias externas. Nessa visão, a fenomenalidade requer não apenas a ocorrência de certos processos cerebrais, mas também de certas condições extracranianas. As condições extracranianas fazem parte da base de superveniência mínima da fenomenalidade. A experiência fenomenal sobrevém fortemente ou é constituída por compromissos mundanos interativos, temporalmente estendidos.

 

A palavra de ordem do enativista aqui é “ir longe”! (Going wide!) – cf. HUTTO; MYIN, 2013, p. 158). As atividades de um agente interagindo com o seu ambiente seriam metafisicamente constitutivas da própria consciência. Mas aqui estamos de volta com a ambiguidade inicial. Se, por um lado, Hutto e Myin se referem a uma “ampla base de superveniência”, por outro, eles também mencionam uma “base de superveniência mínima”. O que eles querem, afinal? Se nós seguirmos o que parece significar a segunda locução, estamos de volta com a leitura de Nöe: trata-se apenas se rejeitar a “concepção do estado interno físico”. E, como vimos, essa rejeição é implausível, em razão da correlação sistemática e regular entre o caráter consciente das experiências e padrões neuronais e da fraca correlação entre a consciência e o que se passa fora do cérebro, como ações incorporadas.

Mais auspicioso seria supor que se trata de uma versão sui generis do externismo fenomenal de representacionistas reducionistas naturalistas, como Fred Dretske (2003) e Michael Tye (1995). Segundo os representacionistas reducionistas naturalistas, duplicatas cerebrais não seriam necessariamente duplicatas fenomenais, por uma razão muito simples: duplicatas cerebrais não seriam necessariamente duplicatas representacionais. O credo fenomenal externista reza aqui que apenas duplicatas representacionais seriam duplicatas fenomenais. Ora, mas como é notório, os enativistas se afastam do externismo fenomenal representacionista de Dretske e Tye, em ao menos um aspecto fundamental já conhecido. Segundo Hutto e Mying, “[...] devemos abandonar a ideia de que a identidade fenomenal seja uma identidade de conteúdo (amplo).” (HUTTO; MYING, 2013, p. 162).

Desse modo, o credo enativista seria não é apenas “ir longe”, mas, antes, “ir ainda mais longe”! O que está em jogo é o seguinte. Conforme o internista fenomenal, duplicatas cerebrais seriam duplicatas fenomenais, sob a suposição crucial de que os duplos cerebrais envolvidos estejam expostos às mesmas estimulações próximas, independentemente se habitam ambientes diversos e se interagem com particulares propriedades distantes diferentes desse mesmo ou ambiente diferente. O que o internista fenomenal exclui é a contribuição de particulares e de propriedades distantes para a constituição metafísica da consciência. Isso posto, para desbancar o internismo fenomenal, o enativista teria de provar que duplicatas cerebrais, interagindo de forma incorporada com diferentes particulares e diferentes propriedades distantes, realizariam experiências fenomenalmente distintas, ainda que expostas aos mesmos estímulos próximos.

Infelizmente, não é isso o que Hutto e Myin se põem a fazer. Para defender a sua versão enativista do externismo fenomenal, eles se limitam a atacar um espantalho filosófico – a noção idiossincrática dos qualia – e desqualificar os argumentos antifisicistas clássicos, como o hiato explicativo:

Como outros enativistas, rejeitamos as formas-padrão de caracterizar o lado "fenomenal" das identidades fenômeno-físicas. [...] Nesse contexto - e não em uma tentativa de fornecer uma solução direta para o Problema Difícil - a estratégia ativista de “ir longe” mais uma vez se mostra útil. De fato, a plausibilidade das identidades propostas parece inteiramente diferente, e muito menos artificial, se for assumido que o caráter fenomenal das experiências deve, em última análise, ser compreendido, apelando para as interações entre os experimentadores e aspectos de seus ambientes. Isso é verdade, mesmo que no final deva ser descoberto que a fenomenalidade nada mais é do que atividade neural associada a atividades orgânicas mais amplas. (2013, p. 176-177, tradução e grifos nossos).

 

Essa mesma atitude é bem exemplificada pela contribuição de Cosmelli e Thompson (2010). Estes alegam que a própria ideia, por exemplo, de um cérebro desincorporado em um tanque de nutrientes, em um espaço vazio, efetuando experiências com propriedades fenomenais, carece de credibilidade “[...] devido à presença necessária de processos metabólicos não cerebrais.” Não gostaríamos de nos alongar sobre esse ponto, mas cabe a pergunta: por que temos de supor que cérebros em tanques de nutrientes não possam compartilhar dos mesmos processos metabólicos de cérebros encarnados, quando devidamente estimulados?

A suposição parece ser a seguinte. Não precisamos levar a sério “extravagâncias filosóficas”, tais com o problema difícil de Chalmers, o problema do hiato explicativo de Levine ou o problema dos cérebros suspensos em tanques de nutrientes, no espaço sideral. De acordo com Hutto e Myin, ao deixarmos de lado tais extravagâncias, a versão enativista do externismo fenomenal surge como a tese “mais natural”: o caráter fenomenal ou consciente das nossas experiências sensoriais deve, em última análise, ser compreendido, apelando-se para as interações incorporadas entre os experimentadores e os aspectos relevantes de seus ambientes.

Para início de conversa, a tese de uma superveniência forte da consciência, face aos aspectos das interações incorporadas do agente com o seu ambiente, é completamente contraintuitiva. Supor que a consciência não esteja nas nossas cabeças, mas, antes, “nas atividades orgânicas amplas”, em um ambiente, é difícil de se engolir. O externismo fenomenal representacionista já era completamente contraintuitivo, contudo, é necessário que se diga, a sua versão enativista soa ainda mais wishful thinking. Na literatura, não há um único exemplo que apoie essa suposição!

Seja como for, como poderíamos agora nos contrapor ao enativista? Para não incorremos em nenhuma petição de princípio, devemos seguir a própria estratégia proposta por Hutto e Myin de “ir longe” (going wide). Ora, feito isso, precisamos assumir que as próprias ações orgânicas incorporadas realizadas em um determinado ambiente são tão amplamente individualizadas como o suposto caráter consciente das respectivas experiências, as quais, segundo o enativista, deveriam constituir. Em outras palavras, temos de assumir que essas atividades orgânicas, quando implementadas em ambientes determinados, são individuadas através do apelo tanto aos diferentes particulares quanto às diferentes propriedades distais. Caso o externista fenomenal enativista rejeite tal suposição, ele se verá às voltas com uma petição de princípio, estará negando a sua própria estratégia do “ir longe”. A alternativa seria assumir que a tal estratégia de “ir além” nada mais é do que “ir ali”.

Em decorrência, não precisamos nem desejamos recorrer a “[...] casos extravagantes como manipulações neurais diretas de cérebros entubados ou acidentes quânticos maravilhosos que conseguem replicar a atividade neural relevante.” (2013, p. 161, tradução nossa). Também nós não queremos resolver aqui os tradicionais problemas do hiato explicativo da suposta possibilidade metafísica de zumbis ou de cérebros desencarnados suspensos em tanques de nutrientes, no espaço. Tudo que queremos fazer é assinalar o quanto implausível e contraintuitivo é o externismo fenomenal, na sua suposta versão enativista.

Logo, tudo de que precisamos é apresentar casos reais, nos quais duplicatas fenomenais não são necessariamente duplicatas de agência. Isso acontece quando as duplicatas cerebrais estão situadas em um mesmo ambiente ou em diferentes ambientes, mas interagindo com diferentes particulares e diferentes propriedades distantes (distais). Interagindo com particulares, qualitativamente idênticos, mas numericamente distintos, e com diferentes propriedades distais, diante da mesma estimulação próxima, as duplicatas cerebrais deveriam ser fenomenalmente distintas, caso o externismo fenomenal enativista fosse correto. Em outras palavras, se as duplicatas fenomenais não são necessariamente duplicatas de agência, a conclusão que se impõe é que a consciência não é uma forma de atividade incorporada que esteja essencialmente associada a interações do agente com o ambiente.

Inspirado no exemplo enológico da citação de Nöe, relato agora um acontecimento absolutamente trivial que se passou comigo, Roberto, mas creio que tenha ocorrido e ocorra com inúmeras pessoas, todos os dias. Estava eu em uma festa conversando entretido com colegas sobre política e economia, meus temas prediletos, os quais só me trazem desafetos. Enquanto isso, bebia uma taça de vinho. Entretanto, sem que eu tivesse me apercebido, a cada vez que minha taça se esvaziava, a anfitriã, prima da minha esposa, por cortesia, fazia com que enchessem sempre que eu a esvaziava: tratava-se de um grande “Alma Viva”. A taça estava em uma mesa atrás de mim e eu conversava com colegas à minha frente. Consequência: acabei em um “porre federal” (mal conseguia me pôr de pé). Pior, sem entender o que se passou. Indaguei a minha mulher, que me disse que tomei nada menos do que dez taças (coisa de cinco garrafas), acreditando ter tomado apenas três.

Levemos a sério a estratégia do ir “ainda mais além”. Primeiro, a cada vez que eu levava a taça à boca, repetia a mesma liturgia sugerida por Nöe: movimento típico da língua, movimento tipo das bochechas etc. Individuadas exiguamente, sem menção aos diferentes particulares envolvidos, ou seja, como meros movimentos corporais, as minhas ações seriam idênticas em todos os aspectos relevantes. Entretanto, seguindo a estratégia enativista do “ir ainda mais além”, a cada vez que eu levava o copo à boca, eu estaria executando uma ação distinta, porque meu corpo estaria interagindo com diferentes particulares. Qual é o ponto? Ora, se o enativismo fosse correto, e o caráter fenomenal fosse um aspecto da minha atividade corporificada, a cada diferente taça de vinho que eu bebesse, eu deveria me aperceber da suposta diferença fenomenal das minhas diferentes experiências.

O externismo fenomenal enativista se vê aqui diante de um dilema. Por um lado, ele gostaria de supor que as ações incorporadas que importam são apenas aquelas individuadas exiguamente, no exemplo, os movimentos corporais com a boca, no ritual proposto por Nöe. Mas, se esse for o caso, primeiro, não faz sentido insistirmos na estratégia do “ir mais além”: particulares em nada contribuem para a consciência. Em segundo lugar, a tese apenas contradiz a concepção do estado interno físico: estamos de volta com a primeira das duas leituras do enativismo. E, conforme observamos, mesmo à luz dessa versão fraca, o externismo fenomenal enativista se revela implausível. Segundo notamos, as melhores evidências disponíveis indicam que o caráter fenomenal das experiências é fixado por padrões neuronais e não por aspectos do agir incorporado extracraniano.

A conclusão não poderia ser mais óbvia: não há relação metafisicamente necessária entre cada ação incorporada de um organismo interagindo com diferentes particulares e cada forma correlata de consciência fenomenal, quando a ação é individuada amplamente. O argumento assume a seguinte forma:

 

1-     Estou em uma festa, tomando dez taças de vinho.

2-     Suposição externista: executando “ações incorporadas”, mas interagindo com dez diferentes particulares, a cada vez que levo o copo à boca e realizo os movimentos corporais típicos, concretizo uma ação diferente, quando o comportamento é individuado amplamente (estratégia do ir longe).

3-     Suposição enativista: os aspectos das ações incorporadas dos organismos com o ambiente constituem metafisicamente o caráter fenomenal das experiências.

4-     Com base em 3 e 4, podemos inferir que, a cada vez que eu levo a taça de vinho à boca e realizo os requeridos movimentos corporais, há algo distinto para mim, que é tal como tomar de cada uma das taças, pois os particulares do ambiente são numericamente distintos.

5-     Entretanto, 4 é empiricamente falsa, tanto assim que fiquei “de porre”. Não fui eu que me apercebi de forma gustativo-fenomenal que eu tinha bebido dez taças, mas minha mulher, e de maneira visual.

6-     Lema: ou bem a suposição externista forte (estratégia do ir além) é falsa ou bem a suposição enativista é falsa.

7-     Se a suposição externista forte for falsa, o enativismo fenomenal enativista resulta na tese trivial e implausível de Nöe.

8-     Conclusão: não há relação metafísica necessária entre cada ação incorporada de um organismo, em um ambiente, quando individuada amplamente pelo apelo aos diferentes particulares envolvidos, e a respectiva consciência.

 

Consideremos agora o caso das propriedades distantes. Segundo experimentos de Cowart e Rawson (2001, p. 568, tradução e grifos nossos):

As evidências disponíveis indicam que inúmeras características químicas e moleculares (por exemplo, peso molecular, massa e forma molecular, polaridade, estrutura de ressonância, tipos de ligações e grupos laterais) podem influenciar as características odoríferas (fenomenais) de um produto químico. No entanto, nenhuma correlação sistemática se observou entre essas características (químicas) e as qualidades (fenomenais) específicas do odor. Em outras palavras, substâncias químicas que apresentam pouca semelhança estrutural podem cheirar da mesma forma, e substâncias químicas que são quase idênticas estruturalmente podem produzir qualidades experienciais muito diferentes.

 

Experimentos posteriores vieram respaldar a mesma tese. James D. Howard e colegas (2019) usaram imagens de ressonância magnética funcional (fMRI) para observar padrões neurais espaço-temporais distribuídos, produzidos por diferentes odores, no “córtex piriforme posterior”. Eles analisaram as semelhanças entre esses padrões neurais e descobriram que a similaridade entre padrões neuronais era mais compatível com a similaridade fenomenal do odor do que a similaridade química. A similaridade neuronal, portanto, se apresenta como o único fator que nos permite entender semelhanças fenomenais entre odores.

Como é sabido, a uva Carménère tem origem na famosa região de Bordeaux (região dos vinhos mais caros e apreciados no mundo inteiro). Ela era muito utilizada nos blends (misturas) que resultavam nos famosos vinhos da região. Entretanto, por volta de 1870, uma praga fatal para as videiras (filoxera) assolou as plantações e devastou vinhedos no mundo inteiro.

Nessa época, a Carménère foi dada como extinta e se passaram mais de 100 anos até ser redescoberta por acidente, em 1994, pelo francês Jean Michel Boursiquot. A pergunta que se coloca é: por que a Carménère foi dada como extinta? As uvas eram fenomenalmente indiscerníveis e um mesmo terroir, ou seja, vinhos eram indiscerníveis de forma consciente. Os melhores enólogos, à época, eram incapazes de detectar qualquer diferença ao paladar e ainda hoje enólogos tendem as confundir. Mas como Boursiquot descobriu a diferença? Resposta: ele era um ampelógrafo, especialista em vinhedos, e realizou simplesmente uma descoberta botânica. Ele se apercebeu, pelas características morfológicas das vinhas, de que se tratava de uvas distintas. Com efeito, as uvas Carménère e Merlot são também quimicamente diferentes. A concentração de antocianinas, ácido chiquímico e os principais flavonóis encontrados no vinho permitem diferenciar as uvas. O que é preciso reter, até aqui? Embora as substâncias e propriedade distantes do ambiente fossem distintas, produziam estímulos próximos idênticos.

Estamos agora em 1993. Oscar é um enólogo chileno que se põe a degustar um Carménère e, logo em seguida, um Merlot da famosa vinícola Concha y Toro. A temperatura dos vinhos é a mesma, Oscar se encontra no mesmo ambiente, e a sua temperatura corporal se mantém inalterada. Como manda o figurino de Nöe, Oscar realiza os movimentos corporais rituais com a língua e a bochecha, palato, nariz etc. Entretanto, em 1993, Oscar é incapaz de se aperceber pelo paladar da diferença entre uma taça de Carménère e outra de Merlot (como muitos enólogos ainda hoje são incapazes de se aperceber, em blind tests).

O que devemos concluir, nesse caso? Se devemos seguir a estratégia do “ir mais além”, é forçoso supor que as “ações incorporadas” de Oscar sejam radicalmente distintas (externismo), embora os movimentos corporais sejam idênticos, em todos os aspectos relevantes. Qual seria o comportamento de Oscar? Em um primeiro momento, Oscar estaria degustando um Carménère, enquanto, em um segundo momento, ele estaria degustando um Merlot. No entanto, as uvas apresentam diferentes concentrações de antocianinas, de ácido chiquímico etc. Logo, se o externista fenomenal enativista estivesse correto, deveria haver algo, para Oscar, que é tal como degustar um Carménère e que seria conscientemente diferente do que seria, para Oscar, degustar um Merlot. Em outras palavras, interagindo com propriedades quimicamente distintas em um mesmo terroir, Oscar teria que se aperceber fenomenalmente que estaria a degustar vinhos distintos.

Todavia, isso não aconteceu antes de 1994! Embora as uvas fossem quimicamente distintas, as estimulações próximas nas papilas gustativas de Oscar eram idênticas, em todos os aspectos relevantes (e essa foi a razão pela qual a uva Carménère foi dada como extinta, depois da praga, e assim passou a ser considerada por 100 anos). Pergunta: temos como negar que, ao degustar as duas taças de vinhos distintos, Oscar não seria uma duplicata fenomenal de si mesmo, interagindo, no entanto, com substâncias quimicamente distintas? Passo agora ao argumento:

 

9-     Oscar é um enólogo degustando, primeiro, uma taça de Carménère e, logo em seguida, uma taça de Merlot.

10- Suposição externista: executando “ações incorporadas” de um organismo em interação com propriedades distantes distintas, duplicatas cerebrais estariam realizando ações distintas.

11- Suposição enativista: os aspectos das ações incorporadas em um ambiente constituem metafisicamente o caráter fenomenal das experiências.

12- Oscar está a degustar substâncias quimicamente diferentes, as quais, no entanto, produzem estímulos próximos idênticos em ambos.

13- Com base em 3 e 4, podemos inferir que Oscar executa ações incorporadas distintas, apenas superficialmente semelhantes.

14- Agora, com base em 13, deveríamos poder inferir que há algo, para Oscar, que é como degustar um Carménère que é fenomenalmente e conscientemente do que é, para ele mesmo, degustar um Merlot.

15- 14 é empiricamente e comprovadamente falsa: antes de 1994, enólogos não conseguiam discriminar ao paladar um Carménère de um Merlot. A distinção foi feita com base no conhecimento botânico dos vinhedos e, hoje, em função da química das duas uvas: Carménère e Merlot.

16- Lema: ou bem a suposição externista forte é falsa ou bem a suposição enativista é falsa.

17- Se a suposição externista for falsa, o externismo fenomenal enativista se resume à tese de Nöe, também implausível.

18- Conclusão: não há relação metafísica necessária entre cada ação incorporada por um organismo em um ambiente e cada experiência consciente realizada quando individuada amplamente.

 

Conclusão

Ao final dessas longas seções, estamos de volta com a questão metafísica fundamental sobre a nossa própria natureza: o que somos, afinal? Qual seria a nossa natureza última? Os enativistas de todos os matizes possuem uma clara resposta. Somos um corpo vivo que possui um cérebro, como qualquer outro órgão essencial Merleau-Ponty (1945, p. 175, tradução e grifos nossos) não poderia ser mais inequívoco a respeito:

Mas não estou diante do meu corpo, estou no meu corpo, ou melhor, sou o meu corpo. Nem suas variações nem seus invariantes podem, portanto, ser expressamente declarados. Não contemplamos apenas as relações dos segmentos do nosso corpo e as correlações do corpo visual e do corpo táctil: somos nós mesmos que mantemos juntos esses braços e essas pernas, quem os vê e os toca.

 

Nöe (2009, p. XIII, tradução e grifos nossos) também é inequívoco a propósito, pelo próprio subtítulo de um dos seus mais importantes livros, publicado em 2009:

A experiência humana é uma dança que se desenvolve no mundo e com os outros. Você não é seu cérebro. Não estamos trancados na prisão de nossas próprias ideias e sensações. O fenômeno da consciência, como o da própria vida, é um processo dinâmico que envolve o mundo. Já estamos em casa, no meio ambiente. Estamos fora dos nossos cérebros.

 

Caso eles estivessem corretos, poderíamos, em um futuro próximo, realizar transplantes de cérebros, tal como fazemos transplantes de fígado, rins e até coração, sem alterar a nossa identidade numérica como pessoas.

Suponhamos que tudo o que sustentamos aqui esteja correto. As conclusões são aquelas prometidas na introdução. 1- o know-how não é uma forma de saber prático destituído de sentido proposicional; 2- a relação entre cada percepção e o corpo próprio é metafisicamente contingente; 3- cabe ao cérebro configurar ou moldar um corpo físico (Körper) em um corpo vivo (Leib) e não o inverso; 4- o externismo fenomenal enativista, na sua forma branda, é implausível, e, na sua forma mais radical, completamente contraintuitivo, mas sobretudo falso: duplicatas fenomenais não são necessariamente duplicatas de agência; 5- somos o nosso próprio cérebro e não um corpo que possui um cérebro, dentre outros órgãos.

 

Why we are our brains: challenging enactivism

Abstract: In this essay we will argue for the following theses: 1- know-how is not a form of practical knowledge devoid of propositional sense; 2- the relationship between each perception and the body itself is metaphysically contingent. 3- it is up to the brain to configure or to shape a physical body (Körper) into a living body (Leib) and not the other way around; 4- phenomenal externalism of enactivist nature, even in its mild form, is empirically implausible: the correlation between the conscious character of sensory experience with spatiotemporal neuronal patterns is much more systematic and regular than with anything outside the brain. But in its radical form is entirely implausible and contra-intuitive: phenomenal duplicates are not necessarily duplicates of agency; in short, 5-we are our own brain that has a body, avatars, and artifacts, properly configured and molded by the brain, and not a body that has a brain among other essential organs.

Keywords: Enactivism. Phenomenal Externalist Enactivism. Know-how.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 12/09/2022

Aceito: 16/01/2023


COMENTÁRIO A “POR QUE SOMOS O NOSSO CÉREBRO: O ENATIVISMO POSTO EM QUESTÃO”: CEREBRALISMO RADICAL

 

César Fernando Meurer[232]

 

Referência do artigo comentado: PEREIRA, R. H. S.; SOUZA FILHO, S. F. de; BARCELLOS, V. M. Por que somos nossos cérebros. O enativismo posto em questão. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 517-554, 2023.

 

Na intenção de mostrar que as recentes abordagens enativistas da mente e da cognição estão equivocadas, Pereira, Souza Filho e Barcellos (2023) endossam uma posição que chamarei de cerebralismo radical. A primeira parte deste comentário realça a tese-chave que distingue essa posição do cerebralismo do senso comum e do cerebralismo crítico. A segunda parte apresenta algumas conjecturas sobre as implicações do cerebralismo radical.

 

[i]

Na seção conclusiva do artigo, Pereira, Souza Filho e Barcellos (2023, p. 549) perguntam: “O que somos, afinal? Qual seria a nossa natureza última?” A resposta, já antecipada no título, assegura que “Somos o nosso próprio cérebro, e não um corpo que possui um cérebro, dentre outros órgãos.” (PEREIRA; SOUZA FILHO; BARCELLOS, 2023, p. 517). Esse slogan expressa a tese-chave: uma concepção cerebralista de pessoa. A marca distintiva do cerebralismo radical aqui em comento é justamente esse posicionamento antropológico. Nos próximos parágrafos, procurarei evidenciar que nem o cerebralismo do senso comum e tampouco o cerebralismo crítico endossam tal concepção de pessoa.

Uso a expressão “cerebralismo do senso comum”, para designar o entendimento amplamente difundido na cultura ocidental, segundo o qual o cérebro é uma espécie de centro organizador dos pensamentos (raciocínios, memórias etc.) e do funcionamento do corpo (funções vitais básicas etc.). Arrisco que a ampla maioria das pessoas aceita esse entendimento, sem desconfortos. É uma visão um tanto vaga, não rigorosamente formulada, a qual pode vir acompanhada por outras crenças populares (a crença de que o coração é uma espécie de centro emocional; a crença de que há seres desencarnados etc.). Meu ponto: o cerebralismo do senso comum, centrado na ideia de que o cérebro é um centro organizador, parece mais bem sintonizado com a tese de que possuímos um cérebro, dentre outros órgãos. Mesmo reconhecendo o papel central do cérebro, um cerebralista do senso comum tende a rejeitar que “Somos o nosso próprio cérebro, e não um corpo que possui um cérebro, dentre outros órgãos.”

Pereira, Souza Filho e Barcellos (2023) buscam certa sintonia com o senso comum. Eles recorrem a intuições populares, a fim de apontar que as posições enativistas são “contraintuitivas” (inteiramente, extremamente, completamente… eles fazem questão de enfatizar), bem como quando conduzem seus leitores com perguntas, tais como “o que diríamos intuitivamente?” e com afirmações tais como “a resposta intuitiva é…” Não obstante, minha constatação é a seguinte: a tese-chave do cerebralismo radical (“Somos o nosso próprio cérebro...”) é tão contraintuitiva quanto as teses enativistas.

Uso a expressão “cerebralismo crítico”, para designar a posição articulada por Adams e Aizawa (2010), em resposta à tese da mente estendida de Clark e Chalmers (1998). A tese-chave desses autores é que a cognição é contingentemente intracraniana. A defesa dessa tese se dá por meio da defesa de duas condições, as quais, segundo eles, são necessárias e suficientes para demarcar as fronteiras da cognição: (i) A cognição envolve representações não derivadas; (ii) A cognição ocorre por meio de mecanismos particulares que são encontrados apenas dentro do crânio. A cognição é contingentemente intracraniana, pois esses mecanismos poderiam, em princípio, ser encontrados fora do crânio. Além disso, eles poderiam, em princípio, operar representações derivadas. Nas palavras deles:

[T]he way we see it, there are two principal features of intracranial processes – their use of non-derived representations governed by idiosyncratic kinds of processes – that serve to distinguish cognitive from non-cognitive processes. These features constitute a “mark of the cognitive” and they provide some non-question-begging reason to think that cognition is intracranial [...] Our view is that, as a matter of contingent empirical fact, cognitive processing typically occurs within brains, even though it is possible for it to extend. (Adams; Aizawa, 2010, p. 10, 47).[233]

 

Meu ponto aqui é o seguinte: Adams e Aizawa (2010) não propõem uma concepção cerebralista de pessoa, mas apenas uma concepção cerebralista de cognição. Nada do que eles defendem leva à conclusão de que “Somos o nosso próprio cérebro, e não um corpo que possui um cérebro, dentre outros órgãos.”

Pereira, Souza Filho e Barcellos (2023) não citam o trabalho de Adams e Aizawa (2010). Vejo isso como um indício de que o cerebralismo radical não busca sintonia explícita com o cerebralismo crítico, que tantos debates gerou, ao longo da última década (e.g. MENARY, 2010). Mais: a conclusão que Pereira, Souza Filho e Barcellos (2023) extraem de um experimento com macacos controlando dispositivos artificiais – eles dizem: “[...] pelo experimento de Nicolelis e colegas podemos concluir que é o próprio cérebro que se estende para além dos limites dados pelo corpo biológico.” (PEREIRA; SOUZA FILHO; BARCELLOS, 2023, p. 533 – itálico no original) – é estranha à luz das duas condições por meio das quais Adams e Aizawa demarcam as fronteiras da cognição.

Estamos, pois, diante de uma posição radical: uma concepção cerebralista de pessoa (“Somos o nosso próprio cérebro”). Com ela, os nobres colegas se afastam do entendimento popular de que o cérebro é um centro organizador dos pensamentos e do funcionamento do corpo (que aqui chamei de “cerebralismo do senso comum”). Por outro lado, eles se afastam também da tese de que a cognição é contingentemente intracraniana (aqui chamada de “cerebralismo crítico”). Como já sinalizei, o cerebralismo radical me parece altamente contraintuitivo.

 

[ii]

O objetivo de Pereira, Souza Filho e Barcellos (2023) é mostrar que as abordagens enativistas da mente e da cognição estão equivocadas. “Nonsense”, eles repetem algumas vezes, ao longo do texto. Considerando as observações da seção anterior, a propositura de um cerebralismo radical para remediar o enativismo evoca a metáfora da curvatura da vara: para endireitar uma vara torta, não é suficiente colocá-la na posição correta; é preciso curvá-la para o lado oposto. No que segue, vou sugerir que o cerebralismo radical pode ser lido como uma proposta de “curvar a vara” de volta à modernidade e que isso tem implicações preocupantes.

Conforme Rogério Azize (2008, p. 11), antropólogo do Instituto de Medicina Social da UERJ, as abordagens que “colam o indivíduo ao seu cérebro” convertem este último em “[...] um déspota que domina a nossa subjetividade, um órgão imperador que rege estados de humor e define a nossa identidade.” (AZIZE, 2008, p. 08). Tais abordagens, argumenta ele, em outra publicação (AZIZE, 2010, p. 568), ecoam concepções modernas de sujeito e de civilização: “O modelo do indivíduo autônomo e singular é rebatido sobre o cérebro, que vira um agente que ‘nos permite’, no limite, construir um certo modelo de civilização.” Tal modelo de indivíduo, prossegue Azize, “[...] radicaliza algumas características do sujeito moderno, em especial os valores da singularidade, da autonomia e da possibilidade de constante construção de si.” (AZIZE, 2010, p. 568).

Se somos o nosso próprio cérebro, então a aposta moderna no progresso do sujeito se reapresenta como uma “Bildung neurológica” (AZIZE, 2010). Quer dizer: progredimos como indivíduos, na medida em que melhoramos o próprio cérebro, um órgão extraordinariamente plástico. Assim, aquilo que nos distingue e define depende crucialmente do que logramos, em termos de autoconstrução neurológica. Nessa linha, seria possível melhorar o próprio cérebro, investindo em atividades que demandam raciocínio e memória, cultivando intencionalmente certos hábitos considerados bons ou saudáveis e assim por diante.

Outro patamar de autoconstrução neurológica é o das assim chamadas smart drugs: pílulas que “turbinam” o cérebro e melhoram seu desempenho (DANCE, 2016). Outro patamar é, evidentemente, o dos fármacos destinados a diminuir ou suprimir emoções e sentimentos indesejados. É em atenção a esses patamares pautados por fármacos que Azize (2008, p. 10) suspeita que a tese da identidade como uma construção neurológica leva a “[...] uma medicalização da ‘subjetividade’, ou da ‘vida’ ela mesma, com argumentos hoje difíceis de refutar – visto ocuparem o lugar de palavras mágicas do nosso tempo – como a busca por mais ‘qualidade de vida’.” Em nome de uma pretensa qualidade de vida, alguém poderia sugerir absurdos, tais como medicalizar desde logo e em caráter preventivo a subjetividade infantil, os processos de ensino e aprendizagem, os fenômenos sociais, a subjetividade senil e assim por diante. O que diríamos intuitivamente? Nonsense, digo eu, sem hesitar.

Em 2012, o Conselho Federal de Psicologia lançou uma campanha contra a medicalização da vida. Na cartilha “Subsídios para a campanha Não à medicalização da vida” (Conselho Federal de Psicologia, 2012, p. 06), esse Conselho manifesta preocupação com “o retorno das explicações organicistas”, com base nas quais se elevou exponencialmente o uso de medicamentos para diminuir, por exemplo, o déficit de atenção e melhorar a aprendizagem infantil. À luz das explicações organicistas, qualquer dificuldade do indivíduo (seja cognitiva, seja social, emocional ou outra) recai sobre um órgão: o cérebro desse indivíduo. Sob essa ótica, uma criança com dificuldades nos estudos não suscita inquietações e reflexões sobre os métodos de ensino, sobre o ambiente escolar e familiar e assim por diante. A abordagem organicista

[...] busca na criança, em áreas de seu cérebro, em seu comportamento manifesto as causas das dificuldades de leitura, escrita, cálculo e acompanhamento dos conteúdos escolares. A criança com dificuldades em leitura e escrita é diagnosticada, procuram-se as causas, apresenta-se o diagnóstico e em seguida a medicação ou o acompanhamento terapêutico. E o que é mais perverso nesse processo, sob o nosso ponto de vista, é que os defensores das explicações organicistas defendem a patologização da criança que não aprende ou não se comporta na escola, como um direito (CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA, 2012, p. 07).

 

Essas questões são complexas e urgentes, em nossa sociedade. Menciono-as apenas para especular o seguinte: o cerebralismo radical, sintetizado no slogan “Somos o nosso próprio cérebro”, parece implicar a tese da identidade como uma construção neurológica. Essa tese, por sua vez, pode funcionar como base para justificar a crescente medicalização da subjetividade.

 

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CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Subsídios para a campanha “Não à medicalização da vida”. Brasília: CFP, 2012. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/Caderno_AF.pdf. Acesso em: 02 jan. 2023.

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PEREIRA, R. H.; SOUZA FILHO, S.; BARCELLOS, V. M. Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão. Revista Trans/Form/Ação, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 517-554, 2023.

 

Recebido: 12/02/2023

Aceito: 20/02/2023


 

COMENTÁRIO A “POR QUE SOMOS NOSSOS CÉREBROS” e “POR QUE NÃO SOMOS SÓ O NOSSO CÉREBRO”: AVALIANDO UM DEBATE

 

Ralph Ings Bannell[234]

 

Referência dos artigos comentados:

ROLLA, G. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 207-236, 2023.

PEREIRA, R. H. S.; SOUZA FILHO, S. F. de; BARCELLOS, V. M. Por que somos nossos cérebros. O enativismo posto em questão. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 517-554, 2023.

 

As últimas três décadas testemunharam um debate importante na filosofia da mente e da cognição. Esse debate é complexo e tem ramificações em várias outras áreas de filosofia e ciência, inclusive na filosofia da educação, minha área de atuação. Os dois artigos apresentados nesta Edição Especial – de Pereira et al. e de Rolla – são exemplos desse debate.[235]

            Em termos gerais, o debate é entre o paradigma consagrado de cognitivismo e outro paradigma, emergente na filosofia da mente e da cognição, o qual pode ser chamado da cognição 4E. Dentro desse paradigma emergente, a vertente objeto de discussão desses dois artigos é o chamado enativismo. Em linhas bem amplas, o cognitivismo defende que a mente é, essencialmente, resultado do processamento interno de informação, que resulta em alguma forma de conteúdo, geralmente uma representação mental sobre o mundo, com conteúdo semântico. Em outras palavras, “[...] a mente representa e calcula” (BRANQUINHO, apud HUTTO; MYIN, 2017, p. 3). É esse paradigma que Pereira et al. defendem. O outro paradigma enfatiza que cognição é uma atividade situada, corporificada e atuada (entacted) – e, às vezes, estendida. A versão mais radical dessa vertente – o chamado enativismo – é a que Rolla defende, argumentando que a cognição nem sempre envolve conteúdo semântico ou processamento de informação. A ideia central dessa abordagem é resumida nas palavras de Hutto e Myin (2013, p. 10),

[...] organismos geralmente agem com sucesso dando respostas apropriadas a objetos ou estados de coisas de maneiras que são apenas mediadas por sua resposta sensível a sinais naturais, onde essa resposta não envolve a representação de conteúdo dos objetos ou estados de coisas em questão.[236]

 

É importante salientar que ambas as perspectivas – cognitivismo e enativismo – têm várias vertentes e que nem todos os proponentes de cada abordagem concordam entre si. Isso é importante, porque Pereira et al. tendem a juntar teses e hipóteses que precisam ser separadas, para não confundir alguém querendo entender o que está em jogo, no debate. Embora avisem que enativismo não é uma teoria única, com um conjunto coerente de teses e hipóteses, eles insistem em juntar autores.[237] Rolla (2023) ajuda bastante a desenrolar o debate, mas, mesmo assim, algumas questões ainda ficam obscuras.

É também relevante frisar que ambos os lados são naturalistas, ou seja, acham que a cognição e a mente podem ser explicadas por fenômenos naturais, sem nenhum dualismo ou “coisa mágica” para explicar capacidades cognitivas e a consciência. Num texto breve de comentários, não é possível mostrar todas as diferenças entre esses paradigmas, nem entre as teorias e hipóteses levantadas nesses artigos. Como é comum em debates desse tipo, há mal-entendidos e interpretações problemáticas das posições e argumentos dos oponentes, principalmente para apresentar a visão defendida na melhor luz possível e rejeitar a do oponente, como se fosse ridículo. Portanto, às vezes, não é fácil compreender o que está em jogo, entre os autores. A estratégia de Pereira et al., de focar em argumentos retirados dos seus contextos, a partir das suas próprias interpretações das teses e hipóteses dos enativistas citadas, cria um texto difícil de acompanhar. A estratégia de Rolla, de espelhar seus argumentos nos de Pereira et al., pode não sempre ajudar em esclarecer suficientemente a discussão em pauta.

Essa mistura é resultada, a meu ver, do fato de que Pereira et al (2023). tentam incluir, na sua discussão, um leque enorme de questões. Eles mesmos dizem: “Cada um dos credos [do enativismo listado antes – RB] exige um artigo em separado em razão da complexidade e da imensa ambiguidade dos conceitos e, consequentemente, das questões envolvidas.” Concordo com essa afirmativa. Em primeiro lugar, o título do seu artigo dá para entender que seria sobre a questão de identidade do Eu e a questão metafísica da constituição da mente entre cérebro e o corpo.

Entretanto, a discussão abrange, além dessa questão, capacidades cognitivas, como a percepção (principalmente a suposta tese enativista de “que a percepção seria constituída por forma de agir incorporada de um organismo”, bem como um suposto “externismo fenomenal enativista” sobre a percepção); a consciência (especialmente a suposta tese de que “a consciência não reside no cérebro”); a distinção entre know-that e know-how (com a tese de que o know-how se reduz ao know-that); a possibilidade ou não de naturalizar conteúdo representacional, assim como o debate sobre a necessidade de ter representações com conteúdo semântico para cognição básica; o suposto antirrealismo de Merleau-Ponty e, por extensão, de enativismo; e o conceito de affordances, de James Gibson. Tudo isso num artigo só deixa o leitor sem saber qual é a tese principal dos autores.

Por ser uma polêmica, a partir de argumentos e contra-argumentos, há pouca elaboração das perspectivas de onde os autores estão desenvolvendo seus argumentos. Por exemplo, Pereira et al. nunca definem o que é cognitivismo, para eles, ou seja, quais são as condições necessárias e suficientes para um ato cognitivo – ou qualquer capacidade cognitiva – ser considerada cognitivista. Eles simplesmente pressupõem uma série de teses e hipóteses cognitivistas, nos seus argumentos. Rolla, por sua vez, declara que “[...] eu defenderei o enativismo — mas farei isso de um modo minimamente propositivo, pois eu não apresentarei aqui nenhuma tese positiva que já não tenha sido exposta e mais bem fundamentada em outros lugares”. Essa maneira de prosseguir pode ser problemática para o leitor, o qual tem dificuldade em entender as teorias das quais os autores estão bebendo. Mais que isso, cada lado do debate tende a pressupor hipóteses e teses que o outro lado rejeita, contudo, sem explicitar isso, no debate. O resultado, às vezes, é um foco em argumentos formalizados, experimentos de pensamento e interpretações de experimentos empíricos, sem oferecer ao leitor as ferramentas necessárias para avaliar os argumentos focalizados.

Rolla critica a caracterização de Pereira et al. das hipóteses e teorias defendidas por entitivistas, crítica essa que considero pertinente. É perigoso oferecer caracterizações de enativismo, com base em autores tão diferentes, sobre tópicos bem distintos, e de textos deles que, às vezes, já foram superados pelos próprios autores, e, em outros casos, criticados por outros enativistas. Essa caracterização leva Pereira et al. a elaborar argumentos formais para tentar mostrar que uma hipótese enativista isolada por eles é um absurdo (argumentos ad absurdum) ou implausível, empiricamente. Todavia, como Rolla mostra, muitas vezes, pelo menos uma das suposições atribuídas ao enativismo na reconstrução formal do argumento não é defendida por nenhum enativista, mas somente na interpretação de Pereira et al. Essa má interpretação dos seus oponentes é um problema enorme, no artigo-alvo desse debate.

            Outra crítica principal de Rolla, além da caracterização de supostas teses de enativismo feita por Pereira et al., é que os autores do artigo-alvo são presos a pressupostos filosóficos de cognitivismo, os quais não defendem independentemente, no seu artigo. Por não problematizar seus próprios pressupostos, seus argumentos ficam abertos à crítica de serem argumentos entimemáticos, se não circulares, acusação de Rolla. Um dos principais pressupostos desse tipo é o de que sempre há representações mentais, com conteúdo semântico, em qualquer tipo de cognição, mesmo a cognição básica de perceber o mundo. O argumento principal de Pereira et al. (2023, p. 521) é o seguinte:

Não entendemos como poderíamos prescindir do conceito de conteúdo representacional uma vez que temos que assumir como um fato a possibilidade de erros antipredicativos se quisermos entender o fracasso das nossas ações.

 

No entanto, não enfrentam os argumentos de Hutto e Myin sobre a possibilidade de incluir a possibilidade de erro, sem pressupor conteúdo semântico representacional.[238] Já que essa é uma das questões centrais no debate entre cognitivismo e enativismo, hoje em dia, uma resposta a ela não pode ser simplesmente dada com pressuposto nos argumentos de alguém que quer derrubar a perspectiva enativista.

A questão de representação na filosofia da cognição é complexa e não cabe aqui entrar em detalhes.[239] Remete à questão de conteúdo semântico, mencionado acima, e o chamado problema duro do conteúdo, levantado por Hutto e Myin (2013, 2017). Esse problema, essencialmente, é o de explicar conteúdo semântico de representações, a partir de um arcabouço naturalista. Hutto e Myin investigam as tentativas mais importantes (de Dretske e Millikan)[240] e chegam à conclusão de que é melhor evitar os problemas profundos que tal programa levanta, avançando a tese de que a cognição básica não tem conteúdo semântico. Não quero entrar no mérito dessa solução do problema, aqui – uma solução largamente aceita por Rolla, mas que eu penso não ser resolvida –, mas concordar com ele de que uma solução não pode ser pressuposto, nos argumentos elaborados.

A falta de Pereira et al. de discutir a possibilidade de naturalização de representações mentais é ainda mais grave, desde que esses autores aceitam o arcabouço de naturalismo, na explicação da cognição. Rolla (2023, p. 213) pergunta: “[...] por que um padrão de atividade neuronal seria a representação (ou o veículo de uma representação) sobre uma fonte distal de estímulo, e não simplesmente a covariação confiável (dada uma longa história evolutiva) entre performance cognitiva e objeto de cognição?” Sem uma resposta de Pereira et al. a essa pergunta, suas “vitórias” de argumentação não atingem seu alvo. Não há nenhuma razão a priori em pressupor que “[...] representações mentais [são] portadoras de informação semanticamente carregada, isto é, informação sobre as fontes distais de estímulos sensoriais”, no caso de cognição básica. No mínimo, é necessário explicitar por que essa tese é correta e sua oposta é errada, algo que Pereira et al. não fazem. Mas, para ser justo, Rolla também não faz isso, na sua resposta.

            Embora Rolla mostre mais do debate de fundo aqui e em outros lugares[241], também não elabora suficientemente as teorias enativistas, na base da sua crítica a Pereira et al., para um leitor não avisado compreender bem o que está em jogo. Por exemplo, é necessário demonstrar que, nas palavras de dois enativistas, “[...] a cognição é um tipo de atividade corporificada e ativa situada, e essa [...] atividade corporificada nem sempre e em toda parte envolve pensar sobre o mundo de maneiras com conteúdo.” (HUTTO; MYIN, 2017, p. 9-10). Indicar outros textos dele e de outros autores, como Pereira et al. fazem também, não substitui uma descrição e argumentação sobre essas questões de base.

A razão para essa estratégia de Rolla é, obviamente, a maneira pela qual Pereira et al. elaboraram a sua argumentação, no estilo de filosofia analítica, utilizando reconstruções lógicas dos supostos argumentos de enativismo, além de experimentos de pensamento e interpretações de experimentos empíricos, nas ciências cognitivas. O problema com esse tipo de método, como aponta Rolla, é que o outro lado do debate pode sempre rejeitar suposições na formulação dos argumentos, rejeitar as “intuições pré-teóricas” com as quais os experimentos de pensamento estão avaliados ou, igualmente importante, usar outros experimentos nas ciências cognitivas – ou até os mesmos experimentos! - para rebater os apresentados pelos oponentes.

Aqui estamos no terreno da função explanatória de argumentos formais, dos experimentos de pensamento e do uso dos experimentos empíricos, nas ciências cognitivas. Argumentos formais somente atingem seu alvo, se concordamos com as suposições atribuídas às reconstruções formais da posição que está sendo analisada ou da posição defendida. Quando suposições estão em questão, a lógica formal é de pouca eficácia. Se a conclusão depende de uma premissa falsa, não pode ser considerada absurda sem mais argumentação.

O problema principal do uso de experimentos de pensamento é que, nas palavras de Rolla, comprovam que “se minha vó tivesse rodas, ela seria uma bicicleta”, ou seja, comprovam coisas demais, para além do âmbito da ciência, que é problemático para uma abordagem naturalista. São tipos de argumento muito empregados na filosofia analítica, mas têm utilização restrita do ponto de vista naturalista, o qual, por definição, não pode ir para além do que as ciências naturais dizem sobre o mundo, nesse caso, a cognição.

Com relação ao uso de evidência empírica dos experimentos das ciências, para apoiar seu argumento, o problema é que não há consenso dentro da comunidade científica sobre aspectos básicos da força explanatória dessa evidência. Pela bem conhecida tese de que a evidência empírica é sempre sobrecarregada com teoria, na filosofia da ciência, a evidência por si só não resolve a questão, porque evidência pode sempre ser interpretada a partir de outra teoria. A evidência que comprova uma tese pode também comprovar outra, ou, pelo menos, não é o suficiente para decidir entre as duas teses. Esse resultado deixa o problema da força explanatória de cada tese em aberto.

            Termino com outro problema inerente a esse debate: o reducionismo. O problema com qualquer reducionismo é que isola um elemento para elevá-lo como a única variável explicável. No debate em questão, do lado de Pereira et al., esse elemento é o cérebro humano, a atividade dos seus neurônios e seu suposto conteúdo representacional resultante dessa atividade. Ninguém nega que o cérebro e seus processos são substratos necessários para a cognição humana, embora, como vimos, o enativismo negue que o conteúdo representacional e semântico é necessário para a cognição básica. No entanto, reducionismo, em qualquer das suas vertentes, deixa fora da explicação aspectos que poderiam ser – e são – incluídos para explicar os fenômenos em questão, na literatura acadêmica. No debate em pauta, esses elementos, focados pelo enativismo, são: redes de neurônios como parte do corpo e substratos de capacidades cognitivas (sem ter conteúdo representacional); esquemas sensório-motores e as características do corpo; e fatores do ambiente físico e sociocultural. A navalha de Okham pode cortar tanto quanto fazer a barba ou cortar enquanto faz a barba. Não seria mais cauteloso não reduzir as variáveis da cognição a representações no cérebro, nesse estágio das ciências cognitivas, especialmente quando essa variável enfrenta tantos problemas em explicar fenômenos cognitivos e nenhum consenso, mesmo nas próprias ciências cognitivas?

            Um erro frequente aqui é perceber que um elemento cognitivo – o cérebro – está mal funcionando por alguma razão e, em função dessa patologia, concluir que é suficiente para o funcionamento do sistema como um todo. Certamente, é suficiente para o sistema não funcionar corretamente, mas não significa que seja suficiente para o sistema funcionar em circunstâncias normais ou que o sistema como um todo não funciona; pode ter um funcionamento parcial, mesmo com um elemento danificado. Reducionismo acaba elevando uma condição necessária pela cognição ao estatuto de uma condição suficiente. Assim, corre-se o risco de não se ver outras condições igualmente necessárias para explicar os fenômenos em questão, portanto, simplificando e empobrecendo a explicação de algo complexo. O teste é de analisar qual abordagem explica melhor os fenômenos discutidos ou, no mínimo, não acarreta em problemas filosóficos e científicos insolúveis. Deixo para o leitor decidir qual das abordagens, nesse debate, melhor explica os fenômenos cognitivos.

Como Rolla frisa, mas não explica em detalhes, o enativismo desenvolve um modelo de sistema dinâmico, o qual inclui o cérebro, o corpo (e seus esquemas sensório-motores) e o ambiente (físico e cultural) como compondo os elementos necessários e juntamente suficientes para a cognição humana. Pereira et al., em nenhum momento, investigam esse modelo de sistema dinâmico, sempre pressupondo que um elemento poderia ser separado dos outros, e vinculado a uma cadeira linear de processos cognitivos, a fim de explicar um fenômeno cognitivo qualquer. O elemento escolhido são os processos cerebrais de processamento de informação em cima de conteúdo representacional. Mexer com esses processos é, com certeza, mexer na capacidade cognitiva do sistema, porém, o funcionamento normal inclui outros fatores ignorados pelo cognitivismo. E, se o enativismo fosse correto, a cognição básica nem precisaria desse elemento de processamento de informação. O resultado é o de construir um homem de palha a ser derrubado por argumentos lógicos. Se se rejeitar essas caracterizações do enativismo, como Rolla faz, os argumentos do artigo-alvo parecerão muito menos lisonjeiros.

O debate ainda está em aberto. Essas contribuições são de alguns dos autores mais importantes que escrevem sobre esses assuntos, no Brasil, e merecem ser estudados com atenção. O fato que não resolver a disputa não é uma crítica definitiva, mas um convite para aprofundar mais, nessa conversa fascinante sobre a mente e a cognição humana, especialmente os debates de fundo, em ambos os lados.

 

Referências

CLARK, A. Surfing uncertainty. Prediction, action and the embodied mind. Oxford: Oxford University Press, 2016.

DI PAULO, E. A.; BUHRMANN, T.; BARANDIARAN, X. E. Sensorimotor Life. An Enactive Proposal. Oxford: Oxford University Press, 2017.

DI PAULO, E. A.; CUFFARI, E.; DE JEAGHER, H. Linguistic Bodies. The continuity between life and language. Cambridge: MIT Press, 2018.

DRETSKE, F. Naturalizing the mind. Cambridge: MIT Press, 1995.

GIBSON, J. The ecological approach to visual perception. New York: Taylor and Francis, 2015.

HUTTO, D. D.; MYIN, E. Radical Enactivism, Basic Minds without Content. Cambridge: MIT Press, 2013.

HUTTO, D. D.; MYIN, E. Evolving Enactivism. Basic Minds Meet Content. MIT Press, 2017.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

MILLIKAN, R. G. Beyond concepts: unicepts, language, and natural information. Oxford: Oxford University Press, 2017.

PEREIRA, R. H. S.; SOUZA FILHO, S. F. de; BARCELLOS, V. M. Por que somos nossos cérebros. O enativismo posto em questão. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 517-554, 2023.

ROLLA, G. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 207-236, 2023.

 

Recebido: 20/05/2023

Aceito: 30/05/2023


UMA VISÃO DE MUNDO FILOSÓFICA

 

Rodrigo Reis Lastra Cid[242]

 

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar uma visão de mundo filosófica, especificamente metafísica. A importância disso é justamente obter uma visão generalista da realidade, em um momento em que as discussões filosóficas se tornam cada vez mais especializadas. A visão de mundo metafísica apresentada aqui é uma perspectiva geral sobre o tempo, o espaço, a matéria, as leis da natureza, a mente e a normatividade. Para realizar esse objetivo, (1) falaremos um pouco sobre a natureza da filosofia e sobre sua relação com a construção de uma visão de mundo, (2) abordaremos alguns argumentos para tratar da natureza das entidades mencionadas, e (3) concluiremos, apresentando uma visão de mundo metafísica unificada, que leva em consideração tais argumentos.

Palavras-Chave: Filosofia. Metafísica. Visão de mundo.

 

Introdução

            Cada pessoa tem a sua visão de mundo: tem certas crenças conjugadas sobre a realidade – que podem ou não estar bem justificadas. O que mais importa para a filosofia, é o quão bem justificadas estão as crenças que formam essa visão de mundo, dado que ao menos um dos objetivos da filosofia seria encontrar a visão de mundo verdadeira. Nossa intenção aqui é justamente mostrar como a reflexão filosófica pode nos levar a ter uma visão de mundo mais justificada do que a visão de mundo que temos pré-teoricamente.

            A primeira coisa a tratar, então, é o que queremos dizer com “filosofia”, quando falamos dessa forma. Embora possamos adentrar inúmeros problemas sobre a natureza da filosofia e sua definição, nossa intenção, nesta parte, é meramente esclarecer os termos. Chamamos de “filosofia” uma disciplina acadêmica (uma investigação sistemática e supostamente epistemicamente virtuosa sobre uma área), que, tal como as outras, se dedica a encontrar verdades (se, de fato, encontramos verdades, isso já é outro assunto), mas em relação aos problemas filosóficos. Os problemas filosóficos são aquelas questões que só poderiam ser respondidas por argumentação, e não por experimentos ou cálculos.

            É claro que há uma dificuldade nessa concepção de filosofia (ver mais sobre isso em HELVÉCIO; CID, 2020, Introdução). Poderíamos dizer, talvez, que não é possível fazer uma distinção adequada entre questões solucionadas por argumentos e questões solucionadas por experimentos ou cálculos. Muitas objeções são construíveis, mas creio que ou elas pecam pelo mesmo motivo do logicismo, ao tentar identificar matemática com lógica, ou elas pecam por não atentar à diferença de papel que os experimentos empíricos têm, nas ciências empíricas, nas ciências formais e na filosofia. De todo modo, queria tomar essa noção de filosofia mais como uma caracterização do que como uma definição, dada a dificuldade que teríamos para estabelecer a definição, frente às inúmeras concepções existentes sobre a natureza da filosofia.

            Muitos problemas já saíram do seio da filosofia para as ciências (como problemas cosmológicos ou meteorológicos), pois eram problemas que só podiam ser resolvidos por argumentação contingentemente, i.e., apenas por não termos os meios tecnológicos de investigar tais questões. Mas há questões necessariamente filosóficas, que só poderiam ser respondidas por argumentação, não importando o nosso nível de desenvolvimento tecnológico. Há questões tão fundamentais, que só uma reflexão sistemática e argumentativa sobre elas pode nos levar a algum lugar.

            Nesse sentido, podemos dizer que a filosofia nos ajuda a construir uma visão de mundo. A filosofia lida com questões fundamentais para as quais não temos e nem temos como ter respostas científicas (formais ou empíricas). Uma visão de mundo é um conjunto de respostas a problemas filosóficos apresentada de uma maneira integrada. Ela nos diz o que é o mundo e como o ser humano se insere nele. Uma visão de mundo é uma teoria (conjunto supostamente consistente de crenças) composta de proposições sobre temas metafísicos, epistêmicos e valorativos. Ela nos diz a natureza da realidade, dizendo-nos qual é a posição do ser humano em tudo isso: somos consciências imateriais produzidas por corpos materiais? Ou somos almas imortais? Temos livre-arbítrio para decidir, independentemente de influências, as nossas ações? Ou somos completamente determinados? Há valores básicos para além das nossas escolhas pessoais e sociais? Uma visão de mundo nos fala sobre a natureza do mundo, sobre a natureza do ser humano – e da consciência de modo geral – e da sua relação com o mundo e com os outros seres conscientes.

            Agora, embora nossa visão de mundo seja um conjunto de proposições que pensamos serem consistentes e verdadeiras sobre a realidade, normalmente não costumamos examiná-las a sério, procurando por boas justificações para elas. Mas se começamos a procurar justificações para a nossa visão de mundo, algumas questões só poderão ser tratadas pela reflexão filosófica. Ainda assim, é possível que, mesmo com a filosofia, nossas visões de mundo não tenham uma justificação final. Como a filosofia é uma disciplina ampla cuja atenção aos detalhes é fundamental, cada visão de mundo poderá sempre ser desafiada por uma nova objeção. Talvez o máximo que possamos fazer em filosofia seja apontar vantagens e dificuldades de cada visão, de cada argumento, e pesar as teorias, para encontrar a mais vantajosa teoricamente. Essa tarefa parece infinita, mas podemos nos aproximar desse ideal de alcançar a verdade não por meio de justificações definitivas da verdade de uma proposição, mas de modo negativo, ao mostrar erros claros de certos argumentos. Podemos acabar não alcançando plenamente a verdade, mas o movimento de reflexão dedicado a esse objetivo nos aproxima, de modo negativo, cada vez mais dela.

            Dessa forma, o objetivo deste texto é apresentar uma certa visão de mundo. Como qualquer visão de mundo, ela é incompleta, mas intenciona colocar um quadro de possíveis questões em aberto, mostrando algumas razões para acreditar numa certa visão. A visão de mundo que proponho não é garantidamente verdadeira e nem está completamente justificada neste artigo; na verdade, é cheia de problemas que merecem ser melhor investigados, que não posso fazer adequadamente em um texto deste tamanho, mas que gostaria de tratar de modo integrado: problemas, teses e argumentos com relação ao Espaço, ao Tempo, às Leis da Natureza, à Matéria, à Mente, ao Livre-Arbítrio, à Ética e à Política. Como essa é uma pretensão por demais generalista e ambiciosa para tão poucas páginas, o que farei será indicar as melhores razões para crer nessa visão de mundo, sem entrar em pormenores importantes, sobre os quais o leitor está convidado a refletir e sobre os quais eu convido a todos a debater em artigos futuros.[243]

Gostaria de começar este texto, tratando de algumas entidades que penso serem necessárias, e que respondem, de algum modo, as questões de Leibniz de por que há algo, e não nada, e por que há as coisas que existem em vez de outras. A ideia de fundo é que se espaço, tempo e leis são necessários (e eu penso que eles são), então eles não poderiam não existir, explicando assim por que há algo, e não nada. Se, então, matéria é governada pelas leis da natureza, então também explicamos por que existem as coisas que existem, e não outras. Se dessa matéria e leis, temos mentes e estados mentais como consequências necessárias, pareceria que nossas acoes também são necessárias, dados os estados materiais e as leis. Com a ausência de responsabilidade moral, advinda de um determinismo e incompatibilismo assumidos, e com a ausência de valores morais, pareceria que o único caminho da ética seria ser anti-realista e da política seria se fundar no interesse racional ao invés de em inexistentes valores. Pretendemos agora apresentar nossas razões para tal visão de mundo.

 

1 Espaço e Tempo

Há certas entidades que parecem responder muito bem à questão de Leibniz sobre por que há algo, e não nada (ver os argumentos em CID, 2012). Em nossa visão de mundo, há certas entidades que são necessárias; e, se a existência dessas entidades é necessária, isso mostra que é impossível haver nada. Uma dessas entidades é o espaço. O espaço é determinado por ter dimensões espaciais. Se algo, como uma faca, não tem dimensões espaciais, ou seja, se pensamos em uma faca de 0x0x0cm, então não pensamos em uma faca. A mesma coisa é o caso quando pensamos no universo. Um universo sem espaço é um universo sem dimensões espaciais, isto é, um universo de 0x0x0cm. Tal como uma faca sem dimensões espaciais não pode existir, o mesmo é o caso para o universo: para qualquer universo, se ele existe, ele tem dimensões espaciais. Assim, se pensarmos em um mundo possível sem espaço, pensamos em um universo sem dimensões espaciais, o que de fato não seria um universo. Ou seja, qualquer mundo sem espaço não é um mundo. Dessa forma, para qualquer mundo realmente possível, o espaço é essencial.[244]

O mesmo argumento, mutatis mutandis, é aplicável ao tempo: um evento ou uma entidade pode durar 1 segundo, 10 segundos, mais ou até menos tempo, mas ela não pode durar 0 segundos. Um evento ou entidade que dura por 0 segundos é simplesmente um evento ou entidade que não existe ou não ocorre, pois toda entidade existente existe por mais de 0 segundos. Se dizemos que choveu por 0 segundo, isso significa que não choveu. Assim, um universo que exista por 0 segundos simplesmente não existe, tal como uma faca que existe somente por 0 segundos. O que isso nos diz? Se a duração por mais de 0 segundos envolve pelo menos dois instantes, e a existência de dois instantes envolve a existência de tempo, então para qualquer mundo existente (que dure mais de 0 segundos), o tempo existe nesse mundo, isto é, o tempo é essencial para cada mundo possível[245]. Se, ao invés disso, o mundo existe somente por 0 segundos, isso quer dizer que ele não existe. A ideia aqui é que a única forma de um mundo não ter tempo é se esse mundo estivesse existindo a 0 segundo. Como existir por 0 segundo é o mesmo que não existir, então um mundo sem tempo é um mundo que não existe, isto é, um mundo sem tempo não é um mundo.

É argumentável que alguma forma de idealismo possa prescindir da existência do espaço na descrição de seu mundo e ter apenas mentes cartesianas imateriais num mundo meramente temporal. Eu creio que seja difícil dizer que, num mundo meramente temporal, haja mais do que uma coisa. As coisas são normalmente separadas pela sua posição espacial. Se não há posições espaciais, as diferentes coisas não podem estar em diferentes lugares, mas antes no mesmo lugar ou em lugar nenhum. Se estão no mesmo lugar ou se estão em lugar nenhum, não consigo compreender como esse seria um mundo com várias mentes cartesianas. Talvez o objetor esteja disposto a aceitar um mundo aonde tudo seja uma coisa só. Ainda que aceitássemos esse cenário extremamente extravagante de realidade, não poderíamos escapar da necessidade do tempo, dado que tal mundo, ou existe a 0 segundos, ou há mais de 0 segundos; se existe há mais de 0 segundos, então o tempo existe nesse mundo; e se existe há 0 segundos, então não existe de fato.

Tendo em vista, então, que nossa visão de mundo aceita tanto um espaço quanto um tempo absolutos como entidades necessárias e essenciais para qualquer mundo possível, temos uma explicação de por que há algo, e não nada. Há algo, e não nada, por que tem de haver espaço e tempo. Suponha, para iniciarmos a redução ao absurdo, que há um mundo que é nada. Se esse mundo existe, ele existe há 0 segundos ou há mais de 0 segundos (o mundo não pode existir há menos de 0 segundos). Se ele existe há 0 segundos, então, tal como mostramos, ele não existe, isto é, não haveria um mundo que é o nada. Se ele existe há mais de 0 segundos, então existe junto com esse nada um intervalo de tempo; portanto, junto com o nada existiria o tempo. Como se algo existe junto com o nada, o nada não é nada, então também não é possível existir o nada junto com o tempo. Se, assim, ao supormos que um mundo é nada, somos levados à conclusão de que tal mundo não existe ou que ele não é nada, temos de concluir que a suposição de que um mundo é nada é falsa necessariamente. Nossa teoria diz que há algo, pois há espaço e tempo como entidades necessárias; e como entidades necessárias não poderiam não existir, elas têm de existir, não podendo haver nada, i.e., não podendo não haver algo. Mas ainda falta explicar por que há as coisas que há, e não outras.[246]

 

2 Leis da Natureza

Para explicarmos por que há as coisas que há, e não outras, devemos dividir essa questão em duas: (1) saber por que as coisas que existem se comportam da forma que se comportam e (2) saber por que existem exatamente as coisas que existem. Uma questão parece se relacionar com outra, na medida em que as coisas complexas que existem parecem advir do comportamento de coisas mais simples em relação. Assim, saber da existência das coisas envolve saber sobre as propriedades das coisas mais simples que as compõem. Mas saber o que são ultimamente as coisas mais simples possíveis que compõem todas as outras talvez envolva falar das propriedades não de coisas mais simples ainda, já que não haveria nada mais simples, mas da própria coisa simples. Minha resposta para a primeira questão é que as coisas se comportam da forma como se comportam, pois há uma necessidade em elas se comportarem assim, dado que existe uma relação de necessidade metafísica conectando as propriedades que elas instanciam. Com relação à segunda questão, ela se divide em duas: (a) por que existem as leis que existem e (b) por que existem as partes fundamentais materiais que existem? A segunda questão, iremos postergar um pouco a resposta.

Mas o que é a necessidade metafísica, o que são as propriedades e o que tudo isso tem a ver com o comportamento das coisas simples e complexas? Vamos aos poucos. O mundo é composto de estados de coisas, que entram em relações causais. Os estados de coisas (de primeira ordem) são compostos de objetos particulares tendo propriedades, por exemplo, Rodrigo sendo filósofo, este sal sendo colocado nesta água etc. Parece que há um certo tipo de relação regular entre os estados de coisas, de modo que sempre que eu tenho o estado de coisas de água sendo misturada com sal em certa proporção e certas condições externas, eu tenho também o estado de coisas do sal sendo dissolvido na água. Essa explicação dessa regularidade normalmente é dita como fundada na existência da lei natural de que o sal se dissolve em água, dada certas condições.[247] Parece que as leis naturais seriam relações de invariância entre as propriedades gerais envolvidas na causalidade. Poder-se-ia perguntar qual é o fundamento da invariância entre essas entidades platônicas, e responderíamos que é o fato de essa relação de invariância ser fundada na relação de necessitação metafísica forte que conecta as propriedades da relação de invariância. Se a pergunta sobre o fundamento da invariância, por sua vez, estiver esperando que respondamos dizendo que o fundamento das relações de invariância está na causalidade singular, não poderíamos fazer isso, por defendermos uma forma de platonismo heterodoxo no qual são as leis universais que explicam as relações de causalidade singular, e não o inverso. Sao as leis - portanto as relações universais de necessitação entre universais - que são o fundamento da causalidade, por explicar uma parte relevante da mesma, que é por que uma coisa ocorreu em vez de outra, dado as propriedades envolvidas. Não é a causalidade singular que é o fundamento das leis, mas as leis universais que são o fundamento da causalidade, pois cada propriedade universal da lei se instancia em cada propriedade particular envolvida na causalidade singular e a própria lei universal se instancia na causalidade singular. O que seria a instanciação nesse caso? Essa é uma discussão complexa, que precisaremos de muitos outros artigos, para termos completamente, mas que você pode começar a ler sobre em meu livro Leis da Natureza, de 2019, no qual tento começar a reduzir a relação de governança das leis para com a causalidade singular à relação de instanciação.

Mas o que são essas propriedades gerais e o que são essas relações de invariância? Isso permanece um debate filosófico quente, e minha posição particular – defendida em CID, 2011, 2016, 2019 – é de que as propriedades gerais são, na verdade, universais platônicos, transcendentes, de propriedades descobertas pelas ciências. Essas propriedades universais se instanciam nos estados de coisas particulares, e a relação entre as propriedades é a necessidade metafísica que liga as propriedades numa lei natural, e que se instancia na causalidade singular entre estados de coisas. A lei natural seria um universal transcendente de ordem superior que conecta os universais básicos ou de ordem inferior. Minhas maiores razões para preferir essa teoria frente a outras é que ela dá conta adequadamente do problema da contrafactualidade (ver em CID, 2013) e da explicação das relações entre as coisas básicas, além de não cair nos problemas que atribuo às teorias regularista de Lewis (1973, 1983, 1986), disposicionalista de Mumford (2000, 2004), governista aristotélica de Armstrong (1983) e a governista platônica ortodoxa de Tooley (1977), nas referências aos meus textos acima mencionados.

As leis são universais conectados pela necessitação, que é a necessidade metafísica forte, sendo o papel de governar os estados de coisas particulares explicado pela instanciação. As leis não governam os universais. As leis são uma relação universal entre universais que governa a causalidade singular, por meio da instanciação das suas propriedades e da relação entre elas nos estados de coisas particulares e suas relações causais singulares.

Você pode pensar que talvez aceitar poderes de particulares seja uma melhor solução, mas essa teoria talvez seja uma das mais problemáticas, tal como você pode ver nos argumentos do meu livro sobre leis naturais, anteriormente citado. Além disso, aceitar um governismo transcendente realmente necessitarista, como o meu, tem a vantagem de nos livrar do realismo dos mundos possíveis, já que toda modalidade real, metafísica, seria explicada pelas leis da natureza: só é possível o que as leis da natureza não proíbem. A existência de qualquer lei, por exemplo a lei de que sal se dissolve em água, proíbe que ocorra outra coisa que não o que diz a lei. A lei implica necessidade, e a possibilidade advém daquilo que não é proibido por lei. Não há realmente outros mundos possíveis. Há o nosso mundo e as nossas leis naturais, e toda possibilidade advém disso. Não precisamos também das misteriosas propriedades disposicionais: toda disposição, para nós, advém de propriedades categóricas governadas por leis naturais, que não passam de relações necessárias entre propriedades universais.

Aceitando-se a visão platonista heterodoxa das leis que defendo (heterodoxa por ser platônica e fortemente necessitarista metafisicamente), temos um mundo de estados de coisas, compostos de objetos concretos e suas propriedades, em causalidade particular no espaço e no tempo, governado por leis transcendentes (CID, 2019). Mas a dúvida que há – imagino – é a seguinte: ainda que a relação entre as propriedades seja necessária, seria a própria lei necessária, num sentido que explicaria a questão de Leibniz de por que há algo, e não nada? Há alguma razão para pensarmos que ao menos alguma lei tem de existir? Se aceitamos que as leis governam toda a causalidade singular, então se leis existem, as básicas não poderiam surgir, pois o surgimento é uma causalidade singular a partir da relação entre certas propriedades, e teria de ser explicada por meio de alguma lei mais básica que explica o surgimento de leis. Da mesma forma como as leis básicas não podem surgir, elas também não podem ser destruídas, pois sua destruição é uma causalidade singular, que exigiria a existência de uma lei básica sobre a destruição de leis, esta indestrutível. Assim, ao menos alguma lei tem de existir. E ainda que não saibamos quais leis são as leis básicas que têm de existir, seja lá quais elas forem atualmente, são essas que elas têm de ser, dado não haver surgimento ou destruição possíveis para uma lei básica, de modo que ela não poderia ter sido diferente (para ver esse argumento mais aprofundado, ler CID, 2019).

Mas poderia o mundo não ter lei alguma ou ainda ter outras leis? Num sentido lógico, até poderia; mas num sentido real, metafísico, parece que não, dado que para ter outras leis, seria necessário que pudessem ter surgido outras leis, mas como elas não podem surgir ou se destruir, não poderiam ter surgido outras leis. Por outro lado, se não houvesse lei alguma, não haveria algo que teria de acontecer a partir da relação, por exemplo, de duas partículas elementares, i.e., poderia ocorrer qualquer coisa. Um mundo como esse seria um mundo completamente aleatório. Se rejeitamos os mundos completamente aleatórios e os tomamos como logicamente possíveis, mas metafisicamente impossíveis, só teríamos mundos com leis como realmente possíveis, que, ao menos as básicas, não poderiam não existir (CID, 2019, p. 168-182). Daí chegamos ao outro ponto: como as leis são um sistema de derivação em que as menos básicas são derivadas das mais básicas, se as leis básicas forem necessárias, parece se seguir que as menos básicas também o são. Então, se temos certas leis de surgimento ou destruição de leis que são necessárias, então as leis deriváveis delas serão também necessárias. Mas e as leis com relação às coisas concretas e materiais? Seriam essas leis deriváveis das leis básicas necessárias? Essa pergunta talvez seja uma das mais difíceis, e sua resposta depende de quais são as leis que pensamos serem básicas e as razões pelas quais pensamos que elas são básicas. De todo modo, ao menos algumas leis têm de existir, tal como o espaço e o tempo, e isso explica ao menos a primeira questão de Leibniz. Com relação à segunda, se as leis básicas contiverem também as leis com relação às entidades materiais básicas, então poderemos também responder por que existem as coisas que existem, e não outras. Essa questão é difícil e creio não conseguir abordá-la completamente aqui, mas queria, de todo modo, fornecer uma razão para pensarmos que as leis básicas contém as leis com relação ao funcionamento básico do espaço e do tempo, já que tempo e espaço seriam necessários e não podem ocorrer caoticamente sem deixarem de ser o que são. Se leis sobre o espaço e suas pontos já existem de modo básico, analogamente podemos pensar que as leis sobre a partícula fundamental também o é. Isso fica ainda mais aceitável, se mostrarmos que a partícula fundamental não poderia deixar de ser da forma que é (não poderia deixar de ter as propriedades categóricas que tem).

Se há leis básicas da matéria, essas leis seriam leis com relação às propriedades das partes mais básicas e simples da matéria. Mas o que seria a matéria e o que seriam essas partes ontologicamente básicas e simples?

 

3 Matéria

Talvez um dos maiores problemas, para além das entidades que são supostamente necessárias para o mundo – como espaço, tempo e leis naturais, que são para mim entidades concretas imateriais – é que há algumas entidades que não parecem ser necessárias e que estão em contato com o mundo da causalidade e da mudança de modo mais direto, que são as entidades concretas e materiais. Mas o que é a matéria e como pensar ontologicamente sobre ela? Nossa hipótese é a de que a matéria é fundamentalmente constituída de pontos materiais em relação. Quando pensamos realmente sobre a matéria e sobre o que precisa haver no mundo para que tenhamos essa experiência da matéria, chegamos em resultados filosoficamente interessantes.

A primeira coisa que podemos pensar é que temos de rejeitar o monismo e aceitar o pluralismo, para explicarmos as coisas. Se há diferentes coisas manifestadas para nós, isso só pode se explicar pela existência de pelo menos duas coisas diferentes (nós e a coisa, ou pelo menos duas partes da coisa), com manifestações diferentes. Uma única coisa não manifestaria diversas, a não ser que tivesse uma constituição interna, que permitisse múltiplas manifestações e, portanto, não fosse uma única coisa, mas algo composto de coisas mais fundamentais em relação. Assim, aceitando o pluralismo, i.e., a tese de que existe mais do que uma coisa, perguntamo-nos sobre o que são essas coisas que existem. Já falamos um pouco sobre o espaço, o tempo e as leis. Queríamos agora falar sobre esse outro existente que é a matéria.

O que chamamos de “matéria” aqui são as entidades que ocupam o espaço. As entidades que ocupam o espaço, nós percebemos terem uma característica muito interessante, que é a de serem contínuas, i.e., de ocuparem um intervalo do espaço. Por exemplo, uma pessoa não é um ponto, mas um intervalo de pontos, quando a pensamos representada no gráfico cartesiano. Mas como explicar que os objetos materiais são contínuos no espaço? Normalmente dizemos que o que constitui a continuidade das entidades materiais é a relação entre as entidades materiais mais básicas que são suas partes próprias. Mas não podemos explicar fundamentalmente a continuidade da matéria sem cairmos ou num infinitismo de sua constituição, ou numa entidade fundamental sem partes (ver CID, 2011c). A história dessa questão (e talvez de outras) se funda na divergência entre atomistas (como Leucipo e Demócrito) e sinequistas (como Aristóteles) (ver mais sobre o atomismo em CHALMERS, 2005; BARRYMAN, 2005). Os atomistas acreditavam na existência de entidades fundamentais indivisíveis, enquanto os sinequistas creem que certas entidades são infinitamente divisíveis, sendo assim ontologicamente contínuas. Os infinitistas, como teóricos contemporâneos do continuísmo (sinequismo), trouxeram-nos a noção de infinitesimal, mas esse conceito ainda é ontologicamente problemático e não sabemos bem o que seria uma entidade com uma extensão que seja maior que 0 e menor do que qualquer outra (BELL, 2005; VARZI, 2009). Esses infinitesimais teriam um tamanho constante ou variável, de acordo com a teoria metafísica aceita. Qualquer resposta é problemática. Se é variável, então poderia ser menor do que é, de modo que a diferença de tamanho implica diferença de extensão e, portanto, implica continuidade, que precisaria ser explicada. Se, por outro lado, esse infinitesimal é constante, então tem uma magnitude específica e, assim, poderia ser dividida. Como entender, então, a continuidade dos objetos materiais?

Nossa solução, conforme dissemos, é que só quando apelamos para pontos, discretos, que podemos fundamentar de modo basilar a continuidade. Por outro lado, há uma série de argumentos antigos, da época de Zenão e de Aristóteles, no aristotélico Concerning Indivisible Lines, contra a possibilidade de as coisas serem formadas por pontos e contra a ideia de que existe uma pluralidade determinada de coisas. O argumento de Zenão que nos diz respeito aqui é o seguinte (CID, 2011c, p. 5):

(1)        Suponha que as coisas são completamente divisíveis. (2) Se as coisas são completamente divisíveis, então da divisão completa não pode restar alguma magnitude, pois esta seria divisível. (3) Se da divisão completa de uma coisa não resta magnitude alguma, então tal coisa é constituída de nada ou de pontos. (4) Se uma coisa é constituída de nada, cabe explicar como algo (como a aparência de uma coisa extensa) pode advir do nada, pois prima facie algo não pode advir do nada. (5) Se uma coisa é constituída de pontos, ela não possui magnitude, já que uma soma de coisas sem magnitude não pode resultar em alguma coisa com magnitude. Logo, (6) Como o nada não poderia constituir algo e como as coisas têm magnitudes, elas não poderiam ser constituídas de nada e nem de pontos. (7) Contradição encontrada em (3) e (6). (8) Reductio ad absurdum: As coisas não são completamente divisíveis.

 

A ideia desse argumento que levaremos em conta e que discutiremos é que se as coisas são formadas de pontos, elas não teriam extensão, pois os pontos não têm extensão. Minha objeção a esse argumento é que é bastante óbvio que os pontos modificam a extensão das coisas, fornecendo-as mais extensão. Repare que aqui não negarei simplesmente a tese, mas mostrarei um contra-exemplo, que indica que, ainda que pontos sejam conceitualmente sem extensão, eles modificam no tamanho das formas em que se inserem. Por exemplo, se temos um intervalo com uma quantidade de pontos n e adicionamos mais um ponto ao intervalo, então temos um intervalo de n+1 pontos. Neste sentido, n+1 é maior que n, pois n está contido em n+1, mas n+1 não está contido em n. Se, dessa forma, a adição de um ponto em dois intervalos de mesmo tamanho torna um intervalo maior, então a adição de pontos interfere na extensão dos intervalos. Se as coisas materiais são como intervalos, então a adição de um ponto de matéria interfere em sua extensão. Mas disso não precisamos concluir que os pontos têm magnitude, pois disso se seguiria que eles são ao menos conceitualmente divisíveis - algo que não podemos aceitar e que a definição de ponto não aceita. Seria adequado, antes, dizer que os pontos de matéria são o fundamento da magnitude e da extensão material, tal como os pontos do espaço são o fundamento da extensão do espaço, mas não têm eles mesmos extensão. Poderíamos perguntar ainda por que dizer que pontos não possuem extensão em vez de dizer que possuem extensão metafisicamente indivisível? Minha resposta a essa pergunta é que dizer que “uma extensão é metafisicamente indivisível” é dizer que não é possível metafisicamente (dada a totalidade dos mundos metafisicamente possíveis, tomando-os anti-realisticamente) dividir aquela extensão, o que pode ser o caso por dois motivos: (1) pela coisa ser o fundamento da extensão e, portanto, indivisível, ou (2) por não ser possível metafisicamente criar um aparato capaz de dividir tal objeto básico. Como eu penso que apenas 1 responderia a questão sobre qual o fundamento da continuidade dos objetos, eu tentei já dizer a razão pela qual eu penso que pontos são metafisicamente indivisíveis: por serem conceitualmente indivisíveis, dado serem o fundamento da extensão. E ainda que não tenham uma magnitude específica, eles fazem diferença nas coisas que constituem, tal como mostrei com o contra-exemplo dos pontos nos intervalos e sua analogia com os objetos materiais. Os pontos do espaço não têm eles mesmos extensão, mas fundam toda a extensão espacial e fundam também a diferença de tamanho entre intervalos pensados como conjuntos de pontos, que podem conter uns aos outros.[248]

Ter extensão, nesse sentido, é ser formado por blocos básicos de extensão, i.e., pontos. Imagine um objeto material tangenciando uma reta. O ponto em que esse objeto tangencia a reta é exatamente um ponto de matéria desse objeto. Mas não precisamos defender que podemos dividir a matéria praticamente até chegar aos seus pontos constituintes. Pode ser que as coisas não sejam praticamente divisíveis a pontos, mas são ao menos conceitualmente divisíveis a eles. Mas é isso consistente com nossa melhor ciência para a investigação das menores entidades concretas e materiais, a física? A física nos diz que as coisas são feitas de quarks e outras partículas fundamentais, que têm um comportamento diferente entre si (por exemplo, um elétron e um neutrino se comportam diferentemente) e bastante estranho (como a existência de estados de superposição e comportamento ondulatório-particular). Com relação a isso, talvez nossa teoria diga que se há diferentes comportamentos para diferentes partículas fundamentais, parece que nossa investigação não chegou no final, pois a diferença de comportamento, se não for explicada pela diferença de constituição interna, acaba ficando como um fato bruto, sem explicação. Temos diferentes átomos na tabela periódica, pois eles são diferentes composições dos mesmos tipos de partículas. Mas e essas “partículas” mais fundamentais, como elas poderiam ser diferentes? A explicação tem de ser a mesma. Elas são diferentes por serem formadas diferentemente de partes mais fundamentais. Em última instância, não poderia haver diferença entre as partículas mais fundamentais da realidade, dado que elas seriam simples, não podendo ter diferentes composições internas. Os pontos, pela sua simplicidade, teriam todos as mesmas características e, portanto, as mesmas propriedades, sendo a diversidade criada a partir somente das leis naturais que governam a relação entre as propriedades básicas desses pontos. Se o fundamento da matéria mais básico tem de ser os pontos, e os pontos são todos iguais, então todos têm as mesmas propriedades e, assim, as leis sobre eles seriam sempre as mesmas. Assim, se os pontos são essenciais para que exista matéria, sendo portanto necessários num mundo material, suas leis seriam igualmente necessárias por já existirem em qualquer mundo em que um mundo material é acessível. 

            Ainda que aceitemos essa teoria da matéria como composta de pontos, há ainda muitas outras coisas por explicar, como: como a matéria surgiu, se é que surgiu, e como o movimento que a relaciona se iniciou, se é que se iniciou. As próprias leis poderiam gerar matéria a partir da passagem do tempo no espaço, se tomarmos a passagem do tempo como causalmente eficaz (algo que defendo em CID, 2011b, a partir do famoso argumento do Shoemaker pela possibilidade de passagem de tempo sem movimento). Essa é uma pergunta bastante difícil, e não podemos respondê-la sem uma extensa investigação filosófica. Nossa visão de mundo, por enquanto, nos diz o que fundamentalmente é a matéria, mas não como ela surge ou se sempre existiu. Deixamos em aberto a resposta a tal pergunta, mas não sem indicar que precisamos respondê-la para completarmos nossa visão de mundo e que temos os meios de respondê-la, por exemplo, pelas leis transcendentes atuando na passagem do tempo no espaço.

 

4 Mente e Livre-Arbítrio

            Independentemente de se a matéria é ou não formada de pontos de matéria, alguns compostos materiais parecem ter mente. E isso é intrigante, pois não sabemos direito o que seria a mente: se seriam ou não compostos materiais, ou como se relacionariam com os compostos materiais. Talvez a maior dificuldade com a mente é que existem estados qualitativos que temos acesso internamente, de modo privativo. Por exemplo, ter fome, sentir dor, imaginar uma bicicleta são todos estados mentais, puramente compostos de sensações e imagens mentais. A dificuldade em explicar tais estados é que eles não parecem ser plenamente redutíveis a estados concretos materiais. Uma pessoa imagina uma bicicleta verde, mas se estudarmos fisicamente o corpo dessa pessoa, não encontramos bicicleta verde alguma em seu corpo material. Encontramos apenas células em relação. Como não pensamos que essas características mentais possam ser adequadamente reduzidas a características materiais, temos de postular na realidade um outro tipo propriedade para a matéria: algo de imaterial e consciente surge a partir dela.

            Aceitar a existência de propriedades mentais de um modo forte significa aceitar que existem propriedades (pensamentos, sentimentos) ou entidades (mentes individuais) concretas, porém imateriais. Assim, aceitar tal coisa é se comprometer com alguma forma de dualismo. Mas não defendemos o dualismo interacionista do estilo cartesiano (mas antes um epifenomenalismo de superveniência, como indico num manuscrito do Philpapers[249]), pois é difícil explicar como algo meramente mental e imaterial poderia ter efeito no mundo material, já que a causalidade tem um aspecto cinemático difícil de ser explicado por algo imaterial. São duas principais dificuldades: algo imaterial, por ser imaterial, não teria efeito com relação ao movimento das coisas, caso o movimento tenha sua origem nas forças físicas conhecidas; não podendo, assim, explicar, a origem dos nossos movimentos corpóreos. Além disso, há um problema de sobredeterminação, a saber, qualquer estado concreto material é completamente explicado pelo estado concreto material anterior, de modo que se a mente tivesse algum efeito na matéria, esse efeito seria uma sobredeterminação, já que a matéria é completamente determinada pela matéria. Isso tem uma implicação estranha, que é a de que não são os nossos estados mentais que movem nosso corpo e, assim, não é a nossa fome que nos move para comer, mas é o nosso próprio corpo material, de modo que parece que os estados mentais são supérfluos. Dessa forma, para lidar simultaneamente com o problema da sobredeterminação e da natureza dos estados mentais, preferimos aceitar o epifenomenalismo ao invés do interacionismo.

            Ainda que seja o corpo material que cause os efeitos do corpo material, parece claramente que há uma relação entre o corpo material e a mente, de modo que ações no corpo causam efeitos na mente, como, por exemplo, furar o pé causa dor. Dessa forma, ainda que não consigamos compreender a relação do mental para o material, a relação do material para o mental parece menos problemática.

Assim, a teoria que aceitamos para dar conta desses estados mentais e da relação necessária do cérebro para a mente é um dualismo, mas não um dualismo interacionista nem espiritualista. Para nós, não é provável que haja alma, mas sim uma mente imaterial superveniente ao corpo material.[250] Essa é uma forma de epifenomenalismo, pois é dualista e rejeita a interação do mental para o físico. E isso parece ter uma relação direta com nosso livre-arbítrio, pois nos vê como epifenômenos de corpos completamente determinados pelos processos físicos materiais ocorrendo nesses corpos. Dessa forma, essa visão, embora nos dê uma mente, parece não nos dar livre-arbítrio algum. Outras visões são possíveis e defensáveis, mas preferimos manter o determinismo incompatibilista junto com o epifenomenalismo, e deixamos a defesa mais substantiva dessas teses para outros textos já referidos ou por ainda escrever.

Realmente eu não vejo muito espaço, ontologicamente, para a existência do livre-arbítrio, se não aceitarmos deus e a alma. Ainda que o mundo não fosse completamente determinístico e houvesse partes que fossem decisões indeterminísticas, isso não salvaria o livre-arbítrio (como nos lembra SOBER, 2008), pois realizar decisões de modo indeterminístico é decidir aleatoriamente, e decisões aleatórias estão longe de serem livres. Como decisões determinadas e indeterminadas não salvariam o livre-arbítrio, parece que apenas apelar para uma causalidade livre incausada poderia salvá-lo. E só podemos aceitar tal coisa, parece-me, se aceitarmos uma alma imaterial com poderes causais, ação e movimento no mundo físico. E não temos ideia de como isso se daria, dada a imaterialidade e a sobredeterminação.[251] Como não pretendemos esgotar os argumentos pela nossa posição e nem contra o livre-arbítrio, nossa intenção foi apenas motivá-la por meio da apresentação de algumas razoes que preservam nosso quadro conceitual em que todos os estados de coisas de primeira ordem são particulares tendo propriedades governadas por leis da natureza, que determinam o que ocorre a seguir. Mas essa visão natural e epifenomenal da realidade nos leva a caminhos intrigantes em nossa teoria do valor.

 

5 Ética e Política

            O que toda essa visão traz para nossa moralidade? Se, tal como em nossa visão de mundo, somos apenas máquinas biológicas com consciências epifenomênicas, imateriais, determinadas pelas nossas partes materiais, submetidas a governança pelas leis naturais no espaço e no tempo, e se não temos controle último sobre as relações materiais que determinam nossas propriedades mentais imateriais, não temos controle sobre nossas decisões e nem mesmo sobre nossas ações, de modo que não é possível traçar responsabilidade moral alguma aos sujeitos, e isso exterminaria nossa moralidade e, em última instância, nossa sociedade. Essa é uma das ideias mais comuns como colocadas como consequência de uma visão de mundo determinística e incompatibilista como a que estamos aqui apresentando.

Eu penso que essas últimas conclusões são um pouco alarmistas. Realmente perdemos a responsabilidade moral num mundo em que mentes são epifenômenos; tudo que poderemos fazer é traçar a relação de causalidade de atos considerados negativos até certas pessoas, e afastar tais pessoas do convívio, pelo perigo que representam para o corpo social. Isso nada tem a ver com as pessoas serem seres autônomos e moralmente responsáveis por suas ações. Segundo a nossa visão de mundo nomológico-determinista e epifenomenalista, não somos responsáveis por nossas ações, mas isso não impede a sociedade de afastar do convívio as pessoas que estão causando problemas para o trato social, sejam essas pessoas moralmente responsáveis ou não. Podemos rejeitar a responsabilidade moral e, mesmo assim, fundar nossas ações sociais de aprisionamento, expulsão, tratamento etc.

Um problema aqui é que se rejeitamos a responsabilidade moral, pareceria para alguns que rejeitamos a própria ética. Eu diria aqui que não rejeitamos a ética, mas podemos estar rejeitando o realismo moral. Pois se somos deterministas e incompatibilistas, tal como aqui nos mostramos, e se não somos senhores de nossas ações, i.e., se não há sujeito autônomo e responsabilizável, então não pode haver certo e errado, dever e proibição moral.[252] Entretanto, a razão que nos levou a rejeitar o realismo moral a princípio não foi essa, mas foi nossa concepção metafísica de quais são as propriedades realmente existentes. As propriedades morais e a verdade moral para o realismo parecem se fundar em fatos morais (existência de valores ou de ações com propriedades morais), porém rejeitamos essa forma de realismo mais ingênua, por aceitarmos os argumentos metaéticos de Mackie (1990) de que (1) os fatos morais seriam fatos muito estranhos, que (2) exigiriam uma faculdade própria de intuição cheia de divergência entre as pessoas e que (3) demandariam uma realidade moral que servisse de veridador para tais fatos. Fatos morais seriam estranhos, pois teriam um caráter avaliativo que nenhum fato natural possui. Além disso, a propriedade atribuída pelos fatos morais “ser bom” ou “ser correto” são todas propriedades sujeitas à questão em aberto de Moore.

Embora uma posição compatibilista ou uma posição realista sofisticada pudessem ser defendidas, mesmo tendo em vista os argumentos de Mackie, nossa posição ética é ontologicamente antirrealista, teórica do erro, como Mackie (1990): todos os juízos morais são falsos, pois tentam descrever uma realidade moral que não existe. Nossa ideia é a de que as leis da natureza governam as propriedades dos estados de coisas submetidos à causalidade singular, e só existem as propriedades governadas pelas leis naturais. Como as propriedades morais e suas relações não implicam nenhuma ocorrência na causalidade singular (não são causa e nem efeito), não está claro para nós que deveríamos considerá-las como propriedades metafisicamente existentes. É claro que tais predicados morais terão algum significado em nossa teoria, mas não referirão entidades metafisicamente existentes.

Tal posição nos exige então explicar a prática moral, nosso uso dos predicados morais, já que estaríamos constantemente falando falsidades. Para essa função – a de explicar a prática moral – eu não tenho nada melhor que o quase realismo do Blackburn (1993; e In: COPP, 2006; e mais em MILLER, 2003, cap. 4), que pensa a prática moral de modo expressivista, como antes tentando influenciar o comportamento das pessoas do que tentando descrever uma realidade moral. Isso se adequaria bastante a uma realidade de seres conscientes e não livres, vivendo deterministicamente uma realidade mental que é fruto da causalidade física, tentando influenciar uns aos outros. Assim, embora eu pense que a ética é uma tentativa falha de descrever uma realidade moral inexistente, o que eu acho que as pessoas realmente estão fazendo quando moralizam é influenciar o comportamento das pessoas, por meio da expressão das suas atitudes com relação às várias ações moralmente avaliáveis, tendo em vista a consistência ou inconsistência de suas sensibilidades morais. De fato, essa visão não mantém a realidade da normatividade, mas apenas a sua aparência, entretanto nos permite falar ao menos da consistência ou inconsistência das sensibilidades morais (conjuntos supostamente integrados de juízos morais), a partir de uma noção ampliada de bivalência, sem aceitar a existência de uma realidade moral para além da nossa realidade natural e sem aceitar que a moralidade trata realmente de verdades metafísicas.

Assim, a ideia é que a ética é parte de nossas relações sociais, que é complementada por nossos acordos políticos. Como não há realidade moral, não há como nenhuma concepção moral ou concepção de bem se mostrar como verdadeira; elas apenas podem influenciar umas às outras. E nessa sociedade moralmente plural e não livre em que vivemos, que tipo de justificação para a política pode haver?

Como não haveria realidade moral, portanto também não haveria valores básicos. Se não há valores básicos, não há uma concepção objetivista da política que a funde num certo valor. Assim, o que pode haver é apenas o interesse de cada um. Assim, creio que em nossa visão de mundo, a fundamentação do Estado e da política poderia se dar bastante adequadamente em termos de auto-interesse racional. Queremos a política, pois não queremos ser dominados por outras pessoas e porque queremos sair desse estado de perigo e de medo, que parece ser natural a um grupo de pessoas não organizado, pensando hobesianamente. Uma sociedade que politicamente justifique nosso autointeresse, levando em consideração uma tentativa de paz entre as diversas concepções morais, é uma sociedade aonde as diversas concepções de bem não são restritas umas pelas outras, i.e., são todas razoáveis (no estilo de RAWLS, 2001, e CID, 2010, In: MACIEL et al, 2020, p. 65-96), ou, ao menos, obrigadas a serem razoáveis pelo leviatã, dado que se não forem, serão punidas pela violência que cometem. Apenas vale a pena racionalmente entrar num Estado quando ele não é mínimo e nem máximo, e quando ele leva em consideração o interesse dos mais fracos e dos mais fortes (por favor, leia CID, 2020a, para uma justificação mais completa dessa concepção política, que faz a razoabilidade fazer parte do nosso interesse racional).

            Mas qual a forma política que deveríamos seguir? Isso é difícil, mas as pessoas se reúnem numa sociedade, pois, além de escapar do estado de natureza social, querem viver bem, com tranquilidade e, na medida do possível, com uma ampliação progressiva da sua qualidade de vida (i.e., o desenvolvimento), medida em termos de uma ampliação progressiva do conjunto capacitatório das pessoas (conjunto de capacidades para realizar funcionamentos que temos razões para realizar – para uma melhor compreensão dos termos técnicos, ver o trabalho de SEN, 2000 e 2001). Assim, só uma sociedade preocupada com o aumento da qualidade de vida é uma sociedade política que realmente satisfaz o nosso autointeresse, por evitar as inseguranças sociais, econômicas e políticas, com mecanismos de prevenção de desastres nessas áreas (SEN, 2000a, 2001a; CID, 2020a). Isso é importante, pois é do nosso autointeresse ter uma sociedade que se afaste do estado de natureza em qualquer uma dessas áreas. Portanto, ainda que nossa ética seja ontologicamente antirrealista e de prática moral expressivista, tentamos fundar a política não numa ética realista, a qual não temos, mas no autointeresse e contratualismo, que prescinde de uma realidade moral. Sabemos que talvez nossa concepção política seja a mais frágil desse texto, pois não está claro o caminho do auto-interesse racional. Há ainda muito que se discutir, para que tenhamos uma visão de mundo completa e sistemática. Esperamos ter começado um caminho para discussões ainda mais profundas, as quais não podemos ter com profundidade neste texto, dado o tamanho do objetivo que nos demos para o número de páginas que dispomos.

 

Considerações finais: uma visão de mundo

Dessa forma, em nossa visão de mundo, somos máquinas biológicas, com uma consciência concreta e imaterial, epifenomenal, superveniente às relações entre os pontos da matéria que ela focupa, que são governados por leis da natureza que ocupam o espaço-tempo. Tais pontos são o fundamento de toda a extensão e têm suas propriedades categóricas de modo necessário (sua forma pontual, sua simplicidade interna, seu tamanho de ser o fundamento da extensão). As leis da natureza necessárias determinam as relações entre as propriedades desses pontos e, de modo derivado, das propriedades dos conglomerados desses pontos, pontos que existem num espaço e num tempo absolutos e necessários. Não existem propriedades disposicionais: as aparências de disposições são somente propriedades categóricas governadas por leis naturais. E nem existem realmente mundos possíveis: [algumas] necessidades metafísicas são determinadas por leis naturais e possibilidades são determinadas pelo que não viola as necessidades do mundo atual, o único que nos parece realmente possível. Mas saber como surgiram esses pontos de matéria ou se eles sempre existiram, isso foi algo que, embora importante, não respondemos e deixamos como uma questão em aberta, a ser respondida, talvez pela eficácia causal da passagem do tempo submetida a leis. Seja qual for a resposta, ela vai ser problemática.

De toda forma, parece que seres humanos não têm livre-arbítrio, dado nosso determinismo nomológico e epifenomenalismo; mas, mesmo assim, ainda que não tenhamos a responsabilidade moral, podemos justificar nossa prática punitiva, por meio da proteção contra pessoas às quais se pode traçar um ato de causalidade politicamente proibida. Sem livre-arbítrio, numa sociedade anárquica, vivemos em medo, terror e domínio dos mais fortes. Usamos nossos juízos morais para influenciar o comportamento uns dos outros nesse cenário; no entanto eles não têm normatividade real e não conseguem descrever a irreal realidade moral que intencionam. Acaba que a prática moral serve para interferir nos sentimentos, pensamentos, atitudes e comportamentos das pessoas, a fim de fazermos fazê-las o que gostaríamos que elas fizessem. Mas o que gostaríamos que elas fizessem, disso não temos controle, dado os nossos desejos serem determinados pelas leis naturais governando nosso corpo.

Como não há realidade moral, há uma persistente e provavelmente não solucionável divergência moral na sociedade entre diversos grupos de pessoas. Tal divergência só pode ser “solucionada” num domínio político em que criamos normas para regulamentar as relações entre as pessoas e as diferentes concepções de bem. E esse domínio político é justificado não por questões morais, sobre as quais somos antirrealistas, mas por meio do autointeresse. Como já defendi antes (CID, 2010, 2020b), uma sociedade do nosso autointeresse é uma na qual o Estado não é mínimo nem máximo, mas aprimora progressivamente nossa qualidade de vida, sendo razoável com todas as concepções de bem razoáveis, dando-nos o direito de mudar de concepção de bem razoável sem problemas legais. Uma sociedade do nosso autointeresse racional é uma sociedade na qual temos segurança, e uma segurança pensada de modo abrangente (como SEN, 2001a, 2002), envolvendo a nossa proteção social, mas também proteção econômica e política – fatores essenciais para a manutenção de uma sociedade que seja do nosso autointeresse.

Ainda que a nossa visão de mundo não seja completa e precise sempre de alguma reformulação, quando em contato, por equilíbrio reflexivo, com as ciências, apresentamos um modo de ver a realidade que parte dos seus constituintes mais fundamentais, os pontos de matéria, até os seus conglomerados mais intrigantes, que são os seres humanos e os grupos sociais, e como eles se inserem nesse mundo.

Muitas questões são ainda formuláveis sobre os tópicos abordados (veja-se um pouco mais em CID, 2020a, e em IMAGUIRE; CID, 2020), que puderam, neste texto, apenas ser tocados de modo breve e um tanto superficial. Muitos dos pontos aqui apresentados foram discutidos em outros lugares, porém o que é mais valioso desse artigo é antes a tentativa de uma visão geral da realidade, uma visão de mundo possível, com algumas razões a seu favor. Longe de ser definitivo, esse artigo pretende abrir espaço para discussões mais amplas e tentativas de integrar detalhes teóricos numa visão mais geral de mundo. Por exemplo, nada falamos sobre como as mentes obtêm conhecimento e sobre o que é o conhecimento sobre o mundo; não discutimos a verdade do nominalismo, nem avaliamos as versões realistas não intuicionistas mais contemporâneas da ética. O que tentamos fazer foi integrar nossas melhores conclusões de vários problemas que já discutimos anteriormente, para construir uma visão de mundo unificada e logicamente aceitável. O que temos que fazer agora é (a) ou integrar nossas respostas de outras questões filosóficas a tal visão de mundo e nos perguntar sobre sua consistência, mantendo um equilíbrio reflexivo entre mudar nossa visão de mundo ou nossas melhores respostas filosóficas e científicas disponíveis para cada área específica, (b) ou construir uma nova visão filosófica de mundo.

 

A PHILOSOPHICAL WORLDVIEW

Abstract: The purpose of this paper is to present a philosophical worldview, specifically metaphysical. This is important precisely to obtain a generalist view of reality, at a time when philosophical discussions are becoming increasingly specialized. The metaphysical worldview presented here is a general perspective on time, space, matter, laws of nature, the mind and the normativity. In order to achieve such goal, (1) we will talk about the nature of philosophy and its relation to the construction of a worldview, (2) we will discuss some arguments to talk about the nature of the aforementioned entities, and (3) we will conclude by presenting a unified metaphysical worldview that takes these arguments into account.

Keywords: Philosophy. Metaphysics. Worldview.

 

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Recebido: 12/09/2023

Aceito: 16/01/2023


 

Comentário ao Artigo: “Uma visão de mundo filosófica”: VISÕES DE MUNDO FILOSÓFICAS E VISÕES DA FILOSOFIA

 

Gregory Gaboardi[253]

 

Referência do artigo comentado: CID, R. R. L. Uma visão de mundo filosófica. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 571-596, 2023.

 

Cid (2023) apresenta uma visão de mundo filosófica. Meu acréscimo será sobre visões da filosofia. Algumas visões da filosofia acomodam uma visão de mundo, como a de Cid, outras não. Podemos partir de certa visão da filosofia, para então considerar quais visões de mundo filosóficas são apropriadas, ou podemos fazer o caminho inverso: assumir uma visão de mundo filosófica, para então considerar quais visões da filosofia podem acomodá-la. Não assumirei que um desses caminhos tenha privilégio sobre o outro. Desenharei um mapa, mas não indicarei rotas nele.

Penso que há dois eixos perpendiculares, ao longo dos quais podemos situar visões da filosofia. Cada eixo é identificável por uma pergunta: a posição ocupada nele é determinada por nossa resposta. O primeiro eixo é identificável por esta pergunta: uma afirmação ou visão de mundo filosófica deve ser submetida a algo, como testes de resistência? Resistir seria se adequar às evidências. É não ser falsa ou provavelmente falsa. O segundo eixo é identificável por esta pergunta: uma afirmação ou visão de mundo filosófica deve ser submetida a algo, como testes de fertilidade? Ser fértil seria propiciar formas de agir (incluindo pensar) inovadoras ou frutíferas. É ser, de algum modo, reveladora ou inspiradora. O primeiro tipo de teste é comum nas ciências, o segundo tipo é comum nas artes.

Os dois eixos geram quatro quadrantes, uma vez que cada pergunta seja respondida com “sim” ou “não”. Quem responde “sim” a ambas as perguntas fica no quadrante que chamarei de “cognitivista”. Quem responde “não” a ambas as perguntas fica no quadrante que chamarei de “quietista” (poderia também ser “eliminativista”). Quem responde “sim” para a pergunta da resistência e “não” para a pergunta da fertilidade fica no quadrante que chamarei de “minimalista”. Quem responde “não” para a pergunta da resistência e “sim” para a pergunta da fertilidade fica no quadrante que chamarei de “vanguardista”. Não estou satisfeito com os rótulos, contudo, não pretendo que capturem perfeitamente o teor de cada quadrante. Basta que sejam sugestivos.

A divisão é um tanto idealizada e artificial. Dificilmente, em uma reflexão filosófica, alguém não daria peso nenhum para considerações sobre verdade e evidências ou para considerações sobre relevância e utilidade. Mas essas considerações podem ser marginalizadas ou deliberadamente restringidas. Quando isso ocorre, garante que alguém fique mais claramente situado em um quadrante do que em outro. Para meus propósitos, não é um problema se ninguém ficar inteiramente situado dentro de um quadrante.

Alguns desses quadrantes têm estado pouco ocupados. O quadrante que me parece mais vazio é o quietista. Alguém que estaria em grande parte nele é Wittgenstein. Uma parte menor de Wittgenstein e dos seus seguidores se prolonga para dentro dos quadrantes cognitivista e minimalista, todavia, está em um constante cabo de guerra para manter a maior parte do corpo fora, no quadrante quietista (ou fora da área de quarentena, se isso for mais adequado ao jargão wittgensteiniano). Em resumo, o quadrante quietista é aquele no qual fica quem pensa que, seja em termos de resistência, seja de fertilidade, testar afirmações ou visões filosóficas é uma atividade que deveríamos superar ou minimizar.

O quadrante que me parece mais ocupado é o cognitivista. Nele estariam filósofos muito diversos: Aristóteles, Kant, Murdoch, Srinivasan. É o quadrante em que fica quem pensa que afirmações ou avaliações filosóficas devem ser adequadas às evidências e que pensa que considerações sobre fertilidade são pertinentes, na medida em que determinam um ajuste melhor ou pior com as evidências. Para cognitivistas, as duas perguntas que formam os eixos não são totalmente independentes: uma afirmação ou visão filosófica precisa ser resistente e fértil, e fertilidade seria indício de resistência. Para alguns cognitivistas (aqueles que aceitam certos tipos de coerentismo), vale também o inverso: uma afirmação ou visão filosófica precisa ser fértil, para ser resistente.

Em qualquer um dos casos, contudo, assume-se uma concepção restritiva de fertilidade: a fertilidade que interessaria seria apenas aquela envolvendo virtudes explanatórias, ganhos teóricos. Ter uma concepção de fertilidade que não assumisse conexão com resistência (isto é, conexão com a verdade) automaticamente faria seu proponente avançar dentro do quadrante minimalista ou do quadrante vanguardista. No quadrante cognitivista fica quem pensa que a filosofia é uma atividade teórica na qual buscamos resolver certos problemas, responder a certas perguntas, amparados por razões que estabeleçam a verdade de alguma alegação pertinente. Essa alegação pode ser uma teoria, inclusive uma teoria que conflite com o senso comum.

O quadrante minimalista é ocupado por filósofos como Sexto Empírico, Carnap, Dummett e Van Fraassen. É o quadrante em que fica quem pensa que considerações sobre fertilidade não têm valor cognitivo ou que, de todo modo, não podem gerar valor cognitivo em reflexões filosóficas. Seriam inapropriadas para a filosofia, ainda que nem por isso a filosofia deixasse de ter algum valor cognitivo. Um efeito disso é uma minimização das pretensões da filosofia (daí “minimalismo”): filosofia seria questão de colocar a “casa” (o estado de espírito, nossos esquemas conceituais ou a ciência) em ordem, sem trazer “móveis” (como teorias metafísicas e morais) novos e sem poder jogar coisas (do senso comum ou da ciência) fora. É onde fica quem tende ao ceticismo não quietista sobre a filosofia.

Finalmente, o quadrante vanguardista é ocupado por filósofos como Nietzsche, Derrida, Deleuze e Badiou. É o quadrante no qual fica quem pensa que, em filosofia, o que realmente importa é ser fértil: gerar novos conceitos, novas valorações, novos hábitos de raciocínio e por aí vai. A preocupação com verdade e evidências, com argumentos e objeções seria um erro ou algo periférico, de interesse ou importância menor. É onde fica quem tende ao relativismo ou a um tipo de expressivismo sobre a filosofia.

Os quatro quadrantes formam um mapa que uso para navegar no território contemporâneo. Creio que a visão de mundo filosófica de Cid se encaixa melhor no quadrante cognitivista de visão da filosofia. Mas, cada quadrante, exceto pelo quietista, pode acomodar alguma visão de mundo filosófica: o que mudará, em cada caso, é o que se pretende com uma visão dessas. Seja como for, penso que o mapa tem valor. Não nego que o que há de idealizado ou artificial nele crie distorções que alguns vejam como caricaturas de suas posições, porém, não sei se há algum mapa que não corra esse risco. E, apesar dessas limitações, ele tem sido útil. Reconheço que, embora eu me situe no quadrante cognitivista dentro de meu mapa, eu o desenhei com um pé timidamente dentro do quadrante vanguardista. Assim, espero que a utilidade aos demais compense as imprecisões.

Agradeço a Cid (2023) pela oportunidade de comentar seu texto, que resultou nesta reflexão.

 

Referência

CID, R. R. L. Uma visão de mundo filosófica. Revista Trans/Form/Ação, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 571-596, 2023.

 

Recebido: 16/05/2023

Aceito: 22/052023

O PERSPECTIVISMO NEUTRO E A FUNÇÃO BIOLÓGICA DE EXPERIÊNCIAS FENOMÊNICAS[254]

 

Sofia Inês Albornoz Stein[255]

 

Resumo: Neste artigo, argumenta-se em favor de uma posição acerca da natureza da mente humana que não é um fisicalismo reducionista e nem tampouco qualquer tipo de dualismo, seja de substância, seja de propriedade. Sustenta-se o perspectivismo neutro, inspirado no monismo neutro, de teor cientificista e materialista, que permite incluir experiências fenomênicas conscientes como parte de cadeias causais de processos perceptivos, emocionais, cognitivos e deliberativos. Embora não existam ainda teorias, leis e dados que possibilitem uma decisão final sobre qual o papel das experiências fenomênicas conscientes em processos físico-químicos do corpo, evidências coletadas, nas últimas décadas, não apenas fortalecem nossa crença na correlação entre eventos físico-químicos e experiências qualitativas conscientes como também aumentam o número de razões em favor da tese de que essas experiências realmente têm um papel funcional importante nos processos de coleta e uso de informações pelo organismo.

 

Palavras-chave: Perspectivismo neutro. Experiências fenomênicas conscientes. Teorias da percepção. Biologia evolucionista. Neurociências.

 

 

1 Um pouco de história: do empirismo ao perspectivismo neutro

Durante o século XX e ainda neste início de século XXI, os filósofos estiveram muito ocupados refletindo acerca da questão do significado linguístico. Isso influenciou inclusive a decisão por métodos filosóficos mais criteriosos, pois não só havia, entre analíticos e filósofos da ciência, uma preocupação com critérios de significado e de verdade para afirmações científicas, como uma atenção especial foi dada às asserções da própria filosofia. Como avaliar quais são significativas e quais são, além do mais, verdadeiras? A semântica foi decisiva para o desenvolvimento de uma nova epistemologia, no final do século XX, e para o surgimento de uma nova filosofia da mente, em meados do século. Ambas levavam em conta que juízos de conhecimento são expressos gramaticalmente e fazem parte de contextos linguísticos permeados por aspectos pragmáticos. Na filosofia da mente, passou a ser relevante pensar como (por qual método teórico ou empírico) alcançar asserções sobre a mente própria e alheia e de que forma justificar as asserções alcançadas.

Enquanto essas áreas da filosofia se desenvolviam de modo renovado, as ciências exatas, como a ciência da computação e a inteligência artificial, davam passos largos na direção de uma maior compreensão dos processos de pensamento computacionais de máquinas e humanos. E a essas se somavam as ciências naturais e empíricas, as quais examinavam o sistema neurológico e psicológico do ser humano. A neurologia, a psicologia do desenvolvimento e a genética, com seus métodos de observação e instrumentos de investigação, permitiram fazer o que nunca antes ocorrera: determinar princípios do desenvolvimento funcional e cognitivo de seres humanos e, concomitantemente, observar processos fisiológicos que os acompanham. Desde o final do século XX até os dias atuais, ciências cognitivas e neurociências — áreas de pesquisa por natureza multidisciplinares, nas quais a neurologia e a psicologia encontraram um lugar privilegiado — influenciam as renovações teóricas de quase todas as áreas do conhecimento. Não à toa, o século XXI foi chamado de século do cérebro.

Filósofos, principalmente na segunda metade do último século, passaram a integrar equipes de investigação que se propunham descobrir os padrões da percepção e da cognição humanas, durante a ontogênese. A proposta de naturalização da própria filosofia da mente se deu, em muitos casos, em cursos de ciências cognitivas, embora até hoje tenhamos presente o debate entre aprioristas e naturalistas a respeito de qual método os filósofos deveriam utilizar: o de poltrona ou o de jaleco?

Será que o problema da causação mente-corpo poderia ser resolvido por meio de análises conceituais? A metafísica acerca do mental continua vigente em muitos âmbitos, e as análises detalhadas sobre possíveis maneiras de explicar a relação entre eventos chamados de mentais e eventos chamados de físicos continua. Muitas teorias sobre a mente convivem no ambiente filosófico e das ciências, em geral. Dois fatos são inquestionáveis: até hoje não foi possível elaborar uma linguagem que dispensasse predicados mentalistas ou psicologistas e tampouco se pode negar a existência de duas perspectivas do mental, a de primeira pessoa e a de terceira pessoa. Por isso, é plausível sustentar, sob influência do monismo neutro do início do século XX, um perspectivismo neutro, que não se posiciona metafisicamente sobre a substância última do que é chamado de mental ou do que são as propriedades mentais. Todavia, é factível afirmar que o mental seja parte do mundo investigado pelas ciências e seja algo contido nas cadeias causais explicadas pelas leis utilizadas por cientistas.

Muito foi dito e debatido sobre os qualia das vivências de primeira pessoa, isto é, sobre as experiências qualitativas conscientes apenas detectáveis pelo indivíduo que as tem. Essas experiências se tornaram justificativas para visões metafísicas, que as colocam em um âmbito da realidade distinto de todos os outros fenômenos investigados pelas ciências. Uma forte razão para a multiplicação das argumentações filosóficas metafísicas é que pensadores não acatam a limitação de qualquer investigação científica humana, incluindo a investigação a propósito da mente. Eu, ao contrário, pressuponho que Kant (1983 [1781, 1787]) tivesse razão, ao asseverar que a matéria do conhecimento empírico são os fenômenos que nos alcançam pela sensibilidade e não a coisa em si.[256] É, principalmente, a pretensão de conhecer a natureza última da mente que leva à defesa de teorias metafísicas sobre fenômenos mentais e que os retira do escopo dos objetos da ciência.

O perspectivismo neutro que proponho resolve vários dos problemas filosóficos gerados pela “lacuna explicativa” entre o relato de primeira pessoa e o de terceira pessoa, afirmando que existe apenas uma mudança de perspectiva entre esses relatos e não de substância ou de propriedade do objeto relatado. Mesmo assim, se considerarmos como exemplo a apreciação estética individual de um quadro impressionista, como o Jardim em Giverny, de Claude Monet, o mais difícil de um ponto de vista filosófico, inclusive do ponto de vista do perspectivismo neutro (o qual leva em conta conhecimentos científicos acerca da percepção), seria chegar a um acordo sobre o papel causal da experiência estética consciente no processo perceptivo, emotivo, cognitivo e deliberativo. Seria a experiência um mero epifenômeno, sem qualquer poder causal? Ou deveríamos supor sua intervenção no processo cognitivo, como parte da cadeia que vai do reflexo da luz no quadro à incidência de luz na retina, até a formação da imagem na mente e de sua interpretação e utilização?

Visões materialistas conseguem muitas evidências a favor de uma autonomia dos processos físico-químicos corpóreos em relação à experiência consciente, o que desembocaria em uma visão eliminativista. Porém, também existem evidências a favor de se considerar a experiência consciente como, ela própria, um processo físico-químico, o qual participaria da cadeia causal como um todo.

Uma maneira inicial de desafiar visões metafísicas é argumentar a favor das vantagens que uma ciência da mente ou do mental pode trazer às pesquisas sobre fenômenos psicológicos humanos e às suas aplicações terapêuticas ou cotidianas. Ou seja, seriam critérios pragmáticos metacientíficos que norteariam, em última instância, a nossa posição filosófica sobre a natureza da mente. Além disso, outra chave da questão me parece ser mostrar, de um ponto de vista científico, qual seria a utilidade desse processo qualitativo consciente para a percepção, a emoção ou a cognição. Uma resposta quase evidente seria dizer que experiências qualitativas conscientes, tais como imagens, são algo primordial para relembrar representações memorizadas. Como poderíamos relembrar a imagem e as impressões deixadas por ela, em nossa mente, sem a elaboração consciente dessa imagem? A imagem, pois, poderia ser vista como um alias do objeto, da pintura, e isso explicaria sua função biológica.

O perspectivismo neutro é uma teoria sobre a mente humana que sustenta as seguintes afirmações:

a.   A realidade é uma só.

b.   A ciência é capaz de investigar fenômenos que denominamos mentais e de estabelecer leis ou princípios que se aplicam a eles.

c.   Eventos mentais podem ser observados ou vivenciados desde mais de uma perspectiva, assim como acontece com outros eventos investigados pelas ciências.

d.   A neutralidade do perspectivismo neutro reside em não precisarmos determinar exatamente a natureza última de eventos mentais, desde que logremos explicá-los, ou seja, incluí-los em cadeias causais abarcadas pelas leis científicas usadas.

e.   Ainda está por ser decidido se as experiências qualitativas fenomênicas de primeira pessoa são apenas um efeito residual de processos físico-químicos ou parte da cadeia causal perceptiva, emocional, cognitiva, deliberativa e de ação do ser humano. Talvez algumas dessas experiências sejam residuais e algumas sejam parte necessária de cadeias causais.

 

2 A representação mental na filosofia e na biologia

Nas últimas décadas, um dos debates centrais na filosofia da mente foi o debate sobre a existência ou não de representações, durante processos de cognição do mundo à volta. Nelson Goodman (1990 [1978]), Richard Rorty (1979), Humberto Maturana (2001 [1992]) e Francisco Varela (2001 [1992], 1993) e muitos outros pensadores conseguiram evidenciar, nas últimas décadas, que havia uma ingenuidade fundamental em nossa visão dos conteúdos da cognição como espécies de espelhos da natureza. Embora o realismo nas artes tenha sido superado já no início do século XX — sendo o Impressionismo um dos fenômenos artísticos que demonstram essa superação —, e na filosofia tenhamos lidado com visões relativistas em relação a descrições da realidade, manteve-se, inclusive como referência dos debates, a ideia de que, pelo menos a percepção permitia a formação de imagens fidedignas da realidade. Mesmo pontos de vista relativistas, como os de Goodman ou Rorty, não questionaram a formação de imagens perceptivas iniciais, no processo de cognição. O que foi, sim, questionado foi a interpretação dessas imagens.

Os conhecimentos recebidos da biologia evolucionista, da fisiologia e da neurologia, gradativamente, revelaram a ilusão presente na visão ingênua de que os sistemas perceptivos, com seus complexos processos fisiológicos, tinham como resultado uma reprodução quase perfeita do mundo exterior. Embora a modernidade, em especial por meio das obras dos empiristas britânicos e do idealismo alemão, tenha debatido longamente a possibilidade de uma representação mental fidedigna e verdadeira do mundo externo, seguindo as discussões iniciadas na antiguidade grega, qualquer posição que ambicionasse a justificação da verdade de afirmações cotidianas ou científicas tinha de aceitar que, apesar de toda dificuldade existente no acesso ao mundo externo, no final, a representação mental seria uma espécie de reprodução desse mundo.

A mediação entre inputs sensórios e outputs judicativos sempre se mostrou complexa nas explicações dos empiristas e idealistas. Entretanto, embora inclusive o princípio de causalidade tivesse sua correspondência com a realidade externa questionada, o caráter representacional de juízos não chegava a ser disputado. Até hoje, mantém-se, nas teorias da percepção e da representação, a interrogação sobre qual seria, afinal, o momento no qual, durante o processo cognitivo, temos uma representação mental mais fidedigna da realidade externa. Seria durante a formação de imagens ou de vivências multissensoriais? Ou seria no momento da formação de juízos conceituais acerca dessas vivências? Qual o papel dos conceitos na nossa “reprodução” da realidade?

A essas reflexões foi acrescentado, principalmente ao final do século XX, por meio de uma naturalização forte da filosofia — a qual foi bem além da naturalização iniciada por David Hume (1980 [1748]) —, o conhecimento adquirido de que nossos sistemas perceptivos naturalmente, por meio de processos evolutivos e ontogenéticos, recebem, codificam e utilizam informações e permitem ao sistema nervoso responder a essas informações, sem a necessidade constante de criar imagens ou reproduções do meio circundante. As descobertas das ciências naturais, portanto, fortaleceram a afirmação de que, ao fim e ao cabo, “interpretamos” a realidade. Todavia, o evolucionismo embutido no novo naturalismo do século XX contém também um novo pragmatismo: sistemas orgânicos têm como objetivo principal a sobrevivência, logo, todos os sistemas perceptivos e suas informações, embora não necessariamente representacionais, precisam prover o organismo com informações necessárias à manutenção da vida. Ou seja, essa necessidade seria o limite do relativismo.

 

3 Um exemplo: a correlação entre as experiências de cores e os processos físicos

Como afirmamos anteriormente, interessa-nos investigar se experiências qualitativas conscientes são partes necessárias das cadeias causais perceptivas e cognitivas ou se seriam apenas subprodutos dessas cadeias causais. Seria possível identificar utilidades indispensáveis dessas experiências? Tal qual mencionado, aparentemente o processo de memorização necessita de representações que chamamos de experiências qualitativas conscientes. Lendo Jesse Prinz (2004) e Andy Clark (1998), embora nem sempre estejam discutindo a existência dos qualia, fica claro que representações auxiliam nos processos de reidentificação de objetos de uma determinada categoria, assim como nos raciocínios que envolvem o “relembrar” de objetos e de suas relações em eventos.

Byrne e Hilbert (2003), ao avaliarem possíveis teorias acerca da percepção visual, auxiliam a pensar sobre todo o processo perceptivo, sobre suas causas e sobre seus resultados. Se, nesse processo, conseguimos identificar as experiências qualitativas conscientes, será que elas seriam parte do processo causal ou meros epifenômenos (quase-ilusões)? Acreditamos que o perspectivismo neutro que sustentamos tenha razão em não pensar essas experiências como algo ontologicamente diferente dos restantes eventos investigados pelas ciências, e que a “entificação não fisicalista” dessas experiências seja um passo em falso no raciocínio filosófico, assim como seria um passo em falso a consideração de que propriedades mentais sejam algo essencialmente diferente de outras propriedades investigadas pelas ciências.

Seguindo as análises de Byrne e Hilbert, aparte de teorias que incluiriam os qualia, teríamos algumas opções teóricas relativas a como entender o que são as cores, enquanto parte daquilo que consideramos ser o processo perceptivo visual. Levarei em conta aqui duas das opções que os autores apresentam, alternativas às teorias que aceitam os qualia, relativas à natureza das cores. A primeira seria o eliminativismo, isto é, seria negar existência às cores, o que equivaleria a tomar as experiências qualitativas de cores como epifenômenos. O eliminativismo se traduz ou a) num projetivismo, o qual nega existência física às cores e afirma que nem mesmo no cérebro ou na mente cores existem, pois, embora sejam propriedades psicológicas de nossas experiências visuais, nem sensações nem experiências visuais são coloridas, ou b) numa teoria da refletância que encontra, entre as causas de experiências visuais de cores, propriedades microfísicas de superfícies, porém, que nega a existência de cores no mundo físico.

Um dos principais problemas do eliminativismo seria o fato de se poder criar uma correspondência entre os índices de refletância de superfícies e as experiências psicológicos de cores, o que indica uma cadeia causal entre a superfície e os conteúdos mentais que não pode ser ignorada cientificamente. Uma segunda alternativa seria o fisicalismo que identifica cores à refletância ela própria ou a propriedades microfísicas. O fisicalismo não consegue explicar a estrutura fenomêmica do espaço de cores, nem como as cores aparecem a nós ou por que as experiências de cores variam, dada uma mesma superfície.

Sem entrar aqui na solução relacional apresentada por Byrne e Hilbert, é importante salientar que a naturalização das investigações filosóficas a respeito da percepção, de seus conteúdos e de como esses se “transformam” internamente em conhecimento — muitas vezes conceitual —, exige, hoje, a admissão de que a investigação sobre as cores passa pela investigação de causas físicas desse fenômeno, sem ignorar, em nenhum momento, as experiências perceptivas. E, mesmo assim, não é necessário separar ontologicamente processos físicos de processos psicológicos.

Embora seja inegável uma primazia epistemológica de primeira pessoa em relação às experiências de cores, está provada empiricamente a correlação entre fenômenos físicos de superfícies ou de ondas luminosas e essas experiências. Por isso, todas as variadas pesquisas sobre cores, nas ciências cognitivas, sobre espaço de cores (que analisa relações de similaridade entre cores), sobre variações em cores percebidas de uma pessoa a outra ou em momentos diversos da percepção individual, sobre a constância na percepção de cores (a qual exige correção psicológica de inputs sensoriais), sobre o fenômeno do espectro invertido, entre outras, nunca utilizam apenas detecção de propriedades físicas de objetos ou ondas. Os relatos ou reações de primeira pessoa são sempre requisitados, a fim de relacionar propriedades físicas observadas a experiências psicológicas relatadas.

Obviamente, hoje temos, além disso, a possibilidade de produzir gráficos ou imagens das ativações neuronais que acompanham as experiências qualitativas conscientes. Como Rebecca Saxe e Kevin Pelphrey (2009) deixam claro, os avanços neurocientíficos e instrumentais das últimas décadas permitem estabelecer, de forma cada vez mais precisa, as correlações entre funções biológicas (corpóreas e psicológicas) e ativações neuronais.

Figura 1 – Anomalias semânticas

Uma imagem contendo Gráfico

Descrição gerada automaticamente

Gravação de mapa topográfico de N400 Effect (ERP negativo a 400 ms) de experimento envolvendo anomalias semânticas em testes de eprime, com software Netstation, replicando metodologia de KUTAS et al. (1980), no Laboratório de Filosofia Experimental e Estudos da Cognição (LABFIC, Unisinos, 2015).

Fonte: PERERA (2017).

 

Isso significa que podemos dispensar os relatos de primeira pessoa? Hoje não podemos responder positivamente a essa questão, pois os dados coletados nas neurociências não são, obviamente, suficientes para “ler a mente” alheia de sorte a um terceiro relatar suas experiências fenomênicas. Mas não é impensável a interpretação científica, anatômica, funcional e computacional de ativações neuronais que torne possível um relato de terceira pessoa de, pelo menos, algumas das experiências de primeira pessoa (cf. KIMBERLEY, 2018).

A seguir, demonstrarei que o perspectivismo neutro não precisa nem sustentar um dualismo de propriedades que aceita a possibilidade de correlacionarmos ativações neuronais a experiências fenomêmicas (cf. CHALMERS, 2010), nem um redutivismo fisicalista, que mantém as experiências fenomênicas de primeira pessoa apenas como um subproduto de relações físico-químicas ou fisiológicas. Se expandirmos a visão dos processos perceptivos e cognitivos, pensando o corpo humano (no qual temos o sistema nervoso como parte) enquanto incluído em sistemas dinâmicos naturais mais abrangentes, torna-se mais fácil interrogar tanto acerca da função biológica da consciência fenomênica privada quanto acerca de sua possível dispensabilidade na cadeia causal natural.

 

4 As bases biológicas da mente: experiências conscientes são parte de processos naturais

Nós e outros animais temos predisposições inatas, que não sabemos ainda exatamente quais são e como funcionam. Por exemplo: i. Nós separamos naturalmente, inatamente, a refletância de superfícies da iluminação de cantos e limites, como as sombras que incidem sobre objetos. ii. Nós corrigimos as linhas de perspectiva resultantes de nosso sistema visual. Em vez de ver um triângulo, vemos um caminho e duas paredes simétricas (percepção de Canal Aberto).

De modo similar, hoje sabemos que conseguimos simular os conteúdos mentais alheios em sentido amplo. Temos neurônios-espelho que, ao verem outros seres humanos — assim como outros animais, especialmente mamíferos — agirem ou se emocionarem, em contextos determinados, simulam suas emoções ou sensações:

A descoberta, no início de 1990, de MNs [neurônios-espelho] no cérebro de macacos […] e a subsequente descoberta de mecanismos-espelho (MMs) no cérebro humano (ver Gallese et al. 2004b; Rizzolatti e Sinigaglia 2010) demonstram que uma modalidade direta de acesso ao significado do comportamento alheio está disponível, uma modalidade que é diferente da atribuição explícita de atitudes proposicionais. (GALLESE, 2016, p. 301, tradução nossa).

 

Se sairmos da filosofia da mente em sentido estrito e formos na direção das ciências cognitivas e da biologia evolucionista, encontramos a hipótese do cérebro social de Robin Dunbar (1998). A hipótese do cérebro social afirma que “[...] restrições no tamanho do grupo surgem da capacidade de processamento de informações do cérebro dos primatas, e que o neocórtex desempenha um papel importante nisso.” (DUNBAR, 1998, p. 184). Porém, segundo Dunbar, essa afirmação pode ser interpretada de várias maneiras, quando tentamos encontrar evidências para ela. Ou seja, quais seriam exatamente as capacidades de processamento de informação do neocórtex que restringiriam o tamanho do grupo, se não estivessem presentes? Dunbar elabora uma possível lista dessas capacidades: 1. Capacidade de reconhecer e interpretar sinais visuais que permitem identificar indivíduos e seus comportamentos; 2. Capacidade de memorizar faces; 3. Capacidade de lembrar quais são as relações diádicas presentes no grupo (quem se relaciona com quem); 4. Capacidade de pensar sobre essas relações diádicas; 5. Capacidade de processar informações emocionais, em especial a capacidade de reconhecer os estados emocionais alheios e de ser capaz de agir de acordo com esses (DUNBAR, 1998, p. 184).

Precisamos, portanto, por exemplo, reconhecer faces e expressões faciais (Onde os olhos estão focados? A testa está franzida?), para sermos capazes de distinguir entre parentes, amigos, ameaças, possíveis agressores ou emoções variadas que nos informam sobre o que podemos fazer para auxiliar, para cooperar (Devemos ajudar a carregar? Devemos abrir uma porta?). O reconhecimento de faces é necessário para ser possível a convivência social. Por meio do reconhecimento de faces e da identificação das relações diádicas, conseguimos responder: Quem acompanha quem? Quem precisa de auxílio? Quem está só? Quais estão em perigo? Com quais devo colaborar? Quais são os grupos com os quais desejo ou preciso interagir? O reconhecimento de faces, entre outras capacidades sociais inatas, exige uma complexidade neurológica imensa, milhões de sinapses ocorrendo simultaneamente.

As interações sociais múltiplas às quais alude Dunbar podem ser consideradas, usando a terminologia de Maturana e Varela (2001 [1992]), “acoplamentos estruturais não-destrutivos.” O jogo de interações produz “transformações internas congruentes” dos sistemas operacionalmente independentes, durante a ontogênese. A evolução e a ampliação da “plasticidade estrutural” requerida para mais e mais transformações internas congruentes, que mantêm cooperações sociais cada vez mais complexas, podem ser explicadas, a posteriori, pelo conceito de “variações aleatórias”. Quer dizer, variações aleatórias em indivíduos, que facilitam transformações internas congruentes, podem propiciar a uma espécie a possibilidade de expandir interações sociais.

Concomitantemente, esses mecanismos relacionados às habilidades sociais, os quais evoluíram ao longo de alguns milhões de anos, incluem uma habilidade central, que é descrita pela “hipótese da inteligência maquiavélica original”. Essa hipótese, hoje já confirmada por inúmeros experimentos (cf. PERERA; STEIN, 2018), afirma que seres humanos são capazes de “ler a mente” alheia, isto é, são capazes de deduzir os pensamentos, verdadeiros ou falsos, de outros seres humanos. O adjetivo “maquiavélica” se deve à habilidade não apenas de deduzir o que outros estão pensando, a partir de seus comportamentos, porém, de ser capaz de induzir pensamentos falsos em outras pessoas. A chamada Teoria da Mente (ToM) seria a habilidade, que cada ser humano pode desenvolver durante a infância e que depende de determinações genéticas e da presença de regiões funcionais do cérebro, como a junção temporo-parietal direita (cf. SAXE; KANWISHER, 2003; SAXE; PELPHREY, 2009; YOUNG et al., 2010), de teorizar sobre os conteúdos das crenças alheias, quer verdadeiros, quer falsos (DUNBAR, 1998, p. 188).

Fora as capacidades inatas vinculadas à Teoria da Mente, temos capacidades que exigem aprendizado social mais intenso. Entre elas, a capacidade linguística de comunicação social, simbólica, informativa e cooperativa. Embora, realmente, como o exemplo das meninas-lobo evidencia, nossa linguagem dependa do aprendizado social, durante a ontogênese, para sermos capazes de exercer funções linguísticas de enunciação e compreensão, usando fonemas, morfemas e estruturas gramaticais sintáticas e semânticas, são também necessárias, simultaneamente, várias capacidades inatas neurológicas. Como Philip Lieberman (2006, (p. 201, tradução nossa) esclarece, nossas habilidades linguísticas complexas estão vinculadas a funções neurológicas de certas áreas do cérebro, incluindo áreas ligadas às funções motoras e perceptivas:

Muitas regiões diferentes do córtex, incluindo as áreas de Broca e Wernicke e estruturas subcorticais, desempenham um papel nos circuitos que fornecem tanto a habilidade humana linguística quanto a cognitiva. Os gânglios basais e outras estruturas subcorticais que tradicionalmente estavam associados ao controle motor são elementos-chave nesses circuitos neurais. (p. 131, tradução nossa) […] as estruturas neurais que “definem” o significado de uma palavra parecem ser aquelas relevantes na vida real. Estudos de neuroimagem mostram que, quando pensamos em uma palavra, os conceitos codificados pela palavra resultam na ativação dos mecanismos cerebrais concernentes aos atributos mundo-reais da palavra em questão. Por exemplo, os dados de PET (tomografia de emissão de pósitrons) de Martin et. al. (1995b) mostram que o córtex motor primário envolvido no controle motor manual é ativado quando pensamos o nome de uma ferramenta manual. Áreas corticais visuais primárias associadas à percepção de formas e cores são ativadas quando pensamos o nome de um animal.

 

Se levarmos em conta a Teoria da Mente psicológica e a hipótese do cérebro social biológica, e, ao mesmo tempo, refletirmos sobre como alcançar conhecimento científico das nossas disposições mentais, comportamentais e linguísticas, teremos, ao final, de conceder que, mesmo que sejamos capazes de identificar muitos processos fisiológicos e neurológicos específicos ligados aos nossos pensamentos gramaticalmente articulados, ainda existirá uma pluralidade possível de respostas corpóreas e de ação ligadas aos processos internos. A complexidade das relações do meio (input) com movimentos corpóreos (output), incluindo o acúmulo de informações memorizadas, impede de sustentarmos algo diferente de um pluralismo em relação às possíveis reações emocionais e cognitivas, diante de certos estímulos do meio. Todavia, embora tudo isso seja verdade, ainda assim, os experimentos atuais nas neurociências demonstram que alguns padrões de funções e reações fisiológicas, neurológicas e comportamentais básicas são compartilhados por todos de uma mesma espécie.

Ao descrevermos nossas habilidades naturais, muitas geneticamente determinadas, vemos que não é possível separar o mundo dos fenômenos mentais das explicações de eventos físicos. Não há explicação científica que prescinda da inclusão de eventos denominados mentais, e sua inclusão nas cadeias causais explicadas pelas novas neurociências é feita de forma muito natural, quase imperceptível, em certos contextos. Portanto, induzimos a uma ilusão, ao dizer que é difícil incluir experiências fenomênicas conscientes em explicações científicas “de terceira pessoa”. Elas nunca saíram do cenário das ciências. O temor metafísico é o de, ao confessar que elas são objetos científicos, retirar delas a aura na qual se quer mantê-las.

 

4.1 Simulações automáticas de experiências fenomênicas alheias

Ao refletirmos sobre o papel de experiências qualitativas conscientes, nos processos corpóreos, hoje temos que ter em vista as teorias da cognição corporificada (ou enativistas) que nos conduzem a uma visão na qual a consciência parece prescindível em muitos contextos cognitivos e de ação. Porém, ao mesmo tempo, essas mesmas teorias possibilitam,falar de como pessoas sentem o que outras sentem, de maneira quase-automática. Ou seja, embora o enativismo auxilie a explicar a cognição, sem a necessidade de explicar o que são ou o papel de experiências conscientes, ele permite explicar como experiências conscientes são compartilhadas entre seres humanos, sem instrumentos científicos. Logo, há, pelo menos, um duplo aspecto na descrição enativista das ações e reações humanas: a. Podemos observar seres humanos como reagindo ao meio, sem o uso necessário de representações conscientes; b. Entretanto, simultaneamente, o enativismo explica como seres humanos desenvolvem empatia e sentem o que outros sentem, isto é, conseguem simular estados mentais alheios.

Teorias da cognição corporificada, assim como as teorias mais recentes acerca dos neurônios-espelho e da cognição por simulação de estados mentais alheios, sustentam e apresentam evidências de que existe um terreno comum biofisiológico, o qual enseja aos seres humanos vivenciar os estados mentais dos outros, sem os conceitualizar previamente. Essa base comum tem como uma de suas principais partes, conforme Gallese (2004a), a capacidade de simular não apenas as ações alheias, mas também os estados mentais alheios, de uma forma imediata e automática, por meio de processos de simulação inconscientes e pré-reflexivos (simulação corporificada), sem a intervenção de pensamento racional e inferencial: “O que desejo enfatizar é que a cognição social não é somente ‘metacognição social’; isto é, pensar explicitamente acerca de conteúdos da mente de outra pessoa por meio de símbolos ou outras representações em formato proposicional.” (GALLESE, 2007, p. 659, tradução nossa).

Se existe tal mecanismo básico que permite a compreensão das ações e estados mentais alheios, sem a ocorrência de metarrepresentações de natureza proposicional, como muitos experimentos neurocientíficos estão confirmando (PULVERMÜLLER, 2010, 2013; CAROTA et al., 2012; TOMASELLO et al., 2017), é possível aceitar que a neurociência possa ajudar a explicar o papel dos estados mentais e da sua compreensão em interações intersubjetivas, sem precisar pressupor alguma referência linguística anterior a eles. Esse é um passo importante em direção a explicar a natureza da compreensão intersubjetiva de estados mentais sem pressuposições cognitivistas ou referencialistas, ou seja, sem pressupor uma referência precisa de expressões mentalistas ou psicológicas presentes em proposições significativas, as quais expressam conhecimento acerca de estados mentais.

De acordo com as teorias da cognição corporificada (cf. VARELA et al., 1993), reagimos aos aspectos do meio sem precisar representar conscientemente esses aspectos, e sem computar (calcular) em sentido lógico-racional consciente. “Argumentarei que a cognição social não tem de ser concebida exclusivamente como metacognição baseada no uso de atitudes proposicionais da psicologia popular.” (GALLESE, 2009b, p. 23, tradução nossa).[257] Nós, naturalmente, temos empatia por outros seres humanos e animais – e isso define o que somos. Somos capazes de perceber e conhecer diretamente, sem a interferência de pensamentos proposicionais. Nossos pensamentos e seus conteúdos, isto é, nosso conhecimento acerca do mundo interno e externo ao nosso corpo, dependem não apenas do aprendizado de palavras significativas e de frases verdadeiras, mas também de nossa capacidade corpórea de reagir e agir frente às variações do meio circundante e dos seres vivos que nele interagem.

As novas ciências cognitivas pressupõem que nossas capacidades emotivas, perceptivas e cognitivas evoluíram, conforme a nossa enação, integração e situação no meio. Emoções, por exemplo, não seriam apenas um processo mental ou neurológico: elas estão espalhadas fisiologicamente pelo corpo inteiro. Essas ciências observam o indivíduo como um ser que se movimenta no mundo, não somente como um ser cujo centro de informação, de memorização, de computação e de decisão é o cérebro. Ademais, utilizam as teorias de sistemas dinâmicos para explicar as capacidades perceptivas e cognitivas humanas.

A linguagem adquirida socialmente é a ferramenta evolutiva desenvolvida para informar aos outros sobre nossos estados mentais e corpóreos. Uma parte importante de nossos estados mentais internos (ou processos ou eventos internos) são reações ao meio externo. Uma das questões ainda em aberto é se, ao memorizar as informações que nos alcançam, essas se tornam representações dos estados de coisas do meio, ou se nossas memórias não são, estritamente falando, representações. Deixo, aqui, em aberto essa interrogação, pois poderíamos pensar em nossas memórias como processos que são ativados em situações ou contextos similares aos memorizados, sem, no entanto, termos de tratar dessas memórias como propriamente representando esses contextos. Para uma resposta mais precisa, seria forçoso estabelecer distinções entre prováveis definições do termo “representação”, pois autores o empregam para abordar desde ativações de redes neuronais até estruturas proposicionais.

Embora essa perspectiva enativista contenha, com certeza, afirmações corretas a propósito da natureza humana e de como ocorrem interações sociais, Clark (1998) tem razão em sustentar que não podemos dispensar o uso técnico de certos termos, como “representação”. Se considerarmos representações como estados conscientes (que consistem em uma espécie de experiência qualitativa consciente), quando explicamos a maneira como pessoas pensam, calculam e imaginam, com base em conteúdos memorizados de objetos e fatos que não estão mais presentes ou que são abstratos (não apreensíveis diretamente por meio de sensações), estamos incluindo estados qualitativos conscientes em nossas explicações (desde a perspectiva de terceira pessoa) da cognição humana.

Ora, isso corrobora a nossa visão de que é possível não separar ontologicamente fenômenos mentais de eventos físicos, em uma ciência da mente, mesmo que pessoas continuem vivenciando eventos mentais conscientes de uma forma que a ciência não consegue. Assim, alcançamos uma descrição aceitável do ponto de vista perspectivista neutro: incluímos as experiências “de primeira pessoa” nas explicações científicas, na perspectiva de terceira pessoa, aceitando que exista uma perspectiva alternativa dessas experiências.

 

Considerações finais sobre a inclusão de experiências fenomênicas em processos causais

As descobertas feitas na biologia evolucionista, na etologia e nas neurociências mostram que há uma base perceptiva, emocional e cognitiva comum a todos seres humanos (e a muitos mamíferos) que explica como conseguimos compartilhar experiências fenomênicas de outras pessoas, por meio da empatia, às vezes usando uma teoria proposicional acerca da mente alheia e, às vezes, operando simulações automáticas. Logo, não apenas conseguimos cientificamente, por meio de teorias, métodos e instrumentos, acessar e explicar fenômenos chamados psicológicos ou mentais (de primeira pessoa), mas conseguimos inclusive, individualmente, simular (vivenciar) o que outros estão experimentando internamente.

Esses fatos nos induzem a afirmar que as experiências de primeira pessoa são parte da cadeia causal física, explicável por intermédio de leis científicas. Que ainda não consigamos explicar cientificamente, a contento, o papel das experiências conscientes nessa cadeia causal pode, talvez, significar apenas que nos faltam boas teorias e suficientes dados para tanto. Talvez um dos principais problemas seja a insistência em nos fixarmos no senso comum, o qual nos informa uma aparente separação entre sensações de objetos físicos e eventos mentais que são produzidos por fatores internos, como sonhos, cenas imaginárias ou processos computacionais off-line. Outra razão provável para a persistência do dualismo nas visões filosóficas da mente pode estar ligada a crenças ideológicas ou religiosas, ou seja, seria uma razão sociológica e não, primordialmente, analítica ou científica.

Muitas evidências neurocientíficas das últimas décadas, algumas das quais mencionadas acima, aumentam o número de razões que temos para justificar a inclusão de experiências fenomênicas privadas, nas cadeias causais cientificamente investigáveis de processos perceptivos, emocionais e cognitivos que participam de sistemas dinâmicos amplos, os quais, por sua vez, abarcam processos fisiológicos internos e processos naturais externos. Isso aumenta a probabilidade de estar correto um perspectivismo neutro, que inclua as experiências fenomênicas conscientes como parte das cadeias causais que contêm fenômenos mentais.

 

NEUTRAL PERSPECTIVISM AND THE BIOLOGICAL FUNCTION OF PHENOMENAL EXPERIENCES

 

Abstract: In this paper, I argue in favor of a view on the nature of the human mind that is neither a reductionist physicalism nor any kind of dualism, whether of substance or property. I support neutral perspectivism, inspired by neutral monism, with a scientific and materialist content, which allows for the inclusion of conscious phenomenal experiences as part of causal chains of perceptive, emotional, cognitive and deliberative processes. Although there are still no theories, laws and data that allow a final decision on the role of conscious phenomenal experiences in physical-chemical processes in the body, evidence collected in recent decades does not only strengthen our belief in the correlation between physical-chemical events and qualitative conscious experiences but also increases the number of reasons in favor of the thesis that these experiences do have an important functional role in the processes of collection and use of information by the organism.

Keywords: Neutral perspectivism. Conscious phenomenal experiences. Theories of perception. Evolutionary biology. Neurosciences.

 

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Recebido: 28/08/2022

Aceito: 03/02/2023


COMMENT ON “O PERPECTIVISMO NEUTRO E A FUNÇÃO BIOLÓGICA DE EXPERIÊNCIAS FENOMÊNICAS”

 

Ricardo Augusto Perera[258]

 

Reference of the commented article: STEIN, S. O perpectivismo neutro e a função biológica de experiências fenomênicas. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 601-620, 2023.

 

The question of how brain function and consciousness ultimately relate remains a mystery, as no theory of consciousness has succeeded in closing the “explanatory gap” (LEVINE, 1983). Our (epistemic) lack of understanding of why certain brain processes are (or at least appear to be) accompanied by conscious experiences (CHALMERS, 1995), however, does not seem to properly justify jumping to (metaphysical) “solutions” such as reductive physicalism or any form of dualism (not to mention idealism). Stein (2023), on her turn, proposes what could be considered as a middle ground between these two ontologically-opposed commitments: Neutral Perspectivism (NP). This is a view that does not attempt to eliminate phenomenal states from the ontological realm, neither add miraculous substances or properties to it, but rather considers a possible inclusion of conscious states in the causal chain of brain processes (e.g., by connecting them to perception, cognition, emotions, and decision-making). NP does not aim to determine the ultimate nature of mental events, but instead focuses on establishing laws or principles that could be applied to them.

Consistent with the neutral part of NP, the scientific search for the “neural correlates of consciousness”, for example, has been relatively theory-neutral, providing a framework and common language for researchers with different metaphysical views (cf. SETH; BAYNE, 2022). And although the view that consciousness “has no function whatsoever” is logically plausible (cf. SETH, 2009), it could also be the case that conscious mental states are caused by and supervene on biological activity of the brain and yet are causally efficacious in a way that cannot be wholly reduced to their biological foundations (CLEEREMANS; TALLON-BAUDRY, 2022). In this sense, the inclusion of a more naturalistic view of consciousness in the scientific explanation of brain functions (as appears to be the case of NP) may be still insufficient to provide a definitive answer to the ultimate metaphysical questions that interests philosophers (just like all the alternatives), but yet seems a promising attempt to scientifically reduce the gap between the brain and its conscious outputs.

Predictive Processing (PP) (FRISTON, 2005, 2010; HOHWY, 2013, 2020; CLARK, 2013, 2015), for example, was not originally conceived as a theory of consciousness, as it is a general theory of brain function. However, it can be still considered as a theory for consciousness, as long as it provides a framework that systematically maps neural mechanisms to aspects of consciousness (cf. SETH; BAYNE, 2022; SETH; HOHWY, 2021).

Consistent with NP, PP includes phenomenal states in its framework (e.g., self-reports of perceptual shifts), and relates them with brain functions and activities (e.g., HOHWY et al., 2008; CORCORAN et al., 2023). At the same time, PP remains relatively neutral about the ultimate nature of consciousness. Throughout this comment, I will expose the PP mechanism and suggest that it seems to be the ideal framework for a neutral perspectivist.

PP is historically rooted on von Helmholtz’s (1860) view of perception as an unconscious inferential process that uses learned probabilistic models to guess the hidden causes of incoming sensory data. This process corresponds to Bayesian inference, in which sensory data (likelihoods) are combined with probabilistic predictions (priors) to infer the best explanations (posteriors) of their hidden causes. Bayesian inference provides the optimal way of balancing prior beliefs and likelihoods, given their relative uncertainties (quantified as the informational entropy of their probability density functions), to generate posterior beliefs.

As a neural implementation of Bayesian inference (among others), PP assumes that a typically-functioning brain will update its beliefs (posteriors), given sensory information (likelihoods) and internal probabilistic models (priors), in an approximately Bayes-optimal fashion (FRISTON, 2010). Here the degrees of confidence attached to priors and sensory data corresponds to their precisions (the inverse of their variances). The long-term sum of prediction errors – the discrepancies between prior and likelihood means – is the quantity that brains need to minimize in order to reduce an (otherwise life-threatening) upper bound on surprise (FRISTON, 2010; HOHWY, 2013).

Prediction errors can be minimized either through perceptual inference (by providing better predictions of sensory inputs), or active inference (by selectively sampling sensory inputs that conform to predictions). Prediction Errors are weighted relatively to prior and likelihood precisions, resulting in precision-weighed Prediction Errors (pwPEs). The learning rate (likelihood precision / likelihood precision + prior precision) indicates how much we learn from data in updating our beliefs. Posteriors closer to likelihoods indicate that sensory inputs were weighted more relatively to priors (high learning rate), while posteriors closer to priors indicate that priors were weighted more relatively to sensory inputs (low learning rate).

PP considers that the winning perceptual hypothesis determines phenomenology by achieving the highest posterior (i.e., is considered as the “best guess” about the hidden cause of sensory data). Here the balance between the precisions (or degrees of reliability) of priors (perceptual beliefs) and likelihoods (sensory data) is key: a strong perceptual hypothesis being compared with imprecise sensory data would bias perception towards priors, while a weak perceptual hypothesis being compared with precise sensory data would bias perception toward likelihoods.

Determining how information processing in the brain and the content of conscious perception are typically connected could also provide a better understanding of atypical conscious phenomena like the occurrence of illusions (i.e., misperception of an external stimulus) and hallucinations (i.e., perception in the absence of an external stimulus). The mechanism of PP, for example, has the potential to explain how a given disturbance in a neural mechanism (e.g., an abnormal weighting of priors relatively to sensory inputs together with high environmental uncertainty) could give rise to a specific abnormal phenomenology (e.g., perceiving meaning in noise).

Neutral Perspectivism, given its minimal metaphysical commitment, avoids the unnecessary hindrances that reductive physicalism and dualism impose to the scientific study of consciousness (either the elimination of phenomenal states from the scientific repertoire or the addition of mysterious substances or properties). By focusing on how mental states are causally related to processes in the brain and remaining neutral about the ultimate nature of consciousness, Neutral Perspectivism provides a better match between philosophical views about the mind and Predictive Processing approaches to brain function and consciousness. This our comment to Stein (2023)

 

References

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CLARK, A. Whatever next? Predictive brains, situated agents, and the future of cognitive science. Behavioral and brain sciences, v. 36, n. 3, p. 181-204, 2013.

CLARK, A. Surfing uncertainty: Prediction, action, and the embodied mind. Oxford University Press, 2015.

CLEEREMANS, A.; TALLON-BAUDRY, C. Consciousness matters: phenomenal experience has functional value. Neuroscience of consciousness, v. 1, niac007, 2022.

CORCORAN, A. W.; PERERA, R.; KOROMA, M.; KOUIDER, S.; HOHWY, J.; ANDRILLON, T. Expectations boost the reconstruction of auditory features from electrophysiological responses to noisy speech. Cerebral Cortex, v. 33, n. 3, p. 691-708, 2023.

FRISTON, K. A theory of cortical responses. Philosophical transactions of the Royal Society B: Biological sciences, v. 360, n. 1456, p. 815-836, 2005.

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HELMHOLTZ, H. V. Theorie der Luftschwingungen in Röhren mit offenen Enden. Journal für die reine und angewandte Mathematik. In zwanglosen Heften, Band 57,1, p. 1-72, 1860.

HOHWY, J. The predictive mind. OUP Oxford, 2013.

HOHWY, J. New directions in predictive processing. Mind & Language, v. 35, n. 2, p. 209-223, 2020.

HOHWY, J.; ROEPSTORFF, A.; FRISTON, K. Predictive coding explains binocular rivalry: An epistemological review. Cognition, v. 108, n. 3, p. 687-701, 2008.

LEVINE, J. Materialism and qualia: The explanatory gap. Pacific philosophical quarterly, v. 64, n. 4, p. 354-361, 1983.

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SETH, A. K.; HOHWY, J. Predictive processing as an empirical theory for consciousness science. Cognitive Neuroscience, v.12, n. 2, p. 89-90, 2021.

STEIN, S. O perpectivismo neutro e a função biológica de experiências fenomênicas. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 601-620, 2023.

 

Received: 12/05/2023

Approved: 19/05/2023


 

CONTEXTUALISMO E RELATIVISMO NA ÉTICA[259]

 

Wilson Mendonça[260]

 

Resumo: De acordo com uma abordagem proeminente na semântica formal contemporânea, a verdade das asserções morais depende de uma perspectiva normativa sobre os fatos do mundo. A implementação dessa abordagem, conhecida como contextualismo indexical, trata a dependência da verdade moral vis-à-vis a perspectiva moral correspondente em analogia com a dependência contextual característica de sentenças contendo termos indexicais. Alternativamente, a perspectiva moral é vista como configurando as circunstâncias de avaliação nas quais o conteúdo expresso pela ocorrência de uma sentença moral é avaliado como verdadeiro ou falso. A versão moderada dessa visão alternativa (o contextualismo não indexical ou relativismo moderado) considera que a verdade da ocorrência de uma sentença moral em um contexto de uso é determinada pela avaliação do seu conteúdo na “circunstância do contexto”: a circunstância de avaliação representada pelo mesmo conjunto indexado que representa o contexto de uso. A versão radical (o relativismo de apreciação), por sua vez, faz a verdade da ocorrência de uma sentença moral em um contexto depender essencialmente do valor do padrão normativo em outro contexto, a partir do qual o enunciado original é apreciado. Tomando o juízo sobre o status moral do casamento poligâmico como ilustração, o presente trabalho examina os méritos concorrentes de explicações contextualistas e relativistas do uso da linguagem moral, especialmente em situações de desacordo e debate. O trabalho argumenta que, embora o contextualismo indexical acoplado a considerações pragmáticas adequadas possa explicar alguns dados relevantes do desacordo, a explicação alternativa desses dados, dada pelo contextualismo não indexical, é preferível, porque mais simples e mais econômica. Também é argumentado que o relativismo de apreciação está mais bem situado do que o contextualismo não indexical para explicar os fenômenos relevantes da retratação obrigatória, podendo, portanto, acomodar mais facilmente algumas possibilidades discursivas que desempenham um papel central em debates morais.

Palavras-chave: Verdade moral. Desacordo moral. Contextualismo indexical. Contextualismo não indexical. Relativismo de apreciação.

 

I

 

“Boys are playing basketball around a telephone pole with a backboard bolted to it.” Esta é a linha de abertura do primeiro romance de John Updike, centrado no personagem Rabbit Angstrom. Como podemos compreender o que o narrador de Rabbit, Run, nos diz com sua primeira sentença? Qual é o significado desse uso particular da sentença Boys are playing basketball around a telephone pole with a backboard bolted to it? A teoria semântica bem estabelecida associa ao uso de uma sentença declarativa um conteúdo (um tipo de significado) que coincide com o objeto da asserção direta feita pelo uso em questão. A qualificação “direta” reflete o reconhecimento de que tipicamente, além da asserção direta, o proferimento de uma sentença declarativa realiza outros atos ilocucionários, por exemplo, outras asserções indiretas, as quais podem ser pragmaticamente mais importantes que a asserção direta. No sentido pré-teórico das noções de significado e do que é dito, o objeto da asserção direta pode ser menos relevante na caracterização do que é dito pelo uso assertivo de uma sentença e, portanto, na caracterização do significado associado ao uso dessa sentença. Portanto, o conteúdo a que se refere a teoria semântica é um construto teórico, uma versão empobrecida do que compreendemos intuitivamente como o significado.[261] Isso salta aos olhos na tentativa de uma interpretação adequada da linha de abertura de Rabbit, Run. O que Updike nos comunica diretamente é a ocorrência de uma atividade envolvendo alguns garotos em uma quadra improvisada de basquetebol. Contudo, além de simplesmente marcar o tempo dessa ocorrência como coincidente com o tempo do proferimento de Boys are playing basketball around a telephone pole with a backboard bolted to it, o uso do verbo no tempo presente (não somente na primeira linha de Rabbit, Run, mas ao longo de todos os livros sobre Rabbit) pretende revelar ao leitor o “fluxo de consciência” de um adulto que se sente aprisionado em um ambiente vital frustrante, tanto pessoal quanto profissionalmente. O adulto Rabbit se vê confrontado com alguns garotos que se divertem, praticando, em condições precárias, uma atividade na qual ele, quando jovem, tinha tudo para se transformar em um participante bem-sucedido: um brilhante jogador de basquetebol. A visão da atividade espontânea dos garotos (designados a seguir como real boys) intensifica o sentimento que Updike tenta transmitir ao seu leitor: o sentimento de quem sabe que perdeu sua juventude e foi alienado da vida real. Evidentemente, essas nuances do que é dito pela sentença usada por Updike escapam à caracterização do conteúdo como ele é visto na teoria semântica.

Como o interesse principal do presente trabalho é mostrar o que a teoria semântica nos pode ensinar sobre o modo de funcionamento do vocabulário moral mobilizado em asserções exclusivamente diretas, consideremos inicialmente, para tornar as coisas muito mais simples, embora menos interessantes do ponto de vista da interpretação de obras literárias, uma modificação da sentença usada por Updike no início de Rabbit, Run. A ideia é discutir a semântica e a pragmática de uma sentença simples que poderia figurar em um relato não ficcional sobre acontecimentos mundanos, envolvendo um garoto de nome João: João está jogando basquetebol. Nessas condições, a sentença expressará uma verdade — e só isso nos interessa nos relatos não ficcionais —, se João estiver de fato jogando basquetebol no mesmo instante de tempo em que a sentença é proferida e no mesmo lugar onde está o autor do relato. Consideremos, ademais, que a sentença é elítica, que ela contém (implicitamente) a especificação do local exato onde a ação ocorre e o narrador está situado. Isso deixa, como única variável para a caracterização do conteúdo, o instante de tempo em que a sentença é proferida. Há pelo menos três construções linguísticas relevantes para nossos propósitos:

 

(1)                   João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022.

(2)                   João está jogando basquetebol agora.

(3)                   João está jogando basquetebol.

 

O uso pré-teórico do predicado é verdadeiro é tal que a asserção (no sentido do que é asserido, não no sentido do ato de asserir) feita pelo proferimento de (1) é verdadeira, se somente se João estiver jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022. Verdade nesse sentido (verdade simpliciter) é uma noção absoluta aplicável a proposições, isto é, a conteúdos expressos por sentenças declarativas. Verdade simpliciter é expressa na linguagem vernacular por um predicado monádico. No caso presente, o que é asserido pelo proferimento de (1) é que João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022. E a verdade simpliciter dessa proposição depende somente da circunstância se João está ou não jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022. Generalizando, o uso do predicado monádico de verdade é governado pelo

 

(4)                   Esquema da Equivalência:

A proposição que
 é verdadeira sse[262] .

 

A verdade simpliciter do conteúdo expresso por uma sentença declarativa qualquer impõe, por assim dizer, algumas condições ao mundo onde a sentença é proferida (o mundo atual). Um modo formal de codificar o fato de que a verdade de uma proposição depende de como as coisas são no mundo atual recorre a uma noção de verdade proposicional relativa a mundos possíveis. A ideia crucial é que (1), por exemplo, pode ser visto como particionando o universo das possibilidades entre as que são compatíveis, e as que são incompatíveis, com a verdade do conteúdo expresso por João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022.

Os mundos que são compatíveis com a verdade da proposição expressa por (1) no mundo atual, são aqueles que contêm, como um dos seus constituintes, o estado de coisas que João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022, isto é, os mundos onde João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022. Não é problemático descrever os mundos compatíveis como aqueles nos quais a proposição em questão é verdadeira, pois a noção de verdade em um mundo possível (ou verdade relativa a mundos possíveis), mobilizada nessa descrição, não precisa ser vista como distinta da noção de verdade simpliciter. Ao contrário, a noção de verdade relativa a mundos possíveis pode ser explicada em termos da verdade simpliciter.

Nesse ponto crucial, a semântica formal inverte a direção da explicação. A noção de verdade relativa a mundos possíveis desempenha, na semântica formal, o papel de um primitivo. Trata-se de uma noção técnica que funciona como um dispositivo para a caracterização sistemática do conteúdo e a explicação da noção de verdade simpliciter. A semântica formal almeja especificar, em primeiro lugar, a natureza formal da proposição designada, por exemplo, pela cláusula que João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022 e, em segundo lugar, as condições nas quais essa proposição é verdadeira simpliciter. Isso explica por que os semanticistas formais preferem especificar o conteúdo proposicional não em termos de verdade, pois isso poderia sugerir que a noção fundamental para a semântica formal é a da verdade simpliciter, mas em termos de uma função que mapeia mundos possíveis e sentenças declarativas ao conjunto . A função é concebida de tal forma que o conteúdo de um ato assertivo será verdadeiro (ou falso) simpliciter sse a teoria semântica atribuir a esse conteúdo o valor 1 (ou o valor 0) em uma situação privilegiada: a situação constituída pelo mundo atual. A cláusula bicondicional acima deixa claro que o uso da noção técnica, por parte do semanticista formal, é, por assim dizer, metodologicamente controlado pelos fatos sobre verdade simpliciter e conteúdo como codificados no Esquema da Equivalência. Portanto, qualquer incompatibilidade entre uma proposta semântico-formal e o Esquema da Equivalência constitui uma boa razão para sua rejeição.

As seções II, III e IV expõem o tratamento semântico formal das construções (1), (2) e (3) listadas acima.

 

II

 

A semântica formal de sentenças declarativas fará uso, no presente trabalho, do seguinte esquema notacional geral:

 

                o conteúdo da expressão  em um contexto de uso

                 o caráter de uma expressão

              a extensão do conteúdo  na circunstância de avaliação

               a intensão do conteúdo

          a extensão, na circunstância de avaliação , do conteúdo da expressão  em um contexto de uso

 

 é uma função que, para cada expressão sentencial ou subsentencial, mapeia contextos a conteúdos. Como o tratamento de termos demonstrativos, por exemplo, deixa claro, o conteúdo pode variar com o contexto pragmático de uso. Em alguns casos especiais, o conteúdo pode ser uma função constante do contexto. Mas, em geral, o conteúdo varia de contexto a contexto. Isso explica a variável sobrescrita , cujos valores são contextos de uso específicos. A associação sistemática entre conteúdos e extensões é representada pela função , a intensão do conteúdo. A extensão de um conteúdo é comumente vista como a avaliação do conteúdo em “[...] both actual and counterfactual situations with respect to which it is appropriate to ask for the extensions of a given well-formed expression” (KAPLAN, 1989, p. 502) — na terminologia introduzida por Kaplan: a avaliação do conteúdo em circunstâncias de avaliação.

Tipicamente, a extensão de um conteúdo varia de circunstância a circunstância. Ademais, diferentes tipos de expressão têm diferentes tipos de extensão. Termos singulares têm objetos individuais como extensão, ao passo que conjuntos são as extensões de predicados: conjuntos de objetos individuais, no caso de predicados monádicos, conjuntos de pares ordenados de objetos individuais, no caso de predicados diádicos etc. No caso das expressões linguísticas que são sentenças declarativas, as extensões são valores de verdade. Para deixar claro que a noção de verdade com a qual operamos aqui, a saber, verdade relativa a circunstâncias de avaliação, é distinta da verdade simpliciter, os valores de verdade em circunstâncias de avaliação serão 0 ou 1. Portanto, se  for o conteúdo associado a uma sentença declarativa,  será verdadeiro em ca sse . E  será falso em ca sse .

Plausivelmente, o conteúdo de (1) não varia com o contexto pragmático. O objeto da asserção direta de João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022 independe de quando e onde essa expressão sentencial é usada, mas também de quem a profere ou ouve ou de qualquer característica do contexto de uso que pudesse determinar o conteúdo. Por outro lado (e também plausivelmente), a avaliação do conteúdo de (1) varia de um mundo possível a outro. É verdade, em alguns mundos possíveis, e falso, em outros mundos possíveis, que João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022. Nesse caso, portanto, . Isso leva ao seguinte resultado:

 

(5)                   Semântica de (1) João está jogando basquetebol em 6 de novembro de 2022:

 sse João estiver jogando basquete em 6 de novembro de 2022 em w.], onde W é o universo de todos os mundos possíveis.

 

O lado direito do bicondicional acima não faz referência a c. Isso reflete o fato de que o conteúdo de (1) independe do contexto de uso. Por outro lado, o domínio da função d é constituído exclusivamente por valores da variável w: as circunstâncias de avaliação reduzem-se a mundos possíveis.

O próximo passo na teoria semântico-formal consiste em definir estipulativamente que o conteúdo de um ato assertivo realizado no mundo atual  será verdadeiro (em um sentido não relacional de verdade) sse  definida acima, isto é, no caso presente, sse João estiver jogando basquete em 6 de novembro de 2022 na situação em que (1) é usada. Mas isso quer dizer, fazendo abstração do fato de que a situação de uso de (1) é o mundo atual, que a proposição que João está jogando basquetebol em 6 de novembro de 2022 é verdadeira, sse João está jogando basquetebol em 6 de novembro de 2022, o que é obviamente uma instância do Esquema da Equivalência. Portanto, a noção de verdade definida pela semântica formal coincide com a noção pré-teórica fundamental de verdade simpliciter.

 

III

 

(2) envolve um indexical. A contribuição de termos como eu, ela, aqui, agora, amanhã, mas também dos demonstrativos isto, isso, ou aquilo, para as condições de verdade das sentenças onde eles aparecem é determinada por características do contexto de uso. Por exemplo, a extensão associada ao conteúdo do uso do termo agora é o instante de tempo de seu proferimento em c:  O que um falante quer dizer, quando profere assertivamente João está jogando basquetebol agora, só poderá ser completamente compreendido quando ficar claro aos envolvidos na conversação qual é a extensão do termo agora. Suponhamos que o contexto de uso indique claramente, em um caso concreto, que a extensão, nesse caso, é o dia 6 de novembro de 2022, a data a respeito da qual o falante faz uma asserção. Ao proferir nesse contexto, isto é, no dia 6 de novembro de 2022, a sentença João está jogando basquetebol agora, o falante afirma que João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022.

De acordo com a abordagem semântica proposta por David Kaplan em “Demonstratives” (KAPLAN, 1989), devemos associar a qualquer sentença que contenha indexicais, em uma primeira fase, um caráter, isto é, uma função que mapeia contextos de uso a conteúdos. No caso presente, o caráter pode ser especificado assim: na data determinada pelo contexto de uso, João está jogando basquetebol. O caráter kaplaniano é o que o usuário tem de apreender (know) para ser competente na linguagem em questão. Em outras palavras, o caráter kaplaniano é um tipo de significado. Na segunda fase, a semântica dos indexicais proposta por Kaplan associa ao proferimento contextualizado de (2), como seu conteúdo, o resultado da aplicação do caráter ao argumento constituído pela característica relevante do contexto de uso, que, no caso presente, é o tempo de proferimento t.

O conteúdo kaplaniano é outro tipo de significado, essencialmente ligado ao contexto de uso. No caso presente, isso leva à concepção dos contextos de uso como mundos possíveis centrados, representados genericamente pela sequência . Ocorrências de (2) em diferentes contextos (basicamente: em diferentes datas) expressam diferentes conteúdos. O tempo t desempenha, em outras palavras, o papel de um parâmetro na determinação do conteúdo expresso por (2). Ao contrário do conteúdo de (1), o conteúdo de qualquer sentença que contenha um indexical envolve um parâmetro cujo valor é determinado pelo contexto de uso. O conteúdo de (2) parametrizado com t pode então ser avaliado como 1 ou 0 em diferentes mundos possíveis, exatamente como o conteúdo de (1): em ambos os casos, .

 

(6)                   Semântica de (2) João está jogando basquetebol agora:

 sse, no instante de tempo determinado pelo contexto de uso c, João estiver jogando basquetebol em w.]

 

Ao contrário do que ocorre em (5), o lado direito do bicondicional de (6) faz referência a c: o conteúdo expresso por (2) depende do contexto de uso. Em consonância com (5), o domínio da intensão do conteúdo é constituído exaustivamente por mundos possíveis.

O procedimento que o semanticista formal adota agora para definir uma noção de verdade não relacional em termos da extensão (0 ou 1) atribuída pela função  ao conteúdo expresso pelo uso de (2) no instante tempo  no mundo atual é semelhante ao que foi descrito no final da seção II. A condição necessária e suficiente para que esse conteúdo seja verdadeiro é que . Após a abstração do fato de que a situação de uso é o mundo atual, mas não do fato de que o instante de uso é , o resultado é: a proposição que João está jogando basquetebol no instante de tempo  é verdadeira sse João estiver jogando basquetebol no instante de tempo . Portanto, mais uma instância do Esquema da Equivalência e mais uma vez a identidade da verdade definida pelo semanticista formal e a verdade simpliciter.

 

IV

 

O tratamento semântico de (3) pode proceder de duas maneiras mutuamente exclusivas. Em primeiro lugar, é possível (e, para muitos, muito natural) basear a interpretação de (3) na suposição de que a sentença João está jogando basquetebol é indexical, envolvendo a ocorrência (implícita) do termo agora. Nessa perspectiva, o que o falante afirmaria, ao proferir, por exemplo, em 6 de novembro de 2022, a sentença João está jogando basquetebol é que as crianças estão jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022. Portanto, de acordo com esse modo de ver, (3) expressaria um conteúdo parametrizado pelo contexto de uso e avaliado em mundos possíveis, conforme já caracterizado em (6).

A interpretação alternativa de (3) é uma instância da tese semântica do temporalismo. Na perspectiva temporalista, a cláusula João está jogando basquetebol é vista como a expressão completa de um conteúdo asserido mediante o proferimento de (3) em qualquer instante de tempo. (3) expressaria, portanto, não um conteúdo sobre o tempo, como (2), mas ainda assim uma proposição que diz respeito ao tempo (concerns the time), no sentido em que o valor de verdade de (3) quando usada em um contexto é determinado pelo tempo de proferimento no contexto.[263] (3) não se prestaria, portanto, ao tratamento contextualista indexical aplicado a (2): na perspectiva teórica do temporalismo, o conteúdo associado ao proferimento de (3) seria contextualmente invariante; sua caracterização não seria parametrizada pelo contexto de uso.

Naturalmente, o temporalista reconhece que o valor de verdade de um uso específico de (3), ao contrário do valor de verdade do uso de (1), depende, de alguma forma, do tempo de proferimento. A verdade de (2) também varia com o tempo de proferimento, mas essa variação é explicada como o resultado da variação do conteúdo ao longo da dimensão temporal do contexto de uso. Com a rejeição da interpretação contextualista indexical e, consequentemente, da relativização do conteúdo expresso por (3) ao instante de tempo do seu proferimento, o temporalista desloca a explicação da dependência da verdade de (3) vis-à-vis o tempo de proferimento t para o plano das circunstâncias de avaliação. No caso da sentença declarativa (1) João está jogando basquetebol no dia 6 de novembro de 2022, a avaliação do conteúdo correspondente resulta no valor de verdade 1 ou no valor de verdade 0, dependendo de como estão as coisas no mundo w no dia 6 de novembro de 2022. Isso quer dizer que as circunstâncias de avaliação relevantes são mundos possíveis  A situação não muda muito se considerarmos (2). Em alguns mundos possíveis, a extensão associada ao conteúdo de João está jogando basquetebol agora, proferida em um contexto específico, será 1; em outros mundos possíveis, será 0. Portanto, também quando consideramos (2), .

Para dar conta da dependência temporal da verdade de (3), o temporalista introduz mais uma dimensão nas circunstâncias de avaliação, além da dimensão dos mundos possíveis. A ideia crucial é que (3) seleciona, por assim dizer, um conjunto de pontos de avaliação em um espaço bidimensional: os pontos nos quais o conteúdo contextualmente invariante de (3) é avaliado como verdadeiro ou falso. Isso quer dizer, no quadro teórico do temporalismo, que as circunstâncias de avaliação apropriadas à interpretação semântica de (3) têm duas coordenadas: uma coordenada “mundana,” cujo valor é um estado possível do mundo, e uma coordenada temporal t. De acordo com essa proposta, (3) particiona o universo, não dos mundos possíveis, mas dos pares ordenados

Em geral, Kaplan chama a atenção para o fato de que, em muitos casos mais complexos do que os exemplificados por (1) e (2), as circunstâncias de avaliação devem ser concebidas como pontos em um espaço pluridimensional. “A circumstance [of evaluation] will usually include a possible state or history of the world, a time, and perhaps other features as well” (KAPLAN 1989, p. 502). Podemos pensar aqui em sentenças como Em algum lugar vai nevar nos próximos dias, cuja interpretação, na semântica kaplaniana, exige a introdução, nas circunstâncias de avaliação, de uma coordenada temporal e de uma coordenada de localização. No modo de expressão comum na semântica, a coordenada temporal t é deslocada (shifted) pelo termo vai nevar, concebido como um operador, ao passo que o operador em algum lugar desloca (shift) a coordenada de localização l. O resultado geral é que as circunstâncias de avaliação na semântica kaplaniana podem ter de ser representadas por sequências de coordenadas .

Circunstâncias de avaliação com mais de uma coordenada são requeridas para dar conta do modo de funcionamento de sentenças que contêm operadores intensionais diferentes dos operadores modais aléticos.[264] Quais coordenadas devem ser acrescentadas à coordenada mínima dos mundos possíveis w, é, antes de tudo, uma questão empírica, dependente, por exemplo, dos tipos distintos de operadores intensionais que estão de fato integrados à linguagem objeto.[265] Operadores intensionais são dispositivos com os quais as coordenadas das circunstâncias de avaliação podem ser independentemente deslocadas. Por exemplo, operadores de modalidade alética (necessariamente, possivelmente) deslocam a coordenada w das circunstâncias de avaliação. Avaliada em um mundo , a fórmula Possivelmente p será verdadeira sse o conteúdo expresso por p for verdadeiro em pelo menos um dos mundos w acessíveis a , segundo uma relação de acessibilidade .

Da mesma forma, Necessariamente p será verdadeira sse o conteúdo expresso por p for verdadeiro em todos os mundos w R-acessíveis a . Nesse sentido, os operadores de modalidade alética deslocam o mundo possível onde p é avaliado. Do mesmo modo, operadores temporais (assumindo que eles estão presentes na linguagem objeto) deslocam a coordenada temporal t — e assim por diante, para outros possíveis operadores. Em resumo, as sequências simbólicas que representam as circunstâncias de avaliação têm pelo menos tantas coordenadas quantos são os tipos de operadores intensionais que encontramos na linguagem objeto.[266]

Sob a suposição crucial de que as diferentes formas da flexão verbal no tempo (tense) devem ser tratadas como operadores intensionais, o temporalismo aparece como o resultado da aplicação do esquema geral, descrito nos últimos parágrafos, a sentenças flexionadas temporalmente (tensed sentences). Isso quer dizer, por exemplo, que a forma lógica da sentença (3) João está jogando basquetebol envolve a aplicação do operador intensional  a um conteúdo p. Este tem de ser temporalmente neutro, pois ele será avaliado em circunstâncias de avaliação que têm t como uma de suas coordenadas. Podemos postular aqui que (7), formulada no presente durativo, expressa o conteúdo temporalmente neutro requerido pela interpretação temporalista de (3).

 

(7)                   João joga basquetebol.

 

Ao mesmo conteúdo temporalmente neutro poderia ser aplicado, por exemplo, o operador , ou o operador , como eles poderiam aparecer nas formas lógicas das sentenças João vai jogar basquetebol e João estava jogando basquetebol.

(8) especifica a intensão do conteúdo associado à fórmula flexionada (3).

 

(8)                   Semântica de (3) João está jogando basquetebol (abordagem temporalista):

 sse, no instante de tempo t, João joga basquetebol em w.]

 

O procedimento que o temporalista deve adotar, agora, para definir uma noção de verdade não relacional em termos da extensão (0 ou 1) atribuída pela função  ao conteúdo expresso pelo uso de (3), por exemplo, é mais complicado do aquele que foi descrito nos últimos parágrafos das seções II e III. No caso temporalista, o conteúdo de um ato assertivo realizado em um contexto c será verdadeiro sse , onde  é o mundo do contexto de uso c e  é o instante de tempo de uso de (3) João está jogando basquetebol, por exemplo. Os detalhes e as consequências dessa definição de verdade não relacional proposta no caso temporalista e em casos estruturalmente semelhantes serão discutidos nas seções IX e X.

 

V

 

A tese temporalista é controversa. Alguns semanticistas argumentam que a tese é extensionalmente inadequada, não cobrindo corretamente os fenômenos da flexão verbal.[267] Para os propósitos do presente trabalho, é menos importante reconstruir criticamente o debate sobre o temporalismo do que dirigir a atenção ao fato de que o temporalismo é o resultado da aplicação do esquema kaplaniano descrito acima aos fenômenos da flexão verbal, sob a suposição de que a flexão verbal deve ser concebida segundo o modelo dos operadores intensionais. O esquema kaplaniano requer o acréscimo de uma coordenada extra diferente de w (uma coordenada “não mundana”) nas circunstâncias de avaliação, desde que seja possível mostrar que a linguagem objeto contém de fato um operador capaz de deslocar a coordenada em questão.

Talvez não seja uma boa ideia modelar os fenômenos da flexão verbal como resultantes de operadores intensionais. E se essa não for uma boa ideia, então desaparecem as razões que pensávamos ter para introduzir uma coordenada temporal extra nas circunstâncias de avaliação do conteúdo expresso por João está jogando basquetebol, por exemplo. Isso implicaria o abandono da interpretação temporalista de (3), em favor da interpretação contextualista indexical. Mas isso não torna o esquema kaplaniano inútil. Se um fragmento da nossa linguagem objeto contiver de fato operadores intensionais apropriados (além dos operadores aléticos), nós estamos justificados ao especificar a semântica das construções linguísticas nesse fragmento em termos da distribuição de valores de verdade em pontos de avaliação que têm mais de uma coordenada, em analogia com a explicação temporalista.

De fato, a estratégia kaplaniana tem sido posta à prova, no caso de asserções cujo valor de verdade parece depender não somente do modo como estão configuradas no mundo “objetivo” as coisas explicitamente mencionadas nos proferimentos correspondentes, mas também de uma característica peculiar do sujeito que faz a asserção: o sujeito que, via de regra, não é explicitamente mencionado.[268] É bastante plausível supor que existem de fato conteúdos de pensamento que não podem, nem mesmo em princípio, ser avaliados de forma completamente objetiva, sem uma menção ao ponto de vista do sujeito desses pensamentos. Por exemplo, o conteúdo que alcaçuz é saboroso parece poder ser avaliado como verdadeiro, somente por um sujeito cujo paladar constitui uma perspectiva na qual alcaçuz é saboroso. De maneira similar, o juízo sobre a probabilidade de um certo evento futuro depende, no que diz respeito à sua verdade, da perspectiva cognitiva limitada (o estado de conhecimento) do sujeito que faz o juízo. Isso pode ser suficiente para excluir como inadequada a interpretação “objetivista” de juízos de gosto ou de juízos de probabilidade: a interpretação segundo a qual as condições de verdade de Alcaçuz é saboroso ou de O evento X tem uma probabilidade Y devem ignorar as atitudes pessoais dos sujeitos que asserem sinceramente os conteúdos expressos por essas sentenças. Talvez seja possível argumentar a partir daqui que, embora a perspectiva do paladar “correto” seja uma condição necessária para a avaliação alética do conteúdo em pauta, o que o sujeito em questão acredita é que alcaçuz é saboroso, não para os indivíduos que têm um certo paladar, mas para uma autoridade “superior”, cujo paladar determina definitivamente se alcaçuz é saboroso ou não.

Como a próxima seção deixará claro, se existir um argumento assim, a abordagem contextualista indexical da sentença Alcaçuz é saboroso deverá ser excluída como inadequada. Mutatis mutandis, isso vale também para a sentença O evento X tem uma probabilidade Y. A opção que resta para a abordagem semântica dessas sentenças, bem como de qualquer outra sentença que não faça alusão exclusiva a questões objetivas, é a da estratégia kaplaniana estendida: a avaliação do conteúdo em circunstâncias de avaliação que contêm, como uma de suas coordenadas, perspectivas pessoais subjetivas.[269]

Na literatura atual sobre o contextualismo e o relativismo na semântica, os exemplos paradigmáticos de sentenças que supostamente não podem ser apreciadas (assessed) de um ponto de vista estritamente objetivista incluem, entre outros:[270]

 

(9)                   Licorice is tasty.

(10)                 This is funny.

(11)                 Popocatépetl will probably erupt within ten years.

(12)                 I know that I have two dollars in my pocket.

(13)                 Joe might be in China.

(14)                 Jim ought to choose Sarah.

(15)                 Cheating on one's spouse is bad.

 

O aspecto subjetivo supostamente presente na interpretação de sentenças exemplificadas por (9) a (15) varia de caso a caso. (9) é um exemplo de juízos de gosto que são avaliados da perspectiva do paladar individual. Para juízos de quão divertida é alguma coisa, como, por exemplo, (10), a perspectiva subjetiva relevante é o senso de humor. (11), (13) e (14) expressam conteúdos que variam em valores de verdade dependendo do estado de conhecimento factual que caracteriza contingentemente o sujeito que avalia a probabilidade de um evento futuro, ou o paradeiro de Joe, ou as obrigações de Jim vis-à-vis Sarah. (12) depende de padrões epistêmicos (standards of evidence) endossados por agentes que atribuem conhecimento a outros agentes ou a si mesmos. Os padrões epistêmicos em questão variam de situação prática a situação prática: à luz de alguns padrões epistêmicos, (12) expressa uma verdade, mas não à luz de outros padrões mais rigorosos (ou mais exigentes).

Finalmente, (15) depende, no que concerne à sua verdade, de padrões morais (ou códigos morais, ou sistemas de normas de conduta) impostos ao mundo não normativo. As perspectivas que devem ser invocadas no tratamento desses casos não são igualmente subjetivas, em um sentido comum de “subjetividade.” Plausivelmente, senso de humor e paladar são traços mais idiossincráticos, característicos de sujeitos individuais. Padrões epistêmicos e padrões morais, por outro lado, têm (ou podem ter) uma natureza mais coletiva, talvez “intersubjetiva”. Contudo, o que justifica a classificação dos elementos do amplo espectro que vai do paladar e do senso de humor individual a padrões morais adotados comunitariamente como perspectivas pessoais é o fato de que esses elementos não objetivos desempenham um papel insuprimível na avaliação semântica de certos conteúdos de pensamento, na medida exata em que são, de alguma maneira, adotados por um sujeito, um usuário da linguagem, o qual eventualmente representa uma coletividade.

O importante é separar analiticamente a contribuição do mundo objetivo para a avaliação alética de certos conteúdos, por um lado, e a contribuição das perspectivas pessoais, por outro. E isso pode ser feito de acordo com duas possibilidades inicialmente abertas: segundo o modelo do contextualismo indexical ou segundo a estratégia kaplaniana descrita na seção anterior. A partir deste ponto, o raciocínio será análogo ao que levou, na consideração do caso (3) acima, à distinção entre os papéis desempenhados pela variável t, como um parâmetro contextual relevante na determinação do conteúdo de (3) João está jogando basquetebol, por um lado, ou, por outro, como uma das dimensões das circunstâncias de avaliação do conteúdo expresso por (3).

Se, para o contextualista indexical, o conteúdo expresso por (3) era, nesse sentido, sobre t, para o temporalista, o conteúdo dizia respeito a t. Analogamente, nós precisamos decidir se as construções exemplificadas por (9) a (15) são sobre a perspectiva pessoal a que elas de algum modo aludem — e, nesse caso, elas terão de ser tratadas de acordo com o paradigma contextualista indexical — ou se elas dizem respeito à perspectiva pessoal — e, nesse caso, as circunstâncias de avaliação conterão, além da coordenada de mundos possíveis, uma coordenada perspectivista extra.

A decisão não precisa ser uniforme. Talvez o balanço das vantagens e desvantagens da abordagem contextualista indexical comparada com a abordagem segundo o esquema kaplaniano seja diferente em cada um dos casos (9) a (15). Com o propósito de manter a discussão dentro de limites razoáveis, as seções seguintes serão principalmente restritas ao exame semântico de sentenças morais do tipo (16). A questão será: que forma deve adotar a semântica das sentenças morais do tipo (16), a forma contextualista indexical ou a do esquema kaplaniano?

 

(16)                 O casamento poligâmico é errado.

 

VI

 

O contextualista indexical deriva o conteúdo expresso por (16) de um princípio formulado de modo exemplar por Alex Silk:

 

Contextualism claims that [morally speaking, Sally must give to charity] is context-sensitive in the same way as sentences with paradigm context-sensitive expressions — ‘here’, ‘now’, demonstratives (‘this’, ‘that’), pronouns (‘I’, ‘she’), etc. (SILK, 2017, p. 209).

 

A tese distintiva do contextualismo indexical significa que a especificação do conteúdo proposicional associado ao proferimento assertivo de uma sentença moral envolve essencialmente um parâmetro contextual, isto é, uma perspectiva pessoal. Predicados morais são tratados como indexicais implícitos. Diferentemente do tratamento semântico de termos como ela ou aqui, onde as características contextuais relevantes são tipicamente as relações espaciais objetivas centradas no falante, diferentemente também do tratamento de termos como agora ou ontem, onde o contexto de uso é caracterizado em termos de relações temporais objetivas centradas no (instante de) tempo do proferimento, o contexto de uso invocado na interpretação de um predicado moral envolveria antes um aspecto “subjetivo,” um padrão normativo endossado pelo falante que ocupa o contexto de uso c. Em outras palavras: tratada como sentença indexical, O casamento poligâmico é errado tem seu conteúdo relativizado a um padrão normativo concebido como uma característica “não objetiva” da situação de uso.

O elemento-chave do contexto de uso de uma sentença moral qualquer pode ser visto como um sistema de normas morais, ou talvez um código moral (designado genericamente por m) endossado pelo falante que ocupa o contexto de uso. Isso leva à concepção dos contextos de uso de sentenças morais como mundos centrados, que podem ser representados por pares ordenados  contendo uma possibilidade maximamente específica de combinação das entidades mundanas objetivas (um mundo possível) e um código moral. “Transportar” a ocorrência de uma mesma sentença moral de um centro a outro alteraria o seu conteúdo, isto é, o que está sendo dito, comunicado ou informado pelo agente que profere a sentença moral em questão. Ao proferir, em um contexto específico, O casamento poligâmico é errado, o falante se refere (implicitamente) ao código moral em vigor no contexto por ele ocupado. Se o proferimento for sincero, o falante acredita, de fato, que, à luz das normas morais contextualmente relevantes, o casamento poligâmico é errado. Portanto, o objeto completo do proferimento assertivo de O casamento poligâmico é errado (e da crença correspondente) deve ser especificado assim: O casamento poligâmico é errado de acordo com o código moral  que define o contexto específico em questão. Como códigos morais já desempenham o papel de determinantes do conteúdo, eles não precisam ser acrescentados às circunstâncias nas quais o conteúdo é avaliado. Portanto, aqui, .

 

(17)                 Semântica de (16) O casamento poligâmico é errado (abordagem contextualista indexical):

 sse em w o casamento poligâmico for errado de acordo com o código moral m determinado pelo contexto de uso c.]

 

VII

 

Consideremos agora um diálogo intercontextual entre o falante mencionado no parágrafo acima e um interlocutor que ocupa um outro centro, fala e pensa em outro contexto. Suponhamos, ademais, que o interlocutor está interessado em uma discussão séria sobre o valor moral da instituição do casamento poligâmico e que ele está inclinado a pensar que não é verdade, de um ponto de vista genuinamente moral, que o casamento poligâmico seja errado. Como ele poderia expressar seu desacordo com o que o falante asseriu? Talvez assim: “Não, o casamento poligâmico não é errado.” O interlocutor poderia acrescentar: “Eu vejo que a condenação do casamento poligâmico é um costume entre os que pensam como você. Mas o costume me parece ser errado.”

O problema imediato para o contextualismo indexical na ética é que o que vale para o proferimento do falante tem de valer também para o proferimento do interlocutor. Todos os proferimentos morais são centrados e nós assumimos que há vários centros possíveis. Se o contextualismo indexical na ética for a visão semântica correta, o conteúdo informacional completo transmitido pelo interlocutor deve ser explicitado da seguinte forma: O casamento poligâmico não é errado de acordo com o código moral , onde  é o código moral característico do contexto de uso ocupado pelo interlocutor. Se a tese contextualista indexical for verdadeira, ao proferir sinceramente O casamento poligâmico não é errado, o interlocutor acredita, não exatamente que o casamento poligâmico não é errado ponto final, mas que o casamento poligâmico não é errado de acordo com . Como os códigos morais  e  são diferentes (por suposição), a asserção e a crença do falante não são necessariamente incompatíveis com a asserção e a crença correspondentes do interlocutor. E com isso desaparece uma boa razão para considerar que o falante e o interlocutor estão em desacordo. Intuitivamente, eles estão em desacordo. Mas o desacordo parece desaparecer quando o caso é considerado na perspectiva do relativismo de conteúdo implicado pelo contextualismo indexical. Na literatura semântica, esse problema é discutido sob a rubrica “o problema do desacordo perdido” (the problem of lost disagreement). De qualquer forma, os defensores do contextualismo indexical reconhecem que há um problema aqui, ao mesmo tempo que supõem que ele pode ser resolvido.[271]

Deve-se notar aqui que a modelagem da linguagem da moral sobre a base da semântica dos indexicais paradigmáticos gera um problema que simplesmente não existe na base da modelagem. Os conteúdos dos proferimentos, em contextos diferentes, de Ela é alemã, por um lado, e Ela não é alemã, por outro, não estão necessariamente em uma relação de incompatibilidade, o que é reconhecido sem problemas pelos falantes competentes. A expressão denotadora ela tem um caráter kaplaniano que independe do contexto. Todavia, o proferimento assertivo de Ela é alemã não é sobre o caráter, mas sim sobre a pessoa denotada em um contexto — a pessoa que só contingentemente será idêntica à pessoa denotada pelo uso da expressão ela em outro contexto. Da mesma forma, o falante situado em Hamburgo que afirma Aqui está frio não discorda do falante situado no Rio de Janeiro, que responde ao primeiro com o proferimento Aqui não está frio. O conteúdo negado pelo interlocutor não é o mesmo conteúdo afirmado pelo falante. Se o interlocutor respondesse Não é verdade, aqui não está frio, nós teríamos de considerar como inadequado (infelicitous) o seu uso da (primeira) negação. Os respectivos contextos de uso fixam diferentemente as extensões de aqui. Por outro lado, pelo menos à primeira vista, o uso da negação na resposta O casamento poligâmico não é errado, dada ao opositor do casamento poligâmico, é adequado (felicitous). É natural ver no enfático não do interlocutor um “marcador de desacordo” (disagreement marker) que introduz uma visão divergente sobre o valor de verdade que deve ser atribuído a um só conteúdo.

Uma opção para o defensor do contextualismo metaético concebido em analogia com a semântica dos indexicais poderia invocar o princípio de que analogias não precisam ser perfeitas. A explicação da dependência contextual característica dos termos morais não precisa reproduzir todos os detalhes estruturais da explicação contextualista dos termos que são paradigmaticamente dependentes de contexto (os indexicais). Talvez o recurso ao entorno pragmático peculiar do discurso moral permita explicar por que o uso da expressão de negação, na resposta Não é verdade, o casamento poligâmico não é errado, dada pelo interlocutor que ocupa outro contexto, é adequado (felicitous). O uso da negação marcaria adequadamente a existência de um desacordo genuíno que poderia ainda ser acomodado na perspectiva do contextualismo indexical, desde que estejamos dispostos a dirigir a atenção teórica à dimensão pragmática dos proferimentos morais.[272] De qualquer forma, não podem ser subestimadas as dificuldades envolvidas no desenvolvimento detalhado dessa opção engenhosa.

 

VIII

 

Nesse ponto do processo dialético, nós devemos investigar a possibilidade de desenvolvimento de uma versão não indexical da conexão constitutiva entre a avaliação alética de juízos morais e os códigos morais contextualmente determinados, em consonância com o que foi chamado acima de esquema kaplaniano. A abordagem não indexical mais geral foi chamada por Max Kölbel (2004) de relativismo genuíno, em oposição ao relativismo indexical, isto é, o contextualismo indexical. A versão mais radical do relativismo genuíno é conhecida hoje como relativismo de apreciação (assessment relativism). Trata-se, contudo, tanto na versão moderada quanto na versão mais radical do relativismo genuíno, de versões do relativismo alético (truth-relativism), em oposição ao relativismo de conteúdo (content-relativism) característico do contextualismo indexical. O foco da presente seção e da próxima será a posição semântica intermediária entre o contextualismo indexical e o relativismo de apreciação: o contextualismo não indexical.

Em termos gerais, o núcleo do contextualismo não indexical pode ser visto como uma teoria semântica à la Kaplan, isto é, uma teoria envolvendo circunstâncias de avaliação que incluem pelo menos uma coordenada perspectivista (por exemplo, paladares, sensos de humor, estados de conhecimento limitado, padrões epistêmicos, códigos morais). Em particular, o que opõe o contextualismo não indexical ao contextualismo indexical na ética é o papel desempenhado pela variável m, cujos valores são códigos morais contextualmente determinados. Para os contextualistas não indexicais, m é um componente ou uma coordenada extra das circunstâncias de avaliação: a coordenada que pode ser deslocada por um predicado moral interpretado como operador intensional. De acordo com os contextualistas indexicais, m é um aspecto essencial do contexto de uso: uma característica mobilizada na derivação do conteúdo a partir do contexto.

Em oposição à sua contraparte indexical, o contextualista não indexical na ética considera que os predicados morais se comportam como operadores intensionais sobre conteúdos moralmente neutros, os quais serão avaliados em circunstâncias de avaliação que têm códigos morais m como uma de suas coordenadas. Isso significa que, no caso de sentenças morais que não contêm termos genuinamente indexicais, o conteúdo será absolutamente contextualmente invariante. De qualquer forma, o conteúdo expresso por uma sentença moral será uma função constante do código moral m que caracteriza o contexto de uso. Portanto, o que opõe o contextualismo não indexical na ética ao contextualismo indexical é o papel ativo desempenhado pela variável m, ou bem na determinação da verdade em uma circunstância de avaliação, ou bem na determinação do conteúdo expresso pela ocorrência da sentença moral em um contexto de uso.

A aplicação da estratégia contextualista não indexical ao domínio ético requer

 

(i)              o tratamento dos predicados morais como operadores intensionais que permitem o deslocamento da coordenada m das circunstâncias de avaliação;

(ii)            a identificação do conteúdo moralmente neutro sobre o qual opera o suposto operador moral;

(iii)        a definição de verdade em circunstâncias de avaliação .

 

Retomemos o nosso exemplo inicial, O casamento poligâmico é errado. De acordo com a cláusula (i) acima, a forma lógica dessa sentença envolveria, em uma primeira aproximação, a expressão de um operador intensional: . No caso presente, (18) poderia ser a expressão de p.

 

(18) Existem casamentos poligâmicos.

 

Além de satisfazer a cláusula da neutralidade moral (ii), (18) reflete a interpretação intuitiva da sentença moral original como É errado que existam (ou possam existir) casamentos poligâmicos.

Uma sugestão para satisfazer a cláusula (iii) recorre à noção de mundos ideais determinados por códigos morais m.[273] Podemos conceber uma função  que mapeia os mundos possíveis em um certo pano de fundo modal (modal background) aos mundos ideais , isto é, os mundos que estão no topo de uma ordenação parcial induzida pela função  no pano de fundo modal. Os mundos ideais são aqueles mundos do pano de fundo modal que satisfazem o maior número de princípios ou normas mais fundamentais que constituem o código moral m. O pano de fundo modal, por sua vez, é relativizado a cada mundo possível w. Ele é formado pelos mundos possíveis que contêm as mesmas proposições (os mesmos “estados de coisas”) que são moralmente relevantes no mundo de partida w. Podemos conceber uma função  que associa a cada mundo possível w o pano de fundo modal correspondente. Portanto, cada mundo possível w determina via  um pano de fundo modal, ao passo que  seleciona os mundos ideais desse pano de fundo. É possível então estipular que o conteúdo de O casamento poligâmico é errado será verdadeiro em uma circunstância de avaliação  sse não existirem casamentos poligâmicos em todos os mundos  onde  são os mundos ideais no pano de fundo modal que corresponde a w.

 

(19)                 Semântica de (16) O casamento poligâmico é errado (abordagem contextualista não indexical):

 sse Não existem casamentos poligâmicos em .].]

 

IX

 

A noção de verdade em uma circunstância de avaliação mobilizada na especificação sistemática da intensão do conteúdo, seja na perspectiva do contextualismo indexical, seja na perspectiva do contextualismo não indexical, não é pragmaticamente relevante, ao contrário da noção de verdade sentencial, a qual será caracterizada a seguir. A noção de verdade em uma circunstância de avaliação não nos diz ainda em que condições nós estamos autorizados a asserir significativamente um conteúdo mediante o proferimento de uma sentença que o expressa. Aqui, é bastante defensável a tese segundo a qual nós não devemos proferir seriamente senão as sentenças que, no contexto em que nos encontramos, expressam conteúdos que são verdadeiros simpliciter, isto é, verdadeiros em um sentido diferente do sentido de ser verdadeiro em uma circunstância de avaliação. A tarefa agora é caracterizar a noção pragmaticamente relevante de verdade sentencial em termos da noção de verdade em uma circunstância de avaliação, já mobilizada na especificação sistemática da intensão do conteúdo semântico.

Uma distinção terminológica introduzida por John MacFarlane (2014) é especialmente útil no presente contexto e será adotada a partir de agora. A especificação sistemática da extensão do conteúdo associado ao uso contextualizado de sentenças da linguagem-objeto como o valor de uma função que mapeia circunstâncias de avaliação ao conjunto  esgota a semântica. A pós-semântica, por sua vez, consiste na especificação das condições de aplicabilidade da noção de verdade sentencial sobre a base da semântica.

No trabalho original de Kaplan, a definição pós-semântica de verdade sentencial é formulada assim:

If c is a context, then an occurrence of Φ in c is true iff the content expressed by Φ in this context is true when evaluated with respect to the circumstance of the context. (KAPLAN, 1989, p. 522).

 

O que Kaplan quer dizer com a circunstância do contexto pode ser ilustrado se considerarmos o caso particular de uma sentença cuja interpretação semântica requer a presença de uma coordenada temporal t entre as circunstâncias de avaliação. A pós-semântica de Kaplan estipula que a ocorrência dessa sentença será verdadeira em um contexto de uso  sse o conteúdo expresso por ela nesse contexto for verdadeiro na circunstância de avaliação especial , onde  é o mundo do contexto  e  é o tempo de proferimento no contexto . Isso pode ser facilmente generalizado para outras sentenças que requerem, para sua interpretação, a presença, nas circunstâncias de avaliação, de uma coordenada extra, isto é, uma coordenada diferente da coordenada obrigatória w. Em particular, a pós-semântica à la Kaplan de uma sentença moral dirá que seu uso no mundo  por um agente que endossa o código moral  será verdadeiro, sse o conteúdo expresso pela sentença moral nesse contexto for verdadeiro na circunstância de avaliação , isto é, na circunstância especial que Kaplan chamaria de a circunstância do contexto.

Se, na semântica temporalista de Kaplan, a forma genérica das sequências que representam os contextos de uso é , no quadro semântico do contextualismo não indexical, os contextos de uso são representados genericamente por . A substituição de p, em cada caso, indica a característica do contexto de uso (a perspectiva pessoal) que é relevante para a avaliação semântica das sentenças perspectivistas da linguagem-objeto, isto é, aquelas sentenças exemplificadas por (9)–(15) que não podem ser interpretadas de um ponto de vista estritamente objetivista. p pode ser um padrão epistêmico e (envolvido na interpretação de atribuições de conhecimento), um padrão estético b (envolvido na interpretação de sentenças estéticas), um código moral m (requerido para a interpretação de sentenças morais), e assim por diante.

É como ocupante de um contexto adequadamente caracterizado por um valor da variável p que o agente profere uma sentença Φ do tipo (9)-(15), gerando o input da função-caráter cujo output é o conteúdo da ocorrência contextualizada de Φ. A função-intensão aplicada ao conteúdo gera a extensão correspondente (1 ou 0) em diferentes circunstâncias de avaliação. No quadro do contextualismo não indexical, as circunstâncias de avaliação terão como coordenada extra valores específicos da mesma perspectiva pessoal  mobilizada na caracterização dos contextos de uso. Portanto,  é a forma mais geral das sequências que representam as circunstâncias de avaliação e os contextos de uso.[274]

Ainda que sejam representados da mesma forma, contextos de uso e circunstâncias de avaliação não podem ser confundidos. Uma sentença Φ do tipo (9)-(15) adquire conteúdo, quando proferida por um falante que ocupa um contexto de uso caracterizado por um valor específico de p. E o conteúdo será avaliado em circunstâncias que envolvem valores específicos da mesma perspectiva pessoal p. Se a sentença Φ for moral, por exemplo, o conteúdo associado ao uso de Φ em contextos de uso representados genericamente pela sequência  será avaliado em circunstâncias cuja representação geral também é

A sugestão decisiva que se impõe agora consiste em associar a cada circunstância de avaliação um contexto de apreciação (context of assessment), a partir do qual um agente aprecia (assesses) a ocorrência da sentença Φ em um contexto de uso c. A notação básica é a seguinte:

 

                      contexto de uso

                   circunstância de avaliação

                     contexto de apreciação

 

Como um contexto de apreciação,  é um mundo centrado representado por uma instância da sequência  Mas o contexto de apreciação  não pode ser confundido com a circunstância de avaliação ca que lhe corresponde, mesmo que ambos sejam representados da mesma maneira. A conexão entre os dois é a seguinte. O contexto de apreciação inicializa a coordenada extra da circunstância de avaliação correspondente, isto é, fixa o valor da variável p que define a circunstância de avaliação correspondente. A inicialização é tal que a coordenada extra da circunstância de avaliação correspondente assume o mesmo valor que a perspectiva p assume no contexto de apreciação a partir do qual um agente aprecia (assesses) usos de sentenças.[275] Em termos gerais, a relação entre a apreciação do uso de uma sentença perspectivista Φ a partir do contexto de apreciação , por um lado, e, por outro, a avaliação, na circunstância de avaliação  que corresponde a , do conteúdo associado a Φ tem a seguinte forma:

 

(20)                 Apreciação e Avaliação:


A ocorrência de uma sentença perspectivista Φ em um contexto de uso c será apreciada como verdadeira a partir do contexto de apreciação
 sse o conteúdo expresso por Φ no contexto de uso c for avaliado como verdadeiro na circunstância de avaliação  inicializada pelo contexto .[276]

 

Evidentemente, a postulação de um contexto de apreciação e de um agente que o ocupa não faz muito sentido, quando a coordenada extra das circunstâncias de avaliação representa uma característica “objetiva” da situação. Por exemplo, na abordagem temporalista, ninguém precisa postular um agente apreciador (um “inicializador” de t) para decidir se o conteúdo expresso por uma sentença flexionada temporalmente deve ser verdadeiro ou falso em uma circunstância de avaliação  Portanto, a relevância da noção de contexto de apreciação deve ser restrita ao tratamento dos casos especiais cujas circunstâncias de avaliação envolvem uma perspectiva: um ponto de vista subjetivo, pessoal, que guia normativamente o agente apreciador na apreciação de usos de sentenças.[277] No caso que nos interessa mais de perto, a coordenada extra das circunstâncias de avaliação requeridas para o tratamento de sentenças morais como O casamento poligâmico é errado pode ser vista como inicializada por um sujeito apreciador que endossa um código moral específico.

O contextualismo não indexical privilegia (da mesma forma que Kaplan) uma circunstância especial de avaliação (a circunstância do contexto) na caracterização pós-semântica da noção de verdade sentencial. Isso quer dizer que a verdade da ocorrência de uma sentença perspectivista em um contexto de uso emerge na pós-semântica do contextualismo não indexical como a avaliação ao longo da “diagonal,” segundo registrado em (21).

 

(21)                 Verdade sentencial relativizada ao contexto de uso (contextualismo não indexical):

A ocorrência de uma sentença perspectivista Φ em um contexto de uso c será verdadeira, sse o conteúdo expresso por Φ em  for verdadeiro na circunstância de avaliação privilegiada , onde  é o mundo do contexto  e  é o valor da coordenada perspectivista p no contexto .

 

De acordo com essa definição do predicado de verdade sentencial, o contexto de uso fixa o valor dos parâmetros relevantes dos dois contextos envolvidos. Mas a definição do predicado sentencial de verdade anula qualquer contribuição independente do contexto de apreciação. A verdade sentencial no contextualismo não indexical é determinada, em última instância, somente pelo contexto de uso. É por essa razão que o contextualismo não indexical é visto como uma forma de contextualismo, ou uma versão moderada do relativismo semântico.

 

X

 

Até aqui, os dados linguísticos considerados giraram em torno do proferimento da sentença O casamento poligâmico é errado, por parte de um agente A, e do proferimento da sentença O casamento poligâmico não é errado, por parte de um agente B. O agente A ocupa o contexto de uso , caracterizado pelo código moral , ao passo que  é o código moral do contexto de uso  ocupado pelo agente B. Podemos assumir que o mundo de  é o mesmo de . Em oposição à explicação proposta pelo contextualista indexical (§VII), a explicação contextualista não indexical desses dados não precisa empreender um detour especial pela pragmática distintiva dos termos morais, a fim de reconhecer o que já era intuitivamente claro: os proferimentos de A e de B estão em desacordo. E eles estão em desacordo porque os respectivos conteúdos são logicamente incompatíveis.

Isso quer dizer que, na explicação contextualista não indexical, o código moral que define o contexto de uso de uma sentença determina o valor de verdade da ocorrência da sentença em um contexto de uso, mas não o seu conteúdo. O resultado é que a proposição afirmada por A é idêntica à proposição negada por B. A diferença entre A e B se reflete na diferente avaliação alética das proposições que eles expressam: o que B pensa, em oposição direta ao que é afirmado/pensado por A, é que não é verdade que o casamento poligâmico seja errado. Isso sugere que o contextualismo não indexical fornece uma explicação de alguns dados linguísticos do desacordo perspectivista, a qual, por ser mais simples e econômica do que as explicações propostas pelos defensores do contextualismo indexical, é pelo menos potencialmente melhor do que estas.

Recentemente, MacFarlane tem argumentado que a consideração cuidadosa de outros dados linguísticos, além dos que foram mencionados na última seção, requer a radicalização da abordagem relativista representada pelo contextualismo não indexical. De um ponto de vista estritamente semântico, isto é, do ponto de vista da definição de verdade em circunstâncias de avaliação, não há diferenças entre a forma mais radical do relativismo semântico que será considerado aqui (o relativismo de apreciação) e a forma mais moderada (o contextualismo não indexical). O aspecto responsável pela radicalização aparece na concepção alternativa da conexão entre a semântica e a pragmática, isto é, na pós-semântica. Para o contextualista não indexical, a conexão relevante está refletida na definição que relativiza a verdade sentencial exclusivamente ao contexto de uso. Como será desenvolvido na presente seção, o relativista radical propõe a substituição dessa noção de verdade sentencial por uma alternativa que relativiza a verdade a contextos de apreciação.

A relevância pragmática de qualquer noção de verdade sentencial deriva de sua relação com as regras constitutivas do jogo de linguagem da asserção: as chamadas normas da asserção, as quais conectam as sentenças verdadeiras em uma linguagem objeto L com seu uso assertivo apropriado.[278] A chamada regra da verdade é comumente vista como a norma mais fundamental da asserção. Ela é constitutiva, no sentido em que qualquer ato de fala que viole a regra da verdade falha como asserção. No caso especial do uso de sentenças absolutamente independentes de contexto, a regra da verdade estabelece que um agente está autorizado a asserir que p somente se p for verdadeiro — no sentido de verdade simpliciter. Uma versão mais geral da regra da verdade deve ser capaz de cobrir o uso assertivo de sentenças cujo conteúdo depende do contexto:

 

(22)                 Regra da verdade:

Um agente está autorizado a proferir assertivamente uma sentença Φ em um contexto
, somente se Φ expressar uma verdade nesse contexto.

 

A operação conjunta da regra da verdade e da noção de verdade que está no núcleo da pós-semântica do contextualismo não indexical resulta na determinação normativa segundo a qual a condição necessária para que o uso assertivo de uma sentença declarativa em um contexto  esteja correto é a apreciação como verdadeira desse uso, a partir do contexto de apreciação privilegiado pelo contexto de uso ).

O agente apreciador que ocupa esse contexto especial pode ser visto como a contraparte racional do falante que profere a sentença em questão, isto é, seu self ideal, cujos juízos de apreciação são guiados exclusivamente pela perspectiva pessoal que define também o contexto de uso ocupado pelo falante real. O falante real, ao contrário de sua contraparte ideal, pode ser guiado por outras normas que não a da verdade, por exemplo, normas de polidez, de relevância para o assunto discutido etc. Como no contexto de apreciação especial invocado na definição de verdade proposta pelo contextualista não indexical o valor do parâmetro relevante é idêntico ao valor que especifica o contexto de uso, somente este adquire um sentido normativo próprio.

Se existir uma noção de verdade sentencial que, ao contrário da noção proposta pelo contextualista não indexical, permita atribuir um papel ativo e independente ao contexto de apreciação , também e sobretudo nos casos em que , sua relevância pragmática não pode ser explicada somente com base na regra da verdade. Partindo dessa constatação negativa, a estratégia do relativista radical pode ser caracterizada em dois pontos. Em primeiro lugar, o relativista radical dirige a atenção para alguns dados linguísticos ignorados pelo contextualista não indexical. Tais dados sugerem a existência de uma nova regra constitutiva da nossa prática da asserção, além da regra da verdade. Em segundo lugar, a consideração sobre a forma que deve tomar a nova regra revela os limites da noção de verdade sentencial conectada exclusivamente ao contexto de uso, ao mesmo tempo que aponta para a formulação de uma noção de verdade relativizada a contextos de apreciação.

A natureza da regra constitutiva que o relativista radical tem em mente pode ser percebida mais claramente se nós introduzirmos uma modificação no nosso exemplo inicial. Nós podemos conceber que o agente A que profere sinceramente no contexto de uso  a sentença O casamento poligâmico é errado é o mesmo agente que, mais tarde, profere sinceramente no contexto  a sentença O casamento poligâmico não é errado. Ou seja, o agente adota, com o tempo, uma perspectiva normativa diferente, diametralmente oposta à que o guiava no passado. Podemos assumir aqui que o agente não comete erros de raciocínio ou de ignorância do que o seu código moral verdadeiramente exige, quando profere inicialmente O casamento poligâmico é errado, e tampouco comete esse tipo de erro, quando profere, mais tarde, O casamento poligâmico não é errado. Também é razoável assumir que, qualquer que seja nossa concepção definitiva de verdade sentencial, ela deve preservar, como um caso limite, a noção de verdade defendida pelo contextualista não indexical. Nessas condições, a apreciação, a partir do contexto de apreciação privilegiado pelo contexto de uso, do uso contextualizado de uma sentença perspectivista decide sobre sua verdade ou falsidade. Portanto, mesmo o agente situado no contexto  reconhece (ou tem de reconhecer) que, usado no contexto  e apreciado a partir do contexto de apreciação  o proferimento de O casamento poligâmico é errado é absolutamente correto. Digamos que, do ponto de vista do agente no passado, o proferimento original de O casamento poligâmico é errado é verídico. Por outro lado, o que o agente no presente reconhece é que do seu ponto de vista atual o proferimento original de O casamento poligâmico é errado é inverídico. A menos que estejamos prontos a conceber o valor de verdade do uso de uma sentença perspectivista como essencialmente dependente dos múltiplos contextos de apreciação, tudo o que podemos garantir até aqui é que o proferimento original de O casamento poligâmico é errado é apreciado como verídico pelo agente, antes da mudança de perspectiva, mas apreciado como inverídico pelo mesmo agente, depois da mudança de perspectiva.

O que é razoável esperar do agente que não pode mais apreciar como verídico o que ele mesmo disse no passado, mas tampouco pode censurar de um ponto de vista epistemológico ou metodológico a asserção feita no passado, é que ele se retrate (retract), isto é, que ele retire a asserção feita no passado e, com isso, suspenda os comprometimentos anteriormente incorridos. A expectativa de que o agente se retrate reflete o reconhecimento tácito de um componente prescritivo/normativo na prática da asserção que vai além da regra da verdade. A retratação (retraction) da asserção passada não parece ser opcional. Aparentemente, se quiser manter sua integridade agencial em uma prática governada por regras constitutivas, o agente que passou por uma mudança na perspectiva pessoal, mobilizada na apreciação de seus atos de fala, não pode deixar de revogar agora as consequências normativas do ato de fala realizado no passado, o que ele faz ao retirar sua asserção original. Isso sugere a existência de uma regra constitutiva da prática linguística, além da regra da verdade.

 

(23)                 Regra da retratação:

Um agente em um contexto
 está obrigado a retirar sua própria asserção feita corretamente mediante o uso de uma sentença Φ em um contexto  se o conteúdo expresso por Φ em  for falso quando avaliado na circunstância .

 

A retratação é um tipo de ato de fala que tem como objeto outro ato de fala: um ato de fala de segunda ordem. É um ato de fala que alguém realiza dizendo, por exemplo, “Eu retiro minha asserção/minha pergunta/minha ordem/minha oferta etc.).” Com isso, o agente suspende, a partir do instante de tempo da retratação, as implicações normativas incorridas pelo ato de fala anterior: a obrigação autoimposta de justificar sua asserção, quando ela for questionada, a obrigação imposta ao interlocutor de responder à sua pergunta, de obedecer à sua ordem, a obrigação de fazer valer sua oferta, de cumprir sua palavra etc. A rejeição é também um ato de fala de segunda ordem, com a diferença que o objeto da rejeição é um ato de fala realizado por outro agente. “Eu rejeito sua asserção/sua pergunta/sua ordem/sua oferta... e assim revogo as implicações normativas correspondentes.”

O ponto importante é que o ato de fala que funciona como objeto da retratação ou da rejeição ocorre em um contexto diferente do contexto a partir do qual ele é retirado ou rejeitado. Casos de retratação são casos que envolvem um agente e dois contextos: a diferença entre o primeiro e o segundo contexto deve ser interpretada como o fato de que o agente era guiado, em seus juízos, por uma perspectiva particular , realizando, no primeiro contexto, o ato de fala original, mas passou posteriormente a ocupar outro contexto definido pela perspectiva . Situado no novo contexto, o agente está obrigado a se retratar, a retirar o ato de fala original. Nos casos de dois agentes e dois contextos, o esquema é menos exigente. O agente situado no segundo contexto pode vir a rejeitar o ato de fala realizado pelo agente do primeiro contexto. A ênfase em pode é importante. A retratação é obrigatória; a rejeição é opcional.

Acoplada à regra da verdade (22), a noção relativista moderada de verdade relativizada ao contexto de uso (21) gera resultados normativos corretos: a condição necessária para que um agente possa proferir assertivamente Φ em um contexto  é que o conteúdo expresso por Φ nesse contexto seja verdadeiro na circunstância de avaliação privilegiada . Contudo, a noção relativista moderada de verdade não tem implicações sobre a obrigatoriedade da retratação ou a permissibilidade da rejeição. Em um certo sentido, o problema é gerado pelo fato de que a noção relativista moderada só abre espaço para a influência do contexto de uso. Somente uma noção de verdade sentencial determinada por contextos de apreciação poderia gerar a determinação normativa mencionada na regra da retratação (23). A sugestão do relativista de apreciação é a seguinte:

 

(24)                      Verdade sentencial relativizada a contextos de apreciação (relativismo de apreciação):

 

Uma sentença perspectivista Φ será verdadeira quando usada em um contexto  e apreciada a partir de um contexto de apreciação  sse o conteúdo expresso por Φ no contexto  for verdadeiro, na circunstância de avaliação  inicializada pelo contexto .

 

A relevância pragmática dessa noção de verdade relativizada a contextos de apreciação deriva do fato de que ela estabelece as condições para a realização apropriada do ato de fala da retratação. Ela permite fechar o hiato entre a veridicidade de um proferimento, por um lado, e a apreciação desse proferimento a partir de qualquer um dos contextos de apreciação não privilegiados pelo contexto de uso, por outro. Do ponto de vista do agente situado em , o proferimento de uma sentença perspectivista Φ em  pode, por exemplo, ser apreciado como inverídico, embora ele seja corretamente apreciado como verídico do ponto de vista do agente situado em . Por isso mesmo, o relativista radical dirá, o proferimento da sentença perspectivista Φ em  apreciado pelo agente em  é inverídico. Isso explica por que o agente situado em  pode estar obrigado a retrair o ato de fala que ele mesmo tinha realizado em , sob pena de irracionalidade. O agente não pode endossar proferimentos inverídicos do seu ponto de vista atual.

Deve-se notar que a noção de verdade relativizada a contextos de apreciação não requer que o agente situado em  seja também o agente situado em . Se o proferimento de uma sentença perspectivista por um agente em  se revelar como inverídico, por não poder ser apreciado como verídico pelo agente em , o proferimento não pode ser endossado pelo segundo agente. Nesse caso, o segundo agente pode, mas não precisa, rejeitar o proferimento do primeiro agente, pois a combinação da atitude de não endosso com a recusa da rejeição não torna o segundo agente irracional.

A implicação normativa da noção de verdade relativizada a contextos de apreciação é que a ocorrência de uma sentença perspectivista Φ em um contexto de uso , mas apreciada a partir de um contexto de apreciação , será verdadeira, sse o conteúdo expresso por Φ no contexto original for verdadeiro na circunstância de avaliação cuja coordenada extra é inicializada pelo agente avaliador que ocupa , independentemente da apreciação de Φ como verdadeira ou falsa segundo a perspectiva do avaliador que ocupa o contexto de avaliação privilegiado pelo contexto original.[279] Com isso, o segundo contexto, no qual são retirados ou rejeitados os atos de fala realizados no primeiro contexto — o contexto que não desempenha papel algum na definição de verdade proposta pelo contextualista não indexical — adquire relevância normativa.

O núcleo semântico comum ao relativismo de apreciação e o contextualismo não indexical é a definição de verdade em circunstâncias de avaliação envolvendo uma coordenada perspectivista. A esse núcleo o contextualista não indexical acopla, no nível pós-semântico, a definição de um predicado de verdade aplicável ao uso de sentenças da linguagem objeto: a especificação das condições necessárias e suficientes para que seja verdadeira a ocorrência de uma sentença Φ em um contexto. Isso representa uma forma moderada de relativismo, no sentido em que, uma vez fixado o contexto, a ocorrência da sentença Φ que satisfaz as condições especificadas pelo contextualismo não indexical será absolutamente verdadeira. Se o que foi exposto na presente seção estiver correto, o preço a pagar por essa solução “teoricamente mais conservadora” (Brogaard) é a incapacidade de dar conta dos dados linguísticos da retratação e da rejeição. Na melhor das hipóteses, o agente descrito pelo relativista moderado pode classificar os proferimentos feitos em um contexto diferente do seu próprio contexto (ou do seu novo contexto) como verídicos ou inverídicos à luz da perspectiva determinante do contexto diferente do seu (ou à luz de sua antiga perspectiva), mas não como verídicos ou inverídicos simpliciter.

Tendo em vista exatamente os jogos de linguagem assertivos nos quais os fenômenos da retratação desempenham um papel central, o relativista radical mantém o núcleo semântico do contextualismo não indexical, mas relativiza a noção de verdade sentencial essencialmente a contextos de apreciação, que podem divergir do contexto de uso original. Mesmo depois de fixado o contexto de uso, a verdade da ocorrência de uma sentença passa a depender ainda da apreciação por parte de agentes situados em outros contextos. No quadro conceitual do contextualismo não indexical, a verdade da ocorrência de uma sentença perspectivista Φ em um contexto de uso  é fixada de uma vez por todas pela avaliação do conteúdo correspondente na circunstância do contexto. Do ponto de vista do relativismo radical, há sempre mais do que um contexto de possível apreciação da ocorrência original da sentença, o que leva à atribuição variável de verdade sentencial. Por mais contraintuitiva que possa parecer à primeira vista, a definição de verdade do relativismo radical foi, por assim dizer, confeccionada sob medida para dar conta dos dados da retratação, que o contextualista não indexical não levou em conta.

 

XI

 

As principais opções, expostas até aqui, para a abordagem de sentenças perspectivistas são o contextualismo indexical, o contextualismo não indexical e o relativismo de apreciação. Embora a questão exija mais do que o que foi apresentado, na seção VII, sobre a abordagem contextualista indexical dos fenômenos do desacordo, é bastante viável o diagnóstico crítico segundo o qual o problema do desacordo perdido é “[...] o calcanhar de Aquiles do contextualismo indexical” (MACFARLANE, 2014, p. 118). E se esse diagnóstico for aceito, restam como opções exploráveis o contextualismo não indexical e o relativismo de apreciação.

Deve-se notar que, embora simpáticos à ideia do relativismo alético (truth-relativism), em oposição ao relativismo de conteúdo, alguns semanticistas (entre os autodenominados relativistas) não reconhecem ainda a existência de boas razões para adotar uma atitude radical em detrimento da moderação.[280] Para esses relativistas, também na explicação do que ocorre na nossa prática linguística comum, menos é mais. A conclusão de Berit Brogaard (2008) é representativa dessa tendência à moderação. (De acordo com um uso já bem estabelecido na discussão semântica, Brogaard se refere, com o termo relativismo, exclusivamente ao relativismo de apreciação.)

Moral relativism provides a compelling explanation of linguistic data involving ordinary moral expressions like ‘right’ and ‘wrong.’ But it is a very radical view. Because relativism relativizes sentence truth to contexts of assessment, it forces us to revise standard linguistic theory. […] However, I have argued that a version of nonindexical contextualism can account for the same data as relativism without relativizing sentence truth to contexts of assessment. […] Because it is theoretically more conservative, nonindexical contextualism is preferable to relativism on methodological grounds. (BROGAARD, 2008, p. 408-409).

 

Contudo, no corpo do trabalho cuja conclusão é a passagem citada acima, Brogaard não mostra como a sua versão preferida do contextualismo não indexical poderia dar conta dos dados linguísticos da retratação. Brogaard parece não reconhecer a existência desses dados. A omissão pode ser grave. Em primeiro lugar, como até mesmo os críticos do relativismo radical Herman Cappelen e John Hawthorne reconhecem, “[...] retraction [is] perfectly natural, given suitable background facts.” (CAPPELEN; HAWTHORNE, 2009, p. 108). Em segundo lugar, a retratação parece ser um lance obrigatório em pelo menos alguns setores da linguagem vernacular cujo funcionamento o semanticista almeja explicar, por exemplo, o setor da linguagem da moral. Impossibilitado de apresentar o seu proferimento no passado (O casamento poligâmico é errado) como resultado de um erro cometido no passado, o agente imaginado na seção anterior parece não ter outra opção racional que não a de se retratar, de desfazer, a partir de agora, as consequências normativas do seu ato de fala original. Não é razoável ver como assentada em bases metodológicas mais firmes uma teoria que não diz coisa alguma sobre essas manifestações aparentemente naturais e racionalmente obrigatórias da prática linguística comum.

O ponto crucial aqui se torna mais claro, se considerarmos o possível desenvolvimento do debate intercontextual sobre o valor ou a correção moral do casamento poligâmico. Suponha que, além de afirmar (e reafirmar) o que pensam sobre o casamento poligâmico e negar obstinadamente o que pensa o seu interlocutor, os agentes resolvam fazer uso da possibilidade de rejeitar reciprocamente seus proferimentos iniciais: “Mesmo reconhecendo que o que você diz é correto/verdadeiro, à luz da sua perspectiva, eu rejeito o seu proferimento.” A possibilidade da rejeição, nesse sentido especial, parece ser natural no jogo de linguagem da moral. Isso pode transformar qualitativamente o debate. Os participantes do debate podem sentir-se racionalmente motivados a conduzir a conversação até um ponto ideal de convergência nas visões normativas inicialmente conflitantes. Isso significa que os agentes podem agora almejar conduzir o debate até o ponto ideal em que a outra parte se retrate.

O ponto é enfaticamente reconhecido por Karl Schafer (2012, p. 611) na sua caracterização do desacordo moral: “So long as the conversation continues, the parties will generally regard themselves as being under some obligation to try to bring it about that they converge upon a shared view of the issues under dispute.” Schafer reconhece imediatamente que a convergência intencionada aqui requer que as partes envolvidas manifestem algo assim como a retratação de suas asserções prévias.

Suponha, portanto, que os agentes imaginados por nós rejeitem reciprocamente os proferimentos conflitantes sobre a correção do casamento poligâmico e almejem idealmente a retratação por parte do respectivo interlocutor. Com isso se abre uma nova possibilidade, a saber, a possibilidade de questionar as razões que os debatedores têm (ou julgam ter) para rejeitar os proferimentos conflitantes sobre o casamento poligâmico. Como as razões para a rejeição repousam, em última instância, nos códigos morais determinantes dos contextos de uso, o foco do debate é deslocado dos juízos diretamente sobre o casamento poligâmico para as perspectivas normativas nas quais esses juízos são avançados. Se estiverem realmente interessados em um debate sério, nossos debatedores poderão empenhar-se na tentativa de articular (ou rearticular) construtivamente seus padrões normativos, o que pode levar, entre outras coisas, (i) ao reconhecimento de que os debatedores podem ter baseado suas convicções mais básicas em argumentos não convincentes, (ii) a uma percepção mais clara do valor das nossas atitudes e reações vitais a propósito de muitos aspectos da prática da união poligâmica, (iii) a uma visão mais realista das eventuais consequências pessoais e sociais da institucionalização da poligamia etc. — isto é, a uma compreensão mais reflexiva do status moral da união poligâmica. A constatação importante para os propósitos do presente trabalho é que a descrição acima faz referência às possibilidades discursivas da rejeição e da retratação, que são facilmente acomodáveis pelo relativista de apreciação, mas aparentemente não pelo contextualista não indexical.

Essa descrição simplificada do debate sobre a moralidade do casamento poligâmico não pressupõe indevidamente o que ela almeja deixar claro. O uso do vocabulário da rejeição e da retratação na descrição do debate moral não é induzido pela preferência teórica que deveria ser justificada via essa descrição. A ideia básica, independentemente plausível, é que a obrigação de procurar atingir um consenso racional e, consequentemente, a obrigação de buscar a retratação das asserções prévias questionadas no decorrer da conversação é uma característica essencial do debate moral. Esse é o ponto reconhecido por Schafer e que merece ser endossado por nós.

Como foi explicada na seção X, a obrigação da retratação tem uma conotação moral. Ela é requerida pela manutenção da integridade agencial de quem experimenta uma mudança na sua orientação normativa e almeja ainda permanecer no debate. O agente que passa por uma mudança na perspectiva pessoal induzida no âmbito de uma prática dialógica, tem de revogar as consequências normativas dos atos de fala realizados no passado, sob pena de perder o respeito e a consideração especial por parte dos seus parceiros da conversação. Isso se aplica com mais força, se o objeto do debate for uma questão moral.

O que foi dito até aqui nos permite colocar em perspectiva os resultados críticos de alguns trabalhos recentes cuidadosamente comentados por Teresa Marques. Em “Retractions,” Marques (2018) almeja revelar a falsidade das “intuições sobre a retratação” invocadas pelos defensores do relativismo de apreciação. As pesquisas empíricas revistas por Marques têm seu foco no uso de modais epistêmicos (Joe might be in Boston) e no uso de predicados estéticos e de gosto pessoal (Pocoyo is funny). Elas revelam que, de fato, os falantes reais não se sentem obrigados a retirar uma asserção feita mediante o uso de uma sentença Φ, mesmo quando eles reconhecem que não podem mais usar Φ no novo contexto. Eis um exemplo explorado por Marques:

Von Fintel and Gillies discuss several might claims where the prediction that one must retract fails. Consider for instance, that A asserts (1) and later finds that the kids finished the ice cream.

1. There might be ice cream in the freezer.

According to the relativist, when it is revealed that there is no ice cream left, the asserter of (1) ought to retract with something like “Oh, I guess I was wrong” or “I take that back, there’s no ice cream left then”.

The point von Fintel and Gillies make […], however, is that not all mights are retracted in the face of new evidence. Often, speakers resist an invitation to retract. A speaker could resist thus:

6. Look, I didn’t say there is ice cream in the freezer; I said there might be. Maybe the kids finished it last night. Sheesh. (MARQUES, 2018, p. 3345).

 

A lição que Marques retira de exemplos desse tipo é que o falante que se nega a retirar sua asserção prévia não deve eo ipso ser caracterizado como irracional. Com isso cairia, segundo Marques, a oportunidade de teorização semântica de certas construções linguísticas nos moldes do relativismo de apreciação:

This paper argued that there is no obligation to retract true past epistemic modal or personal taste assertions. There are enough resources available to offer an explanation of the permissibility of retractions in these central cases without the need to revise semantics. We know, moreover, that a constitutive rule for retractions that imposed an obligation to retract on speakers would commit them to either insincerity or irrationality. This undermines the point of assessment-relativism. (MARQUES, 2018, p. 3357).

 

O núcleo empírico na base desse comentário crítico pode ser concedido, desde que se atente às restrições nem sempre explícitas no trabalho de Marques. O que seu trabalho mostra é que seria injustificado ver no comportamento verbal dos agentes que se recusam a retirar suas asserções feitas mediante o uso de modais epistêmicos ou o uso de predicados de gosto pessoal meros erros de performance, que não precisam ser considerados por uma teoria do significado que almeja reconstruir a nossa competência linguística. Contudo, não se pode inferir daí, como Marques parece sugerir, que as “intuições sobre a retratação” são itens descartáveis de uma abordagem teórica errada: que é ilusória a obrigatoriedade da retratação postulada pelo relativista de apreciação. Por exemplo, continua sendo bastante plausível, a despeito dos casos nos quais se baseia o argumento desenvolvido por Marques, que há, no uso da linguagem da moral em situações de debate e desacordo racionais, fenômenos de retratação obrigatória que devem ser adequadamente acomodados por uma teoria semântica. Aqui, o contextualismo não indexical encontra seus limites.

Evidentemente, o diagnóstico negativo das abordagens semânticas que permanecem confinadas aos limites do contextualismo não indexical só se aplica às tentativas de explicação do uso linguístico marcado pelos fenômenos da retratação. Para explicar os setores da prática linguística onde a retratação é mais permissível do que obrigatória ou onde ela desempenha um papel marginal, não é necessário estender a noção de verdade sentencial até o ponto em que a verdade de um proferimento em um contexto de uso passe a depender essencialmente da perspectiva de apreciadores que ocupam outros contextos. O presente trabalho procurou mostrar, contra os contextualistas indexicais e os contextualistas não indexicais, que o tratamento adequado do uso de sentenças morais requer o endosso do ponto de vista relativista radical.

 

Contextualism and Relativism in Ethics

 

Abstract: According to a prominent approach in contemporary formal semantics, the truth of moral assertions depends on a normative perspective imposed on the facts of the world. The implementation of this approach known as indexical contextualism treats the dependence of moral truth on the corresponding moral perspective in analogy with the contextual dependence characteristic of sentences containing indexical terms. Alternatively, the moral perspective is seen as configuring the circumstances of evaluation in which the content expressed by the occurrence of a moral sentence is evaluated as true or false. The moderate version of this alternative view (non-indexical contextualism) considers that the truth of the occurrence of a moral sentence in a context of use is determined by the evaluation of its content in “the circumstance of the context”: the circumstance of evaluation represented by the same indexed set that represents the context of use. The radical version (assessment relativism), in turn, makes the truth of the occurrence of a moral sentence in a context depend essentially on the value of the normative standard in another context, from which the original utterance is assessed. Taking the judgment on the moral status of polygamous marriage as an illustration, the present work examines the competing merits of contextualist and relativist accounts of the use of moral language, especially in situations of disagreement and debate. The paper argues that, while indexical contextualism coupled with adequate pragmatic considerations can explain some relevant disagreement data, the alternative explanation of these data given by non-indexical contextualism is preferable, because it is simpler and more economical. It is also argued that relativism of assessment is better situated than non-indexical contextualism to explain the relevant phenomena of obligatory retraction and therefore to accommodate some discursive possibilities that play a central role in moral debates.

 

Keywords: Moral truth. Moral disagreement. Indexical contextualism. Nonindexical contextualism. Assessment relativism.

 

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Recebido: 12/09/2022

Aprovado: 14/11/2023


 

Comments on “Contextualismo e relativismo na ética”: Relativism in ethics

 

André Fuhrmann[281]

 

Reference of the commented article: MENDONÇA, W. Contextualismo e relativismo na ética. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 627-668, 2023.

 

It is nearly a commonplace that the truth of moral assessments is relative. Only nearly so, because there is the respectable view that moral assessments do not belong to the kinds of speech acts that can be evaluated for truth or falsity. But there have been attempts – notably by Simon Blackburn and his followers – to make even that view compatible with the commonplace. What makes the statement a commonplace is, of course, a hidden quantification: The truth of moral assessments is relative in some sense. As soon as we start spelling out possible senses of “relative”, we obtain a wide range of claims. Some of them are obviously true. For a start, whether “Polygamy is wrong” is true or false, depends on what we mean by “polygamy”. Further, once meanings are fixed, it also depends on what the consequences of polygamy are (at least for consequentialists in the widest possible sense). There certainly are worlds in which polygamy only spells bliss and there are worlds in which polygamy is desastrous in every single case. So, whether polygamy is actually wrong depends on how things are. These are commonly understood dependencies.

As everyone else, philosophers procure arguments that have commonplaces as premisses but not as conclusions (despite occasional evidence to the contrary). If we took the thesis that truth in morals is relative as supported by the kind of dependencies mentioned above, then that thesis would be just as interesting as, say, the thesis that the reference of the first person pronoun “I” is relative to who is speaking – not the kind of thesis in need of an argument. We need an interestingly contentious and reasonably clear sense in which the truth of moral assessments is relative.

A paradigm case of substantial relativism is its most vulgar version: In morals “anything goes”. According to this view, morals is even worse than taste. Taste has at least a physiological basis that makes people “unanimously” spit when drinking methylated spirits. But in morals there are no arguments that could command unanimous consent; one is at liberty to take any stance whatsoever. The liberty is only more or less tempered by custom and compassion. So moral assessment is tenuously relative to social groups and genetically programmed sentiments. There is no sense in the notion that your group or genes may misguide you.

Repugnant as vulgar relativism may be, there is a grain of truth in it. Moral judgements essentially depend on a moral standard. But how exactly does such a standard come into play when asking about the truth of a moral claim? What is the nature of the dependency? It turns out that there are theoretical options here with clearly differing consequences. This is the topic of Wilson Mendonça’s contribution to this volume. How does a moral standard enter into an evaluation for truth? In particular, is there a sustainable answer to the question which would support the claim that some moral judgement is true relative to one standard and false relative to another? If there is, then the relativist claim can be given an interesting and intelligible reading.

When asking how the truth assessment of a statement can depend on a parameter, such as a moral standard, we are asking at bottom a formal question. For, in principle nothing depends on the particular content of the statement nor on the nature of the parameter. Once this is realized, it is natural to turn to extant theories of semantic dependency in other domains. Temporal discourse is the best investigated domain in this respect. Wilson clearly lays out the relevant varieties of dependency and transfers them to the moral domain. There is no need to repeat details here and no space to comment on them. Let me instead point out what I take to be the fundamental problem. I do not claim originality here, save perhaps in the way of presenting it. Anyway, the problem seems to me important enough to be recalled and firmly kept in mind. (Of course, Wilson is well aware of it and I see it hinted at in his text.)

The problem is a double dilemma. First, we must choose between global und local relativism. Global relativism claims that the truth of all judgements – irrespective of subject matter – is relative to some variable parameter P. Local relativism claims that relativity only affects certain classes of judgements – about matters of taste, beauty, or right-or-wrong and the like. If we opt for global relativism, then we are postulating a plethora of extensionally distinct predicates for sentences – P0-true, P1-true, and so on. Now, even though ‘truth’ may be a problematic notion, we do know enough about ‘truth’ so as to rule out some sentence predicates as candidates for synonymy with ‘is-true’. (If we did not, we wouldn’t even know what we are aiming at when theorizing about truth.) Without rehearsing well-known arguments let me simply record that it is today widely agreed among professional philosophers that none of the P-true predicates comes even close to reaching the qualification round for being a truth predicate. (I am thinking of the standard objections to epistemic theories of truth, such as pragmatism, verificationism, coherentism, or discourse theories.)

Thus we should go for the second horn of the first dilemma, local relativism. Choose some domain D of judgements for which relativity of truth is claimed, say, morals. Again, let P0, P1... be the parameters of truth so that within D all statements are judged P0, P1...-true or -false, as the case may be. Now we face a new dilemma. Suppose, first, that we treat each of these distinct predicates as primitive. Then, by the same considerations marshalled against global relativism, none of them conforms to our conjoint truisms about ‘truth’; they may be more or less remote surrogates for, but they are not even close to being truth predicates. We get a doctrine of some kind of relativity, but not a relativity of truth. — So we proceed to the second horn. Suppose that we take each P-true predicate as a composite of absolute truth and a parameter P. There is, of course, a challenge in the “taking-as”. Some sort of reduction is required: “A is P-true” needs to be resolved into a clause in which “P ” and “true” occur. But note, first, that every way of meeting the challenge undermines the thesis that in D truth is relative. For, since we offer a reductive analysis of the relative notion, the relativity is revealed as a mere surface phenomenon. We get a kind of surface-relativism that functions best as an error theory, explaining why we are inclined to take truth to be relative in D. Note, second, that even if we know how to relate P-truth to plain truth, we may still face the objection that P-truth differs significantly from plain truth. The same arguments that apply to global relativism may be used to question that P-truth is a kind of truth at all.

Whether the second objection applies, depends on the way in which P- truth is reduced to a composite of the parameter P and plain truth. We cannot rule out antecedently that the reduction may be such that P-truth inherits from its truth-component the associated truisms. But it is unlikely. For, relativists take it as an advantage of their view that they give some sense to the notion that Manoel may be right, in his way, to pronounce something true that Maria, in her way, judges to be false. The notion is, of course, alright as far as it goes. But true relativists offer the explanation that this sort of relativity attaches to the notion of truth, not to that of pronouncing or judging. If so, then their explanation is at odds with hard to dispute hallmarks of truth, such as the possibility that Manoel believes something to be true that Maria believes to be false – in a univocal sense of ‘true’ and ‘false’.

Now back to the interpretations of “dependency on a moral standard” as described in Wilson’s contribution. If they bypass the problem, then it must be dubious whether they can subserve the relativist claim. If they confront the problem, then the reader will have to judge how well they can respond to it.

 

Reference

MENDONÇA, W. Contextualismo e relativismo na ética. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 627-668, 2023.

 

Received: 12/04/2023

Accept: 18/04/2023


 

Comentário a “Contextualismo e relativismo na ética”: CONTEXTUALISMO E RELATIVISMO NA ÉTICA

 

Léo Peruzzo Júnior[282]

 

Referência do texto comentado: MENDONÇA, W. Contextualismo e relativismo na ética. Revista Trans/Form/Ação, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 627-668, 2023.

 

Em linhas gerais, o contextualismo é uma teoria epistêmica para a qual aquilo que é expresso em um enunciado depende, parcialmente, de algo no contexto do atribuidor, isto é, algo relativo ao contexto e no qual este é discutido. Obviamente, entre as várias correntes que há, no contextualismo, é sobressaliente a visão de que os valores de verdade das atribuições de conhecimento dependem do contexto e, assim, à medida que nossas apostas aumentam e, consequentemente, as dúvidas céticas ficam mais intensas, o padrão contextual se torna cada vez mais exigente. Por isso, algumas das abordagens contextualistas apontam que, em alguns contextos, por exemplo, se requer mais daquele que está na posição de atribuidor para expressar uma verdade.

            Uma rápida digressão histórica, pois, permite visualizar que o contextualismo e seus problemas encontram sua origem filosófica em autores como o Wittgenstein tardio e seu “conceito” de “jogos de linguagem”, Austin e sua sensibilidade ao contexto, Searle e sua teoria do background, Brandon e a posição de que a semântica deve responder à pragmática, Grice e a significação não natural e suas implicaturas, entre outros. A questão fundamental está, segundo eles, no conteúdo de uma enunciação, isto é, “o que é dito” (what is said) em um contexto determinado, seus padrões de correção, além de nossas intenções e expectativas.

Em outras palavras, a provocação do contextualismo situa-se entre o conteúdo da sentença proferida e o mobiliário [ou arsenal metafísico] que o falante precisa movimentar, para comunicar tal sentença, uma vez que é necessário expurgar o aparato que mantém vivo o ceticismo e suas consequências. Assim, uma das apostas analíticas para desestimular o fantasma da metafísica que ronda o contextualismo alude à fixação do valor de elementos indexicais, a fim de determinar o significado de uma sentença e estabelecer o processo de comunicação.

De qualquer forma, o problema do contextualismo não está situado nos casos em que o falante tenciona exprimir aquilo que a frase significa. Ao contrário, ele está presente na inadequação entre a sentença expressa e o contexto comunicativo, pois é justamente ali que o conteúdo semântico precisa ser reconhecido como compatível ou não, de sorte que a inferência do falante tenha condições de verdade. Paul Grice (1975), por sua vez, pondera que a solução está na necessidade de um esforço de desambiguação entre o uso de uma sentença e a compreensão do que é dito, isto é, a significação.

O autor propõe, assim, um exemplo para explicar os efeitos do sentido que vão além do que é dito: A está conversando com B sobre C. A pergunta a B sobre a situação de C, em seu emprego, e B, então, responde: “Oh! Muito bem, eu acho; ele gosta de seus colegas e ainda não foi preso.” (GRICE, 1975, p.43). Parece claro, portanto, que o diálogo apresenta pelo menos duas formas de significação: ou C está bem, embora sua prisão pudesse ter acontecido; ou C está bem, embora possa fazer algo que o leve à prisão. O prognóstico para a questão, segundo ele, é a necessidade de dois tipos básicos de implicaturas e, portanto, de uma solução para a incompatibilidade entre semântica e pragmática (GRICE, 1989).

Outras abordagens semânticas ao contextualismo, como aquela proposta por Kaplan (1989), procuram argumentar que precisamos associar a qualquer sentença que contenha indexicais um caráter [uma função cujo valor, em qualquer contexto, deve ser o conteúdo proposicional daquela sentença naquele contexto ou, então, o significado linguístico público] visualizado como uma espécie de função para mapear contextos de uso a conteúdos. Para isso, a linguagem da lógica de Kaplan é uma lógica modal de predicados de primeira ordem, contendo operadores de tempo e outras adições, que incluem um predicado distinto (Exists), um predicado binário (Located), uma constante distinta (I), uma constante distinta (Here) e um function-term (dthat).

Assim, cada contexto tem um agente, um tempo, uma posição e um mundo possível associados, o que permite mostrar que as proposições possuem valores de verdade em relação às circunstâncias de avaliação e, por conseguinte, possam ser verdadeiras em relação a uma circunstância e falsas em relação a outra. A proposta de Kaplan, logo, pode ser expressa na asserção de que um contexto determina o conteúdo de uma sentença e esta última, por sua vez, determina um valor de verdade, em um mundo possível (ALMONG; LEONARDI, 2009).

Assim, o contextualismo indexical de Kaplan lida tanto com o possível conteúdo verofuncional como também com a compreensão de uma sentença, a partir de vários fatores contextuais e de sua variação de um contexto de uso para outro. Ao que parece, aqui está a significativa aposta dessa nova abordagem frente às epistemologias clássicas: admitir o contextualismo como teoria epistêmica é relutar contra a noção de universalidade, pois uma crença diante de um contexto x pode não sê-la, em um ambiente y. A partir disso, torna-se necessário, portanto, compreender de que modo a tarefa semântica é capaz de descrever como os valores semânticos das sentenças conseguem determinar o valor de verdade em contextos e circunstâncias de avaliação.

Tendo isso em mente, o autor de “Contextualismo e Relativismo na Ética” procura, por consequência, analisar o contextualismo indexical na ética e mapear se o proferimento do falante tem de valer também para o proferimento do autor, uma vez que os proferimentos morais, por um lado, seriam centrados e, por outro, haveria vários centros possíveis. Obviamente, sua tese é que o contextualismo não indexical seria preferível, para explicar alguns dados relevantes do desacordo, como argumenta, enquanto o relativismo de apreciação acomodaria melhor alguns outros problemas discursivos presentes nos debates morais. O percurso construtivo do texto, como o/a leitor/a poderá observar, tem um critério interno de sucesso, na medida em que se afasta de Kaplan e mostra que, no contextualismo não indexical, a definição de verdade em circunstâncias de avaliação envolveria uma coordenada perspectivista.

Invariavelmente, não é suficiente intuir que a ocorrência de uma sentença moral, em um contexto, varia com o padrão normativo que entra na individuação do contexto de uso. O contextualismo (indexical e não indexical) precisa demonstrar por que os vários aspectos do contexto conversacional são responsáveis por fixar a extensão, mesmo quando tal extensão dependa de suposições, pressuposições e outros itens implícita ou explicitamente acordados. E isso, por sua vez, não é uma questão adstrita ao desacordo moral, mas aos efeitos da distinção tradicional entre semântica e pragmática e, ainda, à fixação do valor de elementos indexicais.

Ignorar tais consequências significa ignorar a existência de vários tipos de desacordo e, evidentemente, aceitar – intuitivamente – que os valores semânticos de predicados morais possam ser determinados de forma análoga aos dos valores semânticos de expressões indexicais da linguagem (“eu”, “aqui”, “agora” etc.), muito embora essa leitura do relativismo indexical possa acomodar a irrepreensibilidade dos desacordos morais de uma maneira aparentemente satisfatória.

O presente artigo finaliza, apontando que “[...] contra os contextualistas indexicais e os contextualistas não-indexicais, [...] o tratamento adequado do uso de sentenças morais requer o endosso do ponto de vista relativista radical.” (MENDONÇA, 2023, p. 664). Entretanto, competirá ao leitor um novo escrutínio diante de tais implicações e um constante exercício de logicidade, em face das armadilhas da linguagem natural e de uma leitura comum dos desacordos morais.

 

Referências

ALMONG, J.; LEONARDI, P. (ed.). The Philosophy of David Kaplan. Oxford: Oxford University Press, 2009.

GRICE, H. P. Logic and Conversation. In: COLE, P.; MORGAN, J. L. (ed.). Sintax and Semantics. New York: Academic Press, 1975.

GRICE, H. P. Studies in the Way of Words. Cambridge; London: Harvard University Press, 1989.

KAPLAN, D. Demonstratives: an essay on the Semantics, Logic, Metaphysics, and Epistemology of Demonstratives and Other Indexicals. In: ALMONG, J.; PERRY, J.; WETTSTEIN, H. (org.). Themes from Kaplan. Oxford: Oxford University Press, 1989.

MENDONÇA, W. Contextualismo e relativismo na ética. Revista Trans/Form/Ação, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 627-668, 2023.

 

Recebido: 21/05/2023

Aceito: 30/05/2023

 



[1] Docente no Departamento de Filosofia e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Marília, SP – Brasil e Líder do Grupo de Estudos em Filosofia da Informação, da Mente e Epistemologia – GEFIME (CNPq/UNESP). Editor responsável da Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da UNESP. Pesquisador CNPq/Pq-2. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5704-5328. E-mail: marcos.a.alves@unesp.br.

[2] Professor da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4513-5374. E-mail: agnaldocp@unb.br.

[3] Professora da Escola Eleva - (UnB), Brasília, DF – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2289-6296. E-mail: clarissapportugal@gmail.com.

[4] D. Z. Phillips é autor de vários livros e artigos em filosofia da religião, com uma perspectiva inspirada em Wittgenstein, entre os quais se destacam: The Concept of Prayer (1965) e Wittgenstein and Religion (1993) – traduzido para o português, em coedição da ABFR e Editora Reflexão, como Wittgenstein e Religião (2021).

[5] Infelizmente, o Prof. Phillips acabou não vindo ao Congresso, realizado na PUC Minas, em outubro de 2007, pois faleceu em 2006.

[6] Autor de várias obras em diversas áreas da filosofia contemporânea. Em filosofia da religião, são particularmente influentes: “A Way Out of the Euthyphro Dilemma” (cuja tradução para o português saiu na Revista Brasileira de Filosofia da Religião [2014]) e “The Myth of Religious Experience” (2004).

[7] Hart é um escritor prolífico. De particular interesse, para a filosofia da religião, são: Atheist Delusions: The Christian Revolution and Its Fashionable Enemies (2009) e The Experience of God: Being, Consciousness, Bliss (2013).

[8] Um pouco mais sobre o que caracteriza a filosofia da religião, em relação a outras áreas do conhecimento, as quais tratam desse fenômeno, pode ser encontrado em Portugal (2014).

[9] Ao que consta, ela aparece somente a partir do século XVII. Ver Micheletti, 2007, p. 156 e Di Ceglie, 2007, p. 43.

[10] Essas ideias se encontram principalmente nos fragmentos 11, 14, 15 e 16. Ver Kirk e Raven, 1979.

[11] Isso aconteceu já no 1º Congresso da ABFR, em 2005, no dia 17 de novembro, em umas das sessões que começaram às 16h30. Os expositores eram o Dr. Jair Barboza (então na PUC-PR) e o Dr. Mauro Castelo Branco de Moura (UFBA). O mediador era o Dr. Ricardo Quadros Gouvêa (à época, na UFJF).

[12] Estamos usando “autoral”, “criativa” e “original” como sinônimos, neste texto.

[13] A parceria da ABFR com a John Templeton Foundation (JTF) começou em 2014. O primeiro projeto era de financiamento de dois congressos, o 6º e o 7º (2015 e 2017), os primeiros a ter temas definidos, e que deveriam incluir participantes de outros países latino-americanos. O segundo projeto visou a fomentar a filosofia analítica da religião, no Brasil, com a compra de livros, tradução de obras, realização de eventos e um prêmio para propostas de ensino nessa abordagem. O terceiro projeto será exposto a seguir.

[14] Mais informações sobre as propostas de pesquisa que fazem parte desse projeto podem ser encontradas em uma série de entrevistas que constam no canal da ABFR no You Tube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XDPhI8LYG9Y&list=PLe9GaHoBr8wFxBbaMPXutH4nflY7yjx2K. Acesso em: 10 set. 2022.

[15] Domingues os chama de “matrizes” (DOMINGUES, 2017, p. 476-481).

[16] Essa é também a avaliação de outra importante análise da atividade filosófica no Brasil: Diário de um Filósofo no Brasil (2013), de Julio Cabrera.

[17] Um exame rápido da programação dos encontros da ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia) mostra também essa predominância da abordagem histórica, em contraste com a temática. Outro indício relevante é o fato de que essa abordagem também predomina na USP, cujo programa de pós-graduação é a principal referência no país, há anos, na área.

[18] Para uma breve introdução à música aleatória, ver Griffiths, 2004. Um texto introdutório ao improviso no jazz como limiar entre interpretação e composição pode ser Tucker, 2004.

[19] Para uma análise das Bachianas, ver Barros, 2020.

[20] De acordo com o levantamento de A. Santos (2015), há cinco tipos de desvalorização do profissional da educação: o tipo econômico, o tipo social, o tipo psicológico, o tipo da obsolescência e o tipo da desqualificação ou da degenerescência. Ele embasou sua pesquisa em dados de abandono na profissão, nos estados de São Paulo e Minas Gerais, e no pouco interesse de alunos pelos cursos de licenciatura, além do crescente afastamento de docentes da sala de aula.

[21] Em seu livro Ressentimento (2011), Maria Rita Kehl traz uma análise psicanalítica sobre o ressentimento, nas diferentes esferas sociais, entendendo-o como um sintoma social que surge – grosso modo – a partir de certas frustações de desejos transferenciais que o sujeito acredita ser dado. A resposta do ressentimento é infligir sofrimento sobre outro mais fraco, em termos quer físicos, quer econômicos, quer políticos etc. Dentro da sala de aula, esse sofrimento pode surgir através de humilhações, perseguições e outros comportamentos poucos éticos, tanto da parte do professor como do aluno.

[22] Uma experiência particularmente interessante nesse sentido tem sido o Laboratório de Epistemologia da Religião da UnB, que vem acontecendo desde meados de 2018. O foco é a produção de textos autorais e é um espaço no qual estudantes de pós-graduação podem apresentar partes de suas dissertações e teses, ou docentes e pesquisadores podem expor seus trabalhos em andamento. Não há apresentação oral; os textos são distribuídos com antecedência para leitura dos participantes e a sessão de noventa minutos é inteiramente dedicada à discussão e aperfeiçoamento do texto. No tocante à graduação, uma estratégia interessante é empregar essa técnica em grupos de iniciação científica, nos quais cada graduando apresenta periodicamente um texto com os resumos das ideias do texto que leu e tenta refletir criticamente sobre ele, ao final.

[23] Um exemplo de inovação temática e de abordagem em filosofia da religião é o projeto coordenado pelo Dr. José Eduardo Porcher, com apoio da Fundação John Templeton e intermediado pela ABFR, sobre filosofia das religiões afro-brasileiras, intitulado Expanding the Philosophy of Religion by Engaging with Afro-Brazilian Traditions [Expandindo a filosofia da religião pelo engajamento com tradições afro-brasileiras], cuja descrição pode ser encontrada em https://www.templeton.org/grant/expanding-the-philosophy-of-religion-by-engaging-with-afro-brazilian-traditions. Acesso em: 05 jan. 2023.

[24] La Trobe University, Vitoria – Australia. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2055-4265. E-mail: murilorseabra@gmail.com.

[25] Professor da Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP/Botucatu) Botucatu, SP –Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5960-041X. E-mail: alfredo.pereira@unesp.br.

[26] Investigador pós-doutoral no Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa (CFCUL), Lisboa – Portugal. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1778-1582. E-mail: vjdaguiar@fc.ul.pt.

[27] Ver Pereira Jr. (2015), para uma apresentação detalhada sobre essa concepção estendida de sentimento.

[28] “The word omics refers to a field of study in biological sciences that ends with -omics, such as genomics, transcriptomics, proteomics, or metabolomics”. Disponível em: https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-319-43033-1_1. Acesso em: 14 fev. 2023.

[29] Texto disponível em: https://archive.consciousness.arizona.edu/photoarchive.htm. Tradução nossa. Acesso em 09/10/2021.

[30] Ver, por exemplo: https://www.nasa.gov/mission_pages/chandra/news/data-sonification-a-new-cosmic-triad-of-sound.html. Acesso em: 09 out. 2021.

[31] Evidentemente, esta tese vem na esteira de várias tradições filosóficas. Porém, uma apresentação detalhada das mesmas exigiria outro artigo. Não obstante, podemos demarcar alguns exemplos. Vêm à mente ao menos dois casos paradigmáticos. Primeiro, a posição filosófica de Charles S. Peirce, quando este, em sua classificação das ciências, coloca a faneroscopia (i.e. simplesmente apreender o fenômeno tal como ele se manifesta para a mente) antes da semiótica. Segundo, a tradição filosófica e psicológica representada por Carl Stumpf, em relativa ressonância com Wilhelm Wundt, Franz Brentano e Edmund Husserl, quando Stumpf sobrecarrega a importância do “juízo introspectivo de um especialista” (cf. SILVA, 2017, p. 90), em detrimento dos métodos experimentais em terceira pessoa.

[32] Salientemos que, pressuposta no que foi exposto acima, está a escuta musical, em particular a escuta de quem compõe. Mas o mesmo é válido para outras modalidades de escuta que vão além de uma simples impressão inicial, mais ou menos predefinida por hábitos culturalmente compartilhados, e, por meio de diferentes estratégias (e.g. visualizar; anotar; incorporar; solfejar; analisar, tocar etc.), almejam apreender as sutilezas do sentimento, tal como aquele complexo padrão sonoro objetivo (i.e. a música) permite compreender.

[33] Professora Adjunta do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA - Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9823-5910. E-mail: joafagundes@uesc.br.

[34] A noção de sentiência é desenvolvida cuidadosamente em Pereira Jr. (2021).

[35] Parece haver alguma familiaridade com a proposta da heterofenomenologia de Dennett, na qual os relatos dos sujeitos a propósito de suas experiências subjetivas são um material relevante. “Heterofenomenologia é o estudo dos fenômenos de primeira pessoa a partir do ponto de vista da ciência objetiva.” (2013, p. 342, tradução nossa). Porém, Pereira Jr. e Aguiar frisam que os métodos científicos convencionais não dão conta da perspectiva de primeira pessoa, sendo necessária uma metodologia própria.

[36] Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná, (Unicentro), Guarapuava, PR – Brasil. Psicanalista, Analista Membro da Escola, AME, membro fundador e Coordenador Geral da Sociedade Brasileira de Daseinspsicanálise – Instituto de Daseinspsicanálise (SBDp-ID). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1108-0280. E-mail: immanuelmoreyra@gmail.com.

[37] Este comentário tem por objeto a primeira versão (ainda manuscrita) do referido artigo, portanto, sem as modificações incorporadas na versão publicada.

[38] O acréscimo em colchetes é do autor deste artigo.

[39] O presente artigo é resultado de uma pesquisa financiada pelo CNPq, projeto número 311596/2019-3.

[40] Docente na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4747-5938. E-mail: ajabath@ufmg.br.

[41] Todas as traduções neste artigo são de minha responsabilidade.

[42] A definição sugerida por Haslanger para o conceito de mulher, em uma das suas versões, é a seguinte: “S é uma mulher se e somente S é sistematicamente subordinada ao longo de alguma dimensão (econômica, política, legal, social etc.) e S é 'marcada' como um alvo para este tratamento por características corporais observadas ou imaginadas, presumidas como evidências do papel biológico de uma mulher na reprodução.” (HASLANGER, 2000, p. 39).

[43] “Erotético” deriva do verbo grego “ἐρωτάω” (erōtaō), que pode ser traduzido por “perguntar” ou “questionar”.

 

[44] Para uma discussão recente sobre categorias naturais e sociais, ver Khalidi (2013a).

[45] Para os propósitos deste artigo, assumirei que categorias sociais, ao contrário de categorias naturais, são tais que sua existência é dependente das práticas e/ou estados mentais dos sujeitos (SEARLE, 1995). Porém, há categorias c que são sociais, nesse sentido, sem que sejam fortemente sociais, ou seja, sem que o que c seja, em grande parte, determinado pelas atitudes dos sujeitos em relação a c. Por exemplo, como sugerem Khalidi (2013b) e Ásta (2017), as recessões só podem existir se houver comunidades e práticas comunitárias — os seres humanos precisam se engajar em transações econômicas para que as recessões existam —, mas não são as atitudes dos sujeitos em relação às recessões que fazem as recessões existirem. Além disso, se algo conta como uma recessão, isso é totalmente independente das atitudes dos sujeitos em relação à categoria – por exemplo, um país pode estar em recessão, mesmo que ninguém acredite que esteja. Conforme colocado por Ásta (2017, p. 307), “[...] uma recessão é algo que atende a certas condições matemáticas. É um padrão matemático que se ajusta aos fenômenos sociais. Não pode haver recessões sem pessoas e suas práticas, mas não é a atitude das pessoas em relação a um fenômeno que o torna uma recessão; nem é a atitude das pessoas que faz com que haja recessões. Ser uma recessão é simplesmente encaixar-se em uma certa descrição matemática que contém muitas variáveis, como crescimento econômico e afins. Isso é assim mesmo que nada possa ser uma recessão na ausência de práticas sociais, e não possa haver práticas sociais na ausência de sujeitos engajados uns com os outros.” Se isso estiver certo, então há claramente fatos sobre recessões, fatos independentes de nossas atitudes em relação à categoria. É tarefa dos economistas e outros teóricos descobrir tais fatos, por meio de investigação empírica. Alguns desses fatos são relevantes para a questão do que é uma recessão. Tais fatos também são independentes das atitudes dos sujeitos em relação à categoria. As instituições de um país — por exemplo, o Ministério da Economia de um país — não determinam o que é uma recessão. Assim, uma recessão não é uma categoria fortemente social, tal como essas categorias serão concebidas neste artigo.

[46] É importante notar que o que é o casamento pode ser amplamente determinado pela lei — e, portanto, pelas atitudes dos sujeitos em relação à categoria — e, pois, contar como uma categoria fortemente social em nosso sentido, sem que seja completamente determinado pela lei. Afinal, como assevera Epstein (2016, p. 160), “[...] o casamento é maior do que apenas as regulamentações legais. O casamento é uma instituição de longa data e difundida em todo o mundo e permanece ancorada, em parte, por práticas históricas e contínuas. Essas práticas podem atrasar as mudanças na regulamentação legal, ou a lei pode atrasar as mudanças na prática. Isso significa que as definições na lei podem errar sobre o casamento. A lei tem enorme influência sobre o casamento, mas a categoria é um híbrido de direito e sociologia.” O ponto de Epstein segundo o qual as definições oferecidas pela lei podem estar erradas em relação ao que é o casamento será especialmente relevante para a discussão que se segue.

[47] Neste artigo, apelarei com frequência ao exemplo do casamento. Trata-se, por um lado, de um caso central — de grande relevância social — em que o aprimoramento erotético poderia ser colocado em prática; por outro, constitui um caso que não foi investigado em detalhe por autoras e autores com cuja obra me engajo aqui, como Haslanger.

[48]  Obviamente, podemos tentar melhorar nossas respostas para as mais variadas perguntas da forma “O que é x?”, onde x, se captura uma categoria, pode capturar categorias das mais diversas. Por exemplo, por uma razão ou outra, pode, eventualmente, se tornar relevante para nós melhorar respostas a uma pergunta como “O que é um gato?”. Além do mais, não parece implausível a ideia de que a história da filosofia seja, em parte, uma tentativa de aprimorar nossas respostas a perguntas com essa forma, como “O que é conhecimento?”, ou “O que é justiça?”. Tais questões metafilosóficas, contudo, estão além do escopo deste artigo.

 

[49] Para sugestões sobre como usar a terminologia, nesse campo de pesquisa, ver Burgess e Plunkett (2020).
[50] Sobre a analogia com a engenharia, afirma Chalmers (2020, p. 3): “Você projeta uma ponte, você implementa uma ponte, você avalia a ponte para ver se está indo bem. Se a avaliação não for positiva, você projeta alguns reparos e os implementa. E assim por diante. Você também vê algo assim na engenharia de software. Você projeta um programa, implementa o programa, avalia o programa e assim por diante, em um círculo contínuo.”
[51] Para uma introdução esclarecedora a essas visões, ver Laurence e Margolis (1999).

[52] Fodor (1998) é uma voz dissonante aqui, ao defender que conceitos são representações mentais atômicas, desprovidas de estrutura.

[53] Em suas palavras, “[...] os debates sobre a possibilidade de engenharia conceitual são confusos, no entanto, porque as partes da discussão começam com posições muito diferentes acerca de conceitos, do significado, do conteúdo e da metodologia filosófica de fundo.” (HASLANGER, 2020b, p. 235).

[54] Poder ser argumentado que a noção de categoria, da qual faço uso neste artigo, abre espaço para controvérsias muito semelhantes àquelas que envolvem a noção de conceito. O estatuto metafísico das categorias pode ser claramente objeto de debate, por exemplo (tal como indiquei acima). Assim, haverá vantagens em um abandono da noção de conceito, visto que estamos comprometidos com a noção (também controversa) de categoria? Essa é uma objeção que merece uma resposta mais detalhada do que aquela que posso dar aqui. Por agora, deixe-me apontar, apenas, que, de fato, a noção de conceito recebe as mais diversas caracterizações na literatura sobre engenharia conceitual, as quais são, frequentemente, incompatíveis entre si, o que pode ser um entrave à boa comunicação na área e, consequentemente, um empecilho para que os avanços desejados sejam alcançados. Já a noção de categoria parece encontrar, na área, caracterizações mínimas — tal como a que uso neste artigo —, que buscam uma neutralidade em relação a debates acerca de sua natureza metafísica, por exemplo. Assim, de fato, parece ser a noção de conceito, e não a de categoria, que constitui (ou pode claramente constituir) um obstáculo para a boa comunicação na área. Naturalmente, que assim seja, pode ser uma mera contingência teórica. Agradeço a um dos revisores deste artigo por levantar essa preocupação.

[55] Agradeço a um dos revisores deste artigo por alertar-me a propósito da compatibilidade do aprimoramento erotético com a engenharia conceitual, tal como usualmente entendida.

[56] Para uma excelente discussão, ver Saul (2006). Para uma contextualização dessas diferentes visões, ver Haslanger (2020a).

[57] Em Abath (2020, 2022), defendo que a ideia de Burge de uma compreensão parcial de conceitos é mais bem compreendida em termos do conhecimento parcial do que as coisas são.

[58] Como corretamente me foi apontado por um dos revisores deste artigo, o termo “sexo”, o conceito que o expressa, ou mesmo a pergunta “O que é um sexo?”, no sentido em causa aqui, poderiam ser objeto de uma engenharia conceitual ou aprimoramento erotético. Neste ponto do artigo, assumo o uso de tais termos sugerido na própria caracterização do casamento dada em (1).

[59] No entanto, pode haver sociedades (reais ou possíveis) nas quais (2) pode falhar em promover a justiça social. Pense-se, por exemplo, em sociedades (reais ou possíveis) nas quais frequentemente mais de duas pessoas são parceiras em um relacionamento pessoal. Em tais sociedades, (2) pode não ser uma resposta boa o suficiente para a questão em causa.

[60] Hacking (2000) diria que a luz é uma categoria indiferente, na medida em que não é alterada por nossas classificações e teorizações que a têm como objeto.

[61] Esse é um ponto em comum entre o aprimoramento erotético e a engenharia conceitual, em uma de suas versões, aquela defendida por Cappelen (2018) (embora o uso da expressão “engenharia conceitual”, por parte de Cappelen, seja algo enganador, em se tratando de sua própria posição, pois ela não diz respeito a um melhoramento de conceitos, porém, da semântica de termos e do próprio mundo). Destaca ele: “Nesta visão, a engenharia conceitual é sobre o mundo. Trata-se, por exemplo, de casamento, pessoas, tortura ou liberdade. Assim interpretado, o resultado da engenharia conceitual pode ser descrito como uma mudança no nível do objeto: estamos mudando o que o gênero, a liberdade, a salada, o casamento etc. são.” (2018, p. 138). Discutirei a posição de Cappelen e suas relações com o aprimoramento erotético na seção 5. Por ora, deixe-me apenas dizer que a posição de Cappelen não possui uma ênfase em categorias sociais ou fortemente sociais, sendo que o aprimoramento erotético está comprometido com a modificação das categorias sociais elas próprias apenas quando categorias fortemente sociais estão em jogo.

[62] Uma resposta aprimorada à pergunta acerca do que é o casamento deve ser considerada como a resposta verdadeira a essa pergunta, enquanto a resposta pré-aprimoramento deve ser considerada como falsa? Quando se trata de respostas a perguntas sobre o que são categorias fortemente sociais, prefiro evitar falar de verdade, no sentido intuitivo de respostas que capturam como as coisas são no mundo, independentemente das atitudes do sujeito em relação à categoria. Basta frisar aqui que (2) é a melhor resposta para a questão do que é o casamento se comparada com (1). Obviamente, pode-se insistir em se referir a verdade, aqui, e sugerir que, quando se trata de tais assuntos, uma resposta é verdadeira na medida em que é razoável, justa, útil etc. Certamente, pensar na verdade em termos pragmáticos é uma opção viável, aqui.

[63] Pode-se incluir categorias tais como pais (HASLANGER, 2006), misoginia (MANNE, 2017) e pobreza (WISOR, 2012), para citar algumas.

[64] Conforme enfatizado por Brun (2016, p.1214), “[...] a ideia básica de Carnap é que a explicação é um processo que substitui um conceito inexato (o explicandum) por um conceito mais exato (o explicatum); esse processo atende a algum propósito teórico e introduz explicitamente o explicatum no sistema de conceitos de uma teoria-objetivo.”

 

[65] Para diferentes posições sobre o assunto, ver Haslanger (2020b), Ball (2020) e Sawyer (2020).

[66] A posição que defendo aqui é, em diversos aspectos, semelhante àquela apresentada por Roberts (2012), sob o título de Questions Under Discussion, ou, simplesmente, QUD. Assim como Roberts, tomarei como modelo casos em que as partes envolvidas em uma conversação aceitam ou reconhecem um dado objetivo de investigação. Abaixo, discutirei casos nos quais as partes envolvidas em uma conversação possuem objetivos de investigação distintos, sem percebê-lo. Neste artigo, não discutirei casos em que uma das partes rejeita o objetivo da investigação de outra parte. Tais casos contêm desafios com os quais não terei espaço para lidar aqui.

[67] Para um método semelhante aplicado a discussões no campo da engenharia conceitual, consultar Sawyer (2020).

 

[68] Ao assim pensar, Liana estaria de acordo com Appiah (1993, 1996).

[69] Isso não significa, contudo, que uma teoria completa ou detalhada dos mecanismos que subjazem ao preconceito — para ficar com apenas um exemplo de um tipo de atitude que pode levar a uma resistência por parte de sujeitos, no que tange à modificação de suas respostas acerca do que categorias fortemente sociais são —, esteja disponível, ou seja simples de ser obtida. Pelo contrário. A psicologia das últimas décadas revelou-nos que estados mentais pré-conscientes — por meio de vieses implícitos, por exemplo — frequentemente estão subjacentes a atitudes de preconceito, e uma teoria detalhada de tais estados não está ainda disponível, e não devemos supor que estará disponível em um futuro próximo. Ademais, uma teoria detalhada das atitudes de preconceito não será apenas psicológica, mas envolverá, certamente, disciplinas diversas, como a história, a sociologia, a filosofia moral etc. Nesse sentido, há um longo caminho a ser percorrido aqui. O que temos é uma ideia — razoavelmente clara — das perguntas que precisarão ser respondidas em tal empreitada teórica, e dos caminhos para respondê-las. O mesmo não pode ser dito acerca do Quadro Austero de Cappelen, o qual indica obstáculos instransponíveis para a compreensão dos mecanismos que subjazem à mudança de significado dos termos. Assim, enquanto o sucesso do aprimoramento erotético é dependente do avanço de pesquisas em andamento, o sucesso de projetos de melhoria, no Quadro Austero de Cappelen, é entregue à imprevisibilidade. Agradeço a um dos revisores deste artigo por pressionar-me acerca desse ponto.

[70] Gostaria de agradecer a alunas e alunos dos cursos de pós-graduação Filosofia e Psicologia dos Conceitos e Melhoria de Conceitos e Realidade Social, ministrados no PPG-Filosofia da UFMG, cujo retorno foi fundamental para a formulação das ideias apresentadas neste artigo. Agradeço a Veronica Campos, Samuel Maia e Vitor Sommavilla, pela leitura de uma versão anterior do texto e sugestões diversas. Por fim, agradeço a dois revisores desta Revista, por inúmeras observações que me ajudaram a redigir a versão definitiva deste texto.

[71] Pós-Doutorando na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Marília, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7764-123. E-mail: felipegustavomoreira@yahoo.com.br.

[72] Ver, nesse viés, Moreira (2022a).

[73] Para um tratamento mais detalhado acerca do que é uma motivação conflitual, ver Moreira (2022b).

[74] Para uma leitura detalhada de Deleuze, ver Moreira (2022a, Capítulo 6).

[75] No dia 05/12/2022, a transcrição dessa entrevista podia ser achada no seguinte link: https://www.nbcnews.com/id/wbna47311900

[76] Para uma abordagem mais detalhada a essas últimas pessoas, ver Butterman (2021).

[77] Este estudo foi financiado, em parte, pelo Programa Capes-PrInt da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES), código financeiro 001, processo 8881.310246/2018-1, e por Le Programme Cofecub, processo 88887.468340/2019-00.

[78] Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7105-0118. E-mail: cesar.santos@ufsm.br.

[79] Este trabalho contou com o apoio da CAPES e auxílio financeiro do CNPq, projeto n° 307872/2018-1.

[80] Professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS – Brasil e Bolsista de Produtividade do CNPq. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7267-5662. E-mail: eros.carvalho@ufrgs.br.

[81] Tyler Burge introduziu a noção de elemento comum fundamental, para evitar que a negação da concepção conjuntiva fosse concebida como a rejeição de qualquer elemento comum. Isso seria um espantalho da concepção disjuntiva, já que ela coincidiria, então, com a tese de que o episódio perceptivo e o episódio de alucinação correspondente não têm nenhum elemento em comum. A negação da concepção conjuntiva deve ser feita em relação ao alegado elemento comum fundamental, o qual cumpre um papel decisivo e não eliminável na classificação e explicação dos tipos de estados experienciais (BURGE, 2011, p. 47).

[82] Para uma discussão detalhada desse argumento, veja-se Carvalho (2015)

[83] Para uma apresentação e discussão mais extensa do argumento causal, vejam-se Johnston (2004, p. 115-120) e Soteriou (2016, p. 158-169).

[84] Vários gibsonianos, no entanto, se engajaram de modo mais sistemático com a discussão do realismo direto (SHAW; BRANSFORD, 1977; SHAW; TURVEY; MACE, 1982; TURVEY et al., 1981).

[85] Como a informação ecológica requer uma relação de um para um entre um padrão de energia e a sua causa distal, não há como esse padrão de energia estar presente, sem que a sua causa distal também esteja. Por conseguinte, a captura da informação é suficiente para estabelecer a relação de contato direto com uma affordance ambiental, e nenhuma inferência é requerida (REED, 1983, p. 90).

[86] Como argumentam Shaw, McIntyre e Mace (1974, p. 278), “[...] um organismo possui o máximo grau de adaptação ao seu ambiente quando o maior grau de simetria existe entre os seus estados (tanto biológico quanto psicológico) e os estados do seu ambiente.”

[87] Complementarmente, é importante chamar a atenção para o fato de que a informação ambiental é ela mesma relativa a nichos. Conforme Turvey (1981, p. 276) exemplifica, certos padrões do campo bioelétrico, no nicho de tubarões, especificam linguados, embora, fora desse nicho, possam estar correlacionados com outras coisas. Mas isso não significa que, fora do seu nicho, o tubarão teria percepções errôneas. Na verdade, fora do seu nicho, não há informações ambientais às quais o organismo esteja sintonizado e, portanto, a sua habilidade perceptual não é exercida. Como defendi no artigo em que introduzi o disjuntivismo ecológico, o nicho é uma condição habilitadora para o exercício de habilidades perceptuais, de modo que estas não são exercidas fora dos ambientes nos quais foram adquiridas (CARVALHO, 2021, p. S290). Essa restrição está conectada ao princípio da mutualidade da psicologia ecológica. As habilidades dos organismos e as características do ambiente são complementares, devendo ser entendidas umas em referência às outras. Veja-se a nota 11 do presente artigo. Agradeço a um dos pareceristas anônimos por chamar a minha atenção para esse ponto.

[88] A possibilidade natural de que sempre podemos gerar uma alucinação indistinguível de uma experiência perceptiva parece encontrar respaldo na concepção linear da percepção. Segundo essa concepção, a situação de experimentação ideal seria uma em que o sujeito está imobilizado — corpo, cabeça e possivelmente os olhos — e apenas os seus órgãos sensoriais são estimulados. Desse modo, o efeito psicológico, a experiência do sujeito pode ser correlacionada diretamente com os estímulos sensoriais. No caso da visão, o uso do taquistoscópio auxilia a forjar uma situação desse tipo. O taquistoscópio é um aparelho que permite a projeção de imagens sobre a retina, por um intervalo de tempo bem curto. O sujeito é então convidado a relatar a experiência resultante. Não espanta que, nessas condições, pareça razoável que as experiências assim obtidas possam também ser produzidas intervindo nos eventos cerebrais mais proximais. Consequentemente, o mesmo tipo de experiência poderia ser produzido com ou sem os estímulos nos órgãos sensoriais, vindicando, assim, a indistinguibilidade.

[89] Uma das preocupações da psicologia ecológica é encontrar o nível adequado de descrição das ações de um organismo e do ambiente onde essas ações ocorrem. Assim, deve-se distinguir o mundo físico, que é desprovido de significado para o organismo, do ambiente, o qual é descrito em escala ecológica, em termos relativos a um organismo. Nesse nível de descrição, também conhecido como princípio da mutualidade, ambiente e organismo são correlatos (LOBO; HERAS-ESCRIBANO; TRAVIESO, 2018, p. 5). Segundo afirma Gibson, “[...] nenhum animal poderia existir sem um ambiente circundando-o. De modo semelhante, embora não tão óbvio, um ambiente implica um animal a ser circundado.” (GIBSON, 2015, p. 4). O ambiente em que o organismo vive, em relação ao qual ele faz discriminações e onde ele age, é o mundo de abrigos, tocas, caminhos, presas, predadores etc. Isso no que diz respeito ao espaço ecológico. Quanto ao tempo ecológico, o ambiente do organismo é constituído de eventos na escala que lhe é significativa: o organismo acorda, busca alimentos, se alimenta, cuida e alimenta a prole, foge e se esconde de predadores, repousa etc. Unidades métricas são inadequadas para descrever o ambiente do organismo, seja o seu aspecto espacial, seja o seu aspecto temporal.

[90] Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6992-3215. E-mail: sabrinabrf@hotmail.com.

[91] Affordances tecnológicas esboçam o movimento de ampliação da abordagem ecológica da percepção ao abarcar as transformações pelas quais o sistema agente-ambiente está sujeito. Nesse caso, affordances tecnológicas mantém suas bases na concepção original de affordances, enquanto possibilidades de ação, passando a incorporar os ambientes digitais e virtuais aos seus nichos (BROENS et al., 2017). Não obstante, affordances tecnológicas ocorrem impreterivelmente com a presença de dispositivos tecnológicos nas dinâmicas de percepção-ação dos agentes.

[92] “[...] as tecnologias de informação e comunicação não se restringem somente a equipamentos de hardware e software e nem tão pouco à comunicação de dados, mas compreendem todas as atividades que ocorrem na sociedade, as quais utilizam recursos tecnológicos e disseminação social da informação a partir de sistemas informativos inteligentes.” (CASTILHO, 2015, p. 35).

[93] VR Games (Virtual reality) são jogos que envolvem um sistema computacional, que possui o objetivo de recriar a sensação de realidade no ambiente virtual e possibilitar que você interaja com ele de certa forma. Atualmente tais jogos incorporam efeitos visuais, sonoros e táteis, para que a imersão do usuário no ambiente simulado seja completa. Retirado de: Tecnologia VR: o que é e como funciona? Disponível em: https://liggavc.com.br/blog/tecnologia-vr-o-que-e-e-como-funciona/#:~:text=O%20que%20%C3%A9%20realidade%20virtual%20e%20como%20funciona&text=Digamos%20que%20voc%C3%AA%20quer%20jogar,como%20se%20estivesse%20dentro%20dele. Acesso em: 16 fev. 2023.

[94] Uma versão preliminar deste artigo foi publicada em língua inglesa, em Pragmatism Today (v. 12, n. 1, 2021). Tive a oportunidade de discutir algumas dessas ideias em um seminário de pós-graduação na Universidade de Bergen, em um colóquio sobre afetos e crenças, organizado em uma parceria entre a Universidade Federal de Pernambuco e a Universidade de Bergen, e no seminário “Memória, Trauma e Narrativas de Si”, na Universidade de Coimbra. Agradeço pelos comentários e sugestões do público, nessas ocasiões, em particular a Franz Knappik, Marina Haddad, Joana Ricarte e Claudio Carvalho.

[95] Professor Adjunto no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE – Brasil e pesquisador do CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1954-0421. E-mail: filipebcampello@gmail.com.

[96] As distinções entre conceitos como emoções, afetos, paixões ou sentimentos são bastante controversas na literatura filosófica sobre o tema (cf., por exemplo: HARTMANN, 2010; DEMMERLING; LANDWEER, 2007; RORTY, 1980). A minha preferência pelo termo afeto deve-se a um certo teor naturalista, mas que, ao mesmo tempo, é suficientemente flexível para adequar-se a um conteúdo cognitivo. O termo distingue-se ainda de outros já mais carregados semanticamente – como em certos recursos aos termos emoção ou sentimento. Em todo caso, entendo que mais relevante que a preferência pelo termo afeto é o significado que lhe será atribuído.

[97] Não por acaso, são raros os relatos de escravos em primeira pessoa. O fato de que a autobiografia de Mahommah Gardo Baquaqua, ex-escravizado que fugiu para os Estados Unidos, ter sido o único relato autobiográfico de pessoas escravizadas, no Brasil, atesta a discrepância de como esses relatos circulam e da relevância epistêmica que assumiram historicamente, na percepção da injustiça.

[98] Em Epistemic injustice, trabalho pioneiro sobre o tema, Miranda Fricker (2008) chama esse problema de injustiça testemunhal – quando relatos não são ouvidos, em seu potencial epistêmico. Esse sentido difere do que Fricker chama de injustiça hermenêutica: diferente da injustiça testemunhal, que se refere aos preconceitos diante do conteúdo do relato a depender de quem o faz, nos casos de injustiça hermenêutica, relações de injustiças arraigadas em prática sociais sequer chegam a ser percebidas pelos sujeitos como injustas. Certamente, a importância dada a relatos em primeira pessoa se refere apenas à dimensão epistêmica da injustiça, mas não é suficiente para superar dimensões políticas da injustiça. Basta lembrar que Frederick Douglass, o qual se tornaria um dos principais nomes do abolicionismo, nos Estados Unidos, deixou suas memórias relatadas em três autobiografias – a primeira delas, The Narrative of the Life of Frederick Douglass, An American Slave, Written by Himselfque viriam a se tornar um grande sucesso de vendas. O significado moral do reconhecimento epistêmico não substitui o significado das dimensões jurídicas e sociais que constituem o horizonte normativo do vocabulário da justiça. É também por essa razão que divirjo das reflexões sobre a justiça que a reduzem à dimensão epistêmica da experiência vivida, a qual interpreto como sendo uma das pré-condições para que o vocabulário disponível para as disputas sobre justiça possa ser posto de maneira mais simétrica e, portanto, mais justa.

[99] Também nesse sentido da relação entre narrativa e poder escreve Adichie: “É impossível falar sobre a história única sem falar do poder. Há uma palavra, uma palavra malvada, em que penso, sempre que penso na estrutura do poder no mundo. É ‘nkali’. É um substantivo que se pode traduzir por ‘ser maior do que outro’. Tal como os nossos mundos económico e político, as histórias também se definem pelo princípio do ‘nkali'. Como são contadas, quem as conta, quando são contadas, quantas histórias são contadas, estão realmente dependentes do poder.” (ADICHIE, 2019, p. 37).

[100]Devem observar como a encenação do mundo em representação – sua cena de escrita, sua Darstellung – dissimula a escolha e a necessidade de ‘heróis’, procuradores paternos e agentes de poder – Vertretung. Na minha opinião, a prática deve estar atenta a esse duplo sentido do termo representação, em vez de tentar reinserir o sujeito individual por meio de conceitos totalizadores de poder e de desejo.” (SPIVAK, 2010, p. 43).

[101] “Na antropologia, é conhecida a imagem do xamã enquanto diplomata ou tradutor cósmico, aquele que viaja por diferentes mundos e lida com sujeitos diversos, mas igualmente humanos. Para voltar e contar o que viu, o xamã não pode confundir as perspectivas, caso contrário corre o risco ser capturado pela visão alheia, virando outro definitivamente. Na teoria da tradução xamanística, um mesmo referente, objeto ou palavra pode significar outra coisa por completo, a depender da perspectiva. Não há uma língua adâmica, absoluta, responsável por igualar as diferenças entre mundos e idiomas.” (IMBASSAHY, 2019, p. 12).

[102] Entrevista de Davi Kopenawa a Terence Turner, representante da comissão especial da American Anthropological Association, formada em 1991, para investigar a situação dos Yanomami no Brasil. Citado em A Queda do Céu (KOPENAWA; ALBERT, 2019, p. 63.

[103] Já há algum tempo, trabalhos no âmbito da antropologia levantaram o questionamento sobre os vieses da construção epistemológica enquanto falso universalismo que acabava por fetichizar o que não pertencia ao centro da construção do conhecimento. Eles apontavam para um deslocamento de perspectiva que, ao invés de mostrar-se como descrição supostamente neutra, significava uma “invenção” – p. ex. Mudimbe, A invenção da África, Edward Seid, Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. Nada mais distópico do que imaginar Kant, do alto de sua Könisberg, descrevendo detalhadamente as diversas culturas do mundo. Por trás desse suposto – e até arrogante – cosmopolitismo da filosofia, esconde-se uma posição que chega a ser surpreendente na sua presunção: um provincianismo com pretensões colonialistas. Sobre isso, cf., p. ex., Andrade, 2017, e Mignolo, 2011.

[104] Distinções entre primeira e segunda ordem se tornaram familiares, por exemplo, no que se refere a níveis volitivos (FRANKFURT, 1971) ou de intencionalidade (DENNETT, 1978). Mais recentemente, o modelo de primeira e segunda ordem foi também utilizado por Alessandro Pinzani (2019), em relação a experiências de sofrimento, mais próximo ao que Miranda Fricker (2008) entende por injustiça testemunhal e injustiça hermenêutica. Já meu intuito, ao recorrer a essa distinção, é o de clarificar conceitualmente duas dimensões de justiça (que entendo como interligadas) em torno do reconhecimento epistêmico e do lugar das experiências subjetivas, na crítica de injustiças.

[105] Apesar de partirem de premissas distintas, aspectos da justiça de primeira ordem são encontrados desde teorias procedimentais até teorias decoloniais. Ora, de um modo ou de outro, elas têm em vista a possibilidade de incluir no discurso quem estava fora dele. Contudo, o que essas diferentes abordagens compartilham não impede que as próprias premissas de racionalidade e universalidade tomadas por teorias procedimentais acabem por limitar a inclusão de outras narrativas, entrando em contradição com o que pretendem defender. Ao ter em vista superar um sentido transcendente de bem, apostas procedimentais de Rawls a Habermas assumem pressupostos de racionalidade que acabam por restringir o quão extensas poderiam ser aquelas mesmas noções de bem. Ao fim e ao cabo, os esforços de ampliar e tornar mais inclusivas as esferas discursivas esbarram em seus pressupostos bem mais implícitos e silenciosos, quase invisíveis, os quais acabam por limitar a ampliação do vocabulário que temos disponível para nos referir ao mundo e a nós mesmos.

[106] Tenho em vista aqui o que Jacques Rancière entende por atividade política, como “[...] o que desloca um corpo do lugar ao qual estava assinalado e muda o destino de lugar; faz ver o que não tinha razão para ser visto, faz escutar como discurso o que era escutado somente como um ruído.” (RANCIÈRE, 2018, p. 45).

[107] Uma das questões que naturalmente surgem aqui é se vale a pena manter ou abandonar pretensões teóricas assim caracterizadas como “universais” ou “grandes” narrativas. Certos conceitos, como pluriversalismo ou perspectivismo ameríndio, têm sido propostos como formas de resistência a abordagens teóricas com pretensões de abrangência universais (cf. VIVEIROS DE CASTRO, 2016). No meu modo de compreender, podemos ampliar nosso vocabulário sobre questões de justiça, sem com isso termos que abandonar a crença de que questões como a escravidão podem ser criticadas como universalmente injustas. Por isso, entendo que, para se abrir à crítica, não precisamos prescindir do potencial de razões que continuem a oferecer a própria possibilidade da crítica a injustiças que transcendam o caráter particular das experiências. No entanto, são essas mesmas pretensões que devem assumir a abertura constante à sua correção, ao incluir, de maneira mais sensível, outras narrativas. Um dos maiores erros dos que são logo refratários quando criticados é a arrogância de não se permitir rever suas crenças, tomando-as sempre como verdade, ao invés de tentativas mais modestas de acertos que eventualmente podem falhar. Um pouco mais de humildade possibilitaria ver que os que continuam falando em nome da razão universal assim o fazem somente porque historicamente outras perspectivas foram excluídas desse universal. São anões em ombros de gigantes, mas por motivos contrários ao que a expressão queria originalmente indicar.

[108]Body of rules and basic principles governing the distribution of benefits and burdens within a community, and it demands the establishment of effective and impartial institutions to guarantee the enforcement of these basic rules and principles” (p. 17). “This rule-bound, generalized approach is necessary for justice to be institutionalized as laws and organizational practices. But as a result, normal justice frequently has blind spots, gaps and unintended consequences.”

[109] No âmbito das teorias psicanalíticas, a esse tipo de sofrimento singularmente contingente refere-se o papel da clínica. Trazer luz a essa complementaridade de uma divisão de trabalhos entre psicanálise e teoria social significa, como defendi em outro lugar, dar espaço àquilo que a psicanálise tem de melhor a oferecer: ainda que imaginássemos uma política no seu potencial terapêutico, sempre haverá formas de sofrimento próprias de processos contingentes de subjetivação e de histórias de vida individuais e que, como tais, escapam a uma teoria normativa da sociedade. É pelo fato de uma relação intersubjetiva não depender de um conteúdo previamente determinado que uma teoria social não pode satisfazer todos os critérios de uma subjetividade plenamente imune ao sofrimento e ao sintoma (escrevi sobre essas questões em Campello, 2017).

[110] Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3865-3897. E-mail: rollagiovanni@gmail.com.

[111] Eu agradeço a um parecerista por chamar atenção a esse ponto. Dei-me a liberdade de usar suas próprias palavras.

[112] No caso da primeira pergunta, Hutto e Myin (2017) argumentam ainda que o conteúdo característico da cognição superior (pensar, refletir, inferir, lembrar, imaginar etc.) não é composto de representações mentais, mas de símbolos socioculturalmente distribuídos. Para uma explicação na linha da de Hutto e Myin de como a cognição superior emergiu em nós, humanos, através de um longo processo de manuseio de itens publicamente transmitidos, veja-se Rolla (2022). Outros autores, trabalhando na fronteira entre enativismo e psicologia ecológica, articulam o conceito de affordance para ampliar o escopo de explicações radicalmente corporificadas da cognição superior (KIVERSTEIN; RIETVELD, 2015, 2018; RIETVELD; KIVERSTEIN, 2014). Veja-se Rolla (2021a, capítulo 3), para uma discussão.

 

[113] Esta subseção aproveita alguns argumentos que são mais cuidadosamente explorados no meu livro A Mente Enativa (2021a).

[114] Eu agradeço a um parecerista anônimo por essa observação.

[115] Agradeço a Thales Silva por essa última observação.

[116] Os autores também mencionam o trabalho de Stanley e Williamson (2001), os quais defendem que o conhecimento prático é um tipo de conhecimento proposicional — uma tese conhecida como intelectualismo. Embora Pereira et al. não se apoiem diretamente sobre essa proposta, devo tratar brevemente sobre ela. Stanley e Williamson argumentam que saber fazer x é semanticamente semelhante a saber que P é o caso — pois saber fazer x implicaria que se sabe, acerca de um modo M, que M é o modo correto de fazer x. No entanto, há uma lacuna no argumento intelectualista, pois Stanley e Williamson reconhecem um “modo prático de apresentação” implicado exclusivamente no conhecimento prático. Isto é, mesmo que faltem as palavras a um sujeito para explicar como ele sabe fazer algo, ele é capaz de mostrar que este é o jeito certo fazer algo. Isso pode envolver, por exemplo, demonstrar o jeito certo de fazer algo. Anti-intelectualistas prontamente respondem que não está claro como um modo prático de apresentação ou uma maneira prática de pensar (como STANLEY, 2011, coloca) não estariam ligados à noção de habilidade ou a qualquer outra noção central ao conhecimento prático. Dessa forma, o recurso empregado pelos intelectualistas para dar conta da intuição de que há algo de distintivo no conhecimento prático pode ser considerado meramente ad hoc.

 

[117] O mesmo argumento também é ilustrado com a história do paraplégico Juliano Pinto, o qual, com o auxílio de um exoesqueleto, foi capaz de dar o pontapé inicial na Copa do Mundo de 2014. As mesmas considerações que faço a seguir, no corpo do texto, com respeito a João Carlos Martins se aplicam no caso de Juliano Pinto.

[118] Eu agradeço a um parecerista anônimo por essa observação.

[119] O exemplo da bicicleta do qual me vali aqui foi sugerido por um parecerista anônimo.

[120] Os autores também imaginam um cenário no qual João Carlos tivesse desenvolvido o mal de Alzheimer, sem perder a capacidade motora (ao menos inicialmente). “Nós diríamos que ele ainda sabe como tocar piano?” Não sei o que nós diríamos, e o que nós diríamos provavelmente não importa muito. A pergunta certa é: ele ainda consegue tocar piano? Ou melhor: ele consegue como antes? Com a mesma fluidez? Ele continua sendo capaz de treinar e de refinar suas habilidades?

[121] Eu agradeço a um parecerista anônimo por me chamar atenção a esse ponto.

[122] Obviamente, há uma tendência em tratar cérebro e corpo como opostos, pois ambos os termos abreviariam a exclusão um do outro. Por exemplo, “cérebro” quer dizer “cérebro menos o resto do corpo” e “corpo” quer dizer, por sua vez, “corpo menos o cérebro”. Justamente, pressupor esse tipo de distinção — como se o funcionamento do cérebro não dependesse de oxigenação, circulação sanguínea e termorregulação, que são produtos da atividade do organismo como um todo — para argumentar pela exclusividade do cérebro na determinação da mentalidade é pressupor, de partida, que se pode tratar o corpo como um mecanismo. O sentido de “mecanismo” que tenho em mente aqui é de estrutura que pode ser separada por partes, em que cada uma pode ser analisada independentemente das demais, sem prejuízo à configuração do todo. Justamente, concepções corporificadas da cognição têm por ponto de partida a rejeição da ideia moderna de que o corpo (e fenômenos biológicos de um modo geral) deve ser entendido como os mecanismos da física. O que há de próprio ao domínio biológico em comparação com o domínio físico (e talvez com o químico também) é exatamente a existência de múltiplos regimes causais que caracterizam sistemas complexos, em que a emergência é a regra e não a exceção. Eu agradeço mais uma vez a um parecerista anônimo por me chamar atenção a esse problema.

[123] Esse é um drink que minha companheira e eu criamos, na tentativa de reproduzir um drink de um restaurante homônimo, em Salvador (BA). Segue a receita: três partes vinho branco seco, duas partes de espumante, meia parte de vermouth branco e fatias de morango a gosto. O nosso ficou melhor.

[124] Essa resposta também se aplica ao caso das uvas Carménère e Merlot, no artigo original.

[125] Universidade Federal de Minas Gerais (|UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0584-3424. E-mail: felipencarvalho@gmail.com.

[126] O leitor atento terá percebido que o último “E” – estendido – foi deixado de fora, mas isso é porque Piccinini diz explicitamente que permanecerá neutro em relação ao caráter estendido da cognição (2002, p. 3). Essa qualificação em nada afeta o argumento central deste comentário.

[127] Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE – Brasil. Bolsista de produtividade do CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1552-2525. E-mail: marcossilvarj@gmail.com.

[128] Professor titular aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. Vinculado ao PPG em Filosofia como pesquisador e docente voluntário. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8252-020X . E-mail: domingues.ivan3@gmail.com.

[129] De fato, Picasso não foi o único e com certeza não será o último grande pintor a retomar e “comentar” o quadro famoso de Manet, datado de 1863. Antes dele, houve nada menos do que Monet, com direito a vários esboços e a uma tela principal, belíssima, datada de 1866 e jamais acabada, que se encontra no Museu Pouchkine, em Moscou, enquanto outros esboços que faziam parte dos estudos podem ser avistados no Museu d’Orsay, em Paris. Como Picasso não os considera, ele que voltou ao tema cerca de 100 anos depois, decidi deixá-los à margem, para não encompridar o assunto.

Fica aqui apenas o registro, lembrando que o ideal é o leitor comparar as imagens dos três grandes mestres da pintura. Para tanto, selecionei, nos endereços abaixo, uma imagem atinente a cada um deles, dentre as várias possíveis, sabidos são seus numerosos esboços e telas.

Ver, respectivamente: Le Déjeuner sur l'herbe - 1863 (Édouard Manet) https://pt.wikipedia.org/wiki/Le_D%C3%A9jeuner_sur_l%27herbe#/media/Ficheiro:%C3%89douard_Manet_-_Le_D%C3%A9jeuner_sur_l'herbe.jpg; Le Déjeuner sur l'herbe - 1866 (Claude Monet)

https://www.artble.com/artists/claude_monet/paintings/dejeuner_sur_l'herbe; Le Déjeuner sur l'herbe d'après Manet, 1960 (Pablo Picasso) https://www.artsy.net/artwork/pablo-picasso-le-dejeuner-sur-lherbe-dapres-manet-luncheon-on-the-the-grass-after-manet

 

[130] Professor na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG – Brasil. https://orcid.org/0000-0002-7571-0977 . E-mail: lucio.marques@uftm.edu.br.

[131] Professor Associado do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Bauru), Bauru, SP – Brasil, e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Marília). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9525-1114. Email: jonas.coelho@unesp.br.

[132] No livro Princípios de Filosofia, Descartes define substância como alguma coisa que não depende de outra coisa para existir, isto é, como algo que serve como substrato ou suporte para outros seres existentes que seriam seus atributos. É nesse sentido que o filósofo escreve, no livro mencionado, que uma substância é “[...] uma coisa que existe de tal maneira que tem necessidade de si própria para existir.” A seguir, reitera essa posição, apenas acrescentando que uma substância, diferentemente de um atributo, é uma criação divina que não depende de outra criação divina: “Todavia, porque, entre as coisas criadas, algumas são de tal natureza que não podem existir sem as outras, distinguimo-las daquelas que só têm necessidade do concurso ordinário de Deus, chamando então, a estas, substâncias e, àquelas, qualidades ou atributos das substâncias.” (DESCARTES, 1952, p. 594).

[133] “Experiências conscientes variam de sensações de cores vívidas a experiências mais tênues de aromas de fundo; de dores extremas a elusivas a experiências de pensamento na ponta da língua; de sons e aromas mundanos a abrangente grandeza da experiência musical; da trivialidade de uma coceira persistente ao peso de uma profunda angústia existencial; da especificidade do sabor menta à generalidade da experiência de eu. Todos esses têm uma experiência qualitativamente distinta. Todos são partes proeminentes da vida interna da mente. Podemos dizer que um ser é consciente se há algo como é ser aquele ser, para usar a frase tornada famosa por Thomas Nagel. Do mesmo modo, um estado mental é consciente se há algo como estar naquele estado mental.” (CHALMERS, 1996, p. 4).

[134] Há um grande debate a respeito da possibilidade lógica e possibilidade natural de zumbis. O próprio David Chalmers considera improvável a possibilidade natural de zumbis. Esse debate diz respeito principalmente à questão da irredutibilidade ou não da consciência ao físico, e não propriamente ao problema da lacuna explicativa, embora essas duas questões estejam relacionadas. Não tratarei da querela acerca da possibilidade de zumbis, visto que meu principal objetivo, neste artigo, não é discutir se a consciência é distinta e irredutível ao físico, contudo, assumindo a distinção e irredutibilidade, focar no problema da lacuna explicativa.

[135] “O essencialismo científico defende que (a) a matéria não é passiva, mas essencialmente ativa e reativa; (b) as propriedades essenciais das coisas pertencentes a tipos naturais incluem propriedades disposicionais – isto é, poderes causais, capacidades e propensões; (c) as leis básicas da natureza não são descrições de regularidades comportamentais, mas dos modos pelos quais as coisas pertencentes a tipos naturais devem estar dispostas a agir ou interagir, dadas suas propriedades essenciais; (d) as leis da natureza são metafisicamente necessárias, porque qualquer coisa que têm as propriedades disposicionais essenciais de um dado tipo natural devem estar dispostas a comportar-se como essas propriedades requerem; (e) relações causais elementares envolvem conexões necessárias entre eventos – saber, entre os disparadores e exibidores de propriedades disposicionais básicas.” (ELLIS, 2007, p. 106).

[136] Tratei mais detalhadamente da relação entre cérebro e consciência visual em Coelho (2018).

[137]  “Gostaríamos de uma teoria da consciência que fizesse pelo menos o seguinte: ela deveria oferecer as condições sob as quais processos físicos originam a consciência, e para esses processos originarem consciência, deveria ser especificado que tipo de experiência está associado. E gostaríamos de uma teoria que explicasse como ela se origina, de modo que a emergência da consciência parecesse inteligível e não mágica. No final das contas, gostaríamos de uma teoria que nos permitisse ver a consciência como uma parte integral do mundo natural.” (CHALMERS, 1996, p. 5).

[138] Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9777-5667. E-mail: umamenteconsciente@gmail.com.

[139] A análise das publicações de Coelho (2015a, 2015b, 2017, 2018, 2019, 2023) me faz entender que a flutuação entre as expressões ‘mente’ e ‘consciência’ não interefe na compreensão e exposição da abordagem que o autor tem defendido. Minha opção neste parecer avaliativo pela expressão ‘consciência’ encontra sua justificativa na opção de Coelho (2023) pelo termo desde o título do presente artigo.

[140] Professor aposentado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2370-4727. E-mail: josecrisostomodesouza@gmail.com.

[141] Ver, sobre isso, p. ex. meu texto Marx and Feuerbachian Essence. In: MOGGACH, D. (org.). The New Hegelians. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

[142] Sobre isso, ver, de Marx, Crítica da Dialética e da Filosofia de Hegel em Geral, seção 11 do 3º. dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, ou Manuscritos de 1844, de Marx.

[143] As Teses ad Feuerbach, de Marx, ou Teses sobre Feuerbach, de 1845, são geralmente publicadas em conjunto com a Ideologia Alemã, obra de Marx e Engels, do mesmo período. Elas foram consideradas por Engels como o genial embrião (em cerca de duas páginas) da genial concepção materialista histórica e econômica inteira de Marx.

[144] Isso no volume I de O Capital, no conhecido trecho em que Marx alega que o pior arquiteto é melhor do que a melhor abelha, porque é capaz de conceber antecipadamente, na sua cabeça, a casa que quer construir.

[145] Em seu lado mais epistemológico, as concepções que apresento nesta parte mostram algumas convergências e semelhanças, embora também notáveis diferenças, com relação a outros programas de pesquisa contemporâneos, como o naturalismo filosófico, não reducionista e, em especial, o enativismo. É algo que merece ser explorado, que pode ampliar o esclarecimento e o desenvolvimento do que proponho, pondo também à prova suas pretensões. É o que sugere, de modo maneira muito pertinente e perspicaz, um colega, parecerista anônimo, sobre nosso texto, que indica, quanto ao enativismo, como um possível ponto de partida dessa exploração, o texto de Ralph Ings Bannell, na coletânea do Poética já mencionada, e, a propósito da ideia de uma intencionalidade social e de inferencionismo, os trabalhos de Michael Tomasello, A Natural History of Human Thinking e A Natural History of Human Morality. Outros textos, neste número de Transformação, não são alheios ao nosso assunto, como, em especial, o do colega Giovanni Rolla.

 

[147] Estas não são “Referências” usuais. Dado o tipo de texto aqui desenvolvido, ela traz uma lista dos materiais que melhor apresentam e discutem o materialismo prático poiético de que o texto fala, mais alguns que desenvolvem os seus usos ou que estão associados, de modo relevante, ao seu percurso de construção. Esses textos não aparecem em ordem alfabética, nem propriamente cronológica, mas, grosso modo, na sequência de sua centralidade para o projeto, segundo os referidos critérios, ao mesmo tempo que aproximados em blocos por afinidade de assunto ou tipo de publicação.

[148] Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA – Brasil, Pesquisador CNPq. ORCID: 0000-0002-0874-9599. E-mail: wjsf.ufba@gmail.com.

[149] A rigor, José Crisóstomo, no corpo do artigo “Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira”, não afirma que o (MPP) é uma criação individual, exclusivamente sua, mas o resultado de um trabalho cooperativo.

[150] Há uma farta literatura sobre o assunto. Para uma visão geral, ver Christensen e Lackey (2013) e Frances (2014).

[151] Professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0681-60731. E-mail: lbraga@pucsp.br.

[152] Docente em Semiótica Psicanalítica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP – Brasil. Doutor em Comunicação e Semiótica com pós-doutorado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3161-7324. E-mail: adrianoescritor@yahoo.com.br. Site: adrianomessias.com

[153] Docente na Universidade Estadual Paulista (UNESP/Marília), Marília, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3837-4644. E-mail: eunice.gonzalez@unesp.br. Apoio CNPq e FAPESP

[154] Docente na Universidade Estadual Paulista (UNESP/Marília), Marília, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1007-8576. E-mail: m.broens@unesp.br. Apoio CNPq e FAPESP

[155] Docente no Centro de Matemática, Computação e Cognição da Universidade Federal do ABC (UFABC), Santo André, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8695-0458. E-mail: jose.gonzalez@ufabc.edu.br. Apoio FAPESP.

[156] Docente no Centro de Matemática, Computação e Cognição da Universidade Federal do ABC (UFABC), Santo André, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2563-8601. E-mail: guiou.kobayashi@ufabc.edu.br.

[157] Nesse modelo a comunicação entre pessoas pode incluir ruído em vários planos, não apenas no canal.

[158] O modelo de comunicação centrado no significado aqui proposto é suficientemente geral para incluir agentes/sistemas não humanos.

[159] Professor da Universidade Federal do Cariri (UFCA), Juazeiro do Norte, CE – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8142-1015. E-mail: maxwell.lima@ufca.edu.br.

[160] De acordo com Margaret A. Boden (2020, p. 22), a intenção primordial de Turing era escrever um texto mais longo e mais detalhado, para enaltecer o campo da inteligência artificial, porém, as restrições concernentes à confidencialidade do período o impediram de levar a cabo esse projeto desbravador: “Ele [Turing] identificou questões-chave acerca do processamento de informações contido na inteligência (capacidade de jogar, percepção, linguagem e aprendizagem), fornecendo dicas fascinantes acerca do que já tinha sido alcançado. (Só ‘dicas’, porque o trabalho em Bletchey Park ainda era ultrassecreto.) Turing sugeriu até abordagens computacionais – como as redes neurais e a computação evolutiva –, que só se tornaram relevantes muito mais tarde.”

[161] Outro rebento cibernético é a noção de auto-organização, que teve especial influência em muitos(as) pesquisadores(as) que produziram os primeiros trabalhos da área de Ciências Cognitivas, no Brasil. Gonzalez e Broens (1998b, p. i) traçam a seguinte síntese dessa concepção: “Tendo surgido nos estudos da cibernética na década de 40, o conceito de auto-organização desempenhou um papel gerador de hipóteses acerca da estrutura e natureza dos processos cognitivos e sua (im?)possível simulação em modelos mecânicos. Feliz ou infelizmente, esta noção foi quase esquecida nas décadas de 60 e 70, quando do desenvolvimento e auge da Inteligência Artificial (IA), cuja proposta de estudo do pensamento inteligente enfatiza o emprego de regras preestabelecidas para manipulação de símbolos, que, supostamente, seriam os constituintes básicos do nosso universo cognitivo. Foi somente na década de 80, quando o projeto da IA começou a apresentar alguns problemas, até agora aparentemente instransponíveis, que a noção de auto-organização foi retomada pelo movimento Conexionista, ou de Redes Neurais Artificiais (RNA)”. Recordar é viver! Entre nós, houve uma sistematização e uma organicidade das Ciências Cognitivas e da Teoria da Auto-Organização (TAO), sobretudo nos últimos anos do século passado. A título de ilustração, destacamos as seguintes ações que ocorreram entre 1995 e 2000: (i) realização das quatro primeiras edições do Encontro Brasileiro-Internacional de Ciências Cognitivas (EBICC) – I EBICC (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Marília, 1995), II EBICC (Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Campos dos Goytacazes, 1996), III EBICC (Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998) e IV EBICC (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Marília, 2000); (ii) fundação da Sociedade Brasileira de Ciência Cognitiva – SBCC (em 1995, durante o I EBICC); (iii) lançamento dos primeiros livros da série Auto-organização: estudos interdisciplinares – Debrun, Gonzalez e Pessoa Jr. organizaram o volume 1 (1996), D'Ottaviano e Gonzalez organizaram o volume 2 (2000); (iv) lançamento dos primeiros livros da série Encontros com as ciências cognitivas – Gonzalez, Lungarzo, Milidoni, Pereira Jr. e Wrigley organizaram o volume 1 (1997) e Gonzalez e Broens organizaram o volume 2 (1998a); (v) a gênese de nossos primeiros encontros internacionais de Filosofia da Mente também remontam a essa época – o I Colóquio Internacional de Filosofia da Mente foi sediado na Unesp (Marília, 1999) e o II Colóquio Internacional de Filosofia da Mente, na Universidade Federal da Paraíba (João Pessoa, 2000). A riqueza do intercâmbio em solo nacional pode ser vislumbrada pelo fato de que profissionais com formação acadêmica em numerosas áreas – como a Filosofia, a Psicologia, a Medicina, a Física, a Engenharia (Elétrica, Mecânica e de Produção) – e representando diversos países – tais como o Brasil, a França, o Reino Unido, a Dinamarca, a Itália, Israel, os Estados Unidos, a Alemanha e a Argentina – estiveram colaborando nesses eventos e nessas publicações. Dentre tantos(as) pesquisadores(as) relevantes, rememoramos a importância de uma das figuras de proa desse movimento. Nascido em 1921, na França, o filósofo Michel Maurice Debrun chegou ao Brasil em meados dos anos 1950, lecionou em diversas instituições (Universidade de Toulouse, Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas, Universidade de São Paulo e Unicamp) e colaborou com a criação do Centro de Estudos de Lógica e Epistemologia (CLE-Unicamp), vindo a falecer em Campinas (1997). A Biblioteca do CLE foi batizada com seu nome e o livro Encontros com as ciências cognitivas (volume 1) contém esta singela dedicatória: “À memória de Michel M. Debrun, que nos deixou quando, com a sua ajuda, começamos a perceber a beleza e complexidade dos sistemas perceptivos que se auto-organizam.”

[162] Nessa perspectiva, há uma diferença entre linguagem e comunicação. Uma abelha operária pode indicar a fonte de alimento para sua semelhante, o coaxar do sapo-cururu pode atrair sua parceira sexual e o Snoopy pode demonstrar ao Charlie Brown que está com fome. Não obstante, os referidos exemplos comunicacionais exitosos, a abelha, o sapo e o cachorro, não teriam uma linguagem.

[163] A sigla GPT deriva de Generative Pre-trained Transformer. O ChatGPT é uma tecnologia de inteligência artificial capaz de interagir conversacionalmente, tendo sido lançado em 30 de novembro de 2022 pela corporação OpenAI.

[164] Seguindo a crítica conceitual ao Teste de Turing, John Searle (2021) diria que o ChatGPT é um programa totalmente sintático que apenas manipula os símbolos, mas não os compreende.

[165] Por exemplo, a contribuição direta ocorre quando se atribui inveridicamente que determinada pessoa se valia de crianças para fazer rituais satânicos e a população a assassina brutalmente, por linchamento. Um caso de contribuição indireta se deu quando uma criança morreu de Covid-19, porque seus pais se negaram a imunizá-la por temer que o vírus HIV a infectasse. Como sabemos, esse rastro destrutivo atinge outras espécies, como o demonstram os numerosos macacos mortos em razão da disseminação de mentiras envolvendo a transmissão de varíola.

[166] Esse termo é bem explicado por Santaella e Kaufman (2021, p. 214-5): “Big data caracteriza-se não apenas pelo volume, mas por uma rica mistura de tipos e formatos de dados, pela variedade e pela natureza sensível, ao mesmo tempo que marca um desvio do processamento em lote tradicional, velocidade. Embora tenha se tornado, nos últimos anos, uma espécie de palavra de ordem, sua emergência é fruto de uma série de fatores que vieram se desenrolando a partir do advento da cultura do computador, que trouxe, entre muitos outros fatores, a crescente mudança de escala de processamento computacional e o agigantamento da circulação de informações na internet.”

[167] Em realidade, entre o(a) emissor(a) e o(a) receptor(a) há ainda uma fase intermediária de codificação-descodificação da mensagem. Por exemplo, caso Caim esteja utilizando seu computador para enviar uma mensagem desaforada para Abel, será necessário utilizar uma linguagem de alto nível (próxima à linguagem humana) – e.g., editor de texto que permite a utilização do alfabeto –, a qual será codificada até se chegar à linguagem de baixo nível (próxima à linguagem da máquina), que, por sua vez, será convertida na linguagem de alto nível que permitirá a Caim lê-la.

[168] Optamos por colocar uma seta dos potenciais influenciadores semânticos também apontando para o(a) emissor(a), por dois motivos, quais sejam: primeiro, porque a predisposição comportamental do(a) emissor(a) será influenciada por seu sistema de crenças, por suas experiências anteriores, por sua habilidade analítica e por informações relacionadas ao assunto em tela, ou seja, a experiência concreta e contextual do(a) emissor(a) é relevante para (e antecede) o fluxo da mensagem em t1; segundo, porque a retroalimentação (realimentação ou feedback) acaba por, digamos assim, inverter a distinção conceitual de que partimos: o(a) receptor(a) se torna emissor(a) – e vice-versa –, e a mensagem reenviada será agora recebida por uma pessoa que, como todos nós, a interpretará a partir da sua conjuntura de vida. Ademais, sistemas artificiais como softwares e robôs não estariam livres dos potenciais influenciadores semânticos, seja porque eles os herdam de seu programador e/ou de sua empresa (vide o escândalo da Cambridge Analytica), seja porque eles são moldados no decorrer de suas interações virtuais (nesse caso, eles podem acabar por reproduzir, por exemplo, condutas machistas ou homofóbicas).

[169] Criativo que é, Pantaleão poderia ter pensado em algo semelhante a isto: https://www.youtube.com/shorts/nRaI3AbhUjc.

[170] Frisamos que conhecer de antemão o perfil dos(as) destinatários(as) também confere vantagem, mesmo que não sejam distribuídos conteúdos inautênticos. Numa palavra, tal discernimento permite escolher quais mensagens verdadeiras serão direcionadas para os(as) apoiadores de Donald Trump, para a fatia indecisa do eleitorado e para os(as) simpatizantes de Hillary Clinton.

[171] Prazeres e Ratier (2020, p. 89) salientam que a estudiosa Claire Wardle distingue aquela pessoa que não tem consciência do conteúdo desse tipo de mensagem daquela que a possui (e, até mesmo, a fabrica): “Em sua tipologia, Wardle recorre a misinformation e disinformation para designar a complexidade de tipos de distorções. O primeiro seria relativo ao compartilhamento não intencional de informações falsas. Já o segundo abarcaria o compartilhamento e criação deliberados desse tipo de conteúdo. Essas duas categorias abarcariam sete subtipos: sátira ou paródia, conteúdo enganador, fraude, conteúdo fabricado, falsa conexão, falso contexto e conteúdo manipulado. Wardle estrutura sua tipologia segundo três critérios: intencionalidade em enganar, motivações para sua criação e maneiras de disseminação.” De resto, indicamos o supracitado artigo de Prazeres e Ratier ao(à) leitor(a) que almeja apreender de que jeito os conceitos de fake e de fast se avizinham, durante o ato comunicativo.

[172] Atualmente, abundam casos problemáticos de bolhas que funcionam como espaços de “desinformação”, ao propagar e reforçar estereótipos e preconceitos (machismo, homofobia, intransigência política, intolerância religiosa, xenofobia etc.), elevando o nível de polarização social. Broens (2022) sustenta que, diante de casos semelhantes a esse, temos a tarefa ético-epistemológica de combater a cultura que ampara e prolifera esses juízos estreitos e equivocados.

[173] Exemplifiquemos um possível teste envolvendo a Folha de S. Paulo. Com o intuito de averiguar sua influência perante a opinião pública sobre determinado assunto (e.g., a importância de se investir no Sistema Único de Saúde), selecionamos como espaço amostral 2.000 leitores assíduos desse periódico (grupo experimental) e 2.000 pessoas que não a leem (grupo-controle); em seguida, colhemos e categorizamos (como positivas, neutras e negativas) as respectivas postagens desses grupos, nas redes sociais; finalmente, comparamos estatisticamente os resultados dos grupos experimental e controle. Obviamente, esse relato reduzido esconde alguns obstáculos que serão enfrentados em situações factuais – mencionemos três deles: (i) o processo de categorização é bastante espinhoso, (ii) há uma parcela em ambos os grupos que não manifesta sua opinião em redes sociais e (iii) como há pessoas que leem mais de uma fonte (Folha de S. Paulo e Revista Capital e BBC News Brasil, por exemplo), será preciso fazer diversos tipos de cruzamento de dados.

[174] Para Broens, Gonzalez, Kobayashi e Quilici-Gonzalez (2023), estamos na presença de uma abordagem benéfica dos Big Data, quando ela serve de base para amplificar a voz de grupos historicamente oprimidos. Com essa aliança digital, podemos nos debelar contra o machismo, a homofobia, a intransigência política, a intolerância religiosa, a xenofobia etc.

[175] Docente no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4191-1719. E-mail: opessoa@usp.br.

[176] Um dos pareceristas sugeriu que os temas das leis de ponte e da lacuna explicativa fossem mais bem desenvolvidos, levantando duas questões principais: (1) o estabelecimento empírico das leis de ponte como meras correlações existentes entre estados mentais e corporais não seria muito pouco para superar a lacuna explicativa? Minha resposta seria afirmativa: a lacuna explicativa existe, e não há como capturar estados qualitativos, a partir de uma linguagem que exprime relações quantitativas (ver PESSOA, 2019); (2) o estabelecimento das leis de ponte não poderia dar ensejo a um materialismo eliminativista? Creio que não, justamente pela existência da lacuna explicativa. Em um artigo a ser submetido, neste ano, para a revista Lampião, explorarei essas questões, ao examinar a tese da identidade mente-encéfalo, no contexto de um fisicismo qualitativo reducionista.

[177] Para um resumo histórico do emergentismo, ver Pessoa (2013) e as referências ali indicadas.

 

[178] Professor adjunto da Universidade Federal do Cariri (UFCA), Juazeiro do Norte, CE – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4267-8146. Email: jose.gladstone@ufca.edu.br.

[179] Pessoa (2013) apresenta diferentes definições de “emergência”.

[180] Professor titular aposentado da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9125-9701. E-mail: pccabr@gmail.com.

[181] Sou muito grato aos dois pareceristas pelas suas contribuições para o aperfeiçoamento deste artigo.

[182] Voltaremos a mencionar esses paralelos mais adiante, quando tratarmos da competição.

[183] É sugestivo observar que artefatos materiais e outros tipos de VCs fazem parte do fenótipo estendido dos agentes. A noção de fenótipo estendido foi proposta, originalmente e no contexto da evolução biológica, por Dawkins (1989).

[184] Godfrey-Smith (2009) emprega, nesse contexto, o termo “explicação”, assim como o fazem Claidière et al. (2014). Neste artigo, optamos por adotar o termo “descrição” para qualificar os tipos ilustrados na figura.

[185] Abrantes (2011, 2013) comete um equívoco na descrição da população PoCg (o acrônimo correspondente, adotado nessas publicações em inglês, é CPg). Não se trata, como lá é dito, que as VCs são tomadas em grupo e não individualmente, mas sim que são VCs de grupos, compondo os fenótipos dos grupos na metapopulação PoBg (o acrônimo correspondente, adotado naquelas publicações, é BPg).

[186] O leitor, provavelmente, notou a ambiguidade no uso do termo “indivíduo”, para qualificar o nível em que se situam as populações PoCi e PoCb, uma vez que se admita que grupos podem, eventualmente, também ser considerados indivíduos e níveis de seleção natural. Não conseguimos encontrar um termo melhor para qualificar os níveis e que também não apresentem inconvenientes. Como o tema das transições em individualidade não é central a este artigo, essa ambiguidade não deverá causar problemas de entendimento.

[187] Uma discussão a respeito pode ser encontrada em Abrantes (2011, 2013).

[188] De Almeida (2020) utilizou o arcabouço conceitual de Godfrey-Smith para investigar possíveis transições em individualidade ocorridas no quadro institucional das sociedades modernas.

[189] Variação “cega” não equivale, contudo, a variação “aleatória”. Embora a variação genética seja “cega”, no sentido aventado, ela não é aleatória, pois a probabilidade de surgir uma certa variante genética pode ser maior do que a de outra, dependendo das causas e restrições atuantes no modo como essas variantes são geradas. Além disso, há que se ter cuidado na atribuição, eventual, de qualificativos análogos ao processo de geração de uma VC. Voltaremos a esse ponto, quando discutirmos a herança cultural e os vieses na transmissão cultural.

[190] A variação guiada (pelo ambiente) com base na aprendizagem individual não garante maior aptidão para o agente, a depender das características do ambiente. Esse é um ponto enfatizado por Richerson e Boyd: se o ambiente é muito instável, ou o comportamento adaptativo é dificilmente adquirido pelo indivíduo, ao longo da sua vida, então é mais vantajoso aprender socialmente, por imitação (o erro tem um custo!). É melhor copiar o mais fielmente possível “o que deu certo” naquele ambiente, a partir da experiência de outros agentes, em geral das gerações anteriores (NECO; RICHERSON, 2014).

[191] Se o agente imita fielmente um outro, não introduz, evidentemente, qualquer modificação na VC. E se a transmite, sem modificação, a outros agentes, nenhuma variação é “gerada” nesse processo de assimilação e transmissão.

[192] A variação guiada pode ser entendida em termos do que Dennett chamou uma “criatura popperiana”. Esta é capaz de pré-selecionar as variações originalmente cegas (comportamentos potenciais, ideias etc.) produzidas por algum gerador interno à criatura. Teríamos, no caso, um gerador que alimenta um selecionador (o qual incorpora um modelo do ambiente externo), ambos internos ao agente (ABRANTES, 2004). Os comportamentos ou ideias exibidas, efetivamente, pelo agente são, nesse sentido, guiadas. O processo selecionista é, dessa forma, incorporado no processamento cognitivo do agente.

[193] Eventuais mal-adaptações biológicas, que reduzem a capacidade reprodutivo-biológica dos seus portadores, resultam do fato da herança cultural dar-se, em PoCi, não somente pelo canal vertical, mas também pelo canal horizontal. Este não é o caso em PoBi, conforme já frisamos.

[194] O conceito de “seleção cultural” será discutido mais adiante. As questões relativas à acumulação cultural e ao surgimento de novidade cultural são muito relevantes, mas bastante complexas (ver GODFREY-SMITH, 2012). Essa discussão pressupõe a diferença, que esse filósofo propõe, no caso da evolução biológica, entre “explicações de distribuição” e “explicações de origem”. As explicações de distribuição, segundo Godfrey-Smith, pressupõem a “descrição mínima” de um fenômeno populacional darwiniano, de que já tratamos. Explicações de origem requerem a intervenção de outros parâmetros, os quais possibilitem descrever um processo evolutivo paradigmático, e não somente marginal (Cf. ABRANTES, 2013, p. 208, 210-214).

[195] Um ponto central nessa discussão diz respeito à existência de condições para a herdabilidade cultural, requeridas para que haja uma EC acumulativa, um tópico que não abordamos neste artigo. Fizemos uma breve referência a D. Hull a esse respeito e veremos, abaixo, que vieses na transmissão cultural e a construção de nichos culturais são fatores relevantes para que essa acumulação se verifique. Um outro ponto a ser ressaltado é que os processos evolutivo e de desenvolvimento estão inter-relacionados (ABRANTES, 2020c), o que é ainda mais evidente no caso da EC.

[196] Não há, contudo, um vínculo conceitual, necessário, entre teorias evolutivas da cultura e teorias da evolução, na linhagem hominínea. Neste artigo, estas últimas são usadas, simplesmente, para ilustrar questões colocadas pelas primeiras.

[197] A teoria da dupla herança assenta-se em modelos que Claidière et al. (2014) qualificam de “selecionistas” (ver a seção I.1). São sugestivas, nesse sentido, as comparações que esses autores fazem com a epidemiologia, aplicando ao caso cultural a diversidade de modelos usados para descrever e prever a propagação de doenças.

[198] MAMELI, 2004, p. 40, 65; LEAL-TOLEDO, 2013, p. 190, n. 3. A herdabilidade, convém ressaltar, é uma propriedade dos traços fenotípicos, e não dos genes (SOBER, 2001, p. 54; cf. SOBER, 1994).

[199] Mameli também enuncia a questão de como modalidades de variação não genética (como é o caso da variação cultural) interagem com a variação genética. Essa questão não é tratada no presente artigo (cf. ABRANTES, 2018), mas faremos uma breve menção à coevolução gene-cultura, nas Conclusões.

[200] Mesmo que a variação guiada e o conformismo diluam a variação cultural em PoCi, isso não impede que, em princípio, a SN seja uma força significativa no nível dos grupos culturais. Mais adiante, trataremos do caso específico das populações no nível do grupo.

[201] Uma questão é saber se isso também ocorre na população PoBi, mas é argumentável que não seja o caso, por várias razões. Entre elas, ressaltamos a provável similaridade entre os vieses psicológicos de pais e filhos/filhas biológicas, bem como a construção de um nicho, pelos pais, que favorece a transmissão e a assimilação fidedigna de certas VCs e/ou de vieses, heurísticas e mecanismos cognitivos (cf. BIRCH; HEYES, 2021).

[202] Estamos supondo, nessa discussão, que a posse de uma VC afete a aptidão biológica dos seus portadores, caso contrário, a SN não atuaria. Outra hipótese seria termos uma outra modalidade de seleção, uma seleção propriamente cultural, tópico ao qual dedicaremos uma seção.

[203] Quando temos reprodução assexuada e com alta fidelidade, fala-se de “replicação” de uma VC, como observamos anteriormente.

[204] Há também gradação nas populações de seres vivos, algumas sendo mais paradigmáticas do que outras, no que diz respeito a uma dinâmica populacional darwiniana, segundo mostra Godfrey-Smith (2009). Cf. ABRANTES (2011).

[205] Para Leal-Toledo (2013, p. 193-194), é uma “questão em aberto” se há pressões seletivas “externas” sobre os memes, ou se elas são, exclusivamente, “internas”, isto é, devidas aos recursos cognitivos escassos dos seus portadores.

[206] Se considerarmos não um único agente portador do meme, como normalmente se faz, mas vários agentes numa população, os recursos cognitivos podem não ser tão escassos assim, já que distribuídos entre os vários agentes. Isso reduziria, em princípio, a competição entre VCs. Ver, abaixo, a discussão que fazemos sobre deriva cultural, a qual leva também em conta o fator demográfico relativo aos portadores dessas VCs.

[207] Ao longo deste artigo, adotamos a expressão “seleção natural” (SN), mesmo no caso em que a herança é cultural, ou seja, quando se trata de uma VC que, ao ser assimilada por aprendizagem social, afeta a aptidão biológica do seu portador. Gera confusão, a nosso ver, falar de “seleção cultural”, nesses casos, como fazem Birch e Heyes (2021), os quais distinguem dois tipos de “seleção cultural”.

[208] Não abordamos, neste texto, a atuação da SN sobre os mecanismos psicológicos envolvidos na aprendizagem individual e que possibilitam a variação guiada. Abrantes e De Almeida (2018) discutem, a partir da teoria da dupla herança, o(s) ambiente(s) físico(s) e social(i)s que teriam promovido, no processo evolutivo da linhagem hominínea, modalidades de aprendizagem individual e de aprendizagem social, bem como o viés conformista.

[209] Essa expectativa é razoável para quem se apoia em analogias com a EB, porque a aptidão de um ser vivo é função do ambiente em que ele se situa, e não somente dos processos que ocorrem internamente ao ser vivo.

[210] Claidière et al. (2014, p. 2, 7). Esses autores também incluem a variação guiada entre os processos construtivos que levam a uma convergência da população, como um todo, para certos atratores. Baravalle (2021, p. 453-454) defende, por sua vez, a importância dos fatores demográficos, não só em biologia evolutiva, o que é amplamente reconhecido, mas também em EC, eventualmente conferindo a este processo, ao lado de outros fatores, como a herdabilidade, um caráter dinamicamente suficiente, no sentido de evidenciar leis de transformação que indicam a atuação de mecanismos causais específicos.

[211] Trata-se de uma formulação duvidosa, pois faz dos memes agentes (do mesmo modo como o “ponto de vista do gene” faz dos genes agentes). Godfrey-Smith (2009) denuncia, em ambos os casos, o que ele chama de agential view. Cf. Leal-Toledo, 2013, p. 194, 197, 199.

[212] Chamamos a atenção para o fato de que a expressão “mal-adaptação cultural” é empregada na literatura sobre EC com diferentes sentidos, o que causa confusão. Richerson e Boyd usam essa expressão, no sentido em que aqui utilizamos, de uma mal-adaptação biológica causada por uma VC. Esse uso da expressão “mal-adaptação cultural”, por Richerson e Boyd, deve ser distinguido daquele atribuído à mesma expressão por Mesoudi, como no teclado QWERTY, por exemplo.

[213] Para uma discussão a respeito das implicações dessa variação cultural entre grupos, para a evolução da coomperação e dos mecanismos que a viabilizam, ver Abrantes, 2014b.

[214] Poderíamos conceituar, por analogia, uma “herança vertical” ocorrendo em cada grupo cultural. Uma questão que requer mais investigação é se VCs são transmitidas de um grupo cultural para outro, o que transparece em vários relatos antropológicos, e de como isso se dá. Esse tópico envolve, de forma especial, PoCg, e não há espaço para tratar dele, neste artigo.

[215] Não poderíamos deixar de fazer referência, mesmo que de passagem, à teoria, muito peculiar, que D. Hull desenvolveu para explicar, em termos evolutivos, o “processo da ciência”: seja do conhecimento (e.g. teorias científicas), seja dos próprios cientistas, incluindo a sua organização social, instituições que dão suporte a essa atividade etc. (HULL, 1988, 2001; ABRANTES; EL-HANI, 2009). Não temos a pretensão de situar esse projeto de Hull – o qual enseja ver a ciência como um setor da cultura apresentando uma dinâmica evolutiva –, no arcabouço conceitual que desenvolvemos aqui. Isso requereria um outro trabalho.

[216] Sobre raciocínio analógico e modelos em ciência, ver Abrantes, 1999.

[217] Abrantes (2018) efetua um apanhado geral das pesquisas sobre a evolução na linhagem hominínea que consideram a cultura um fator central, nesse processo.

[218] O último congresso da Cultural Evolution Society, realizado em junho de 2021, mostrou a vitalidade dessa área, a qual tem atraído pesquisadores com as mais diversas formações e interesses. Toscano (2009) oferece uma demonstração das possibilidades dessa abordagem, no caso da evolução dos motores a álcool, no Brasil. Hull (1988), já citado, é um clássico na proposta de adotar um modelo evolutivo para a investigação científica, segundo mencionamos na nota 36.

[219] As publicações de Abrantes podem ser acessadas na página: https://pauloabrantesfilosofia.com.br/.

[220] Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, 4.3.24, Campo Grande, 1749-016, Lisboa – Portugal. Philosophy Department, at Cotham House, University of Bristol, BS6 6JL, Bristol – United Kingdom (UK). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2902-8173. E-mail: joaopinheiro@hotmail.com.

[221] Docente na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), São Paulo, SP – Brasil. Bolsista Produtividade do CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5239-3190. E-mail: plinio.smith@gmail.com.

[222] Agradeço a André Vasques Abreu, Israel Vilas Bôas, Oscar Moreira dos Santos e, especialmente, a Raquel Albieri Krempel, cujos comentários e sugestões me ajudaram a corrigir e reformular uma versão prévia deste artigo, evitando alguns erros e tornando algumas ideias mais precisas. Agradeço também ao parecerista, cujos comentários úteis e cuidadosos me levaram a reformular diversas passagens.

[223] Professor titular da Universidade Federal do ABC (UFABC), São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6814-0518. E-mail: luizeva@hotmail.com.

[224] Agradeço a Plínio Smith pela supervisão e colaboração, ao longo dos últimos anos. Esta pesquisa foi financiada pela Fapesp, processo no 2018/12683-9.

[225] Departamento de Filosofia, Universidade Federal de São Paulo. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1513-117X. Email: raquelak@gmail.com.

[226] Há também situações atípicas, como os casos de ilusões envolvendo cores. Um exemplo é a ilusão de cor do cubo de Rubik, no qual dois quadrados que parecem ter cores diferentes têm de fato a mesma cor. Nesse caso, faz sentido dizer que o quadradinho do cubo aparenta ter uma cor que, de fato, não tem. Mas, mesmo assim, há uma suposição aqui de que o quadrado tem uma cor real, a qual é diferente da cor que ele inicialmente aparenta ter.

[227] Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9117-0755. E-mail: robertohsp@gmail.com.

[228] Professor Adjunto A da Área de Filosofia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Recife, PE - Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1831-2515. E-mail: sergiofariasfilho@gmail.com.

[229] Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2269-4923. E-mail: victorbarcellos1995@gmail.com.

[230] Essas pesquisas foram feitas por um grupo liderado por Miguel Nicolelis, mas nem todas as publicações o têm como primeiro autor. Para uma lista completa das publicações, cf. https://www.nicolelislab.net/?page_id=91. Acesso em: 10 jul. 2022.

[231] Disponível em: https://www.charlesbonnetsyndrome.org/index.php/cbs-ii/personal-stories. Acesso em: 20 jul. 2022. Tradução nossa).

[232] Professor Associado de História da Filosofia no Laboratório de Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), Campos dos Goytacazes, RJ - Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9504-0325. E-mail: cesarmeurer@gmail.com.

[233] Tradução livre: “Do nosso ponto de vista, existem duas características principais dos processos intracranianos - a utilização de representações não derivadas regidas por processos idiossincráticos - que servem para distinguir os processos cognitivos dos não cognitivos. Essas características constituem uma “marca do cognitivo” e fornecem alguma razão sem petição de princípio para pensar que a cognição é intracraniana. [...] A nossa opinião é que, por uma questão de facto empírico contingente, o processamento cognitivo ocorre tipicamente dentro dos cérebros, embora seja possível que se estenda.”

[234] Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasi. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8810-3490. E-mail: ralph@puc-rio.br.

[235] O comentário diz respeito aos artigos de Pereira et al e de Rolla, que é uma resposta ao artigo de Pereira et al. Inevitavelmente, faço referências aos dois artigos.

[236] É interessante notar que esses autores não oferecem uma análise positiva dessa resposta, no seu livro de 2013, mas a incluem no seu livro de 2017. No entanto, acho que a dimensão estética dessa resposta não é suficientemente elaborada. É igualmente oportuno frisar que esses autores não negam representações mentais para capacidades cognitivas mais sofisticadas, tais como raciocinar.

[237] Também não separam sua versão de cognitivismo das outras, na literatura.

[238] Por exemplo, na sua apropriação da teoria de predictive processing modelo de Clark (2016), da Autopoietic-adaptive enactivism, de Di Paulo et al. (2017, 2018) ou da psicologia ecológica de Gibson (2015). Ver Hutto e Myin, 2017. É importante notar que esses livros de Di Paulo et al. saíram depois (ou no mesmo ano) do livro de 2017 de Hutto e Myin, mas eles utilizam outros artigos dos autores, especialmente Di Paulo.

[239] Esse debate foi chamado a “guerra de representações” por Andy Clark e, por tudo que parece, a guerra ainda continua.

[240] Esse livro de Millikan não está investigado por Hutto e Myin, por ter sido publicado no mesmo ano do seu livro de 2017, mas é a referência que eu conheço melhor.

[241] Pereira também faz o mesmo, em outros lugares, defendendo o cognitivismo.

[242] Professor adjunto da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), Macapá, AP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6060-9828. E-mail: rodrigorlcid@gmail.com.

[243] Eu vejo a filosofia como uma área composta de forças especialistas e generalistas. Uma filosofia completa toma como relevante ambos os movimentos, para construir a totalidade do conhecimento filosófico. Os especialistas nos permitem adentrar nas teorias, em suas mais vastas consequências, para sermos aptos a pesá-las entre si e, por meio do generalista, integrá-las racionalmente numa concepção geral de mundo. Queremos a compreensão mais geral e mais total da realidade, com todas as justificações que nos permitem saber cada parte de nosso conhecimento. Essa é uma tarefa hercúlea, a qual creio que conseguiremos, como uma comunidade.

[244] Pode-se argumentar aqui que estamos confundindo espaço com universo/mundo. A princípio poderia haver um mundo sem espaço, ainda que não possa haver espaço sem dimensões espaciais, tal como um mundo de formas ou conceitos platônicos. Eu posso concordar com isso e dizer que não poderia haver um mundo físico sem espaço, de modo que se um mundo físico existe, ele tem espaço, isto é, se algo não tem espaço, isso não é um mundo fisicamente possível. Então, se o mundo físico existe, ter dimensões espaciais é necessário. Assim, se existe um mundo físico, o espaço lhe é essencial. Poder-se-ia argumentar contra nós, dizendo que nós não fazemos adequadamente a distinção entre 1) haver algo e não nada e 2) o que é necessário assumindo-se que que há algo. Poder-se-ia dizer que ainda que seja plausível que não há tal coisa como um universo sem dimensões espaciais (e temporais, logo a seguir), o que realmente precisamos é de um argumento cuja conclusão seja a impossibilidade do completo nada, isto é, a impossibilidade do mundo possível em que nada há. Para responder a isso, eu diria daria o seguinte argumento por redução ao absurdo com relação à existência do nada implicar a existência do tempo: Suponha que há nada. Se há nada, então há nada por mais de zero segundo, pois se houver nada por mais de zero segundo, então não é o caso que não há nada. O problema então é que se há nada por mais de zero segundo, então há também um intervalo de tempo e, consequentemente, tempo. Então se há nada, há também tempo, o que implica que não há nada. Logo, a suposição de que há nada e de que é possível haver nada é falsa. Logo, não é possível haver nada.

[245] Embora este argumento esteja presente em Cid, 2012, vale a pena ler mais sobre o tempo em Mctaggart, 1908, e em Cid, 2011.

[246] Ainda fica por debater se tais concepções absolutistas do espaço e do tempo são compatíveis com o espaço-tempo relacional da relatividade, coisa que não devo fazer neste texto, por falta de espaço, mas que é relevante para a avaliação das vantagens e desvantagens de tal visão (como consistência interna e externa). Uma dificuldade seria que a física, na relatividade, pensa o espaço de modo relacional, surgindo apenas a partir da existência de distâncias relativas entre as coisas e sendo dependente do referencial, e parece que meu argumento pressupõe um espaço absoluto (ver HUGGETT, 2022; HOEFER, 2022, para compreender melhor os conceitos envolvidos). Se houvesse apenas uma coisa, na relatividade, não haveria espaço, e é justamente isto que o surgimento a partir de uma singularidade nos diz: que o espaço surge a partir do surgimento das coisas para além da singularidade. Mas algo que temos de nos perguntar é se essa singularidade deve possuir algum tipo de estrutura interna. Se ela não possui, é difícil entender como ela pode ter mudado do estado singular para o múltiplo. Se ela possui, então devemos descrever essa estrutura como um sistema de partes, o que envolveria a presença do espaço, interno à singularidade. Mas talvez seja difícil emular essa objeção com relação ao tempo. Se o tempo for pensado como completamente relacional, teremos de dizer que um mundo com apenas um estado de coisas imutável seria um mundo sem tempo. O tempo relacional é a medida da causalidade entre as coisas. Sem causalidade, sem tempo. O problema, nesse mundo possível vazio de causalidade, seria responder à pergunta sobre se tal mundo existe há mais de 0 segundos ou não. Essa pergunta é difícil, pois o relacionista deve dizer que tal mundo existe por 0 segundos, o que, pelo nosso argumento anterior, implica que o mundo não existe. E se ele aceitar o oposto, estará aceitando simultaneamente uma concepção substantivista (ou substantivalista) do tempo, de um tempo absoluto. Tal assunto é por demais complexo para um pequeno artigo como este, e deixo sua resposta como dependente dessa discussão.

[247] É claro que a lei de fundo é a lei de Coulomb, da qual podemos derivar que sal se dissolve em água, por causa de suas relações eletrostáticas. Mas falaremos dessa derivação como se fosse a lei, para finalidades meramente pedagógicas. A ideia de que, de estados de coisas iniciais e leis, podemos derivar estados de coisas finais é bem expressa no modelo nomológico-dedutivo.

[248] É claro que poderíamos ainda perguntar como pontos de matéria sem extensão poderiam formar coisas com extensão. Se essa pergunta é meramente filosófica, espero já ter respondido, dando um exemplo claro de como pontos sem extensão interferem na extensão de objetos matemáticos com extensão. Agora se a pergunta é saber exatamente como o processo ocorre, então essa já seria uma pergunta talvez para o físico responder, por meio de suas experimentações e teorizações, e não o filósofo, penso eu.

[249] Disponível em: https://philpapers.org/rec/CIDFSP. Acesso em: 25 ago. 2022.

 

[251] É argumentável aqui que esse problema também acometeria nossas leis imateriais transcendentes que governam a causalidade singular. Eu responderia a essa objeção, dizendo que a ação de governança ocorre por meio da instanciação de propriedades, e não por meio de alguma movimentação que uma entidade imaterial teria de causar. Uma escolha e ação livres seriam completamente causadas por uma consciência imaterial livre que controla talvez misticamente os movimentos do corpo. Essa dificuldade com a imaterialidade não afeta a governança das leis imateriais transcendentes.

[252] Há, é claro, defesas articuladas de que é possível haver responsabilidade moral mesmo sem livre-arbítrio. Para fins de construção da visão de mundo proposta, tomo o mundo como não tendo livre-arbítrio e nem responsabilidade moral, que seria o caso mais difícil para essa visão, e tento dar uma resposta a ele.

[253] Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS – Brasil. Orcid 0000-0002-1651-0350, e-mail: ggaboardi@outlook.com.

[254] Agradeço a Eros de Carvalho e ao seu grupo de pesquisa GEPEPE, por terem debatido comigo as ideias presentes neste artigo, o que resultou na revisão do seu título. Muitas das questões levantadas, no entanto, não poderão ser respondidas no seu âmbito e possíveis respostas ficarão para futuros escritos.

[255] Docente na Universidade de Vale dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, RS – Brasil, pesquisadora do CNPq e pesquisadora colaboradora na Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1559-1707. E-mail: siastein@gmail.com.

[256] Uma circularidade inerente a essa afirmação é inegável e incontornável: se afirmo a limitação do conhecimento científico e afirmo que a mente é um objeto do conhecimento científico, afirmo que qualquer teoria acerca da mente é limitada e, portanto, a minha teoria também. Além disso, não desejo aqui defender toda a filosofia crítica transcendental kantiana, de teor apriorista, ou sua visão das faculdades e princípios necessários ao conhecimento empírico. Contudo, assim como os empiristas lógicos, sustento que o realismo empírico seja a melhor posição (que encontra mais embasamento em fatos) relativa aos limites do conhecimento.

[257] Em outro artigo, Gallese afirma: “My embodied simulation model is in fact challenging the notion that the sole account of interpersonal understanding consists in explicitly attributing to others propositional attitudes like beliefs and desires, mapped as symbolic representations.” (2009a, p. 524).

[258] Pesquisador no Laboratório de Filosofia Experimental e Estudos da Cognição (LABFIC) da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0009-0006-3262-6704. E-mail: ricardoperera@outlook.com.

[259] Eu agradeço enfaticamente a André Fuhrmann por suas observações críticas, que identificaram vários problemas em uma versão prévia do presente trabalho, ao mesmo tempo que continham propostas de solução valiosas. Eu espero ter incorporado adequadamente à versão final do trabalho os detalhes e o sentido geral de tais propostas.

[260] Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4817-0941. E-mail: wilsonpessoamendonca@gmail.com.

[261] Lasersohn (2017, p. 11) escreve: “[…] if I say ‘I am drinking coffee’, what I directly assert is the content which the sentence I am drinking coffee has in the context of my assertion. Of course in so doing, I might also perform additional illocutionary acts indirectly: I might assert that I would not like tea, or invite you to have some coffee, or perform any number of other speech acts. It may in fact happen that indirect acts of this kind are much more central to my communicative intent in making the utterance than is the direct act, but they are indirect nonetheless. No doubt the objects of these other acts are things of the same type as the contents of sentences, but they are not the content of the sentence I am drinking coffee (even in context), in the sense of the term content intended here.”

[262] A expressão sse abrevia se e somente se.

[263] A distinção ser sobre X / dizer respeito a X foi introduzida por Perry (1986).

[264] A explicação semântica de sentenças que contêm operadores modais aléticos (necessariamente, possivelmente) requer a presença da primeira coordenada w. Portanto, w é, por assim dizer, a coordenada obrigatória na semântica de sentenças que podem ser modalizadas aleticamente.

[265] “What sort of intensional operators to admit seems to me largely a matter of language engineering.” (KAPLAN, 1989, p. 504).

[266] MacFarlane (2014, p. 60) escreve: “[…] the only motivation for positing a coordinate of [circumstances of evaluation] is the presence of an operator that shifts it; conversely, the only grounds for objecting to a coordinate of [circumstances of evaluation] is the absence of such operators.”

[267] Cf. King (2003), Lasersohn (2017, §8.7) e a discussão em Brogaard (2019).

[268] Cf. MacFarlane (2007, p. 17).

[269] Existe, é claro, a opção expressivista radical que consiste basicamente em negar que construções como Alcaçuz é saboroso tenham condições de verdade. Essa opção não será considerada aqui.

[270] Os exemplos foram retirados de Kölbel (2002) e MacFarlane (2014).

[271] As propostas de solução mais discutidas na literatura recente incluem (i) o quase-expressivismo (BJÖRNSSON; FINLAY (2010), FINLAY (2014, 2017)), (ii) o desacordo metalinguístico (PLUNKETT; SUNDELL (2013), KHOO; KNOBE (2018)) e (iii) o desacordo conversacional (SILK (2016, 2017)).

[272] Cf. Silk (2017, p. 213): “A common contextualist strategy is to try to explain disagreement phenomena in the pragmatics, in terms of non-conventional aspects of use.”

[273] A presente sugestão é baseada na semântica contextualista dos modais desenvolvida em Kratzer (1981, 1991) e na “Semântica dos Modais Informacionais” desenvolvida em Kolodny e MacFarlane (2010, §IV.3).

[274] Cf. Kaplan (1989, p. 512): “We could then represent contexts by the same indexed sets we use to represent circumstances.”

[275] Um contexto de apreciação é, por definição, “[...] a situation in which a (past, present, or future, actual or merely possible) utterance of a sentence might be assessed for truth or falsity.” (MACFARLANE, 2005, p. 18).

[276] Isso especifica as condições de aplicação do predicado apreciado como verdadeiro, não do predicado sentencial verdadeiro.

[277] “Every thinker possesses a perspective, and moreover everyone ought not to believe contents that are not true in relation to their own perspective.” (KÖLBEL, 2004, p. 307).

[278] Sobre as regras constitutivas da asserção, ver Kölbel (2008, p. 250), Cappelen e Hawthorne (2009, p. 13) e MacFarlane (2014, §5.2).

[279] “When we assess an assertion, made yesterday by Ted, that the Mona Lisa is beautiful, what matters for its truth is not Ted’s aesthetic standards but our own. So, we say that Ted has spoken truly if the Mona Lisa is beautiful by our standards.” (MACFARLANE, 2014, p. 90).

[280] Os exemplos mais importantes são Kölbel (2002), Recanati (2007), Richard (2008), Brogaard (2008).

[281] Goethe-Universität Frankfurt am Main, Frankfurt – Alemanha. ORCID: https://orcid.org/0009-0001-0800-0705. Email: fuhrmann@em.uni-frankfurt.de.

[282] Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR/FAE Centro Universitário. Email: leo.junior@pucpr.br.


 [AA1]Aqui, peço para ser mantida a formulação original: Ademais, tomarei uma categoria c como fortemente social se, e somente se, o que c é, em grande parte, é determinado pelas atitudes dos sujeitos em relação a c.  Embora não seja uma formulação gramaticalmente elegante, é a que captura um ponto central do artigo.