Sumário

 

Apresentação_________________________________________________________ 3

Marcos Antonio Alves_______________________________________________________ 3

O infinito e o aberto: sobre as intuições éticas de Levinas e Bergson______________ 9

André Brayner de Farias_____________________________________________________ 9

A teoria da substância no ensaio sobre o entendimento humano, de John Locke___ 26

Carlota Salgadinho Ferreira; Vinícius França Freitas______________________________ 26

Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do sul global___________ 48

Cristiano Cordeiro Cruz_____________________________________________________ 48

Comentário a “Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do Sul global”: a crítica da tecnologia como crítica à distinção moderna entre natureza e cultura__ 68

Jelson Oliveira____________________________________________________________ 68

Comentário a “Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do Sul global”___________________________________________________________________ 72

Maurício Fernandes________________________________________________________ 72

Georges Bataille: la pérdida, el fascismo y la propuesta comunitaria____________ 76

Gonzalo Ricci Cernadas_____________________________________________________ 76

Comentario a “Georges Bataille: la pérdida, el fascismo y la propuesta comunitaria”: por una vida no fascista________________________________________________ 98

Agustín Lucas Prestifilippo___________________________________________________ 98

Comentario a “Georges Bataille: la pérdida, el fascismo y la propuesta comunitaria”__________________________________________________________________ 101

Ricardo Laleff Ilieff________________________________________________________ 102

El animal, ¿es una otredad posible? Indagaciones fenomenológicas a partir de Husserl y Heidegger________________________________________________________ 105

Jesús Ayala-Colqui________________________________________________________ 105

Comentário a El animal, ¿es una otredad posible? Indagaciones fenomenológicas a partir de Husserl y Heidegger__________________________________________ 125

Paulo Mendes Taddei_____________________________________________________ 125

‘Who Announces the Nonrecourse?’: The fort/da in ‘To do Justice to Freud’ and in the Derrida/Foucault debate______________________________________________ 131

Joaquín Montalva_________________________________________________________ 131

Dissolving the Self: the cognitive turn of the extended mind theory_____________ 153

Léo Peruzzo Júnior; Amanda Luiza Stroparo____________________________________ 153

Comentário a “Dissolving the Self: the cognitive turn of the extended mind theory” 25 Anos da Tese da Mente Estendida_______________________________________ 170

Bernardo Alonso____________________________________________________ 170

Ética hermenêutica: circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer a partir do Filebo de Platão__________________________________________________ 175

Luiz Rohden_____________________________________________________________ 175

Comentário a “Ética hermenêutica: circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer a partir do Filebo de Platão”: Os prazeres de Céfalo___________________ 198

Admar Costa_____________________________________________________________ 198

Impulso criador e drama vital em Bergson________________________________ 202

Rita Paiva_______________________________________________________________ 202

Comentário a “Impulso criador e drama vital em Bergson”: A dialética do devir e a dramatização do elã vital_____________________________________________ 220

Pablo Enrique Abraham Zunino______________________________________________ 221

Comentário a “Impulso criador e drama vital em Bergson”___________________ 224

Sinomar Ferreira do Rio____________________________________________________ 225

A visão em deus e o primado da representação em Malebranche______________ 228

Sacha Zilber Kontic________________________________________________________ 228

Jean Jacques Rousseau’s concept of freedom and equality in the Social Contract__ 245

Trang Do________________________________________________________________ 245


 

Apresentação

 

Marcos Antonio Alves[1]

 

Com alegria, apresentamos o segundo fascículo de 2023. Nos últimos tempos, a revista vem realizando uma série de novas atividades e melhorias, buscando aprimorar-se, no alcance de seus objetivos. Neste fascículo, pela primeira vez em um número regular, passamos a oferecer diversos formatos dos textos publicados (PDF, HTML, MOBI e ePUB), dando maior visibilidade e possibilidade de acesso ao conhecimento socializado. O processo de inserção desses formatos também está sendo implementado em todos os fascículos da revista. A propósito, em 2024, a Trans/Form/Ação completa 50 anos de existência. Estamos programando uma série de atividades comemorativas para festejar nosso jubileu de ouro. Em breve, anunciaremos mais novidades.

Neste número, os textos brasileiros vêm de pesquisadores de instituições da Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Já os de instituição estrangeira vêm da Argentina, Chile, Peru e Vietnam. Publicamos, ao todo, nove comentários, os quais, como explica Alves (2023), correspondem a uma modalidade de textos já consagrada na revista.

Começamos este fascículo com “O infinito e o aberto: sobre as intuições éticas de Levinas e Bergson”, de André Brayner de Farias. Levinas é quase unicamente estudado pela ótica da fenomenologia, lembra Farias. Isso é bastante justificável, pelo fato de o filósofo se dizer herdeiro de Husserl, embora seja muito importante considerar outras influências para uma compreensão mais aprofundada de seu pensamento, como o tal mudismo e a literatura russa. Mas, em geral, permanece esquecida uma importante referência que Levinas nunca deixa de mencionar, em suas entrevistas e mesmo no prefácio para a edição alemã (1987), de seu importante livro Totalité et infini: a filosofia de Bergson. Com base nisso, Farias visa a buscar os elementos dessa aproximação, muitas vezes mencionada, porém, pouco explorada, entre as intuições éticas de Levinas e de Bergson.

Ainda que não seja a obra Les deux sources de la morale et de la religion a que Levinas gosta de lembrar, quando se refere a Bergson, é ela a evocada pelo autor deste artigo, o qual busca sugerir uma comunicação intuitiva que conecta o conceito bergsoniano de aberto e o conceito levinasiano de infinito. Levinas dá um passo além da fenomenologia, ao elaborar um de seus conceitos fundamentais, o de visage. É ele mesmo quem o admite, na conversa com Philippe Nemo, intitulada Éthique et infini (1984), mas deveríamos nos surpreender, se a noção mais importante da ética levinasiana, a de infinitude, revelasse o que há de mais essencial na ética de Bergson, o sentido de abertura, pelo qual se anuncia uma responsabilidade sem limites, ou seja, incondicional?

O segundo artigo publicado é “A teoria da Substância no Ensaio sobre o entendimento humano, de John Locke”, escrito a quatro mãos por Carlota Salgadinho Ferreira e Vinícius França Freitas. Os autores buscam oferecer uma interpretação sobre a explicação da origem da ideia (relativa) de substância pura em geral, na filosofia de John Locke, a partir da noção de “sugestão natural” de Thomas Reid. Para tal, após contextualizar a noção de substância pura em geral, para Locke, e distingui-la da ideia de substância particular (seção 1), eles explicitam que as suas palavras sobre a fonte (empírica ou racional) da ideia da segunda na mente são ambíguas e inconclusivas. Em seguida, argumentam que os paralelos entre essa ideia e a de “relação”, assim como a de “poder”, não auxiliam nessa resposta, devido a alguns problemas que neles se identificam. Por fim, enfatizam que a explicação reidiana para a origem da ideia de “mente”, com base na noção de “sugestão natural”, permite, em primeiro lugar, contornar aqueles problemas e, em segundo, na medida em que, de acordo com essa proposta, a ideia de substância pura em geral teria uma origem empírica, o empirismo lockiano se manteria intacto.

Em seguida, vem “Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do sul global.”, de Cristiano Cordeiro Cruz, comentado por Jelson Oliveira e Maurício Fernandes. Andrew Feenberg é um importante autor da filosofia da tecnologia, cujas ideias são particularmente relevantes, para identificar a dimensão política da tecnologia, seja no seu papel de conformar a sociedade, seja em ser conformada por esta. Segundo Cruz, a falha do estágio atual da sua reflexão está em não se voltar, de forma mais rigorosa, para o âmbito interno das disciplinas técnicas, usualmente interrompendo sua análise na fronteira entre o mundo da vida (no qual ocorrem as mobilizações democratizantes e de onde emergem suas pautas ou demandas) e tais disciplinas. Para identificar e superar essa falha, Cruz articula alguns elementos da reflexão de Boaventura de Sousa Santos e de Yuk Hui. Ademais, oferece exemplos de intervenções técnicas decoloniais (ou emancipadoras), os quais ilustram como aquilo teorizado por Santos e Hui já acontece em práticas técnicas desenvolvidas no Sul global, bem como expressam os impactos disso nas equipes técnicas que as praticam (e, a partir disso, potencialmente, também nas disciplinas a que seus membros estão vinculados).

Em quatro lugar, publicamos “Georges Bataille: la pérdida, el fascismo y la propuesta comunitaria.”, de Gonzalo Ricci Cernadas, comentado por Agustín Lucas Prestifilippo e Ricardo Laleff Ilieff. A hipótese proposta por Ricci é que, apesar de todas as dificuldades para sua conceituação, Bataille postula que a comunidade é, afinal, possível. Para isso, o artigo expõe o lugar da comunidade, no pensamento de Bataille, um lugar nada identificável com precisão, mas que está disperso em diferentes pontos de sua obra. Assim, Ricci busca, em um primeiro momento, analisar como uma comunidade perdida aparece no filósofo francês, para, em um segundo momento, investigar qual foi a – equivocada – resposta fascista a esse fato, para, por fim, delinear como ela poderia estabelecer um modelo propositivo de comunidade, segundo Bataille.

Também em espanhol, publicamos “El animal, ¿es una otredad posible? Indagaciones fenomenológicas a partir de Husserl y Heidegger”, de autoría de Jesús Ayala-Colqui, comentado por Paulo Mendes Taddei. O artigo tem como objetivo analisar o conceito de animalidade, sob a ótica de Edmund Husserl e Martin Heidegger. Mais precisamente, surge a questão de saber se o animal possui o status de alteridade ou não. O animal, em relação ao humano, é um ente outro, lembra Ayala-Colqui. Mas, pelos pressupostos da fenomenologia, isso basta para que seja apreendido como uma intersubjetividade ou uma convivência que se doa ao mundo dos seres humanos? Para responder a essa questão, o autor revê o argumento de Husserl, especialmente em Hua IV e Hua XXXIX, e o de Heidegger, em GA 2 e GA 29/30. Diante disso, adiciona uma consideração crítica das ideias dos pensadores analisados, em vista do desenvolvimento da biologia contemporânea, a fim de se perguntar até que ponto a investigação filosófica deles seria consistente com as evidências zoológicas atuais.

O sexto artigo é escrito em inglês: “‘Who Announces the Nonrecourse?’: The fort/da in ‘To do Justice to Freud’ and in the Derrida/Foucault debate”, de Joaquín Montalva. Trata-se de um comentário ao ensaio de Derrida, “Para fazer justiça a Freud: a história da loucura na era da psicanálise”, com o objetivo de rastrear o que não pode ser reapropriado pelos pressupostos do debate Derrida/Foucault. Ao analisar a questão “quem anuncia o não recurso?”, Montalva explora o modo como a escrita de Derrida é afetada pela necessidade e impossibilidade de não reprimir a desrazão. Ele defende que Derrida escreve compulsivamente os efeitos de sua própria resistência em reprimir a desrazão, ao reproduzir a busca foucaultiana por um “além da razão”. Essa compulsão à repetição não apenas reabre o debate, porém, mais importante, provoca o retorno da desrazão como um desarranjo dos princípios da identidade e do tempo linear, o qual desestabiliza qualquer fundamento autoral para uma história da loucura em geral e para qualquer um de seus críticos. Montalva analisa os intercâmbios entre Derrida e Foucault, desconstruindo a premissa da possibilidade de um debate sobre a história da loucura.

Em seguida, publicamos “Dissolving the Self: the cognitive turn of the extended mind theory”, escrito em parceria por Léo Peruzzo Júnior e Amanda Luiza Stroparo, comentado por Bernardo Alonso. O objetivo dos autores é mostrar como a teoria da mente estendida, particularmente os argumentos de Andy Clark, pode explicar os processos mentais não como fenômenos restritivos ao cérebro e endossar sua conexão com o corpo e o ambiente. Dessa forma, inicialmente, eles reconstroem as principais perspectivas materialistas que limitaram o self ao crânio. Feito isso, apontam como o caráter estendido da mente escapa aos seus limites naturais e se mistura “descaradamente” ao mundo. Argumentam que artefatos externos desempenham um papel importante na orientação de ações, de modo que mudanças no ambiente podem causar mudanças no comportamento do agente cognitivo, configurando uma dependência constitutiva. Desse modo, defendem os autores, a tese da mente estendida desafia tanto o funcionalismo tradicional quanto o externalismo, pois, por um lado, considera os processos cognitivos e os estados mentais como interações relevantes do indivíduo com o ambiente e, por outro, como comportamentos orientados pela intenção. Por meio da integração dos corpos biológicos com artefatos ou ferramentas, sustentam uma leitura que dissolve a clássica “lacuna explicativa” das ciências cognitivas.

“Ética hermenêutica: circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer a partir do Filebo de Platão” é o oitavo artigo, de autoria de Luiz Rohden, comentado por Admar Costa. No contexto do projeto do autor, no sentido de justificar a dimensão ética da Hermenêutica, Rohden propõe respostas à pergunta central em torno da qual se articula o diálogo Filebo de Platão: qual o estado e a disposição da alma (hexis kai diathesis) que pode outorgar aos homens uma vida feliz? É pelo conhecimento, ou pelo prazer?” A partir das pistas propostas no diálogo, o autor desenvolve a noção de vida boa e feliz como processo e resultado da mistura correta entre o conhecimento e o prazer. Sob a égide da hermenêutica gadameriana, tomada enquanto práxis ética, ele busca fundamentar a tese de que a felicidade é fruto da circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer, em contraposição à circularidade viciosa que implementa a infelicidade, instaura uma vida escrava, a qual implica a destruição pessoal, social e ambiental. Isso é feito, conforme esclarece Rohden, explicitando-se, inicialmente, o tipo de ontologia e a racionalidade própria para lidar com a vida boa e feliz conjugada com o prazer, possibilitando serem indicadas pistas da alquimia apropriada – mediante a apuração dialógico-phronética – entre o conhecimento e o prazer, para instaurar a vida boa e feliz. A contribuição original dessa reflexão reside em propor critérios para aferir se a mistura foi bem feita, através da apresentação de implicações da circularidade viciosa e corolários da circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer. O autor busca mostrar que a circularidade viciosa fomenta a infelicidade, ao passo que a virtuosa faculta a criação de uma vida boa e feliz, em termos individuais, sociais, além de instaurar uma relação harmônica e de integração com o meio ambiente.

Escrito por Rita Paiva, vem “Impulso criador e drama vital em Bergson”, comentado por Pablo Enrique Abraham Zunino e Sinomar Ferreira do Rio. Ao voltar-se para a teoria de H. Bergson acerca do processo evolutivo, este texto toma como objeto de reflexão o caráter antinômico das tendências fundamentais do movimento vital: tempo puro e materialidade. Partindo da importância da imagem, nessa filosofia, Paiva se debruça sobre a ontologia bergsoniana, problematizando tanto a noção de elã vital quanto o modo pelo qual a matéria advém e o tempo real nela se inscreve. Ao destacar a ambiguidade do papel desempenhado pela materialidade, no tensionamento das forças vitais, a discussão explicita que o impulso originário instaura, ele próprio, seu antípoda. Revela-se, assim, o caráter dramático que impregna o movimento intrínseco à história da vida, no qual esforço e luta são correlatos dos limites do impulso que a move e quesitos incontornáveis para o ato criador que a define.

O penúltimo artigo é “A visão em Deus e o primado da representação em Malebranche”, de Sacha Zilber Kontic. O artigo visa a examinar a noção de representação presente na exposição malebranchiana da tese da visão das ideias em Deus. Para tanto, em primeiro lugar, trata da progressiva precisão atribuída por Malebranche ao termo ideia, buscando ressaltar o caráter radicalmente representativo do conceito. Em seguida, analisa de que modo essa ideia representativa prescinde, na filosofia do oratoriano, de uma correspondência com a existência. Por fim, busca mostrar como esse primado da representação se articula com a tese da visão em Deus. Com isso, argumenta Kontic, torna-se possível conceber como essas ideias representativas podem fundar, na filosofia de Malebranche, uma verdadeira ciência.

Por fim, publicamos “Jean Jacques Rousseau’s concept of freedom and equality in the Social Contract”, de Trang Do. Uma das características comuns dos primeiros filósofos modernos da Europa Ocidental é a ênfase na liberdade e na igualdade. Os filósofos desse período buscavam respostas para “o que é liberdade e igualdade?” e transformaram a liberdade e a igualdade em direitos humanos fundamentais. De John Locke a Montesquieu e Jean Jacques Rousseau, todos consideram a liberdade e a igualdade como direitos naturais do ser humano. O conceito de liberdade e igualdade de Rousseau é refletido em O Contrato Social. No início desse trabalho, ele comenta uma famosa frase de abertura: “O homem nasce livre, mas está em toda parte acorrentado”. Esse é o argumento fundamental para dar uma visão única de liberdade e igualdade. Dentro do escopo do artigo, Trang Do concentra-se em analisar seus pontos de vista sobre liberdade e igualdade, em muitos aspectos diferentes – liberdade e igualdade no estado de natureza, liberdade e igualdade na sociedade civil e como alcançar a liberdade e a igualdade – apresentando, assim, as valores e limitações de seus pontos de vista sobre liberdade e igualdade.

Assim está constituído este fascículo da Trans/Form/Ação. Desejamos boa leitura e boas reflexões e discussões, a partir do conhecimento socializado!

 

 

Referência

ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 9-20, 2021.

 

Recebido: 12/02/2023

Aceito: 21/02/2023


 

O infinito e o aberto: sobre as intuições éticas de Levinas e Bergson

 

André Brayner de Farias[2]

 

Resumo: Levinas é quase que unicamente estudado pela ótica da fenomenologia e, evidentemente, isso é bastante justificável, pelo fato de o filósofo se dizer herdeiro de Husserl, embora seja muito importante considerar outras influências para uma compreensão mais aprofundada de seu pensamento, como o talmudismo e a literatura russa. Mas, em geral, permanece esquecida uma importante referência que Levinas nunca deixa de mencionar, em suas entrevistas e mesmo no prefácio para a edição alemã (1987) de seu importante livro Totalité et infini: a filosofia de Bergson. Nosso objetivo é buscar os elementos dessa aproximação, muitas vezes mencionada, porém, pouco explorada, entre as intuições éticas de Levinas e de Bergson. Ainda que não seja a obra Les deux sources de la morale et de la religion a que Levinas gosta de lembrar, quando se refere a Bergson, é ela que evocaremos, para sugerir uma comunicação intuitiva que conecta o conceito bergsoniano de aberto e o conceito levinasiano de infinito. Levinas dá um passo além da fenomenologia, quando elabora um de seus conceitos fundamentais, o de visage, e é ele mesmo quem admite, na conversa com Philippe Nemo, intitulada Éthique et infini (1984), mas deveríamos nos surpreender, se a noção mais importante da ética levinasiana, a de infinitude, revelasse o que há de mais essencial na ética de Bergson, o sentido de abertura, pelo qual se anuncia uma responsabilidade sem limites, ou seja, incondicional?

 

Palavras-chave: Infinito. Aberto. Ética. Responsabilidade.

 

Introdução

Nos escritos de Levinas, incluindo suas entrevistas, a presença de Bergson não é aleatória ou pouco importante, ainda que não provoque consequências explícitas nos desdobramentos teóricos do autor de Totalité et infini. É majoritariamente na tradição da fenomenologia que Levinas será lido e comentado, e, num segundo plano, pela ótica do judaísmo, notadamente o da vertente talmudista.[3] Poucos são os trabalhos que se dedicam a analisar a aproximação entre o bergsonismo e, em particular, a ética dual do fechado e do aberto, e a filosofia da infinitude ética.[4] É preciso também lembrar que a obra de Bergson dedicada ao tema, Les deux sources de la morale et de la religion, de 1932, é a menos lida e comentada. Frédéric Worms chega a considerar que, da mesma forma que L’évolution créatrice sofre um certo prejuízo por ser lida e conhecida demasiadamente, por outro lado, Les deux sources padece por falta de leitores.[5]

Minha intenção, neste ensaio, é estudar as intuições fundamentais das teorias éticas de Levinas e Bergson – o infinito e o aberto – e, também, sugerir uma comunhão entre esses dois filósofos, uma espécie de campo de comunicação que permite que eles, falando línguas conceituais bem diferentes, consigam se entender a respeito daquilo em que consiste essencialmente para ambos o problema da ética. Se este ensaio conseguir elevar o volume de leitores da última grande obra de Bergson, já terá valido a pena o seu esforço. Mas a minha aposta não deixa de ser também a de trazer mais leitores levinasianos para o campo bergsoniano, a fim de misturar essas duas frequências, encontrar seus pontos de contato e experimentar novas potências.

            A infinitude, que é a ruptura da totalidade conduzida por uma crítica contundente e sempre recorrente da ontologia, constitui o coração da ética levinasiana. De fato, a crítica da ontologia é quase um método em Levinas, uma chave de compreensão fundamental desse pensamento. Tem a ética como filosofia primeira, que é o acolhimento da ideia de infinito, ao mesmo tempo que sua impossível tematização, em virtude de um cogito surpreendido com um conteúdo sem contornos de cogitação, portanto, fora de cogitação – enfim, a afirmação dessa primazia absoluta deriva da crítica do ser, assim como impõe a tarefa constantemente renovada dessa crítica, sua continuidade no movimento do pensamento filosófico.

O leitor de Levinas conhece o problema do discurso de Totalité et infini, analisado por Jacques Derrida, no ensaio “Violence et métaphysique”,[6] e é justamente a questão de uma linguagem possível e impossível da ética, uma vez que o discurso que afirma a ética como filosofia primeira, recai no lugar que diz ter abandonado, a ontologia. Levinas persiste em seu caminho de crítica do ser e propõe, em Autrement qu’être, que aparece em 1974, um discurso ético constantemente tensionado entre o dito e o dizer, entre o momento propositivo e digamos, espacializante, e sua temporalidade irreconciliável e extraordinária, a qual Levinas chama de diacronia. A ética de Levinas pode muito bem ser explicada pela dificuldade em traduzir a temporalidade da ética, em termos espaciais.

A responsabilidade, sendo de uma ordem outra que a do ser, obriga o seu discurso a se arrancar constantemente de si, sob pena de se cristalizar em um dito perfeitamente coerente consigo mesmo, uma cogitação, mas, por esse motivo, tornando-se neutro, teorético e impessoal, e, por isso, ameaçando falsear a responsabilidade ética. Essa radicalidade do ato ético está marcada, assim, por uma incondição, que é no fundo o limite do pensamento, ao mesmo tempo que é seu motivo. De um ponto de vista levinasiano, uma teoria da responsabilidade só pode ser equívoca, visto que seu rigor depende de um constante desdizer. Se Bergson acusa a metafísica tradicional de ser espacializante, de traduzir tudo em termos espaciais, inclusive o tempo e o movimento, podemos aqui propor uma chave para entender Levinas, de forma bergsoniana: a responsabilidade, ao virar o tema de um dito, delimita-se em termos espaciais, mas, enquanto dizer, ela é justo aquilo que escapa do espaço, assumindo uma forma temporal. O dilema da responsabilidade é o de não poder se contentar com uma inteligência que é geométrica e numérica, e, ao mesmo tempo, ela não pode deixar de recorrer a essa inteligência. A responsabilidade tem uma natureza supraintelectual, a qual, no entanto, se intelectualiza em forma de teoria, porém, por assim dizer, diferenciando a teoria pelo movimento incessante do dito-dizer-desdizer. O acolhimento da ideia de infinito é uma intuição que não se rende ao conceito, como o tempo não se rende ao espaço.

 

1 Bergson: ética da abertura

            A ética de Bergson deriva de uma filosofia da vida. Les deux sources é onde culmina o vitalismo bergsoniano e onde veremos novas séries de linhas divergentes: o aberto e o fechado, o dinâmico e o estático, o instinto virtual e a intuição mística. Aberto e fechado são a fórmula geral do dualismo que Bergson propõe, para explicar os fenômenos da moral e da religião. Trata-se de um misto: a moral se constitui em linhas que diferem por natureza – do fechado não se chega ao aberto. O que Bergson está indicando com o termo aberto, ao abordar a atitude dos grandes místicos, é um tipo de responsabilidade incondicional, um gesto fora do comum, extraordinário, encontrável apenas em certas personalidades privilegiadas, que, no entanto, são capazes de nos tocar, pois a mensagem moral que trazem ressoa no fundo da alma comum, suscitando não mais uma pressão ou constrangimento, mas uma aspiração, um tipo não restrito de sentimento moral, o qual nos eleva, ao nos lançar na corrente de um élan vital amoroso e estendido, capaz de estabelecer conexões que extrapolam os limites da obrigação. Essa elevação da aspiração mística nos devolve ao princípio criador da vida.

            O aberto e o fechado são os dois sentidos da moral, que resultam de duas qualidades diferentes de forças atuantes na vida social. A mais elementar e, sem dúvida alguma, a mais determinante da moral que compartilhamos é a força da obrigação. É a moral no sentido mais comum, caracterizada por um automatismo tão eficiente quanto ausente de reflexão, e estruturada pelo mecanismo descomplicado do hábito. Trata-se de uma força de constrangimento da vida, de natureza conservadora, cujo propósito é o compromisso com a situação social, a sociedade, no sentido fechado: esta ou aquela, esta e não aquela. O sentimento da obrigação é condicionado a contextos específicos, e a ação dele decorrente é um comprometimento da vida enquanto vida social, enquanto parte no todo. A obrigação depende de um apagamento de si: ela cresce, na medida em que deve decrescer o interesse por si próprio.[7] Será preciso esclarecer por que esse desinteresse por si mesmo que constitui a moral da obrigação é infraintelectual, por que a eficácia da obrigação não depende da inteligência, embora tenha que fazer uso dela. A explicação de Bergson o leva a criticar o intelectualismo das teorias morais, tanto o de vertente kantiana quanto a abordagem utilitarista.[8]

            Para explicar esse sentimento moral, é evidente que é preciso abordar a sociedade, mas, nessa abordagem, ser capaz de ver através dela o modo como a vida em geral está operando em nós e por nós. É sempre o movimento da vida que está em questão, no bergsonismo. “O erro seria de crer que pressão e aspiração morais encontram sua explicação definitiva na vida social considerada como um simples fato.” (DS, p. 102). Bergson recorre às teses de L’évolution créatrice para explicar a moral da obrigação.[9] A obrigação é nosso lado instintivo manifestado como uma força da natureza que age em nós. Evidentemente, ela não pode ter todas as características encontráveis nas sociedades dos insetos himenópteros (abelhas e formigas); não podemos comparar a obrigação com a ação coordenada instintivamente das abelhas, nem a gênese, nem a funcionalidade, porque Bergson estabelece a diferença de natureza que separa a inteligência, predominante nas sociedades humanas, do instinto, responsável pelas colmeias e formigueiros. Abelhas e formigas não agem por obrigação: seria preciso que fossem inteligentes, aliás, esse é o motivo pelo qual suas sociedades são tão perfeitas e estáveis, ainda que não variem.

Porém, a obrigação não resulta de nenhum acordo previamente estabelecido pela inteligência, ela é anteriormente uma reação ao poder dissolvente e antissocial da inteligência. Tal reação toma a forma de um instinto virtual: a evolução é sempre um arranjo de tendências, e cada resultado específico testemunha avanços e recuos das tendências, e não presenças e ausências. Por exemplo, na grande divisão evolutiva da vida animal,[10] a qual corresponde às correntes do instinto e da inteligência, o impulso vital que anima cada ser vivo permanece ligado às duas forças, sendo uma mais presente e determinante das consequências mais visíveis, e a outra, não ausente, mas virtualmente presente, ou seja, podendo se atualizar, quando for o caso de haver a necessidade de compensar os efeitos exagerados da seleção evolutiva de tendências.

Bergson compreende que a vida é um todo, que, ao se dividir no movimento da especiação, precisa distribuir suas partes de forma diferenciada e, por isso, pelas lacunas que serão inevitáveis, a própria vida buscará suas compensações. O instinto virtual é o mecanismo de efeito reativo que nos mantém amarrados socialmente, entendendo-se que a inteligência age primeiramente em benefício do indivíduo, que ela é egoísta por natureza (interessada), como se ela constituísse um problema moral, antes mesmo de ela inventar conceitos para a moral, e conceitos que servirão para pautar a problematização nesse gênero de conhecimento. Quer dizer, a inteligência não funda a moral em conceitos, como se estivesse em um campo neutro; a inteligência já é um problema (moral) para o qual ela própria criará alternativas, maneiras de conter os efeitos danosos que já se anunciam no seu próprio psiquismo.

            Bergson fala frequentemente, desde Evolução criadora, que o instinto permanece como uma franja da inteligência. Todavia, no contexto de Duas fontes, essa franja é elaborada em termos de uma virtualidade que serve para explicar a pressão social que sentimos e à qual respondemos. A obrigação tem uma natureza infraintelectual, não sendo instintiva, no sentido estrito, dado que nossa sociedade resulta de um trabalho inteligente, mas ela é uma atualização de nossa instintividade virtual, que é compensatória do poder desagregante da inteligência. A noção de virtualidade é muito importante de ser compreendida, pois ela atravessa todo o bergsonismo e é por ela que compreendemos o caráter criador da diferenciação, conforme frisa Deleuze (2012, p. 84-85): “para atualizar-se, o virtual não pode proceder por limitação, mas deve criar suas próprias linhas de atualização em atos positivos.”

O par virtual-atual contrapõe-se ao par possível-real: quando explicamos o real pelas suas possibilidades, sempre visíveis ou dedutíveis do arranjo determinado que se realizou, ignoramos o que há de indeterminado na própria realidade e, por isso, ignoramos o aspecto propriamente temporal do real, a sua duração: se o real deriva do que foi possível, ele está pré-formado, pré-determinado; contudo, o virtual, ao se atualizar, cria as condições pelas quais se atualiza. Assim se explica o efeito do instinto virtual: ele não é uma possibilidade que pré-forma a sociedade humana, mas uma memória ligada ao impulso vital que vai operar por meio de dispositivos de ação, os quais garantem o elo social – são as regras, os constrangimentos que criamos para ordenar a vida em comum, não exatamente porque compreendemos intelectualmente sua razão de ser.

As obrigações não são da ordem do saber, como são as leis científicas da razão pura; mas também não são provenientes de uma outra ordem racional, que seria a razão prática. Aqui estamos bem distantes do kantismo. Se quisermos entender as obrigações como um saber, seria preciso imaginar um saber que age por nós, como que à nossa revelia. Embora ele convoque a inteligência em seu proveito, pois é necessário dar às regras uma racionalidade, ele não encontra na inteligência o seu fundamento: a preocupação com a sociedade não nasce da inteligência – para tanto, precisaríamos supor uma neutralidade completamente abstrata da inteligência, uma pura forma – mas por causa dela, como reação a ela, reação, entenda-se, infraintelectual, na forma de obrigação. Porque não temos a capacidade social das abelhas, nos damos obrigações, e até somos capazes de compreender a razão de ser de cada uma delas, somos capazes de discipliná-las como formas transmissíveis de conhecimentos. Porém, o todo da obrigação permanece anterior à razão, ele provém de um instinto virtual.

            O conceito de função fabuladora introduz a religião na ética vitalista de Bergson, e é mais um desdobramento do instinto virtual. O conceito é apresentado no segundo capítulo de Duas fontes, intitulado “A religião estática”. Logo no segundo parágrafo do capítulo, deparamos com uma declaração em favor da hipótese não intelectualista do ordenamento social: “Encontramos no passado, encontraríamos mesmo hoje sociedades humanas que não tem nem ciência, nem arte, nem filosofia. Mas jamais houve sociedade sem religião.” (DS, p. 105). Aquilo que parece essencial para haver sociedade não depende exatamente da inteligência. Por outro lado, não teria havido religião, mesmo no sentido de suas formas mais elementares, se a inteligência não tivesse ocupado esse lugar central na vida humana, de orientá-la na direção de experiências razoáveis, de buscar verdades baseadas em fatos – digamos que, a seu modo, a religião é inteligente, e é preciso entender bem esse modo, disso dependendo o reconhecimento da diferença de natureza entre religião e inteligência.

Tal reconhecimento sempre nos dá a chance de denunciar a estupidez da superstição e de todas as espécies de fanatismo. É preciso que não haja dúvidas sobre como Bergson valoriza a inteligência: uma vez que ele é anti-intelectualista, isso pode dar margem a críticas que o acusem de irracionalismo. O vitalismo de Bergson não é irracionalista. O problema, segundo Bergson, é que vamos longe demais nas consequências das experiências razoáveis: as descobertas científicas sempre tiveram que pagar seu preço para buscar uma acomodação social e, por mais que hoje ela esteja domesticada como instituição social, como não era na época de Galileu, ela permanece sendo um corpo estranho e perigoso aos olhos da sociedade.[11] No processo de diferenciação, na cisão do impulso vital em inteligência e instinto, a sociedade, como força da vida, organiza-se instintivamente, mediante ação muito mais dirigida pelo hábito do que pela reflexão. A inteligência, por mais habilidosa que seja para inventar as razões de nossa obediência, não tem como neutralizar essa diferença, nenhuma teoria irá cobrir o intervalo que separa a inteligência da sociedade. A inteligência, o qual é um processo verificável individualmente no todo da paisagem social, é sempre menos do que gostaria de ser.

Por outro lado, ela tem um alcance que ela, de certa forma, desconhece – o caso da função fabuladora é um exemplo disso: a superstição é um absurdo que só a inteligência pode criar e, quando julgamos o comportamento supersticioso, nem sempre enxergamos a sua razão mais fundamental – o instinto na forma de virtualidade, induzindo a inteligência a criar ficções, a compor ideias que ela própria não pode entender e que, no entanto, cumprem um papel fundamental, inclusive para que a inteligência possa continuar agindo razoavelmente.

            Além do caráter antissocial da inteligência, Bergson aponta outros perigos que suscitarão o dispositivo fabulatório. O animal inteligente sabe de sua mortalidade e também entende que não tem garantias de ser bem-sucedido em suas ações, que as coisas, enfim, são imprevisíveis. O sentimento do risco e a ideia geral da morte, os quais derivam de nossa capacidade reflexiva, não têm nenhuma vantagem do ponto de vista do élan vital, interessado evolutivamente em aprimorar a capacidade animal de agir. A inteligência permanece ligada à ação, contudo, a consciência, ao se ampliar em nós, aumenta o intervalo entre a ação executada e sua projeção no pensamento antecipatório. Hesitamos em agir imediatamente, porque preferimos calcular os passos, medir as consequências.

Com certeza, o resultado geral do cálculo aponta para nossa soberania técnica. Mas, do ponto de vista individual, nossa consciência nos deprime, diminui nossa capacidade de ação, nos desanima – e desanimar, não custa lembrar, é inibir a animalidade. “Se o élan de vida distrai todos os outros viventes da representação da morte, o pensamento da morte deve desacelerar no homem o movimento da vida.” (DS, p. 136). Evidentemente, haverá uma compensação. Assim nascem, segundo Bergson, as imagens de vida depois da morte. Do ponto de vista da vida, que permanece muito mais radicalmente ligada ao instinto, mesmo quando ele concede espaço para o florescimento da inteligência, não há nenhuma utilidade no pensamento da morte. O instinto virtual vai forçar a inteligência a produzir imagens que neutralizam o efeito negativo causado pela consciência da finitude. “Considerada desse segundo ponto de vista, a religião é uma reação defensiva da natureza contra a representação, pela inteligência, da inevitabilidade da morte.” (DS, p. 137). A inteligência da religião seria, digamos, uma inteligência da natureza.

O terceiro ponto de vista pelo qual Bergson explica a religião, ligada ao instinto mais que à inteligência, diz respeito ao risco de dar errado, que é muito aparentado ao pensamento da morte, uma vez que ambos provêm do intervalo da consciência, da concessão dada à inteligência. A projeção de um ato, no objetivo refletido da ação, não virá desacompanhada de ideias positivas, as quais neutralizam o efeito da consciência de que se pode falhar. Novamente, tal pensamento não tem utilidade, quando entendemos que a vida é impulso e movimento. “O animal é seguro dele mesmo. Entre o objetivo e o ato, nada nele se interpõe.” (DS, p. 144-145). A tendência da inteligência autoconsciente é pensar sobre o ato, e é por isso que o ser humano tende a inibir sua animalidade. Desde a Evolução criadora, nós nos acostumamos a pensar a inteligência em seu sentido mais concreto e rente à vida: ela é uma força que articula mecanicamente o passo-a-passo da ação e quando lhe ocorre de suspender o presente em vista de um futuro desejado, quando lhe ocorre de imaginar um objetivo, ela passa a produzir artifícios extramecânicos compensatórios de uma mecânica não mais inteiramente dona de si, porque ciente de suas fraquezas em face do imprevisível. É nos intervalos da inteligência humana, na suspensão do presente, que se inserem as formas mais elementares da religião[12]. Elas fazem crer para que a ação não fraqueje, para que o imprevisível não desencoraje a iniciativa.[13]

            Contudo, até agora tratamos apenas do fechado. A natureza nos encerra, através da função fabuladora, no interior da sociedade, exatamente através da obediência. A visão geral da sociedade é a de uma organização fechada, que, em boa dose, imita as sociedades instintivas. A natureza nos convence de que é preciso obedecer, sem que saibamos exatamente por que, ainda que produzamos filosofias que racionalizam a obediência. Mas, apenas obedecendo, pouca diferença fazemos em relação a uma sociedade puramente instintiva. A moral da obediência só precisa imitar o instinto dos insetos para chegar a sua melhor performance. Evidentemente, a natureza espera mais de nós: que saibamos sair do circuito fechado inteligência-instinto, que é o que consome a maior parte de nossas vidas. A sociedade fechada está destinada a viver em estado latente de guerra,[14] ela sempre terá uma outra sociedade como sua antagonista: o encerramento da sociedade é o limite das condições que formam as obrigações e responsabilidades.

No entanto, dessa maneira, a moral fechada estabelece um sentido condicionado e, portanto, impessoal para a responsabilidade. Uma responsabilidade, enfim, geral e abstrata. Obviamente, aqui está um ponto clarividente acerca do motivo deste ensaio, a comunhão entre a ética de Bergson e a de Levinas: em ambos, o conceito radical de responsabilidade não opera na impessoalidade. Na verdade, não tem sentido considerar uma responsabilidade impessoal: enquanto apenas obedecemos, não somos ainda responsáveis,[15] pois é mais a natureza que age por nós do que cada um por si mesmo. É claro que o impulso vital vai pedir passagem, ele não pode se contentar com o estado estacionário e reacionário da sociedade fechada, no mínimo, porque este é belicoso por natureza, tende a naturalizar o estado de guerra e todas as suas iniquidades. É através do conceito de emoção criadora que saltamos para o aberto.

 

2 Mística, emoção e criação

            A sociedade nunca deixa de ser fechada, mas ela abriga individualidades capazes de conectar a humanidade inteira, e não apenas os mais próximos, os de dentro. O conceito de aberto, ponto central da ética bergsoniana – assim como é o de infinito, na ética levinasiana – se articula na análise da alma aberta. O método de Bergson, já o sabemos, passa sempre pela diferença de natureza, e a primeira coisa importante a dizer nessa análise é que não se passa do fechado ao aberto como se passa do frio ao quente, ou seja, por diferença de grau. Outra coisa importante a ser vista nessa teoria da diferenciação de Bergson é que a diferença de natureza não implica substância estabilizadora, porém, tendência do élan vital, não esquecendo que estamos numa filosofia da duração, a qual entende a vida como estado de movimento. Embora possa parecer, na análise de Bergson, que ele caracterize a alma aberta, aludindo, por exemplo, à experiência mística,[16] não se trata de demarcar um tipo, enfatizar na diferença, ou na tendência, um tipo de identidade, mas antes de caracterizar para fazer ver uma determinada configuração do élan vital, o contorno material de uma tendência ou feixe de intensidade.

Mais uma vez, é preciso lembrar o propósito do vitalismo: fazer ver na espécie formada a marca dos movimentos, focalizar os movimentos e não suas estabilidades ou estados estacionários. A alma aberta se encarna em personalidades privilegiadas, ressalta Bergson, mas talvez o mais importante é que ela ressoe nas almas comuns; a alma aberta está mais à altura de sua realização, na experiência mística, mas não quer dizer que esteja ausente da vida comum. A maior prova disso é que as experiências místicas provocam, movem por aspiração: a elas nos dirigimos, não por pressão, mas porque sentimos que há ali algo de desejável e grandioso. O essencial desse tipo de força é sua simplicidade, e toda forma de racionalização que a inteligência faz dela, religiosa ou filosófica, deveria ser capaz de traduzir essa simplicidade.[17] Todavia, a inteligência se enreda em formulações complicadas, sem contar que, em geral, desconsidera a diferença de natureza.

            O que faz a alma aberta é mover a sociedade para fora de seu círculo vicioso. Trata-se de um movimento que não está referido a um objeto e nem deriva de uma representação prévia da inteligência. Esse é o tipo de emoção que Bergson atribui tanto à experiência mística quanto a certas experiências estéticas, como a criação de uma obra musical[18], por exemplo. Desse movimento criador da alma aberta, Bergson faz surgir uma sociedade aberta. Contudo, a palavra sociedade deve ganhar outra conotação, porque ela não vai formar os contornos de uma sociedade como imaginamos, mas vai traçar linhas de divisão dentro da massa social, bem como de uma massa a outra, através de uma espécie de contágio que não encontra obstáculos.

É a partir desse contágio da emoção criadora que podemos formar uma sociedade aberta. No final de seu Bergsonismo, ao remeter à emoção criadora, Deleuze evoca o conceito de memória, que, no contexto de Matéria e memória, tem um funcionamento semelhante ao de emoção, na análise da alma aberta:

E o que seria essa emoção criadora senão, precisamente, uma Memória cósmica, que atualiza ao mesmo tempo todos os níveis, que libera o homem do plano ou do nível que lhe é próprio para fazer dele um criador, um ente adequado a todo movimento da criação? Tal encarnação da memória cósmica em emoções criadoras, tal liberação ocorre, sem dúvida, em almas privilegiadas. A emoção criadora salta de uma alma a outra, “de quando em quando”, atravessando desertos fechados. Mas, a cada membro de uma sociedade fechada, se ele se abre à emoção criadora, esta comunica a ele uma espécie de reminiscência, uma agitação que lhe permite prosseguir e, de alma em alma, ela traça o desenho de uma sociedade aberta, sociedade de criadores, na qual se passa de um gênio a outro por intermédio de discípulos, de espectadores ou de ouvintes. (DELEUZE, 2012, p. 98).

 

Na imagem que Deleuze cria de sociedade aberta, fica evidente a diferença de natureza entre o aberto e o fechado. É apenas por comodidade que chamamos esse circuito diferenciador da alma aberta de sociedade.[19] Na verdade, o desenho traçado pelo contágio da emoção criadora implica mais uma libertação da ideia de sociedade. O aberto é a forma ética do impulso vital. O que há de propriamente criador na corrente da vida, aquilo que ela busca em seu longo processo evolutivo, ela encontra nessas almas privilegiadas que comunicam o amor em sua forma essencial, o amor incondicional. É difícil dizer o que é isso, e de fato essas almas estão mais afeitas a fazer do que a definir um conceito seu. Incondicional significa sem referência a um objeto – a família, a pátria, o lugar onde se nasce – e sem justificativa; inclusive, quando se alude, a propósito da alma mística, a amor estendido à humanidade inteira, é para transcender a ideia de humanidade. Não se pode amar a humanidade inteira, se ainda não demos um passo para além dela.

Aqui encontramos a responsabilidade sem por que de Levinas, essa relação que é d’emblée éthique; e, se nos referimos a relação, é também por uma questão de comodidade, porque, de fato, com Levinas a relação já significa um estar além da relação, que opera como condição anárquica, ou seja, como incondicional. Se, em Bergson, o aberto vai além da sociedade como forma, em Levinas, a ética, embora fale de uma relação singular – mas exatamente devido a essa singularidade! – já fala para além da relação. De forma direta e ativa, sem por que, sem mediação, sem justificativa, a intuição mística, que é também estética, o élan do amor, atinge aquele ponto a que a intuição filosófica desejaria chegar, mas a que nunca chega, porque, no fundo, a filosofia continua sendo produção de teoria[20], coisa que não faz diferença para o essencial da experiência mística. O filósofo permanece preso – e protegido – em sua grade contemplativa e, quando tratamos de emoção, é preciso entender um movimento, uma iniciativa no nível do fluxo evolutivo da vida[21]. Pode ser que um místico venha a produzir uma filosofia, mas um filósofo místico, da mesma forma como aquele que em Levinas recebe a ideia de infinito, faz mais do que pensar.

 

3 Levinas: ética da infinitude

            Levinas não se cansa de frisar que a alteridade é uma concretude, que o outro é de carne e osso, e tem fome. Logo, devemos concluir que se trata da intersubjetividade, que estamos amarrados à estrutura moderna e transcendental de sujeito-objeto, que é preciso, portanto, em se tratando de ética, desobjetivar o sujeito? Ora, chegaríamos, pois, à geometria da intersubjetividade ética e tudo poderia ser descrito adequadamente? É preciso ir direto ao capítulo quarto de Autrement qu’être para, mais uma vez, entender a substituição.[22] Se ainda nos referimos a relação ou a intersubjetividade, é para evocar uma ressonância, um dizer, uma temporalidade diacrônica. Na substituição, o pensamento ético de Levinas encontra seu termo, o início e o fim, um derivando interminavelmente do outro, o impossível tomando forma, a ontologia destituída de ser: mais uma vez – outramente que. A responsabilidade levinasiana não seria assimétrica e sans pourquoi, se permanecesse amarrada ao espaço intersubjetivo. A estrutura hegeliana do reconhecimento é frontalmente atacada pela assimetria da infinitude. Aqui, Levinas é tão pouco moderno quanto Bergson. Nunca é em vão relembrar a fórmula dostoievskiana, exaustivamente citada nos escritos de Levinas: somos todos responsáveis de tudo e de todos, e eu mais do que todos os outros – nessa ênfase do “eu mais que todos os outros”, encontra-se a chave da fórmula, espécie de síntese do infinito ético ou do que pode significar essa filosofia às avessas, essa sabedoria do amor.[23]

            Essa sabedoria do amor: não seria ela um modo de dizer a experiência mística bergsoniana? Não seria ela também a condição de uma superabundância, de um transbordamento da alma? Vamos lembrar de novo o que escreve Levinas, no prefácio de Totalidade e infinito (para a edição alemã de 1987). Ele reivindica uma fidelidade à obra inovadora de Henri Bergson, cuja noção de duração liberou o tempo de sua obediência à astronomia e o pensamento de seu apego ao espaço, bem como de seu exclusivismo teorético. A inversão que Levinas propõe, na filosofia (que não deixa de ser uma maneira de contrariar o hábito intelectual), também libera o pensamento do exclusivismo teorético e – arrisco afirmar – de uma forma que está mais adequada ao bergsonismo que à fenomenologia.[24] Se liberamos a noção de alteridade de seu humanismo, não poderíamos entender Levinas como um vitalista? Mas o humanismo levinasiano de l’autre homme já não comportaria também essa exigência da alma privilegiada de estar além da humanidade, de fazer parte de uma sociedade aberta, o que significa estendida a toda forma de vida?

O infinito é uma superabundância do tempo, que, em certas almas, toma a forma de um puro amor. Levinas também não desobedece à astronomia com sua noção de tempo diacrônico, esse tempo urgente da responsabilidade que desafia a lógica e consegue sempre começar novamente?[25] Em si como exílio: essa figura, tão recorrente em Autrement qu’être, não seria bem mais fácil de entendê-la, se liberássemos o pensamento de seu apego ao espaço? Em Levinas, a utopia é por excelência a condição humana, não porque vislumbramos um mundo por vir, não por idealismo, mas porque, engajados na construção desse por vir, na forma de ação ético-política, suspendemos nosso lugar, ou melhor, suspendemos em nós o lugar, a espacialidade, a métrica. A utopia levinasiana do humano é o tempo como encarnação.[26]

            Em todo caso, voltamos ao ponto: o infinito de Levinas se comunica muito bem com o aberto de Bergson. Mesmo quando Levinas alude a obrigação – esse conceito rigorosamente definido, em Bergson, como mecanismo da sociedade fechada, a invocar um instinto virtual e uma religiosidade fabulatória –, já estamos na incondição do infinito; embora seja um ordenamento, ele provém de uma altura que se manifesta incomensurável, portanto, como equívoco. O que resulta desse ordenamento do infinito é uma responsabilidade sem tamanho, sem condições, sem medidas, portanto, radicalmente insubstituível. E, por essas mesmas razões, também podemos afirmar que a responsabilidade levinasiana é desobediente, no sentido já mencionado, quando abordamos a moral fechada da obrigação (e que nos fez lembrar o famoso caso do nazista Adolf Eichmann). Porque obedecer ao ordenamento ético do infinito é o mesmo que não ter qualquer referência capaz de dar uma objetividade à obediência, uma explicação, uma justificativa. E, ao contrário do que pensaria o senso comum, essa ausência de referência não é nenhum alívio, mas a radicalização, ou melhor ainda, a encarnação da responsabilidade – insubstituível e, por conseguinte, pessoal. É oportuno lembrar que a experiência mística remete a uma pessoalidade. Totalidade e infinito correspondem a um modo de dizer fechado e aberto. Da mesma forma, outramente que ser é um caminho para pensar o tempo liberado da física e sua espacialização.

 

Considerações finais

Levinas e Bergson estão mais próximos do que supõem seus leitores mais habituais. Entretanto, se filosofar é desabituar o pensamento, como sugere Bergson, o que pretendi fazer aqui foi liberar nossos hábitos de interpretação, distraí-los dos caminhos de sempre. No caso, tratar de um certo bergsonismo levinasiano não é nada comum. Mas o hábito é da natureza instintiva, ele é previsível e se move sempre para o mesmo lugar, como se não se movesse de verdade. Não é por hábito que evoluímos, inclusive quando estamos lidando com conceitos já conhecidos. Mas, se entendermos que o conceito é algo vivo, obviamente, ele comporta linhas de diferenciação por onde o pensamento pode continuar evoluindo. Bergson encontra na alma mística o élan vital liberado, ou seja, criando o tempo da vida, abrindo a vida pelo fluxo do tempo que ganha a forma de um amor universal, sem fronteiras, sem objetos, sem condições determinadas. Levinas, na moldura da intersubjetividade, introduz um equívoco – a ideia de infinito – que também vai ganhar a forma de um amor expandido, sem fronteiras, sem objetos – uma modalidade de pensamento anárquica, o acolhimento incondicional.

Ler Levinas pelo bergsonismo é encontrar nessa ideia de infinito o élan vital, a reserva de tempo que faz a vida expandir pelo fio de uma responsabilidade sem limite, porque nunca parando de começar – Levinas traduz o tempo em responsabilidade. Se, por um lado, Bergson parece estar mais afinado com os desafios desse tempo de ameaça ecológica, quando as molduras da intersubjetividade e do reconhecimento não dão conta da multidão de seres em seus variados processos de interação, por outro lado, Levinas, com a ênfase de uma responsabilidade assimétrica, parece tocar no coração da atitude mística, contudo, de sorte a trazê-la mais para perto e, assim, quem sabe, apontar o caminho do que seria uma politização mais verdadeira, mais radical, mais comprometida, à altura do desafio ecológico. O infinito como abertura, o ímpeto da vida como uma responsabilidade encarnada e amorosa.

 

The infinite and the open: on the ethical intuitions of Levinas and Bergson

Abstract: Levinas is almost solely studied from the perspective of phenomenology, and this is evidently quite justifiable by the fact that the philosopher claims to be Husserl’s heir, although it is very importante to consider other influences for a deeper understanding of his thought, such as talmudism and Russian literature. But, in general, an important reference remains forgotten that Levinas never fails to mention in his interviews and even in the preface to the German edition (1987) of his important book Totalité et infini: Bergson’s philosophy. Our objective is to seek the elements of this approach, often mentioned but little explored, between the ethical intuitions of Levinas and Bergson. Although it is not the work Les deux sources de la morale et de la religion that Levinas likes to remember when referring to Bergson, it is what we will evoke to suggest an intuitive communication that connects the bergsonian concept of open and the levinasian concept of the infinite. Levinas takes a step beyond phenomenology when he elaborates one of his fundamental concepts, that of visage, and it is he himself who admits in the conversation with Philippe Nemo entitled Éthique et infini (1984), but we should be surprised if the most important notion of Levinas ethics, that of infinity, would reveal what is most essential in Bergson’s ethics, the sense of openness through which unlimited, in other words, unconditional, responsibility is announced?

Key-words: Infinite. Open. Ethic. Responsibility.

 

Referências

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BERGSON, Henri. Les deux sources de la morale et de la religion. Édition critique dirigée par Frédéric Worms. Paris: PUF, 2013a.

BERGSON, Henri. L’évolution créatrice. Édition critique dirigée par Frédéric Worms. Paris: PUF, 2013b.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução: Maria Beatriz M. N. da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2011.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução: Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2012.

FARIAS, André Brayner de. Poéticas da hospitalidade – ensaios para uma filosofia do acolhimento. Porto Alegre: Zouk, 2018.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução: Maria E. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

GROS, Frédéric. Desobedecer. Tradução: Célia Euvaldo. São Paulo: UBU, 2018.

LEVINAS, Emmanuel. Ethique et infini. Paris: Le Livre de Poche, 1984.

LEVINAS, Emmanuel. Difficile liberté. Paris: Albin Michel, 1997.

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LEVINAS, Emmanuel. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Paris: Kluwer Academic, 2001.

LEVINAS, Emmanuel. Dieu, la mort et le temps. Paris: Grasset & Frasquelle, 2002.

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TROTIGNON, Pierre. Autre voie, même voix: Levinas et Bergson. In: L’Herne, 60: Emmanuel Levinas. Paris: Éditions de l’Herne, 1991. p. 287-293.

VIEILLARD-BARON, Jean-Louis. Levinas et Bergson. Revue philosophique de La France et de l’étranger, v. 4, n. 135, p. 455-478, 2010. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-philosophique-2010-4-page-455.htm. Acesso em: 13 maio 2021.

WORMS, Frédéric. Bergson ou os dois sentidos da vida. Tradução: Aristóteles A. Predebon. São Paulo: Ed. UNIFESP, 2011.

 

Recebido: 11/01/2022

Aceito: 16/09/2022


 

A teoria da substância no ensaio sobre o entendimento humano, de John Locke

 

Carlota Salgadinho Ferreira[27]

Vinícius França Freitas[28]

 

Resumo: Neste artigo, pretende-se oferecer uma interpretação sobre a explicação da origem da ideia (relativa) de substância pura em geral, na filosofia de John Locke, a partir da noção de “sugestão natural” de Thomas Reid. Para tal, após contextualizar a noção de substância pura em geral para Locke e distingui-la da ideia de substância particular (seção 1), explicita-se que as suas palavras sobre a fonte (empírica ou racional) da ideia da segunda na mente são ambíguas e inconclusivas (seção 2). Depois, argumenta-se que os paralelos entre essa ideia e a de “relação”, assim como a de “poder”, não auxiliam nessa resposta, devido a alguns problemas que neles se identificam (seção 3). Finalmente, argumenta-se que a explicação reidiana para a origem da ideia de “mente”, com base na noção de “sugestão natural”, permite i) contornar aqueles problemas e, ii) na medida em que, de acordo com essa proposta, a ideia de substância pura em geral teria uma origem empírica, o empirismo lockiano se manteria intacto (seção 4).

 

Palavras-chave: História da Filosofia. Ideia. Substância. John Locke.

 

INTRODUÇÃO

A filosofia do Ensaio sobre o entendimento humano (1999b),[29] de John Locke (1632-1704), é motivo, nos primeiros anos de sua recepção, de uma série de críticas negativas. Por exemplo: alguns entendem que o projeto lockiano de fundamentar o conhecimento humano, a partir apenas de fontes empíricas, fracassaria[30]; outros, que a filosofia do Ensaio implicaria uma forma perniciosa de sensacionalismo ou idealismo.[31] Há também aqueles que entendem que a linguagem da “via das ideias” conduziria a filosofia necessariamente ao ceticismo.[32] As críticas ao Ensaio se tornam ainda mais veementes após a publicação, no ano de 1696, de Christianity Not Mysterious, visto que seu autor, John Toland (1670-1722), admite usar os princípios do Ensaio como fundamento de seu deísmo.[33] No início do século XVIII, Locke é associado ao espinosismo por William Carroll, o “inquisidor dos espinosistas secretos”.[34] O Ensaio, portanto, seria uma ameaça à religião.[35]

A doutrina lockiana da substância é certamente um dos alvos que mais ataques recebe, nos anos que se seguem à publicação do Ensaio, visto que, reconhecidamente[36], o filósofo não é claro sobre esse assunto; não obstante, como notam autores como, por exemplo, Peter Millican (2015, p. 08), Locke tenha legado um vasto material a esse respeito. Muitos são os intérpretes, com efeito, que há décadas se dedicam a entender o coração da teoria da substância de Locke. Muitos concordam, entretanto, que falta clareza ao tratamento lockiano do tema.[37]

O presente artigo pretende contribuir para essa discussão. Antes de explicar nosso objetivo, no entanto, gostaríamos de esclarecer que o tema da substância em Locke permite mais de um tipo de aproximação. Por exemplo, há quem, entre os intérpretes, se esforce para compreender se, aos olhos do filósofo, uma substância deve ser identificada com suas propriedades[38], para pensar uma maneira sistemática de se distinguir entre as ideias de substância e de modos mistos[39] ou para compreender a relação entre a teoria da substância e a teoria corpuscularista de Locke.[40] Não pretendemos nos aproximar de nenhum desses aspectos da teoria. Temos em vista, mais especificamente, a discussão do problema de saber como o filósofo explica, no Ensaio, a origem da ideia de substância concebida como suporte ou substrato – que Locke chama de ideia de “substância pura em geral” (doravante, ideia de SPG). Pretendemos oferecer uma interpretação sobre a explicação da origem da ideia (relativa) de SPG, na filosofia lockiana, em função da noção de “sugestão natural” de Thomas Reid (1710-1796). Para isso, em primeiro lugar (seção 2), argumentaremos no sentido de mostrar que Locke não é claro sobre a natureza dos processos no espírito que formam a ideia de SPG. O texto do Ensaio oscila entre uma explicação empírica e uma explicação racional. Não é possível saber, portanto, se essa ideia pode ser explicada apenas por processos sensíveis ou se, como sugerem alguns, Locke viola os princípios de seu empirismo e sugere uma fonte racional para essa ideia.

Em segundo lugar (seção 3), argumentaremos no sentido de mostrar que a aproximação entre uma “ideia relativa” e uma “ideia de relação” não auxilia a solucionar a dificuldade. Argumentaremos também no sentido de mostrar que uma aproximação, à primeira vista, promissora, entre a ideia de SPG e a ideia de poder, não contribui para entendermos o que é aquela ideia. Tanto quanto sabemos, essas duas aproximações, a nosso ver, valiosas, não são discutidas na literatura secundária. Após examinarmos todas essas dificuldades sobre a ideia de SPG, que nos levariam à conclusão de que Locke não oferece uma explicação coerente para a ideia de SPG, no Ensaio, gostaríamos de avançar (seção 4) uma hipótese especulativa inspirada pela filosofia reidiana: afirmar que Locke ofereceria alguns elementos, ao longo do texto do Ensaio, para explicar a origem da ideia de SPG, de uma maneira não problemática, isto é, a partir de uma fonte empírica, sem extrapolar os princípios de seu empirismo. A explicação que propomos não é defendida explicitamente pelo filósofo. No entanto, gostaríamos de sugerir que existem elementos no texto do Ensaio que poderiam desvencilhar Locke do problema de explicar consistentemente a ideia de SPG. A discussão do artigo (seção 1) se inicia com um esclarecimento sobre a distinção entre uma ideia complexa de substância em particular e uma ideia de SPG.[41]

 

1 A DISTINÇÃO ENTRE DUAS IDEIAS DE SUBSTÂNCIA NO ENSAIO

Locke utiliza o termo “substância” para se referir ao menos a dois tipos distintos de ideias no espírito. Em primeiro lugar, sugere que existem ideias de substâncias particulares, como, por exemplo, as ideias de homem, árvore, espírito etc. O filósofo observa, no capítulo XII do segundo livro do Ensaio, “Das ideias complexas”, que uma ideia complexa é um conjunto de ideias simples de sensação ou reflexão unidas pelo espírito, capaz de as compreender como se elas constituíssem uma única e mesma coisa. Por exemplo, a ideia de “homem” é uma coleção de ideias simples de sensação – as ideias de figura, extensão, cor, cheiro etc.; a ideia de “espírito”, uma coleção de ideias simples de reflexão – as ideias de vontade, entendimento, raciocínio, memória etc. Em ambos os casos, essas ideias complexas são compreendidas pelo espírito como se constituíssem um único objeto, pois, segundo Locke (1999b, p. 202), “[...] a mente tem o poder de considerar várias ideias unidas, como uma só ideia.

No capítulo XXIII do segundo livro, “Das nossas ideias complexas de substância”, Locke esclarece que essas coleções de ideias, isto é, essas ideias complexas, são as ideias de substâncias particulares. Os nomes utilizados para designar substâncias, quando usados corretamente, significam, para Locke (1999b, p. 387), essas coleções de ideias simples, não uma substância em que as qualidades sensíveis (no caso dos objetos externos) ou as operações mentais (no caso do espírito) existiriam: “[...] e as palavras, designativas, para maior comodidade e rapidez, de tais conjuntos permanentes de ideias simples, podem induzir-nos em erro e levar-nos a supor que nomeiam substâncias de que as referidas ideias simples seriam qualidades.” Com essas afirmações, Locke pretende significar que a palavra “homem”, por exemplo, deve ser usada tão somente para designar um conjunto de ideias de sensação – figura, extensão, cor etc. –, não um suposto suporte em que essas qualidades existiriam.

Essa é a primeira noção de substância com que Locke opera, no Ensaio. Essa compreensão está muito próxima da visão que, mais tarde, será conhecida como “teoria do feixe” (Bundle theory). De acordo com essa teoria, uma substância corporal ou uma substância espiritual são apenas conjuntos de ideais de qualidades sensíveis ou modos do pensamento – operações mentais –, de modo que uma coisa se reduz ao conjunto de ideias simples de sensação/reflexão que a compõem. George Berkeley (1685-1753), por exemplo, apresenta uma teoria do feixe em relação às substâncias corpóreas no Tratado sobre os princípios do conhecimento (1973).[42] David Hume (1711-1776), por sua vez, defende-a não apenas em relação às substâncias corporais como também com respeito às substâncias espirituais, no Tratado da natureza humana (2001).[43]

Porém, Locke não é um teórico do feixe. Com efeito, no Ensaio, há uma “teoria do substrato”,[44] desenvolvida a partir da compreensão lockiana de que há no espírito uma ideia de SPG, a ideia de um suporte ou substrato, onde existiriam as qualidades sensíveis e os modos do pensamento apreendidos por meio das ideias de sensação/reflexão. Esta é a ideia de SPG, introduzida no capítulo XXIII do segundo livro do Ensaio. Locke observa que, na ideia complexa de substância particular, se encontra, como “primeira e principal”, essa ideia “suposta e confusa” de SPG:

As ideias das “substâncias” são aquelas combinações de tipo simples que se presume representarem diferentes coisas “particulares” que “subsistem por si próprias”, nas quais “a ideia suposta ou confusa de substância”, tal como é, “aparece sempre como a primeira e principal”. (LOCKE, 1999b, p. 204, grifo nosso).

 

A explicação de Locke sobre aquilo em que consiste essa ideia suposta ou confusa de substância, assim como qual seria a sua origem, não está clara no texto do Ensaio. Autores como Armstrong (1989, p. 61), por exemplo, acreditam que é justamente essa deficiência da teoria lockiana da substância que prepara o caminho para que, nas décadas seguintes, a filosofia empirista caminhe em direção a teorias do feixe. Com efeito, o texto do Ensaio é a tal ponto obscuro a esse respeito que, em algumas passagens, seu autor parece, de fato, abandonar o compromisso com uma teoria do substrato em favor de uma teoria do feixe. Por exemplo, na passagem seguinte, Locke (1999b, p. 400, grifo nosso) parece negar a existência da ideia de um substrato: “[...] uma vez que a nossa ideia de substância é igualmente obscura, ou que ‘não temos qualquer ideia acerca da mesma’, em ambos os casos é apenas algo suposto – ‘não sei o quê’ – que suporta essas ideias a que chamamos acidentes.”

Outras passagens, a nosso ver, também podem ser lidas na perspectiva de uma teoria do feixe. Por exemplo, em algumas ocasiões, Locke refere-se ao suporte não como uma ideia, mas como uma “noção”.[45] Para sublinhar a estranheza dessa expressão, talvez seja suficiente que atentemos ao que é ressaltado por Berkeley nos Princípios do conhecimento: visto que o espírito não é capaz de formar uma ideia de si próprio, ter-se-ia dele apenas uma “noção”.[46] Isto é, ao menos na filosofia berkeliana, uma noção não é uma ideia.

Explicamos a ambiguidade de Locke nas formas de se expressar, notando que, para o filósofo, essa ideia não surge de uma das duas fontes comuns de ideias, a sensação e a reflexão. Isso é claro pelo reconhecimento de Locke (1999b, p. 92, grifo nosso), ainda no primeiro livro da obra, de que o espírito não tem uma ideia de substância advinda de uma dessas duas fontes:

Confesso que há outra ideia que seria bom que os homens tivessem, pois falam como se a possuíssem; e é a ideia de “substância”, “que não temos nem podemos ter por sensação ou reflexão”. Se a natureza se tivesse preocupado em prover-nos de algumas ideias, bem poderíamos esperar que fosse esta, pois “não a podemos encontrar pelas nossas próprias faculdades” [...].

 

Mais uma vez, Locke parece sugerir que o espírito não dispõe de tal ideia, pois ela “[...] não [é] encontrada pelas próprias faculdades”. Contudo, a continuação do texto esclarece essa perplexidade. A ideia de substância surge, segundo Locke (1999b, p. 92), de uma “fonte alternativa”:

Mas, pelo contrário, porque esta ideia “não pode chegar-nos à mente da mesma forma que as restantes” [destaque nosso], acontece que dela temos um conhecimento muito confuso; de tal modo que a palavra “substância” não significa nada, a não ser uma incerta suposição de algo que ignoramos (isto é, de alguma coisa de que não percebemos particularidade distinta e positiva), mas que consideramos ser o substratum ou suporte das ideias que conhecemos.

 

O espírito, portanto, forma para si uma ideia de substância enquanto suporte, contudo, sua origem não é a mesma de outras ideias simples de sensação/reflexão.

 

2 A ORIGEM DA IDEIA DE SPG

Locke (1999b, p. 387) chama essa ideia de suporte, advinda de uma fonte alternativa, de ideia de “substância pura em geral”:

Portanto, se alguém se examinar a si próprio, no que respeita à ideia de substância pura em geral, descobrirá que, na realidade, não possui qualquer outra ideia acerca da mesma senão uma suposição do desconhecimento do que sustém essas características que são capazes de originar em nós ideias simples [...]

 

Embora não julguemos que exista algum conflito entre as afirmações do filósofo sobre a existência ou inexistência de uma suposição ou ideia confusa de substância, Locke não é claro sobre qual é essa fonte alternativa de que se origina a ideia de SPG, a ideia desse “desconhecido que sustém” as qualidades sensíveis ou modos do pensamento, como enfatizamos anteriormente. Essa questão não é de pouca importância, visto que sua resposta diz respeito aos princípios metodológicos e epistemológicos da investigação filosófica lockiana ou, em outras palavras, se o filósofo se mantém fiel a eles ou não. Por exemplo, aos olhos de alguns intérpretes, como Mabbott (1973, p. 30-32), a explicação da origem da ideia de substância levaria Locke, pela primeira vez no Ensaio, a violar os princípios de seu empirismo, pois ele não poderia explicá-la unicamente por processos empíricos do espírito. Em outras palavras, Locke, aos olhos de Mabbott, abriria a possibilidade para se pensar em fontes racionais para as ideias simples do espírito, contrariando um dos axiomas de seu empirismo lockiano: todas as ideias simples do espírito se originam da sensação/reflexão.[47]

Como observado na Introdução, os intérpretes em geral estão convencidos de que o coração da concepção lockiana da substância não está claro, sobretudo a explicação da origem da ideia de SPG. Além de Mabbott[48], Bennett[49], Ayer[50] e Kim[51] também parecem sugerir que essa ideia só pode ser explicada por Locke, a partir de processos racionais do espírito. Yolton (2010[52], p. 45) sustenta, de fato, que a ideia de SPG, no caso das substâncias corporais, é uma teoria, isto é, uma hipótese filosófica:

Não podemos, sem teoria, encontrar um objeto para as partes sensíveis sólidas e extensas. Locke não evita teoria. Ele formulou claramente a hipótese corpuscular em 2.8 [oitavo capítulo do segundo livro], utiliza-a ao longo de 2.23 [vigésimo terceiro capítulo do segundo livro] [...] A hipótese corpuscular permite-nos articular uma concepção plausível dessa constituição interna. Esta concepção é, não obstante, uma hipótese, não conhecimento.

 

Interpretações como essa, no entanto, não são unânimes na literatura secundária. Aaron[53] e Atherton[54], por exemplo, entendem que seria suficiente que Locke apelasse a processos empíricos, para explicar essa ideia. Aaron (1955, p. 176) ressalta que a experiência da coexistência das ideias simples, ou a consciência dessa conjunção constante das ideias, é a origem empírica da ideia de substância: “[...] a mente não tem ideias de qualidades isoladas, contudo, de qualidades unidas em uma unidade. Está aqui, agora, o fundamento empírico da ideia de substância.”

Antes de continuarmos a discussão do tema, gostaríamos de sugerir um uso mais preciso para as expressões “fonte racional” e “fonte empírica”. Por “fonte empírica”, entenderemos aquelas leituras que sugerem que a formação dessa ideia de substância não envolve nenhum desses processos anteriores. Nesse caso, o espírito seria naturalmente levado, por exemplo, pela experiência da coexistência de qualidades sensíveis, à formação dessa ideia, sem a necessidade de concluir ou abstrair, para se formar a ideia. Por “fonte racional”, compreenderemos aquelas leituras que sugerem que a ideia de SPG decorre de processos mentais, como a inferência ou a abstração. Por exemplo, diante da constatação da impossibilidade de se conceber que as qualidades sensíveis possam subsistir por si próprias, o espírito, por inferência, conclui que existe necessariamente um suporte para essas qualidades. De outro modo, diante dessa mesma constatação, o espírito abstrai essa ideia de substância pura das ideias simples de sensação/reflexão ou das ideias complexas de substâncias particulares.

Assim, observamos que, em verdade, o texto do Ensaio oscila explicitamente entre uma fonte empírica e uma fonte racional para a ideia de SPG. No que diz respeito à primeira dessas possibilidades, Locke (1999, p. 389) sugere, por exemplo, que essa ideia pode ser produto do “costume”:

Embora a ideia que possuímos de ambos seja apenas a compilação ou a associação dessas múltiplas ideias simples das qualidades sensíveis que “costumávamos encontrar unificadas na coisa” [destaque nosso] denominada cavalo ou pedra, uma vez que não podemos conceber como é que ambas poderiam subsistir sozinhas ou uma na outra, supomos que existem num objecto comum ou são suportadas por ele.

 

Encontramos também a sugestão da existência de certa “propensão” do espírito a supô-la, ao pensar na ideia complexa de substância. Ao explicar a ideia de substância espiritual, Locke (1999, p. 389) nota que “[...] somos propensos a pensar que estas acções pertencem a uma outra substância a que chamamos espírito.” Essa é reforçada pela observação de Locke (1999, p. 400, grifo nosso) de que essa ideia é devida à “experiência diária” da conjunção dessas ideias, isto é, de que elas coexistem:

Através das ideias simples que obtemos dessas operações das nossas mentes que “experimentamos diariamente em nós”, como o pensamento, o entendimento, a vontade, o saber e o poder de iniciar movimento, etc., “coexistindo em alguma substância”.

 

No que diz respeito à possibilidade de uma fonte racional, Locke menciona mais de uma vez a incapacidade do espírito de “conceber” que as qualidades sensíveis e as operações mentais poderiam subsistir por si próprias. Diante dessa incapacidade, o espírito precisaria formar uma ideia de suporte. Nesse caso, ele é movido, segundo o filósofo (1999, p. 389), por algo como um “critério de conceptibilidade”: “[...] uma vez que não podemos conceber como é que ambas [as ideias simples de sensação e reflexão] poderiam subsistir sozinhas ou uma na outra, supomos que existem num objeto comum ou são suportadas por ele.” Há também ao menos uma passagem em que Locke (1999, p. 389-390, grifo nosso) indica que essa ideia é formada a partir de uma “conclusão”, como se fosse resultado de um processo inferencial:

O mesmo acontece em relação às operações mentais, isto é, o pensamento, o raciocínio, o receio, etc. os quais “concluímos não dependerem de si próprios”, nem apreendemos como é que podem pertencer a um corpo, ou serem produzidos por ele.

 

Em virtude da obscuridade inerente ao próprio texto do Ensaio, não julgamos, portanto, que os intérpretes supracitados – especificamente Yolton, Mabbott, Bennett, Ayer e Kim – estejam equivocados, ao suporem que Locke explica a ideia relativa de SPG, em termos racionais. Como pretendemos argumentar adiante, mesmo – a nosso ver – as mais promissoras tentativas de explicar essa origem parecem enfrentar problemas.

 

3 A NATUREZA RELATIVA DA IDEIA DE SPG

Na quarta seção, voltaremos à discussão da origem da ideia de SPG. Por ora, tornamos nossa atenção para o que parece ser a mais clara tentativa de Locke de explicar em que consiste, de fato, essa ideia. No capítulo XXIII, o filósofo (1999, p. 388) menciona, com efeito, que a ideia de SPG é uma “ideia relativa”: “[...] assim elaborada uma ideia pouco clara e relativa de ‘substância em geral’, chega-se às ideias de ‘tipos especificas de substâncias’ através da recolha de ‘tais’ combinações de ideias simples [...]” Certamente essa passagem não esclarece o que é uma ideia de SPG, haja vista que não explicita o que é uma ideia relativa, tampouco o faz em outro lugar do texto. Contudo, parece-nos promissora, à primeira vista, a possibilidade de se explicar essa ideia relativa, em função de um cotejo com a noção de “ideia de relação”, porque, se não há uma discussão sistemática do que são ideias relativas, Locke se detém demoradamente sobre a discussão das ideias de relação, no Ensaio.

Começamos focalizando uma suposta dificuldade notada por Mabbott (1973, p. 30): “[...] a substância não é uma ideia de relação: a relação é uma questão de ‘suportar’ ou ‘inerência’.” O fundamento dessa observação está na distinção operada por Locke (1999, p. 203), no capítulo XII do segundo livro do Ensaio, entre “grupos” de ideias complexas: as ideias de “modos”, “de substâncias” e “de relações”. Seguindo essa categorização, uma ideia de substância não poderia ser identificada com uma ideia de relação, pois essa identificação contrariaria essa distinção estabelecida pelo filósofo. Contudo, parece-nos que essa dificuldade surge apenas quando não se distingue rigorosamente entre as duas noções de substância com que Locke trabalha, no Ensaio. Com efeito, a ideia de substância que não pode ser entendida como uma ideia de relação é aquela ideia complexa de substância particular. Uma ideia de árvore ou espírito, com efeito, não é uma ideia de relação.

A esse respeito, o intérprete tem razão. Porém, não nos parece haver nenhum impedimento, a princípio, para que a ideia de SPG possa ser compreendida como uma ideia de relação, visto que ela é apenas uma das ideias que entra na coleção que constitui a ideia complexa de substância particular. A observação de Mabbott, portanto, não é nociva para a compreensão de Locke da ideia de substância como uma ideia relativa. Essa observação não elimina, no entanto, a dificuldade de se compreender a ideia relativa de substância como uma ideia de relação.

A teoria das ideias de relação é sistematizada por Locke no capítulo XXI do segundo livro, “Da relação”. Locke ressalta (1999, p. 419):

O entendimento, ao considerar algo, “não está confinado a esse objecto preciso”, pode transmitir uma ideia “como se estivesse para além de si”, ou, pelo menos, “pode ver para além dela” [destaques nossos] de forma a observar como é que se posiciona em relação a qualquer outro.

 

As ideias simples de sensação/reflexão, quando consideradas, servem, para Locke (1999, p. 419),[...] como marcas que ‘conduzem os pensamentos para além do sujeito’, em si denominado, ‘em direcção a algo distinto’ [destaques nossos], a estas chamamos ‘relativos’. E às coisas que, dessa forma, surgem em conjunto, chamamos ‘relacionadas’.” As passagens, a princípio, parecem relevantes para se compreender a ideia relativa de substância como uma ideia de relação, uma vez que mostram que as ideias de relação permitem que o espírito vá além das ideias simples de sensação/reflexão. Isto é, uma ideia de relação conduz o espírito para além de suas ideias simples, em direção, talvez, de um suporte.

Julgamos, no entanto, que existem algumas dificuldades nessa aproximação entre uma ideia relativa e uma ideia de relação. Apontamos três. O primeiro obstáculo, a nosso ver, diz respeito aos exemplos de ideias de relação oferecidos por Locke (1999, p. 419), os quais nos parecem dificultar a compreensão de que a ideia de SPG possa ser adquirida da mesma maneira:

Mas quando lhe atribuo [a Caio] o nome “marido”, estou a sugerir uma outra pessoa; e quando lhe atribuo mais “branco”, estou a sugerir uma outra coisa. Em ambos os casos, o meu pensamento é conduzido para algo que está para além de Caio, e há duas coisas que são trazidas à consideração.

 

No primeiro caso, a comparação da ideia complexa de Caio com a ideia complexa de sua esposa produz no espírito a ideia de relação “matrimonial”; a comparação da ideia complexa de Caio com a de sua esposa faz com que o espírito perceba que ela tem um tom de pele mais escuro, de modo a produzir no espírito a ideia de relação de “superioridade gradativa”. Nesses casos, enfatiza o filósofo (1999, p. 419-420), “[...] é como se [o espírito] as perspectivasse de imediato, embora continuem a ser vistas como distintas, qualquer uma das nossas ideias pode ser a base de uma relação.” O espírito observa as ideias de um ponto de vista que permite formar, a partir dessa perspectiva, uma nova ideia da relação estabelecida entre elas.

Não está claro, entretanto, como a ideia de SPG poderia surgir da comparação entre as ideias complexas de substâncias particulares. Como a comparação de duas ideias de “coisas suportadas” poderia produzir a ideia de relação de suporte? A ideia de relação de “superioridade”, por exemplo, surge da comparação entre as ideias complexas de substância – Caio e sua esposa – em que a relação de superioridade por graus já está presente – a cor branca de Caio é mais intensa do que a de sua esposa. A ideia de relação de “suporte”, por sua vez, poderia ser adquirida por meio da comparação de algo que suporta com algo que é suportado.

Contudo, a ideia de SPG não é adquirida dessa forma. Para Locke, essa ideia relativa surge da observação de ideias que coexistem, isto é, de coisas suportadas. Analogicamente, o que Locke parece dizer em seu texto é que a consideração da ideia de “forro” (algo suportado) e da ideia de “teto” (algo suportado) pode produzir a ideia de “pilar” (aquilo que suporta). A explicação da ideia de SPG como uma ideia de relação seria consistente apenas no caso no qual aquilo que é suportado fosse comparado com aquilo que suporta, isto é, quando a ideia de “forro” (algo suportado) e a ideia de “pilar” (aquilo que suporta) fossem relacionadas. Assim, surge a ideia de relação de suporte, todavia, não é isso que Locke diz. O mesmo valeria para a comparação de ideias simples de sensação/reflexão: como a comparação entre ideias suportadas poderia levar à ideia de relação de algo que as suporta?

Ademais, gostaríamos de chamar a atenção para uma lição ensinada por Hume, em seu Tratado. Na seção “Da imaterialidade da alma”, presente na quarta parte do Livro I, o filósofo (2001, p. 265) destaca que a questão filosófica acerca da existência de um substrato não faz sentido do ponto de vista da filosofia experimental, isto é, da observação e experimentação das percepções da mente: “‘o que querem dizer’ [os filósofos] ‘com substância de inerência’?” Após um breve exame, Hume (2001, p. 266) conclui:

Desses dois princípios [o princípio da cópia[55] e o princípio da separabilidade[56]], concluo que, uma vez que todas as nossas percepções são diferentes umas das outras e de tudo mais no universo, também elas são distintas e separáveis, e podem ser consideradas como existindo separadamente, e podem de fato existir separadamente, “sem necessitar de nada mais para sustentar sua existência” [destaque nosso]. São, portanto, substâncias, até onde a definição acima explica o que é uma substância”.

 

À luz de reflexões como a proposta por Hume, é possível questionar como Locke, o qual compartilha com o filósofo escocês o compromisso com o método experimental de raciocínio, poderia extrair das próprias ideias a noção de algo em que elas existiriam, um suporte. A observação das ideias não parece ser suficiente, nesse sentido, para explicar o processo por meio do qual o espírito forma para si uma ideia de SPG. Em perspectiva humiana, experimental, Locke não está autorizado a defender que a ideia de suporte é “extraída” da consideração das próprias ideias.

            A segunda dificuldade na aproximação entre ideias relativas e ideias de relação concerne às considerações de Locke (1999, p. 423) sobre a clareza e distinção destas últimas: “[...] as ideias que são representadas pelas palavras relativas são muitas vezes mais claras e mais distintas do que as das substâncias às quais realmente pertencem.” Por exemplo, o filósofo afirma que a ideia de relação de “paternidade” é mais clara do que a ideia complexa de substância de “humanidade”, e que a ideia de “amigo” é mais clara que a ideia de “Deus”. Ou seja, ideias de relação, em geral, são mais claras e distintas do que as ideias de substâncias particulares.[57] Ademais, a ideia da relação pode ser clara e distinta, mesmo que as ideias das coisas relacionadas não o sejam, nota Locke (1999, p. 423): “[...] um homem, se comparar duas coisas em conjunto, muito dificilmente poderá supor que não sabe em que é que baseia essa comparação, logo, quando compara coisas em conjunto, ele não pode senão ter uma ideia clara dessa relação.”[58]

A esse propósito, há uma clara inversão no caso da ideia de SPG: as ideias simples são claras e distintas, a ideia relativa de SPG, obscura e confusa. Locke não hesita em qualificar essa ideia, em várias passagens, dessa forma. Do ponto de vista epistemológico, a consequência dessa falta de distinção e clareza – uma dificuldade que não atinge o conhecimento das relações – é a dificuldade de se conhecer a natureza desse suporte, por meio dessa ideia: a substância é “qualquer coisa, não sabia o quê”[59]; os seres humanos a “ignoram perfeitamente”[60], desconhecendo a “causa da união” das ideias simples de sensação/reflexão[61]; tanto a substância dos espíritos quanto a dos corpos materiais são desconhecidas[62]; a ideia clara e distinta de substância corporal ou espiritual está tão longe que é “como se não soubéssemos de nada.”[63]

A terceira e última dificuldade que identificamos na aproximação entre ideias relativas e ideias de relação diz respeito ao fato de que, ao discutir estas últimas, Locke (1999, p. 424) não aponta nenhuma das dificuldades encontradas na compreensão da ideia relativa de substância:[64][...] todas elas [as ideias de relação] terminam em ideias simples e dizem respeito a essas ideias simples, quer da sensação, quer da reflexão, as quais penso serem as únicas formas de obter todo o nosso conhecimento.” Se, no caso da ideia de SPG, o filósofo parece oscilar entre uma fonte empírica e uma fonte racional, o mesmo não ocorre no que se refere às ideias de relação, as quais podem ser todas explicadas a partir de ideias de sensação/reflexão. Ademais, Locke (1999, p. 424-425) não identifica nenhum problema quanto às noções oferecidas através de ideias de relação: “[...] elas irão parecer que obtêm as suas ideias a partir daí e não deixarão dúvidas em relação às noções que temos delas [...]”

Poucos são os intérpretes que notam que o capítulo XXI do segundo livro, intitulado “Do poder”, poderia servir como um ponto de apoio relevante para se discutir a ideia de SPG. Com efeito, identificamos alguns paralelos ou pontos de contato entre as explicações das ideias de poder e de SPG. Em primeiro lugar, Locke (1999, p. 308) reconhece que não objetiva falar da existência de poderes, mas apenas de suas ideias: “[...] não entrarei nessa questão de momento: o meu presente objectivo não é procurar a origem do poder, mas sim como chegamos à concepção dessa ‘ideia’.” Ao discutir a SPG, Locke (1999, p. 390, grifo nosso) tem em vista apenas a sua ideia: “[...] e, portanto, por não termos qualquer ideia da substância do espírito, ‘nada podemos concluir da sua inexistência’, tal como não podemos, pela mesma razão, negar a existência do corpo.”

Em segundo lugar, a discussão lockiana da ideia de poder leva-nos a pensar, embora o filósofo não o diga explicitamente, que a ideia de poder é uma ideia relativa, pois os “poderes” não são passíveis de observação direta ou imediata. Observam-se os seus efeitos, isto é, o espírito percebe a mudança e o movimento e, a partir de observações desse tipo, forma-se relativamente à ideia de poder. Locke (1999, p. 308, grifo nosso) nota:

Neste caso, e em casos semelhantes [da percepção da mudança e do movimento], consideramos o poder em perfeita correlação com a mudança percepcionada. “Não podemos observar qualquer alteração ou operação a ser efectuada sobre algo”, a não ser que se verifique uma mudança nas suas ideias sensíveis, “nem podemos conceber qualquer alteração a ser feita”, sem concebermos a mudança de algumas das suas ideias.

 

A ideia relativa de substância também surge de forma semelhante: o suporte nunca é observado direta ou imediatamente. Ele é apreendido relativamente, pela experiência ou processos racionais.

Em terceiro e último lugar, Locke (1999, p. 309, grifo nosso) afirma que a ideia de poder surge da própria relação entre as ideias: “[...] confesso que o poder inclui em si algum tipo de ‘relação’ (uma relação com a acção ou com a mudança); de facto, ‘qual das nossas ideias – de qualquer tipo e quando consideradas com atenção - não o manifesta[65]’?” As ideias de SPG e de poder, por conseguinte, dependem do aparecimento das ideias simples de sensação/reflexão como relacionadas.

Entretanto, também identificamos alguns pontos de divergência entre as concepções lockianas da ideia de poder e de SPG. Com efeito, o filósofo não parece notar qualquer dificuldade em relação à origem da ideia de poder – que é a questão que nos ocupa presentemente em relação à ideia de SPG. Passamos a enumerar duas das suas considerações nesse sentido, as quais julgamos serem mais contundentes do que os pontos de contato supramencionados, motivo pelo qual acreditamos que constituem um grande obstáculo para levar adiante a aproximação entre elas. Em primeiro lugar, o filósofo (1999, p. 309) a classifica, de modo não problemático, entre as ideias simples:

Por isso, a nossa ideia de poder, na minha opinião, poderá ter um lugar no seio das demais “ideias simples”, e, poderá ser considerada como uma delas, sendo um dos ingredientes mais importantes para a produção das ideias complexas das substâncias, como vamos ter ocasião de observar mais adiante.

 

Em segundo lugar, Locke (1999, p. 410) sugere que ideia de poder, ao menos a adquirida pela reflexão, quer dizer, pela percepção do movimento das ideias simples das operações da mente, é clara e distinta ou, ao menos, mais clara e distinta do que a ideia de poder adquirida pela sensação: “[...] contudo, se o considerarmos atentamente, os corpos, através dos nossos sentidos, não nos possibilitam uma tão clara e distinta ideia de poder activo, como a temos a partir de uma reflexão sobre as nossas operações mentais.”[66]

Em terceiro e último lugar, Locke expõe claramente a origem da ideia de poder a partir das experiências sensível[67] e reflexiva.[68] Ou seja, não há, para o filósofo, nenhuma ambiguidade ou dificuldade para explicar como essa ideia surge na mente, e a sua origem é rastreada até à reflexão e a sensação – contrariamente ao que, como tentamos mostrar, não ocorre no caso da ideia da SPG.

 

4 UMA SUGESTÃO NATURAL DO ESPÍRITO

Se estamos certos, em nossa leitura, apelar à noção de “ideia relativa” não auxilia a superar a dificuldade de explicar, no Ensaio, o que é a ideia de SPG, tampouco à noção de “ideia de relação” ou à explicação da ideia de poder. Contudo, gostaríamos de oferecer uma hipótese: é possível encontrar elementos no Ensaio que poderiam explicar adequadamente – isto é, sem riscos de violação do princípio lockiano sobre a origem das ideias simples – a origem da ideia de SPG. Locke não apela explicitamente a esses elementos para explicar essa ideia, contudo, na interpretação proposta, eles podem ser reunidos em uma tentativa de desvencilhar o filósofo do problema com o qual seu empirismo precisa lidar. Essa proposta pode ser entendida, a nosso de ver, de maneira análoga à de Aaron (1955, p. 175), que busca uma explicação no texto do Ensaio com a qual o próprio Locke não estaria explicitamente comprometido:

Ainda que Locke não ofereça uma resposta clara, é da maior importância procurar uma resposta para esta questão. Pois aqui [na consciência da coexistência das ideias simples] está, com certeza, a verdadeira origem da ideia de substância em geral. Mas embora não haja uma resposta explícita a ser encontrada, uma resposta é dada implicitamente, e Locke definitivamente a assume em seu argumento.

 

Em sua interpretação da origem da ideia relativa de substância, Daniel Flage aponta uma passagem do capítulo VIII do segundo livro, “Outras considerações acerca das nossas ideias simples da sensação”, para ilustrar o que Locke (1999, p. 153, grifo nosso) supostamente entenderia por “ideias positivas” – as ideias donde se originariam as ideias relativas:

No que respeita às ideias simples da sensação, é preciso considerar que tudo o que, por instituição da natureza, pode causar alguma percepção na mente, ao afectar os nossos sentidos, produz desse modo uma ideia simples no entendimento, a qual, “qualquer que seja a sua causa externa”, uma vez advertida pela nossa faculdade de discernir, é vista pela mente e considerada uma ideia tão real e positiva no entendimento, como qualquer outra, “ainda que, na coisa, a causa que a produz não seja mais do que uma privação”.

 

A nosso ver, essa passagem poderia servir para um propósito ainda mais esclarecedor sobre a origem da ideia de substância, apesar de Locke não reconhecer explicitamente essa alternativa.

Na leitura que propomos, a passagem acima poderia ser compreendida como uma explicação empírica para a origem da ideia de causa para as ideias simples de sensação – e, por analogia, para as ideias de reflexão. Ainda que a causa das ideias positivas de sensação seja desconhecida nos objetos externos, o espírito, ao ser afetado por essas ideias, forma para si a ideia de uma “causa externa”. Essa causa permanece, obviamente, desconhecida. Porém, sua ideia é formada no espírito de uma maneira não problemática por processos empíricos. Se estamos certos em nossa leitura, a ideia de SPG poderia ser explicada de maneira semelhante. Quer dizer, as ideias de sensação poderiam ser, além daquilo que sugere ao espírito a ideia de uma causa externa, aquilo que sugere a ideia da “causa da união” dessas ideias. O espírito, ao ter ideias de sensação, seria levado tanto à ideia de uma causa externa quanto à ideia daquilo em que elas estão unidas, o suporte corporal. O mesmo poderia ser dito sobre as ideias de reflexão: elas não apenas sugerem a ideia da “causa interna” das ideias reflexivas – as operações mentais –, como também a “causa da união” dessas ideias de operações mentais, o suporte espiritual. Em ambos os casos, o suporte permaneceria desconhecido.

A inspiração para pensar essa proposta de explicação da ideia de SPG em Locke surge da filosofia de Thomas Reid, o qual, pouco mais de meio século mais tarde, em sua Investigação sobre a mente humana a partir dos princípios do senso comum (1997),[69] oferece uma explicação semelhante àquela que estamos propondo para elucidar a origem da noção de “mente” – a substância em que os modos do pensamento existiriam. Reid (1997, p. 37) afirma:

É impossível mostrar como nossas sensações e pensamentos nos podem dar a própria noção e concepção da mente, assim como de uma faculdade [...] Ainda assim, esta sensação sugere-nos tanto uma faculdade como uma mente, e não apenas sugere a sua noção, como cria a crença na sua existência, embora seja impossível descobrir, pela razão, qualquer vínculo ou conexão entre uma e a outra.

 

Para Reid (1997, p. 38), as experiências sensíveis e pensamentos seriam a origem das noções de “mente” e de “faculdade”. A fonte sensível dessas noções é uma “sugestão” da mente:

Peço licença para fazer uso da palavra “sugestão”, porque não conheço outra mais apropriada para expressar um poder da mente que parece ter escapado inteiramente à observação dos filósofos e à qual devemos muitas de nossas noções simples que não são nem impressões nem ideias, assim como muitos princípios originais de crença.

 

Se os seres humanos acreditam na existência de um espírito e têm uma noção desse espírito, isso ocorre, segundo Reid, por uma “sugestão natural” com base nas sensações que são sentidas e as operações que são realizadas pela mente.

            Se estamos certos nessa proposta de interpretação, Locke estaria muito próximo de apresentar uma “teoria da sugestão”, como a oferecida por Reid, mais tarde. Aplicada à explicação da origem da ideia de SPG, essa interpretação teria o mérito de garantir que Locke não extrapolaria os limites empiristas de sua investigação: não haveria qualquer necessidade de se apelar a processos racionais, como a abstração ou a inferência, para indicar a origem da ideia, tampouco precisaria apelar ao recurso – que acreditamos ter mostrado ser confuso – de entender a ideia de SPG como uma ideia relativa. Locke disporia, portanto, de meios para explicar a origem dessa ideia de maneira não problemática para o seu empirismo.

            A menção à obra reidiana permite uma segunda discussão, desta vez, sobre o que nos parece ser uma má compreensão do filósofo da explicação lockiana da ideia de SPG. No mesmo capítulo em que apresenta a sua teoria das sugestões, Reid tece uma breve crítica à teoria de que a noção de mente poderia ser adquirida por meio de noções relativas. O filósofo não nomeia Locke, porém, a familiaridade de Reid com o texto do Ensaio é um forte indício de que a crítica visa o texto lockiano. Reid (1997, p. 37-38) assevera:

É uma doutrina recebida dos filósofos que nossas noções de relações só podem ser obtidas comparando-se as ideias relacionadas. Porém, no caso presente, parece tratar-se de uma instância do contrário. Não é tendo primeiro as noções de mente e de sensação e, depois, comparando-as juntas, que percebemos uma como tendo a relação de um objeto ou substratum, e a outra como um ato ou operação. Pelo contrário, uma das coisas relacionadas, a saber, a sensação, sugere-nos tanto o correlato como a relação.

 

Reid fornece uma interpretação da teoria lockiana das ideias relativas – que, a nosso ver, não condiz com o texto do Ensaio. Para Reid, as noções relativas de sujeito e substrato seriam adquiridas, nessa “doutrina recebida dos filósofos”, pela comparação entre duas noções, em específico, as noções de mente e sensação. Sem dúvida, essa seria a explicação de Locke para a origem da ideia de relação de “suporte”: compara-se aquilo que suporta com o que é suportado e, a partir daí, forma-se a ideia de suporte; ou, aplicando os termos da explicação reidiana para o surgimento da ideia de “mente” à origem da ideia de SPG na filosofia de Locke, ela seria originada por uma “sugestão natural”, a partir das ideias de sensação e de reflexão e o objeto que as suscita em nós (aquilo do que, afinal, temos essas ideias). Todavia, essa não é a explicação lockiana da origem da ideia relativa de SPG. Como visto, para Locke, a ideia de suporte surge da comparação entre as ideias de modos de pensamento, não da comparação dessas ideias com a ideia de suporte. A esse respeito, por conseguinte, Reid parece ter-se equivocado em sua leitura do texto do Ensaio.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A título de conclusão, reiteramos que Locke não apela ao recurso reidiano das “sugestões naturais”, para explicar a origem da ideia de SPG, apesar de quase o fazer, na passagem citada acima, em relação às causas externas. A nosso ver, essa seria uma alternativa para que Locke explicasse empiricamente o modo como os seres humanos formam para si a ideia de um suporte ou substrato para as qualidades sensíveis e modos do pensamento. Acreditamos, em face das discussões desenvolvidas nas seções acima, ter esclarecido como a aproximação entre ideia relativa/ideia de relação e ideia de SPG/ideia de poder, apesar de atraente, à primeira vista, não auxilia na solução da dificuldade sobre a origem da ideia de suporte. Locke mostra-se muito mais seguro sobre como explicar o que é uma ideia de relação e a origem da ideia de poder. O mesmo não pode ser dito acerca da ideia de SPG e sua origem.

 

The theory of substance in John Locke’s essay concerning human understanding

 

Abstract: In this paper, we intend to offer an interpretation about the explanation of the (relative) idea of pure substance in general on John Locke’s philosophy, from Thomas Reid’s notion of ‘natural suggestion’. To achieve this aim, after contextualizing Locke’s notion of pure substance in general and distinguishing it from the idea of particular substance (section 1), we explicit that Locke’s words about the source of the idea of the former in the mind (either empirical or rational) are ambiguous and inconclusive (section 2). Then, we argue that the parallels between this idea and that of ‘relation’, as well as of ‘power’ do not assist in that answer, due to some problems we identify on them (section 3). Finally, we argue that the Reidian explanation for the source of the idea of ‘mind’, from the notion of ‘natural suggestion’ allows us to i) avoid those problems and ii) inasmuch as, according to this interpretation, the idea of pure substance in general would have an empirical source, Lockian empiricism would remain intact (section 4).

Keywords: History of Philosophy. Idea. Substance. John Locke.

 

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Recebido: 10/07/2022

Aceito: 09/10/2022


 

Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do sul global

 

Cristiano Cordeiro Cruz[70]

 

Resumo: Andrew Feenberg é um importante autor da filosofia da tecnologia, cujas ideias são particularmente relevantes para identificar a dimensão política da tecnologia, seja no seu papel de conformar a sociedade, seja em ser conformada por esta. A falha do estágio atual da sua reflexão está em não se voltar, de forma mais rigorosa, para o âmbito interno das disciplinas técnicas, usualmente interrompendo sua análise na fronteira entre o mundo da vida (no qual ocorrem as mobilizações democratizantes e de onde emergem suas pautas ou demandas) e tais disciplinas. Para identificar e superar essa falha, são articulados alguns elementos da reflexão de Boaventura de Sousa Santos e de Yuk Hui. Também são trazidos exemplos de intervenções técnicas decoloniais (ou emancipadoras), os quais ilustram: como aquilo teorizado por Santos e Hui já acontece em práticas técnicas desenvolvidas no Sul global; e os impactos disso nas equipes técnicas que as praticam (e, a partir disso, potencialmente também nas disciplinas a que seus membros estão vinculados).

 

Palavras-chave: Construtivismo crítico. Andrew Feenberg. Boaventura de Sousa Santos. Yuk Hui. Projetos técnicos decoloniais.

 

Introdução

Andrew Feenberg é inegavelmente um dos principais autores da filosofia da tecnologia. Premiado em 2019, por suas contribuições nesse campo, pela principal sociedade da área (a Society for Philosophy and Technology), ele possui cinco obras/coletâneas de textos traduzidas para o português[71] e, no Brasil, tem recebido atenção não apenas de filósofas/os e pesquisadoras/es da área dos Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia, como também de estudiosas/os e praticantes das disciplinas técnicas.

Malgrado sua importância para a área e a incorporação de suas ideias em teorias e práticas críticas ou (com pretensões) emancipadoras provindas do Sul global, a filosofia de Feenberg precisa ser criticada e alargada, de modo a subsidiar melhor a reflexão sobre, e a construção de outros mundos (ou ordens sociotécnicas) possíveis.

Neste artigo, será problematizado o funcionamento interno das disciplinas técnicas e, particularmente, as epistemologias (i.e., conhecimentos e modos de conhecer) nas quais elas se baseiam. Esses são aspectos que Feenberg reconhece como passíveis de serem analisados e criticados, mas que ele próprio não o faz. Com isso, sua reflexão perde em precisão e potência.

No que se segue, a primeira seção apresenta os elementos centrais do construtivismo crítico de Feenberg. A seção seguinte traz elementos da reflexão de Boaventura de Sousa Santos e Yuk Hui, os quais explicitam limites das ideias de Feenberg, bem como caminhos para superá-los. Na sequência, três práticas técnicas decoloniais (ou emancipadoras) são brevemente expostas, oferecendo-se como exemplos tanto daquilo que, a partir de Santos e Hui, se mostrou como teoricamente defensável quanto dos impactos disso nos conhecimentos, modos de conhecer e práticas das respectivas equipes técnicas responsáveis. Por fim, nas considerações finais, os principais pontos trabalhados no artigo são brevemente recuperados e sistematizados.

 

1 Fundamentos do construtivismo crítico

A filosofia da tecnologia de Feenberg tem, na compreensão dele próprio, quatro bases teóricas principais: a teoria crítica da Escola de Frankfurt; os estudos sociais de ciência e tecnologia (ESCT); a fenomenologia (Husserl e Heidegger); e a teoria marxista do trabalho (FEENBERG, 2021a). Em seus escritos, ele a chama com pelo menos três nomes diferentes – “teoria crítica da tecnologia”, “construtivismo crítico”, “minha filosofia da tecnologia” –, a depender da audiência a que está se dirigindo. Tendo percebido, porém, o desinteresse de teóricas/os críticas/os ligadas/os à Escola de Frankfurt em discutir sobre tecnologia e, ao mesmo tempo, uma interessada e altamente profícua interlocução com estudiosas/os vinculadas/os aos ESCT, assumiu “construtivismo crítico” como denominação mais adequada da filosofia da tecnologia que desenvolve (FEENBERG, 2022a).

Ao se voltar aos estudos de caso dos ESCT, Feenberg consegue fundamentar filosoficamente o entendimento de que toda solução técnica – material (como uma máquina) ou imaterial (como um procedimento, um algoritmo ou uma metodologia) – nunca é puramente instrumental, ou seja, apenas eficiente, eficaz, robusta, barata etc. na realização ou no suporte a alguma função (como a produção de energia, o transporte de pessoas em uma cidade ou a forma de se produzir alimento). Na verdade, as soluções sempre também incorporam elementos outros, como valores ético-políticos. São esses valores que possibilitam superar a subdeterminação, isto é, escolher, dentre as múltiplas soluções possíveis ou imagináveis (p.e., micro ou macrogeração de energia, combustível fóssil ou fontes renováveis de energia etc.), aquela que será buscada ou implementada (FEENBERG, 2019a, 2021a).

Essa seleção será definida pelos atores com mais poder nessa disputa/negociação, os quais lograrão emplacar o equacionamento que for mais adequado aos seus interesses, à sua visão de mundo (ou cosmovisão), a seus valores e ideais. Nesse mesmo processo, vão sendo estabelecidos os códigos técnicos, que são a gramática da tecnologia, indicando como os elementos técnicos podem (ou devem) ser combinados (ou projetados), além de critérios a serem observados (como segurança, privacidade etc.) e limites mínimos e/ou máximos para os aspectos mensuráveis/controláveis em que tais critérios serão traduzidos (FEENBERG, 2019a, 2021b, 2022a, 2022b).

Quando uma tal solução é implementada – e/ou um tal código técnico, seguido –, ela/e conforma, sustenta ou favorece um ordenamento social (ou, mais propriamente, socioambiental) alinhado com esses interesses, visão de mundo, valores e ideais, em detrimento de outros ordenamentos possíveis. É assim que a macrogeração de energia elétrica produz controle tecnocrático (hierarquizado) e concentração de poder e recursos nas mãos de alguns atores (i.e., empreiteiras, grandes concessionárias de energia e certos atores governamentais). Ou seja, as soluções técnicas – ou os códigos técnicos que as normatizam/padronizam – não são neutras/os. E como essas soluções são não apenas amoldadas pela sociedade (na superação da subdeterminação), mas aquelas também a amoldam (por sua não neutralidade), diz-se que sociedade e tecnologia se constroem mutuamente (coconstrução) e que essas soluções são, na verdade, sociotécnicas (FEENBERG, 2019a, 2021a, 2022a, 2022b).

A teoria crítica, por sua vez, permite a Feenberg superar aquilo que ele entende ser um problema do construtivismo, o qual seria a aplicação do princípio de simetria à relação entre programas (ou seja, os projetos dos atores dominantes, como as/os donas/os de uma fábrica, que buscam aumentar seu lucro) e antiprogramas (os projetos dos atores dominados, como as/os funcionárias/os dessa fábrica, que almejam melhores salários e condições mais seguras e saudáveis de trabalho). O problema aqui, para Feenberg, é duplo: 1) a simetria impede que se faça um juízo moral da situação ou disputa (p.e., entre industriais que querem baratear os custos de sua produção e trabalhadoras/es que querem estar menos expostas/os a acidentes); ao mesmo tempo que 2) ela não evidencia as estruturas de poder estabelecidas (materializadas também, como se viu, tanto nas tecnologias disponíveis quanto nos códigos técnicos vigentes), e que forçam ou favorecem (muitas vezes, de forma avassaladora) um dos lados, em detrimento do(s) outro(s) (FEENBERG, 2019b, cap. 2; 2021c; 2022a; 2022b, cap. 3, cap. 5).

É aqui que entram as mobilizações sociais, como o movimento ambiental. São apenas essas forças que podem fazer frente às estruturas de poder estabelecidas, obrigando-as a ceder algum espaço (ou, idealmente, a capitularem) – algo que será traduzido na modificação/reformulação dos códigos técnicos e na subsequente modificação das tecnologias subordinadas a eles. As diversas regulamentações ambientais que impõem limites à quantidade, ao tipo e ao tratamento dispensado à poluição gerada pela indústria e pelos artefatos por ela fabricados emergem dessas lutas, nas vitórias alcançadas por esses coletivos de manifestantes (FEENBERG, 2021c; 2022a; 2022b, cap. 4).

Para Feenberg, por um lado, lutas como essas identificam potencialidades não suportadas pela(s) tecnologia(s) disponível(is) (como, no caso, a de se desfrutar de uma natureza não contaminada ou moribunda) ou efeitos colaterais não antecipados e/ou identificados até então (como a presença de quantidades tóxicas de chumbo na água que se bebe). Por outro lado, e de forma complementar, quando essas lutas logram ser vitoriosas, elas obrigam as disciplinas técnicas a terem uma visão mais alargada da realidade, a fim de conseguir produzir as novas soluções esperadas. E isso costuma acontecer a partir da introdução de novas disciplinas/especialidades ao projeto técnico (como a incorporação de disciplinas/ especialidades ambientais ao projeto de automóveis) (FEENBERG, 2021d; 2022b, cap. 4).

Tributário da fenomenologia nesse ponto, Feenberg entende que a experiência que fazemos da realidade/natureza em nossa vivência cotidiana no mundo da vida é diferente do modo como as ciências da natureza enxergam essa mesma realidade. No primeiro caso, o mundo é experimentado em uma perspectiva teleológica e de potencialidades materializadas em coisas como o “crescimento humano”, o “florescimento da natureza” etc. No segundo, por outro lado, o mundo é reduzido à matéria e movimento, e a aspectos mensuráveis/quantificáveis. O problema da modernidade está em universalizar essa ontologia mecanicista das ciências da natureza – e, de maneira particular, daquela ciência tomada como paradigmática, a física –, assumindo a realidade nela mesma como matéria, movimento, mensuração, cálculo e recursos à disposição (esse seria o Gestell, o enquadramento, de Heidegger) (FEENBERG, 2019a, 2021d).

Nesse sentido, esses movimentos de luta pela transformação da tecnologia estariam fincados na experiência do mundo da vida feita pelos coletivos que lutam neles. Tais movimentos operam, assim, na atualização de outros potenciais, outros valores, outros mundos. É isso que seria, por conseguinte, a democratização da tecnologia. E o exercício contra-hegemônico por excelência a ser buscando seria o de colocar esses dois mundos – o das experiências cotidianas de diferentes coletivos de pessoas e o das disciplinas e práticas técnico-científicas – em diálogo (FEENBERG, 2019a, 2021d, 2022a).

Seja como for, essas mobilizações ou intervenções democráticas assumem, segundo Feenberg, três configurações principais (FEENBERG, 1999, p. 121-129; 2022b, cap. 3): controvérsias (i.e., disputas que forçam o reprojeto da tecnologia e a modificação do seu código técnico, como no caso do banimento do trabalho infantil nas tecelagens inglesas e a imposição de regulamentação de segurança para as caldeiras nos Estados Unidos (FEENBERG, 2019a)); apropriação criativa (como a subversão do uso do Minitel, que passa a ser também um meio de comunicação com outras/os usuárias/os (FEENBERG, 1995, p. 144-166)); e diálogo participativo com as disciplinas técnicas (no qual as/os especialistas se associam a grupos ou comunidades para o encaminhamento das demandas destes, como na tradição dos projetos participativos (ROBERTSON; SIMONSEN, 2013) e da engenharia popular (FRAGA et al., 2020).

Todavia, embora reconheça a possibilidade/ocorrência histórica desses diálogos participativos, e mesmo que já tenha tomado parte em alguns deles (FEENBERG, 2022a), Feenberg oferece poucos elementos para se (re)pensarem as práticas/disciplinas técnicas (como as engenharias, a arquitetura e o design) a partir de dentro. Pode-se perceber, com isso, que o mais distante que se precisa ir com a democratização da tecnologia – e, assim, com a viabilização de outros mundos possíveis – é até a fronteira entre o mundo da vida e as disciplinas técnicas. Ou seja, até nos fazermos escutadas/os pelas/os técnicas/os, que, a partir desse ponto, encaminharão a demanda – com todos os requisitos ou exigências associadas a ela – de maneira autônoma, ainda que eventualmente alargada pela incorporação, ao seu fazer técnico, de outras disciplinas técnico-científicas.

Dito de outra forma, a racionalidade sociotécnica defendida por Feenberg – a qual se contrapõe ao entendimento de uma racionalidade tecnológica pura, que seria a racionalidade legítima a nortear o desenvolvimento tecnológico (argumento tecnocrático) ou aquela a que estaríamos inexoravelmente fadadas/os, uma vez chegadas/os à tecnologia moderna (como na crítica de Ellul (2008, cap. 1)) – é sensível a valores e cosmovisões, enquanto meio ou caminho para realizá-los, emulá-los ou apoiá-los sociotecnicamente. Contudo, os conhecimentos e modos de conhecer – ou epistemologia(s) – em que o construtivismo crítico se finca, com seus conhecimentos e modos de conhecer legítimos ou validados, seguem sendo o das ciências e disciplinas técnicas hegemônicas.

Manter – ou não problematizar – essa epistemologia é o oposto daquilo que atores do Sul global têm proposto (em termos teóricos) ou realizado (em termos de intervenções sociotécnicas concretas). E essa não problematização parece interditar muito do potencial emancipador – ou de construção de outros mundos possíveis – que a democratização defendida por Feenberg traz consigo. Desse modo, no restante deste artigo, e em diálogo com algumas dessas outras fontes, buscar-se-á avançar ou alargar o construtivismo crítico, de sorte a torná-lo mais coerente com as vivências e os acúmulos do Sul, e com anseios e horizontes decoloniais ou libertadores aqui gestados.

 

2 Aportes teóricos do Sul global

Para Boaventura de Sousa Santos, “[...] não existe justiça social global sem justiça cognitiva global.” (2016, p. 8). A manutenção do pensamento abissal, isto é, da universalização dos conhecimentos e modos de conhecer ocidentais modernos – com a centralidade da ciência –, juntamente com a desvalorização ou apagamento dos conhecimentos e modos de conhecer periféricos/subalternos – o epistemicídio! –, interditam a possibilidade de se conceberem – e de se lutar por – outros mundos possíveis (SANTOS, 2016). A epistemologia abissal (ou hegemônica) não é a manifestação da epistemologia mais pura, elevada ou verdadeira, mas o resultado de escolhas contingentes e de uma construção ativa. Nos termos da teoria decolonial (QUIJANO, 1999; MALDONADO-TORRES, 2009; ESTERMANN, 2014), essa epistemologia é produto e produtora do ordenamento hegemônico do poder no mundo e da subjetivação (ou identidade) dominante. Ela é parte de um aprisionamento triplo e que se constrói e reforça mutuamente: colonialidade do poder, colonialidade do saber e colonialidade do ser.

Conforme Santos (2016), a epistemologia (abissal) dominante naturaliza escolhas contingentes relativas ao conhecimento construído. Por um lado, essa não necessidade se revela em decisões de três tipos: sobre a escala com que se analisará o fenômeno e a perspectiva utilizada nessa análise; sobre a detecção do fenômeno (com os métodos necessários para tanto) e o reconhecimento dele (com as teorias que o tornam compreensível/reconhecível); sobre o tempo (velocidade) da pesquisa e o tempo de percepção do fenômeno estudado. Por outro lado, a epistemologia dominante privilegia a produção de conhecimento voltado ao controle (de pessoas e da natureza como um todo), em detrimento do conhecimento voltado à emancipação (SANTOS, 2016, cap. 5).

Essa epistemologia produz cegueira (ou epistemicídio). Superá-la pressupõe, de uma parte, recuperarem-se os conhecimentos e as/os agentes ausentes ou invisibilizadas/os. É nesse ponto que entra o que ele chama de sociologia das ausências, a qual confronta os cinco modos de produção do não existente do pensamento abissal (i.e., monocultura do conhecimento, do tempo linear, da naturalização das diferenças, da lógica da escala dominante e da lógica capitalista da produtividade), com cinco ecologias (i.e., dos conhecimentos, de temporalidades, do reconhecimento, da transescala e de produtividades). De outra parte, a superação da epistemologia da cegueira requer também uma sociologia das emergências, que faz frente à monocultura do tempo linear regido pela lógica do progresso infinito, apresentando o futuro em sua escassez (ou limitação de recursos do planeta), algo que precisa ser tratado com cuidado. Tal sociologia substitui o vazio desse futuro infinito por um futuro de várias possibilidades concretas, utópicas ou realistas. Ela é essa busca por alternativas (SANTOS, 2016, cap. 6).

O entendimento de fundo de Santos é duplo: em consonância com o pragmatismo, “[a] própria ação de conhecer [...] é uma intervenção no mundo, que nos coloca dentro dele como colaboradoras/es ativas/os de sua construção” (2016, p. 308); e, “[...] como nenhum tipo de conhecimento pode dar conta de todas as intervenções possíveis no mundo, todos os conhecimentos são incompletos de modos diferentes.” (2016, p. 315). É por isso que ele advoga por uma ecologia de conhecimentos, não por um conhecimento universal e absoluto, apenas diferente – mais completo? mais puro? – dos conhecimentos técnicos, científicos e filosóficos ocidentais (com sua pretensão à universalidade).

Ao lado dessa ecologia de conhecimentos, a justiça cognitiva requer também a tradução intercultural, isto é,

[a] busca de preocupações isomórficas e pressupostos subjacentes entre as culturas, identificando diferenças e semelhanças e desenvolvendo, sempre que apropriado, novas formas híbridas de compreensão e intercomunicação cultural que possam ser úteis para favorecer interações e fortalecer alianças entre movimentos sociais que lutam, em diferentes contextos culturais, contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado e pela justiça social, dignidade humana ou decência humana. (SANTOS, 2016, p. 334-335).

 

Trata-se de um processo vivo de interações complexas, que diz respeito a conhecimentos e práticas, assim como suas/seus respectivas/os agentes, o qual não é esgotado em abordagens logocêntricas ou centradas no discurso e se foca, seja em conceitos ou cosmovisões, seja em modos alternativos de se construírem práticas e agentes coletivas/os (SANTOS, 2016, cap. 8).

Nesse sentido, o projeto de Santos de se recuperarem/reconhecerem e avançarem as epistemologias do Sul (ou não hegemônicas), em seu foco triplo e inseparável em conhecimentos (e modos de conhecer), práticas e agentes, como condição de possibilidade para a concepção de, e a luta por outros mundos – e subjetivações – possíveis, articula-se muito bem com a perspectiva decolonial latino-americana, na tripla colonialidade que ela busca superar (de poder, conhecer e ser).

Como, porém, toda essa reflexão e esse projeto emancipador/decolonial podem ser aplicados ao desenvolvimento tecnológico e à reflexão sobre ele? Como o pensamento abissal ou a colonialidade conformam (ou podem conformar) a tecnologia e a filosofia da tecnologia (mesmo uma filosofia crítica, como a de Feenberg)? O que poderiam ser tecnologias pós-abissais (ou decoloniais)? Como elas poderiam ser construídas na prática? Que mudanças isso requereria ou implicaria, nas disciplinas técnicas?

Yuk Hui oferece um caminho para responder a essas questões, com base em seu conceito de cosmotécnica:

Tese: a tecnologia, como formulada por alguns antropólogos e filósofos, é um universo antropológico entendido como a exteriorização da memória e a superação da dependência dos órgãos. Antítese: a tecnologia não é antropologicamente universal; seu funcionamento é assegurado e limitado por cosmologias particulares que vão além da mera funcionalidade e da utilidade. Assim, não há uma tecnologia única, mas uma multiplicidade de cosmotécnicas. (HUI, 2020, p. 16).

 

Nessa perspectiva, a tecnologia moderna, a qual tem como cosmologia original a ocidental-moderna, é, na verdade, uma cosmotécnica específica, a cosmotécnica que Hui chama de capitalista (HUI, 2016, p. 299). É a universalização dessa cosmotécnica – alcançada por imposição e competição militar e econômica – que, para o autor, conduz ao enquadramento [Gestell] denunciado por Heidegger (HUI, 2016, p. 228, 305). Assim,

[p]odemos suspeitar que tem havido um engano e um desconhecimento quanto à tecnologia nos últimos séculos, já que ela tem sido vista como algo não essencial e de caráter meramente instrumental – mas, de modo mais significativo, como homogênea e universal. Esse universalismo favorece uma história tecnológica fundamentalmente europeia. (HUI, 2020, p. 9-10).

 

Mas a superação desse universalismo – e do enquadramento heideggeriano que ele engendra – é possível para Hui. Ela se processa pelo resgate de outras cosmotécnicas (HUI, 2017, p. 337; 2016, p. 229, 289, 310) ou, o que seria dizer o mesmo, pela tomada de consciência do inconsciente tecnológico de que criamos as tecnologias, mas também somos condicionadas/os por ela (HUI, 2016, p. 228). Tal resgate – que pode ser visto como exemplo de perspectiva pós-abissal, não universalizante, de Santos – consiste em um projeto tanto metafísico quanto epistêmico (HUI, 2016, p. 296). Quer dizer, além da recuperação da capacidade de imaginar outros mundos (ou cosmologias) possíveis, ele pressupõe também o resgate e o desenvolvimento das epistemologias e formas de vida[72] capazes de suportá-los, produzi-los ou emulá-los cosmotecnicamente:

A reapropriação da tecnologia moderna do ponto de vista da cosmotécnica pressupõe dois passos: primeiro, como tentado aqui, ela requer que reconfiguremos categorias metafísicas fundamentais, como Qi-Dao, como fundamento; segundo, que reconstruamos sobre esse fundamento uma episteme[73], que, por sua vez, condicionará a invenção, o desenvolvimento e a inovação técnicos, de modo que estes não sejam mais meras imitações ou repetições [da cosmotécnica capitalista e do enquadramento (Gestell) que a universalização dela produz]. (HUI, 2016, p. 307).

 

Hui chama esse resgate de investigação sobre a tecnodiversidade. Trata-se de uma rearticulação da questão sobre a tecnologia que, “[...] em vez de entendê-la como um universo antropológico, redescobr[e] uma multiplicidade de cosmotécnicas e reconstr[ói] suas histórias para projetarmos [...] as possibilidades que nelas estão adormecidas.” (HUI, 2020, p. 8).

A proposta de Hui, de todo modo, não é a de se retornar ao passado de uma suposta era de ouro de alguma cultura, ou de um mais elevado grau de pureza cultural. O desafio, ao contrário, é construir o futuro, partindo-se da apropriação criativa da cosmotécnica capitalista disponível (HUI, 2017, p. 332, 336-7; 2016, p. 305-6). Essa apropriação deve ser conformada ou fertilizada pela(s) cosmotécnicas(s) não capitalista(s) de onde se esteja partindo. Ou seja, o esforço ou desafio aqui é de se superar a modernidade, sem, com isso, recair-se em etnocentrismo ou em um retorno à natureza (HUI, 2017, p. 325-6; 2016, p. 240-241).

Nesse esforço tecnodiversificador, pós-abissal, libertador ou decolonial, a filosofia tem um papel muito importante, mas que é o oposto daquele que lhe é oferecido “[...] pela filosofia iluminista: fragmentar o mundo de acordo com o diferente, em vez de universalizá-lo através do mesmo; induzir o mesmo através do diferente, em vez de deduzir o diferente a partir do mesmo.” (HUI, 2020, p. 51).

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Como se vê, Santos e Hui trazem reflexões que podem ser vistas como complementares, no sentido de que Hui materializa, em sua investigação sobre a tecnodiversidade, aquilo que Santos propõe para as Humanidades em geral, mas que não desenvolve, no que concerne à tecnologia. Em conjunto, tais ideias desses autores: evidenciam a enorme relevância daquilo sobre o que o construtivismo crítico pouco fala – os conhecimentos e modos de conhecer (ou epistemologias) que fundamentam a invenção e o desenvolvimento tecnológicos –; e apresentam propostas de como trabalhar essa questão, em uma perspectiva pós-abissal, libertadora, decolonial ou tecnodiversificadora.

A fragilidade principal do construtivismo crítico, nessa linha, é ignorar (ou não explorar em toda profundidade necessária o fato de) que as lutas políticas pela democratização do desenvolvimento tecnológico só têm chance de nos libertar do ordenamento hegemônico (colonial, capitalista e machista, nos termos de Santos, ou do enquadramento capitalista colonial e globalizado, nos de Hui), se, ao lado de novas identidades (ou formas de vida) e arranjos de poder, der conta de produzir também novas epistemologias.

Feenberg reconhece o papel conformador ou produtor de identidades das lutas em torno de questões tecnológicas (FEENBERG, 2019b, p. 21, 78-79, cap. 7). Sua falha está em interromper a reflexão epistemológica no choque entre mundo da vida e disciplinas técnicas, e no entendimento de que esse choque pode ser adequadamente trabalhado: 1) pela mera tradução dessas demandas em novos valores e/ou requisitos incorporados aos códigos técnicos modificados/atualizados; e 2) na articulação de mais/outras disciplinas técnico-científicas, de modo a compreenderem e manipularem o real, segundo uma mirada interdisciplinar mais ampla.

Obviamente, as demandas emergentes a partir do mundo da vida podem, em alguns casos, equivaler a novas cosmotécnicas. Também é claro que, em alguns casos de democratização – i.e., aqueles nos quais se estabelece uma parceria entre técnicas/os e leigas/os mobilizadas/os –, essas novas cosmotécnicas demandadas podem dar ensejo ao desenvolvimento de novas epistemologias. Nesse sentido, por conseguinte, o construtivismo crítico não excluiria práticas pós-abissais, decoloniais ou tecnodiversificadoras. Contudo, ao não evidenciar que, para as democratizações mais radicais ou transformadoras, as disciplinas técnicas precisarão ser reconfiguradas e/ou desenvolverem novos tipos de conhecimento e modos de conhecer, Feenberg não evidencia um âmbito fundamental de disputa e pesquisa no domínio da democratização da tecnologia (e da construção de outros mundos possíveis): o das disciplinas técnicas, que engloba também a universidade como espaço de formação, pesquisa e extensão.

Nesse ponto, de todo modo, mesmo Hui não ajuda muito. De fato, embora ele reconheça a necessidade de se desenvolverem novas epistemologias e formas de vida, de sorte que possamos ser capazes de desenvolver nova tecnologia e nos apropriarmos da tecnologia disponível, segundo outras cosmotécnicas que não a capitalista, ele não explica como isso pode ser feito, na prática. E, mesmo que reconheça a necessidade do resgate de outras cosmotécnicas, ele parece confiar esse processo fundamentalmente a filósofas/os e outras/os pensadoras/es, os quais, alcançando tal “despertar espiritual”, o ensinariam/repassariam às/aos técnicas/os e cientistas (para produzirem as novas epistemologias necessárias) e ao povo (para viver segundo essas outras cosmologias) (HUI, 2016, p. 296, 307, 310).

Na próxima seção e a partir de três casos de projeto técnico decolonial, será mostrado como intervenções tecnodiversificadoras (ou com potencial tecnodiversificador) podem ser desenvolvidas, na prática, identificando-se tanto a maneira de se resgatarem/desenvolverem outras cosmotécnicas (em função do resgate/concepção de outros mundos possíveis) quanto caminhos para a construção das epistemologias de base para elas. E tudo isso a partir de uma abordagem que, diferentemente da de Hui (a qual talvez possa ser chamada de elitista), não parte de filósofas/os ou pensadoras/es e chega, de modo “descendente”, a técnicas/os, cientistas e o povo, mas que parte do povo e, de forma “ascendente”, cuidadosa e dialógica, fertiliza as disciplinas técnicas e lança as bases técnicas, políticas, epistemológicas e ontológicas (no sentido de outras formas de vida e cosmologias buscadas) para a construção de outros mundos (populares) possíveis.

 

3 Aportes de práticas de intervenção técnica do Sul global

Isso que se chama de projetos técnicos decoloniais refere-se a um subgrupo daquilo que tem sido denominado práticas técnicas engajadas. Elas são intervenções técnicas em alguma medida não convencionais, usualmente focadas em grupos vulnerabilizados e que almejam colaborar com o empoderamento do grupo e/ou com o desenvolvimento de soluções sustentáveis, em termos ambientais (ALVEAR et al., 2021; CRUZ et al., 2021; KLEBA, 2017).

Podem ser identificadas ao menos oito dimensões diferentes do empoderamento do grupo vulnerabilizado que são (ou podem ser) suportadas/promovidas por intervenções engajadas. Elas vão desde a promoção de inclusão sociotécnica (i.e., prover acesso a algum bem ou serviço considerado fundamental para a dignidade do grupo, como água potável, rede de esgoto e internet) e a valorização da diferença cultural (i.e., reconhecimento e apoio a modos de vida plurais – e conhecimentos que os suportam –, que implicam ou pressupõem a transformação do processo projetivo, de sorte a sociotecnicamente se promoverem esses modos de vida [construindo-se cosmotécnicas adequadas]), até a promoção da emancipação social, econômica e política do grupo (KLEBA; CRUZ, 2022).

Intervenções decoloniais sempre dão especial atenção à dimensão da valorização da diferença cultural. É por isso que elas lançam mão de diferentes práticas, as quais encorajam, facilitam e promovem uma ampla troca verbal e não verbal de saberes entre o grupo vulnerabilizado e a equipe técnica – o que é usualmente chamado de diálogo de saberes. Além disso, no geral, essas intervenções buscam trabalhar todas as demais sete dimensões do empoderamento, em um processo a um só tempo crítico (no sentido de questionador) e cuidadoso. Quanto a esse cuidado, ele é usualmente praticado segundo as três acepções identificadas por Bellacasa (2017): trabalho concreto de manutenção, proteção ou apoio (de indivíduos ou grupos), com implicações ético-políticas (e.g., compromisso com o bem viver de quem é cuidada/o e a luta por se assegurar isso) e afetivas (i.e., querer bem a quem se cuida) (CRUZ, 2021a, 2022).

No que se segue, três intervenções decoloniais serão brevemente apresentadas, tendo como foco principal suas características mais diretamente relacionadas (ou relacionáveis) à discussão em curso neste artigo.

Terceira Margem[74] (TM) é um ateliê de arquitetura carioca que desenvolve seus projetos segundo uma prática particular de projeto participativo, na qual os corpos e o inconsciente das/os habitantes que demandam o projeto têm um papel central (GUIZZO, 2019; 2021). Em sua atuação, o TM busca:

[...] descolonizar nossos próprios meios de desenhar, ao criarmos pontes autônomas com o território, a ponto de utopias incorporadas nos colocarem em movimento vital e nos fazerem vibrar, criar e cuidar do nosso próprio modo de habitar. Afinal, qual mundo queremos habitar? Essa é a questão central desse método e que é pensada enquanto dançamos em roda a fim de ativar o inconsciente e escapar de uma resposta que, em um primeiro momento, também se faz modelizada. Acredita-se que essa roda e outras práticas “encantadas” podem criar o que intitulamos de demanda real de projeto, valiosas pontes com o território e seus habitantes, antes dos primeiros desenhos. (GUIZZO, 2019, p. 26).

 

Para tanto, aplica-se uma metodologia “[...] compost[a] basicamente por quatro oficinas sensoriais inspiradas em diferentes saberes e cosmovisões [...]: Habitar Fogo, Habitar Água, Habitar Ar e Habitar Terra, tendo cada uma delas as mesmas três etapas - Magia, Cura e Carne.” (GUIZZO, 2021, p. 372-373). Essas oficinas são conduzidas no território em que a construção/reforma em projeto será realizada e têm a pretensão de incorporar ao processo projetivo também os demais entes humanos e não humanos que o compõem. Tal metodologia busca articular cosmovisões e filosofias ameríndias e africanas/afro-brasileiras à prática (participativa) da arquitetura (GUIZZO, 2019, p. 143-157; 2021, p. 366-371).

Com relação às três etapas de cada uma das oficinas, magia, a primeira delas, é a do movimento corporal, na qual, por meio de exercícios de dança, se busca uma conexão com a alegria, a música e a expansão do corpo. Cura, a segunda etapa, é como um tempo de meditação, no qual se procura possibilitar a emersão de memórias, desejos, intuições e afetos que podem estar enterrados no inconsciente das/os participantes. Ela é desenvolvida por intermédio de objetos, os quais são usados para estimular sensorialmente os corpos das/os participantes. Por fim, carne materializa ou sistematiza os efeitos da mágica e da cura em certas construções verbais, como mapas, textos e caixas de afetos (GUIZZO, 2021, p. 376-378).

Essa experiência completa é conduzida pela(s) arquiteta(s) responsável(is) pelo projeto, que orienta(m) as atividades e testemunha(m) os efeitos delas nas/os participantes, ressoando em si mesma(s) os afetos e desejos que emergiram, e tendo acesso às imagens, ideias e ideais que surgiram. É a partir desse ponto, pois, que ela(s) está(ão) pronta(s) para desenhar soluções para as demandas explicitadas nas oficinas sensoriais (GUIZZO, 2019, p. 174). Nesse sentido, no TM,

[...] as mulheres estão à frente, visam à descolonização do seu próprio modo de projetar (à descontaminação do seu meio) e não separam da prancheta de projeto os corpos e os afetos nem a capacidade de conviver, contagiar e cuidar, a qual um processo de projeto e sua construção permitem fomentar. (GUIZZO, 2019, p. 164).

 

A segunda intervenção é igualmente um tipo de projeto participativo, mas desenvolvido, no âmbito da engenharia elétrica/eletrônica/de computação, por uma equipe que contava com uma engenheira e dois engenheiros, além de duas etnógrafas. O exercício assumido por essa equipe colombiana era o de trabalhar com um grupo de mulheres da cidade de Cartagena, que faziam um bordado tradicional chamado calado. Essas mulheres eram chamadas, por isso, caladoras (RIVERA et al., 2016).

O processo de intervenção envolveu períodos de imersão junto às caladoras, nos quais a engenheira responsável pelo projeto e as duas etnógrafas residiam com as bordadeiras, partilhavam da vida delas, tomavam parte em seus trabalhos e aprendiam os rudimentos do calado. O que se buscava com isso era tanto desenvolver laços de afeto e cuidado com essas mulheres e conseguir compreender melhor a realidade, os sonhos e desejos delas, quanto estabelecer um diálogo de saberes com elas (PÉREZ-BUSTOS, 2017; PÉREZ-BUSTOS; MÁRQUEZ, 2016; RIVERA et al., 2016).

Como consequência dessa prática comprometida e não paternalista de cuidado, conseguiu-se chegar ao tipo de solução técnica que interessava a essas mulheres: uma interface tangível, a qual, com um tablet devidamente programado, permitia a elas não apenas registrar, armazenar e trocar entre si os diferentes padrões de calado que conheciam, mas também testar no tablet padrões novos. Isso era particularmente importante para elas, porque 1) o calado, sendo um bordado baseado no esgarçamento do tecido, não pode ser desfeito, de modo que, se o padrão novo tentado não ficar bom, se perde o tecido que estava sendo trabalhado; 2) a armazenagem desses padrões era feita em papel, o qual se desgastava em não muito tempo; 3) a troca de padrões de bordado entre essas mulheres é algo altamente valorizado por elas (RIVERA et al., 2016; PÉREZ-BUSTOS; MÁRQUEZ 2016).

Ao mesmo tempo, essa intervenção, construída nesses termos, possibilitou às caladoras e à engenheira responsável pelo projeto alargarem suas práticas profissionais. Nas palavras da engenheira,

[c]onfigurar o projeto de modo a dar responsabilidade para as usuárias foi importante para garantir que a tecnologia projetada teria impacto real e conduziria a novas formas de conceber as práticas tanto do bordar quanto do projetar tecnologia. (CORTÉS-RICO; PIEDRAHITA-SOLÓRZANO, 2015, p. 520).

 

No que concerne particularmente ao impacto desse diálogo de saberes no projeto desenvolvido pela engenheira, ela assim o descreve:

De fato, o hardware foi literalmente bordado com fio condutor e o software demandou uma rememoração contínua do ofício [de bordar] com as nossas próprias mãos, de modo a construir as representações computacionais dos pontos do calado. (RIVERA et al., 2016, p. 61).

 

A terceira intervenção decolonial é a engenharia popular (EP). Ela surge no Brasil em meados dos anos 2000, articulando três elementos centrais: o ideário da economia solidária, a perspectiva tecnológica da tecnologia social e as práticas de intervenção promovidas a partir da extensão universitária (FRAGA et al., 2020). Ao final de 2020, a EP era praticada por doze núcleos de extensão e coletivos de engenheiras/os populares espalhados pelo país, por 49 pessoas que se definiam como engenheiras populares, além de outras 250 que atuavam juntamente com as primeiras, nas intervenções desenvolvidas (ARAÚJO; RUFINO, 2021).

Em termos metodológicos, a EP costuma se basear na pesquisa-ação, utilizando, como parte central de sua intervenção, processos de educação popular e uma variedade de práticas que reforçam a vinculação afetiva, o cuidado das pessoas e o compromisso ético-político com o grupo vulnerabilizado com o qual se atua (CRUZ, 2021b; CRUZ; RUFINO, 2020). Com isso, ela busca estabelecer um sólido diálogo de saberes que fertilize sua prática de intervenção, possibilitando-a colaborar com a emancipação do grupo e com a construção, a partir de bases populares, de uma outra ordem sociotécnica possível – com as epistemologias necessárias para isso.

As particularidades dessa metodologia de atuação variam em alguma medida entre os núcleos que praticam EP. No Alter-Nativas (vinculado à UFMG) e no GEPERT (interinstitucional), isso significa a incorporação da ergonomia da atividade e dos ferramentais etnográficos requeridos por ela, em um esforço tanto de compreender melhor as atividades realizadas pelas/os trabalhadoras/es com as/os quais se atua (p.e., em cooperativas de catadoras/es ou fábricas recuperadas por trabalhadoras/es) quanto de evidenciar e incorporar criticamente à solução construída os conhecimentos e valores delas/es (VARELLA et al., 2020; ARAÚJO et al., 2019).

Por fim, a EP, ao longo dos seus quase 20 anos de existência e das múltiplas experiências dos seus núcleos e da rede por eles constituída,[75] vem militando por transformações estruturais na formação superior em engenharia. Tais transformações passam por determinadas questões, como a incorporação de pautas populares às agendas de pesquisa e desenvolvimento nacionais, uma graduação que capacite as/os estudantes a práticas não apenas mercadológicas da engenharia e uma extensão com viés também popular (em função da qual as pautas de pesquisa e desenvolvimento podem chegar à universidade, os conhecimentos necessários para atendê-las podem ser desenvolvidos e uma formação para práticas como EP pode, de fato, acontecer) (ARAÚJO; RUFINO, 2021).

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A atuação da Terceira Margem, da equipe colombiana que trabalhou com as caladoras, e da Engenharia Popular transforma a prática técnica em ao menos quatro dimensões diferentes: 1) modificando as formas de conduzir o projeto técnico, não apenas incorporando ativamente a ele os grupos com os quais se esteja trabalhando, mas adotando, para isso, modificações significativas na prática projetiva (identificadas nas várias técnicas relativas ao cuidado, ao diálogo de saberes e à educação popular); 2) suscitando respostas, trocas, dados, demandas, horizontes de soluções e impactos sociais (identificados, por exemplo, nas diferentes dimensões do empoderamento) que não seriam possíveis por meio dos conhecimentos e modos de conhecer hegemônicos;[76] 3) demandando o desenvolvimento de novos conhecimentos, agenciando conhecimentos técnico-científicos de diferentes áreas e reforçando agendas de pesquisa técnico-científica, por assim dizer, populares; 4) sendo espaço de resgate de agentes invisibilizados (os grupos vulnerabilizados e seus membros) e (re)construção de identidades (individuais e coletivas, seja do grupo vulnerabilizado, seja da equipe técnica). Com isso, produzem-se esboços, mesmo que locais, de outros mundos possíveis e outras formas de vida, bem como das epistemologias necessárias para construí-los e, em particular, das abordagens técnicas requeridas para tanto.

Pode-se afirmar, assim, que essas três iniciativas de intervenção técnica decolonial atuam ativamente como caminho ou possibilidade para o resgate e a coconcepção de novas cosmotécnicas e formas de vida, e a construção das epistemologias de suporte a elas. Embora de maneira incipiente ou local, elas promovem uma sociologia das ausências (e, a partir disso, o florescimento de uma ecologia de conhecimentos, temporalidades, transescala e produtividades) e uma sociologia da emergência (que conduz ao cuidado e à concepção de outros mundos possíveis). Nos termos de Hui, elas produzem uma nova episteme, a partir do horizonte de cosmotécnicas (ou cosmologias) diferentes da capitalista hegemônica. Trata-se, de todo modo, de uma episteme que caminha, não no sentido de uma epistemologia universal, mas de uma epistemologia local e legítima para, e legitimadora do mundo (e da cosmovisão/ cosmotécnica) que ela suporta e que a suporta.

 

Considerações finais

O construtivismo crítico de Feenberg não apenas possibilita análises fundamentais do fenômeno tecnológico, como também tem servido até mesmo para equipes técnicas decoloniais (como as da engenharia popular) conceberem e aprimorarem suas intervenções. Há, contudo, ausências ou não tematizações em seu pensamento que precisam ser superadas. Esse é o caso da não problematização da operação interna das disciplinas técnicas e das suas epistemologias de base, algo que ele reconhece como legítimo de ser problematizado (FEENBERG, 2022a), mas que não o faz de fato ou não o faz em diálogo efetivo com ideias, como as de Santos e Hui, apresentadas aqui.

Conforme se mostrou, é insuficiente parar a luta pela democratização da tecnologia na fronteira do mundo da vida com as disciplinas técnicas. Da perspectiva do Sul global e de outros mundos possíveis, o alargamento, a fertilização ou a hibridização dos conhecimentos e práticas técnico-científicos com outros conhecimentos, práticas e modos de conhecer é fundamental. É dessa maneira que se poderá alcançar, no âmbito do desenvolvimento tecnológico, a ecologia de conhecimentos defendida por Santos, ou o resgate e desenvolvimento – a partir das bases; popular – de outras cosmotécnicas. Tal coisa, ademais, não é apenas uma elucubração razoável ou teoricamente defensável, mas realidade em várias iniciativas ao redor do mundo, mesmo que sejam iniciativas pontuais (e certamente marginais), como as três aqui brevemente expostas bem o ilustram.

Nesse sentido, tão importante quanto estarmos atentas/os aos movimentos sociais/políticos que podem forçar mudanças estruturais mais profundas no mundo (ou no status quo sociotécnico) é se lançarem as bases metodológicas e epistemológicas das disciplinas técnicas capazes de construir essas outras ordens sociotécnicas/cosmotécnicas possíveis (ou esses outros mundos). Feenberg parece entender que, assegurando-se as forças sociais/políticas pró-mudança, esta decorrerá naturalmente, mesmo em termos tecnológicos (FEENBERG, 2022a). Já as teorias e práticas do Sul global, apresentadas neste artigo, entendem que o resgate e o avanço dessas outras epistemologias constituem parte inseparável da mobilização e luta por mudança, seja porque esse resgate favorece o empoderamento dos grupos em luta, seja porque é desse processo que outros mundos possíveis podem se tornar concebíveis e (sociotecnicamente/cosmotecnicamente) implementáveis.

Assim, um construtivismo crítico adequado para os desafios e as lutas (por outros mundos possíveis) do Sul global não pode parar onde Feenberg o deixa, mas precisa incorporar isso que Santos e Hui teorizam e que as intervenções decoloniais praticam (ou buscam praticar).

 

Criticizing and advancing critical constructivism from a global south perspective

Abstract: Andrew Feenberg is an essential author in the field of philosophy of technology. His ideas are particularly relevant in revealing the political dimension of technology, be it shaping society or being shaped by society. However, current Feenberg’s reflection fails to consider the internal domain of technical disciplines more rigorously. Indeed, he usually stops his analysis in the border between lifeworld (where the democratizing mobilizations occur and new/different requirements or values arise) and the technical disciplines. To identify and overcome this failure, I articulate some elements from Boaventura de Sousa Santos and Yuk Hui. I also present the example of three decolonial (or empowering) technical interventions, which illustrate: how what Santos and Hui theorize is already being developed by some technical interventions in the Global South, and the impacts of such interventions on the technical teams (and, through that, also on the technical disciplines).

 

Keywords: Critical constructivism. Andrew Feenberg, Boaventura de Sousa Santos. Yuk Hui. Decolonial technical designs.

 

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Recebido: 16/05/2022

Aceito: 26/09/2022

 

Comentário a “Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do Sul global”: a crítica da tecnologia como crítica à distinção moderna entre natureza e cultura

 

Jelson Oliveira[77]

 

Referência do artigo comentado: CRUZ, Cristiano Cordeiro. Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do sul global. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 61-84, 2023.

 

Cruz (2022) busca demonstrar como as teses do construtivismo crítico da tecnologia, do prof. Andrew Feenberg, um dos mais proeminentes filósofos da tecnologia, poderiam ser complementadas com uma análise que o autor do artigo considera como “interna das disciplinas técnicas”, para o que ele reúne argumentos de Boaventura de Souza Santos e Yuk Hui. Nesse sentido, o texto não é apenas uma crítica ao modelo de pensamento de Feenberg, mas uma teorização que pretende, de alguma forma, “aterrar” esse pensamento no “Sul global”, cujas circunstâncias são suplementares aos argumentos feenbergianos.

O horizonte do texto, nesse caso, é a perspectiva decolonial que pretende analisar os impactos dessas teorias nos processos emancipatórios dos povos que, historicamente, foram considerados submissos, subdesenvolvidos e sem verdadeira tecnologia. O texto, por isso, ao lançar mão dos argumentos de Santos e Hui, explicita o necessário reconhecimento desse equívoco e, mais ainda, da existência de “ordens sociotécnicas” outras que não aquelas eurocentradas, as quais costumam definir as pautas das disciplinas técnicas e das epistemologias. O texto ainda tem o mérito de trazer à análise, a título de exemplo, três experiências decoloniais que, sistematizadas, oferecem oportunidade para o reconhecimento prático da eficácia desses argumentos.

            Sabe-se que o argumento da democratização da tecnologia – um dos mais centrais da obra de Feenberg – se estrutura a partir de uma concepção segundo a qual a tecnologia precisa ser influída pelos interesses daqueles que geralmente são alijados dos processos tecnológicos. Isso significaria dar lugar aos interesses das populações mais vulneráveis e da própria natureza (por meio, principalmente, dos movimentos sociais e ambientais), que confrontariam, por exemplo, a lógica do lucro que orienta a tecnologia unicamente para os interesses do mercado. A inclusão dessas pautas no âmbito tecnológico representaria, portanto, o estabelecimento de novas estruturas de poder e novos “códigos técnicos” e mesmo de novas tecnologias. O resultado é que as próprias disciplinas tecnológicas passariam a incluir esses novos interesses (o autor arrola como exemplo as especialidades ambientais, no âmbito de projetos de automóveis) e estes, por sua vez, passariam a incluir, nos âmbitos teóricos, as demandas do mundo da vida, das experiências concretas das pessoas em busca de vida melhor. Teoria e prática, afinal, estariam em diálogo. Daí nasceria uma nova racionalidade, não apenas tecnológica, mas sociotécnica (na medida em que a primeira se deixa influenciar pelas demandas da “sociedade”).

            Nesse ponto, seria preciso, conforme defende o autor do artigo, reconhecer a necessidade de reconhecimento das diferentes demandas que são, na verdade, expressões de diferentes cosmovisões (as quais incluem, por exemplo, práticas, necessidades, conhecimentos e modos de vida). É esse, precisamente, o complemento teórico necessário à tese de Feenberg: a inclusão das pautas dos chamados “atores do Sul global”, com o objetivo de evitar – no campo tecnológico – a reiterada lógica epistemicida que impede o reconhecimento das diferentes práticas, discursos e demandas impostas pela colonialidade tradicional e que vem relegando tais formas de vida à invisibilidade. Trata-se de alcançar, segundo a tese de Boaventura de Souza Santos, aquela “justiça cognitiva” capaz de promover as interações culturais e o fortalecimento das alianças capazes de superar as injustiças históricas dessa relação entre “mundos”.

Nesse ponto, Yuk Hui traduz o esforço de reconhecimento de diferentes cosmologias particulares que formariam o que o autor chama de cosmotécnica. Falar em tecnologia (no singular) tem sido, portanto, até agora, dar voz a uma única cosmotécnica, precisamente aquela do capitalismo, a qual se universaliza com a lógica do lucro e da exploração, em detrimento das várias outras cosmotécnicas. O primeiro passo, portanto, seria “superar o universalismo”, com a afirmação de diferentes tecnologias (no plural), na medida em que elas traduzem diferentes formas de vida com as quais a tecnologia se relaciona. Isso passa, portanto, pela superação da abstração teórica da tecnologia, por meio do reconhecimento das condicionalidades e circunstancialidades que moldam os processos técnicos. Haveria, assim, uma tecnodiversidade: diferentes formas de articular a tecnologia com os horizontes antropológicos dos diferentes povos e culturas – que não aqueles centrados na visão unilateral da sociedade capitalista. Hui, nesse caso, concretiza a tese da necessidade de reconhecimento dessas novas epistemologias, a partir de identidades outras que não aquelas eurocentradas e colonizadoras.

Nasceriam daí as experiências várias das populações “sulistas” que comprovam e desenvolvem outras cosmotécnicas mobilizadas, inclusive, pelas utopias de um outro mundo possível – que são utopias de resistência. Essa resistência, no caso do artigo, se dá por meio de [1] um ateliê de arquitetura orientado pela ideia de projeto participativo que inclui corpos e inconsciente; [2] um projeto participativo de engenharia elétrica/eletrônica/computacional que atua com mulheres bordadeiras colombianas; e [3] um projeto de engenharia popular baseado em economia solidária, tecnologia social e extensão universitária.

Essas três experiências comprovariam, segundo o autor do artigo, a tendência de resgate de cosmotécnicas específicas, tradutoras de diferentes formas de vida e geradoras de outras tecnologias. Em relação a Feenberg, nesse caso, Hui tem a vantagem de ver que a atuação dos movimentos sociais e ambientais, por exemplo, se estruturam na perspectiva do reconhecimento de diferentes cosmotécnicas – e não apenas diferentes interesses ou protagonismos. O que nasce, afinal, não é apenas um novo design, mas a expressão de novos modos de vida.

Tudo isso nos leva a entender esse projeto como uma crítica a uma das bases teóricas mais importantes e características da modernidade. Essa perspectiva foi desenvolvida por Yuk Hui, no seu livro Tecnodiversidade, no qual o autor tenta “[...] levar diferentes ontologias em diferentes culturas a sério" (HUI, 2020, p. 33), contrapondo-se à modernidade, a qual, segundo ele, poderia ser compreendida como um “naturalismo”, ou seja, uma contraposição entre cultura e natureza – a tecnodiversidade propõe precisamente o contrário.

Uma das suas bases teóricas para realizar tal tarefa seriam “[...] muitos antropólogos associados com a virada ontológica [que] voltaram suas atenções para a questão da natureza e da política do não-humano (em linhas gerais, animais, plantas, minerais, os espíritos e os mortos)”, entre os quais está, por exemplo, Viveiros de Castro (HUI, 2020, p. 34). Em poucas palavras, trata-se de pensar a unificação do cosmos e da moral, por meio das atividades técnicas, sejam elas da criação de produtos ou de obras de arte; é por isso que Hui afirma, com veemência: “[...] creio que seja difícil, senão impossível, que a modernidade seja superada sem que se enfrente de maneira direta a questão da tecnologia” (HUI, 2020, p. 38), e isso pode ser feito com uma reavaliação do conceito de cosmopolítica em relação a cosmotécnica.

O que Hui propõe, nesse caso, é acordar as possibilidades adormecidas através de uma investigação sobre a tecnodiversidade capaz de rearticular a questão da tecnologia e os dados antropológicos. Para isso, “[...] precisaremos redescobrir uma multiplicidade de cosmotécnicas e reconstruir suas histórias para projetarmos no Antropoceno as possibilidades que nelas estão adormecidas.” (HUI, 2020, p. 15). A isso precisamente poderíamos chamar de um projeto de decolonização da tecnologia:

Como o pensamento não-europeu e o não-moderno poderiam responder a esta época tecnológica senão com uma pelo retorno à natureza? Com o meu conhecimento limitado sobre América Latina, minha esperança que este trabalho desperte uma curiosidade que leve a perguntas como: o que significa uma cosmotécnica amazônica, inca, Maia? E, para além de formas de arte e de artesanato indígenas a serem preservadas, como essas cosmotécnicas poderiam nos inspirar a recontextualizar a tecnologia moderna? (HUI, 2020, p. 18).

 

Tudo isso passaria por uma tentativa intencional de fragmentar o mundo – uma estratégia contrária, portanto, ao que propôs a modernidade:

Talvez devêssemos atribuir ao pensamento a tarefa oposta àquela que lhe é oferecido pela filosofia iluminista: fragmentar o mundo de acordo com o diferente, em vez de universalizá-lo através do mesmo; induzir o mesmo através do diferente, em vez de deduzir o diferente a partir do mesmo. (HUI, 2020, p. 72).

 

Ora, isso passaria, necessariamente, pelo reconhecimento das várias tecnologias, formadoras de diferentes cosmotécnicas. Em algum sentido, isso significa fazer uma crítica à tecnologia branca e à atitude embranquecedora da tecnologia, o que exige identificar “[...] os erros decisivos das populações brancas” (HUI, 2020, p. 77) que fizeram das tecnologias militares e náuticas uma forma de colonização do mundo, pela via do Iluminismo. Em outras palavras, seria preciso superar esse tipo de tecnologia que “[...] adquire e até mesmo executa o pensamento iluminista.” (HUI, 2020, p. 81).

Por isso, para Hui, “[...] se quisermos reagir às perspectivas de auto-extensão global, precisaremos retornar a um discurso cuidadosamente elaborado sobre localidades e a posição que humano ocupa no cosmos.” (HUI, 2020, p. 89). E isso não significa retornar ao nacionalismo, ao essencialismo cultural e ao etnofuturismo, mas aos outros saberes, aos diferentes modos de conhecimento e às várias formas de estabelecer relação com o mundo e com a terra, os quais, muitas vezes, escapam das lentas das ciências e mesmo da tecnologia moderna, permanecendo como terrenos desconhecidos, como perspectivas adormecidas que precisariam ser acordadas.

 

Referências

CRUZ, Cristiano Cordeiro. Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do sul global. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 61-84, 2023.

HUI, Yuk. Tecnodiversidade. Tradução de Humberto do Amaral. São Paulo: Ubu, 2020.

 

Recebido: 02/02/2023

Aceito: 09/02/2023

 

Comentário a “Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do Sul global”

 

Maurício Fernandes[78]

 

Referência do artigo comentado: CRUZ, Cristiano Cordeiro. Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do Sul global. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 61-84, 2023.

 

O texto de Cordeiro Cruz (2022), intitulado “Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do Sul global”, nos coloca de frente com o problema da lacuna existente no desenvolvimento da filosofia da tecnologia de Andrew Feenberg. E, a partir disso, perfaz um caminho em que aponta para epistemologias e práticas presentes no Sul global como resposta possível e satisfatória a essa lacuna, as quais, incorporadas, podem fazer avançar o construtivismo, superando tal lacuna.

Em um primeiro momento, aproxima-nos do construtivismo crítico de Feenberg e suas fontes, desde as perspectivas críticas lançadas pela Teoria Crítica da primeira geração da Escola de Frankfurt, e seu subsequente desenvolvimento, enquanto uma genuína filosofia da tecnologia, que segue em pleno desenvolvimento. Dessa primeira geração, principalmente na figura de Herbert Marcuse, irá projetar-se um interesse por uma compreensão política da tecnologia e suas implicações na estruturação de uma tecnocracia e nos eventos nefastos que marcaram o século XX. Embora interessados pelos aspectos políticos da tecnologia, os teóricos da primeira geração não avançaram para além da crítica à racionalidade instrumental, à exceção de Marcuse, o qual já apontava para um caminho teórico distinto, aprofundando-se na questão da tecnologia. É desse fundo teórico que emerge a noção de tecnologia sempre direcionada por fins políticos: a tecnologia não é neutra.

Feenberg compreendeu o beco sem saída ao qual chegaram os teóricos da primeira geração, com a crítica à racionalidade instrumental, com base na qual foram erigidas perspectivas negativas frente à tecnologia. Essas perspectivas minavam as compreensões acerca dos valores e ganhos inerentes à tecnologia e à ciência, o que será superado na produção teórica da segunda geração, tanto na teoria comunicativa de Jürgen Habermas quanto no construtivismo crítico de Andrew Feenberg. É possível voltar-se para dentro da técnica, assegurando seu expressivo papel nos ganhos na ampliação material da sociedade, e construir uma crítica que pretenda romper com aquele beco sem saída da primeira geração – a proposta de Feenberg pretende apontar que não há apenas instrumentalidade no ato técnico, mas que este já está, de antemão, direcionado por valores ético-políticos incorporados no momento das tomadas de decisões, na proposição das soluções técnicas. Essas soluções ou códigos técnicos não são neutros, pois sustentam toda a arquitetônica dos modos de vida na sociedade na qual são implantadas, partilhando com esta uma relação intrínseca de construção mútua. Porém, a racionalidade tecnológica que sustenta a ordem sociotécnica impossibilita a ampliação do horizonte na compreensão da existência de outros ordenamentos sociotécnicos.

O construtivismo crítico de Feenberg oferece uma crítica a essa racionalidade tecnológica com o intuito de promover um processo de democratização da mesma, torná-la plural. Feenberg compreende que a gramática das lutas sociais pode fazer ressoar transformações no interior dos códigos sociotécnicos, desde o momento em que essa gramática seja traduzida na introdução e ampliação das perspectivas motoras do processo de proposição de soluções, a partir das disciplinas técnicas. De outra forma, Feenberg irá compreender que as vozes que exigem uma transformação da tecnologia são oriundas do mundo-da-vida e que somente a interação com as disciplinas técnicas e, através destas, é que podem surtir, de fato, transformações no quadro sociotécnico hegemônico – a democratização da tecnologia seria o estabelecimento de um diálogo entre tais esferas.

Assim, o texto de Adriano Cruz nos aponta uma lacuna existente no construtivismo crítico de Feenberg, que não avança para além dessa fronteira entre mundo-da-vida e disciplinas técnicas, as quais, extremamente importantes, são contornadas, não oferecendo possibilidades de se repensar tais disciplinas desde dentro (CRUZ, 2022, p. 05). Cruz enfatiza o fato de a racionalidade sociotécnica de Feenberg estar aberta e sensível à gramática oriunda do mundo-da-vida e todo seu cabedal passível como contributo no processo de democratização da tecnologia; porém, todo o quadro epistemológico que sustenta o construtivismo crítico permanece assentado sobre um conceito hegemônico, tanto de ciência quanto de disciplinas técnicas.

É com base nesse ponto que Cruz perfaz um movimento de aproximação às perspectivas e aportes epistemológicos do Sul global, apresentando, de forma clara, que justamente aquela epistemologia hegemônica, não problematizada no construtivismo crítico de Feenberg, é o eixo central e endereço de problematizações e críticas, no pensamento de autores decoloniais, principalmente na obra de Boaventura de Sousa Santos, que irá propor as epistemologias do Sul como resposta alternativa ao paradigma epistemológico hegemônico em crise. Cruz delineia uma trajetória na qual aquela lacuna no pensamento de Feenberg encontra uma resposta nas construções teóricas de Boaventura de Sousa Santos, evidenciando a necessidade de uma mudança de paradigma, na qual, diante da crise e insuficiência da epistemologia hegemônica, possa emergir uma ecologia epistemológica que consiga conter o epistemicídio.

Cruz intenta percorrer um caminho profícuo de interação entre a teoria e a práxis referente às exigências de transformação da tecnologia; à construção teórica de Feenberg (seu construtivismo crítico) e sua permanência na fronteira do mundo-da-vida, evidencia uma lacuna que deflaciona seu conteúdo emancipatório. Trata-se de uma teorização, que, embora com acenos práticos e exigência por transformação (democratização) da tecnologia, permanece sem problematizar a epistemologia que a sustenta, arrefecendo, assim, seu cerne crítico. Cruz traz ao diálogo Boaventura de Sousa Santos e as perspectivas e aportes teóricos já presentes e em movimento constante, no horizonte epistemológico plural esboçado a partir do Sul global. É um salto, desde a fronteira entre o mundo-da-vida e as disciplinas técnicas, para colher as vozes que compõem a gramática necessária às exigências de transformação da tecnologia.

Também traz ao diálogo Yuk Hui e seus conceitos de cosmotécnica e tecnodiversidade, como referência para compreendermos um quadro plural possível à tecnologia, o qual escape ao monólito erigido pela racionalidade tecnológica hegemônica. Assim, perfaz um caminho desde a teoria da democratização de Feenberg até sua compreensão de um âmbito marcado pela materialidade negativa dos grupos sociais marginalizados, esquecidos ou invisibilizados pela racionalidade hegemônica e pela tecnologia sustentada por essa racionalidade. Cruz aparenta buscar nessa força da materialidade negativa, presente nas perspectivas decoloniais, a possibilidade de fazer irromper as exigências por transformações mais significativas no corpo das disciplinas técnicas.

E, como passo último no texto, apresenta três intervenções que se constituem como a corporificação desse horizonte teórico precedente. Aponta, assim, para o possível, mas ainda lacunar; para a exigência e o esperançar, no plural e diverso; e para o concreto, já em trânsito, em movimento, corporificado nas práticas que desafiam o ordenamento sociotécnico hegemônico, os quais perfazem, desde a marginalidade imposta, um movimento de luta e busca de empoderamento e visibilidade. Corroboram, desse modo, a necessidade de construção de uma ecologia epistêmica, a partir da necessidade de rompimento com as forças de objetificação oriundas do processo de colonização, e a expressão de uma transformação da ordem sociotécnica hegemônica, no recurso a um estoque epistêmico e tecnológico que foge à racionalidade tecnológica pura e à epistemologia hegemônica.

Nessa perspectiva, Cruz (2022) expressa a necessidade latente ao construtivismo crítico, que, para avançar em seu desenvolvimento, deve encarar essa lacuna e se abrir às perspectivas epistemológicas do Sul global e da diversidade tecnológica, problematizar sua própria base; além disso, compreender os resultados práticos das intervenções tecnológicas decoloniais na mobilização e construção de outros contextos sociotécnicos possíveis.

 

REFERÊNCIA

CRUZ, Cristiano Cordeiro. Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do Sul global. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 61-84, 2023.

 

Recebido: 15/01/2023

Aceito: 22/01/2023


 

Georges Bataille: la pérdida, el fascismo y la propuesta comunitaria

 

Gonzalo Ricci Cernadas [79]

 

Resumen: La hipótesis que busca proponer el presente trabajo es la de que, a pesar de todas las dificultades para su conceptualización, Bataille postula que la comunidad es, al fin de cuentas, posible. Para ello, buscaremos estudiar el lugar de la comunidad en el pensamiento de Bataille, un lugar en absoluto identificable en forma precisa, sino que se encuentra diseminado a lo largo de su obra en distintos puntos. Así, intentaremos, en una primera instancia, analizar cómo aparece en el filósofo francés una comunidad perdida, para, en un segundo lugar, investigar cuál fue la –desacertada – respuesta fascista ante ese hecho, y, por último, esbozar de qué manera podría erigirse un modelo propositivo de comunidad de acuerdo a Bataille.

 

Palabras clave: Bataille. Comunidad. Fascismo. Mito. Finito. Infinito.

 

Introducción

El problema de la comunidad es uno netamente moderno. Por paradójica que pueda resultar dicha afirmación, al conceder el estatuto de problemático en un horizonte temporal cercano a la contemporaneidad a un tópico que detenta una raigambre antigua, la misma es perfectamente pasible de ser elucidada: al mismo tiempo que las coordenadas del concepto de la comunidad pueden ubicarse ya en la Antigua Grecia en, por ejemplo, diversos textos de Platón y Aristóteles, también puede encontrarse que dicho concepto experimentó un resurgimiento en el centro de los debates modernos en el marco de la constatación de una situación crítica de la comunidad, de ahora en más inseparable de otro concepto que la va a determinar aún en su ausencia, el de la sociedad[80].

            Es en este sentido en particular, aquél que hace de la noción algo digno de ser estudiado y sometido a análisis, que podemos decir que la comunidad se tornó, recién, en un problema, en algo que planteaba interrogantes a los pensadores no sólo modernos (Hegel, Marx, Tönnies, Weber), sino que también contemporáneos (donde convergen no sólo los liberales –John Rawls (1995, 1996)– y comunitaristas –Michael Sandel (2000), Charles Taylor (1993), entre otros– anglosajones, sino también los filósofos continentales europeos –Jean-Luc Nancy (2001), Maurice Blanchot (1999), Jacques Derrida (1998, 2006), Giorgio Agamben (1996), Roberto Esposito (2012)–, junto con aportes por parte de distintos autores de la ciencia social –Zigmunt Bauman (2006, por ejemplo) e incluso desde el posmarxismo– Ernesto Laclau (1996, p. 8). Así, podemos decir que la comunidad es un problema “[…] desde el momento mismo en que se asiste al descubrimiento de su pérdida o por lo menos de lo que se experimenta como tal.” (ALVARO, 2014, p. 25). Una experiencia tal que se extiende a nuestra actualidad, una experiencia de la comunidad signada precisamente por su ausencia.

            Y de entre aquellos que fueron atravesados por semejantes experiencia de la pérdida de la comunidad aparece Bataille, quien ha “[…] experimentado constantemente esta lógica del ser-separado.” (NANCY, 2001, p. 18). Pensador que se resiste a las clasificaciones, Bataille ha experimentado con una variedad de publicaciones, desde las novelas hasta las obras académicas o ensayos. Y, entre ellos, no podía faltar, ciertamente, la poesía suya tan característica, la cual se arriesga a decir cosas como las que siguen: “El anillo solar es el ano intacto de su cuerpo a los dieciocho años, al cual nada tan cegador puede compararse, con la excepción del sol, aunque el ano sea la noche.” (BATAILLE, 1970, p. 86. Cursivas del original).

            Se mezclan aquí en este “filósofo del excremento” –en el decir de Kendall (2007, p. 80-85)– lo alto y lo bajo, lo sagrado y lo profano, lo divino y lo mundano: en otras palabras, el sol y el ano. Todos ellos términos antitéticos, aunque para la lengua española podrían, luego de estudiar la cuestión con detenimiento, encontrar que estos opuestos se reúnen en la polisémica noción de escatología.[81] Sol y ano, pues, son también conceptos que, utilizando la metaforología de Blumenberg (2018), también aluden al conocimiento o a la razón, tanto la que es provista por el cuerpo celeste, de índole esencial, como así también a la materia que proviene del segundo, la cual podría ser considerada como un deshecho inesencial.[82] El sol y el ano también podrían designar, respectivamente, a aquello que irradia plenitud y a lo expulsivo que deja apenas un fatuo vacío: la presencia de lo pleno y colmado y la frialdad y anomia de la nada. Lo presente y lo perdido, la comunidad que se ha visto resquebrajada y obliterada, términos (como el proyecto y el juego) “contrarios [pero] […] complementarios” (BATAILLE, 2005, p. 61).

Bataille, entonces, es quien ha registrado en su producción esta mentada disolución de la comunidad que ha provocado un ser desgarrado. De hecho, su pensamiento ha sido estudiado por Maurice Blanchot en La comunidad inconfesable (1999) y por Jean-Luc Nancy en La comunidad desobrada (2001). La hipótesis que busca proponer el presente trabajo es la de que, a pesar de todas las dificultades para su conceptualización, Bataille postula que la comunidad es, al fin de cuentas, posible. Para ello, buscaremos estudiar el lugar de la comunidad en el pensamiento de Bataille, un lugar en absoluto identificable en forma precisa, sino que se encuentra diseminado a lo largo de su obra en distintos puntos. Así, intentaremos, en una primera instancia, analizar cómo aparece en el filósofo francés una comunidad perdida, para, en un segundo lugar, investigar cuál fue la –desacertada– respuesta fascista ante ese hecho, y, por último, esbozar de qué manera podría erigirse un modelo propositivo de comunidad de acuerdo a Bataille.

 

1 El mito de la comunidad: la pérdida

La verdad es que podemos sufrir por aquello que nos falta, pero, incluso si tenemos paradójicamente nostalgia, sólo por aberración podemos echar de menos el edificio religioso y real del pasado. El esfuerzo al que este edificio respondió no fue más que un inmenso fracaso y, si es verdad que lo esencial falta en el mundo donde se derrumbó, sólo podemos ir más lejos, sin imaginar, ni siquiera un instante, la posibilidad de un retorno hacia atrás. (BATAILLE, 2015, p. 175).

 

Es así como Bataille (2015) da cuenta en su Historia de la sexualidad de un sentimiento propio de otros grandes sociólogos modernos, como Marx, Tönnies y Weber: como en el caso de ellos, en el francés se encuentra presente un elemento de nostalgia de algo perdido que, como un eco, todavía resuena en el presente actual y sigue manifestando sus consecuencias. Pero, a su vez, dicha nostalgia no reenvía a un ansia por recuperar lo no existente, sino que aquello perdido – por caso, la comunidad – “[…] representa un pasado histórico al que desde todo punto de vista es imposible volver.” (ALVARO, 2014, p. 38). Si podemos detectar cierta nostalgia o un determinado tono elegíaco en Bataille, la presencia del mismo es sólo en calidad de diagnóstico y de ningún modo como algo a ser reivindicado o recuperado. Esa nostalgia es apenas un elemento que da cuenta de una situación que signa a la modernidad: el hecho de que la comunidad se ha perdido.

            Antes de analizar de lleno la comunidad, nos gustaría explicar cómo ella surge a partir de la experiencia interior, una instancia que, hasta llegar a su terminal comunitaria, debe atravesar también por la mediación de la comunicación. Despejemos los términos de esta cadena y comencemos primero por la experiencia interior: “Bataille piensa la experiencia de una alteridad, pero tanto su modalidad como su objeto son distintos.” (RAMOS MEJÍA, 2019, p. 56). La experiencia interior nace de una voluntad de cuestionar pero también de intentar saber todo: “[…] a partir de entonces comienza una experiencia singular. El espíritu se mueve en un mundo extraño en el que coexisten la angustia y el éxtasis.” (BATAILLE, 1986, p. 10). Necesidad de confutar todo, eso es la experiencia interior, la cual deriva en la conclusión inevitable de que “[…] el que sabe ya, no puede ir más allá de un horizonte conocido.” (BATAILLE, 1986, p. 13). Experiencia de objetar, sí, pero en particular de impugnar lo indeterminado, el “[…] lugar de perdición, de sinsentido.” (BATAILLE, 1986, p. 13). Experiencia que nace del límite a lo que es pasible de ser conocido, conocimiento de un no saber, de toparse con algo desconocido e inaccesible.

La contestación rompe los límites del sujeto y del lenguaje, y al hacerlo abre una experiencia de comunicación. Al hacerlo, la experiencia interna también cuestiona el hecho de estar contenida dentro de la experiencia. En cambio, es un ejercicio, modelado sobre ejercicios espirituales pero irreductible a ellos, que actúa sobre la experiencia misma. (NOYS, 2000, p. 50).

 

Noys recalca el carácter cuestionador de la experiencia interior, pero, para asir este término adecuadamente, hemos de entender que una cierta productividad en este no saber: “El no-saber comunica el éxtasis.” (Bataille, 1986, p. 132). Lo que esto significa, Ramos Mejía lo explica claramente: “[…] por un lado, de que comunica al sujeto, destituyéndolo, con el éxtasis y, por otro, de que la experiencia interior.” (RAMOS MEJÍA, 2019, p. 57-58). Por otro lado, la comunicación no es una interacción prístina entre dos o más individuos: “La ‘comunicación’ no tiene lugar más que entre dos seres puestos en juego – desgarrados, suspendidos, inclinados uno y otro sobre su nada.” (BATAILLE, 1989, p. 51). La comunicación, siempre presta a malentendidos y a ocasionar heridas, es la única alternativa que al individuo le queda para intentar traspasar ese abismo, la nada, que separa esos dos continentes de lo inaprehensible y lo que busca ser aprehendido, es un intento que descentra sustantivamente al sujeto puesto que intenta vincularlo con aquello inenarrable, allende el propio sujeto. Intento frágil y efímero de ligar a una persona con otra u otras, la comunicación siempre implica una puesta en juego, la asunción de “[…] mi presencia en el prójimo [autrui].” (BLANCHOT, 1999, p. 29), esto es, contemplar que la existencia propia siempre se da en frente de otros, de una alteridad que es totalmente inalcanzable para mí. Situación aporética: la comunicación busca darse a través de la imposibilidad de la comunidad. Como dice Surya: “La imposible comunión de dos o más hombres, por paradojal que sea, es la única que les es comunicable.” (1987, p. 320).

            Una comunidad, pues, que ya no es y que se define, paradójicamente, por su ausencia: hete aquí el mito de la comunidad fundada en su propia carencia. La disolución del paradigma comunitario en el cual los diferentes individuos trababan relaciones entre sí de manera orgánica dio paso a que tal escenario de la comunidad continuara impactando en tanto que mito. Esto es lo que, en palabras de Nancy, “Bataille proponía considerar como mito: la propia ausencia de mito.” (NANCY, 1991, p. 90).

Es cierto el señalamiento de Pawlett (2016, p. 43), a saber, que

[l]a naturaleza del mito y su relación con el misticismo es motivo de gran preocupación para Bataille. El mito es sin duda una noción difícil y ambivalente; se ha presentado tanto como inherentemente liberador, favoreciendo a los oprimidos (Hall & Jefferson, 1975) como inherentemente opresivo y reaccionario en el sentido de que asegura una posición de identidad frente a un “otro” (Lacoue-Labarthe & Nancy, 2003; Arppe, 2009). Sin embargo, el mito no puede circunscribirse o restringirse a ninguna de estas posiciones: el mito es constitutivamente ambivalente y, por lo tanto, rechaza el razonamiento uno u otro. Ciertamente, se puede hacer que el mito sirva a fines ideológicos particulares, pero, alternativamente, su “fin” puede ser la disolución de la identidad y, por lo tanto, de las barreras entre el yo y el otro.

 

Esa es la ausencia de la comunidad elevada al estatuto de mito, es decir, una ausencia que se constituye en un mito: “‘La noche es también un sol’ y la ausencia de mito es también un mito: el más frío, el más puro, el único verdadero.” (BATAILLE, 2008d, p. 78). Así, el mito propio de la Edad Moderna es, como vimos, la ausencia del mito: una ausencia del mito mucho más exaltante que los mitos antiguos relacionados con la cotidianeidad. La retirada de lo trascendente y el advenimiento de la inmanencia se acoplan a ese mito todavía supérstite: ya no hay comunidad, como tampoco hay mito: “La ausencia del mito va acompañada por la ausencia de comunidad.” (NANCY, 1991, p. 113). La ausencia de la comunidad caracteriza una época de manera en que constituye el trasfondo respecto del cual los individuos deben vincularse de una manera novedosa y atomizada.

            De esta manera, la Modernidad no puede disociarse de ese mito de la comunidad, ese “[…] mito vivo, que la minucia intelectual sólo conoce muerto.” (BATAILLE, 2008b, p. 248). Ante la situación propia de la modernidad, Bataille (2008b, p. 248) afirma que

[…] aumenta el malestar y la agotadora impresión de vacío que deriva del contacto con la sociedad descompuesta. Sólo el mito devuelve a la comunidad donde se reúnen los hombres a aquel que con cada prueba había visto quebrarse la imagen de una plenitud más amplia.

 

El mito, o, mejor dicho, la desaparición del mito, evoca la concomitante obliteración de una totalidad que se da por irrecuperable: “[…] es posible que la existencia total ya no sea más para nosotros que un simple sueño, alimentado por las descripciones históricas y por los fulgores secretos de nuestras pasiones.” (BATAILLE, 2008b, p. 250). El desterramiento final de las prácticas rituales y de lo sagrado, que el mito intenta siempre recrear y reactualizar permanentemente, es un hecho consumado y que no puede revertirse de ninguna manera. Es, pues, un dato con el que se debe contar y que se debe dar por sentado.

            Lo sagrado, pues, ha visto perder su estatuto de carta de ciudadanía en el conjunto de la sociedad que Bataille estudia. Dicha sociedad se encuentra compuesta por elementos y regida por modos de gasto que resultan funcionales entre sí: actividades que tienen un fin o que son reductibles a un esquema de tipo instrumental. El fin de lo instrumental es el consumo, lo productivo, como así también lo intercambiable, lo fungible, lo conmensurable. La producción y el gasto, por un lado, y la composición de la sociedad, por el otro, son extremos que se encuentran inextricablemente ligados entre sí: “La base de la homogeneidad[83] social es la producción.” (BATAILLE, 2008e, p. 138). Así, la base de una sociedad homogénea se cimenta en una producción del tipo productiva o útil. Deudor de una clave de análisis marxista, Bataille argumentará que es el poseedor de los medios de producción quien funda una sociedad homogénea. La parte homogénea de la sociedad, equiparable al conjunto de los medios que posibilitan la producción, no se basta o se agota a sí misma y provoca contradicciones que ella excluye, contradicciones que atentan contra la integridad de la misma sociedad homogénea:

[…]  homogeneidad social es una forma precaria, a merced de la violencia e incluso de cualquier dimensión interna. Se forma espontáneamente dentro del juego de la organización productiva, pero debe ser permanentemente protegida de los diversos elementos inestables que no se benefician de la producción, o que creen obtener poco, o que simplemente no pueden soportar los frenos que la homogeneidad impone a la agitación. (BATAILLE, 2008e, p. 140-141).

La sociedad homogénea rechaza todo valor o elemento superior y trascendente, recusa cualquier tipo de comportamiento que no comporte una función utilitaria, impugna cualquier gasto que sea allende al mundo de lo profano.

            La homogeneidad social, el gasto orientado a la utilidad y la producción guiada por una lógica conmensurable son las marcas de una sociedad moderna rutinizada y “[…] fundada en la organización temporal del trabajo y de los días […], que se encargó de desplazar la sacralidad de sus confines.” (SADRINAS, 2014, p. 7). Una sociedad moderna que ha devenido tal a través de una serie de crisis: “Por el lado pasivo, hay una crisis de las convenciones que constituyen los fundamentos de la agregación humana; y por el lado activo, una crítica individual a esas convenciones.” (BATAILLE, 2008a, p. 191). De esta manera la comunidad se disuelve, da lugar al individuo y a la administración de sus relaciones en el marco de una producción homogeneizadora. La comunidad deja de cumplir un rol de cohesión y de ligazón, se desgarra.

Al mismo tiempo que se vuelven autónomos, los seres humanos descubren a su alrededor un mundo falso y vacío. Al sentimiento fuerte y doloroso de unidad comunitaria le sucede la conciencia de ser víctima del impudor administrativo; y también de terribles ostentaciones de suficiencia y de estupidez individuales. (BATAILLE, 2008a, p. 192).

 

La descomposición de la comunidad, la puesta en cuestión de las autoridades y de los principios que fundan las actitudes morales y religiosas provocan, así, un “[…] malestar y enmarañamiento donde todo parece vano y casi desastroso, donde crece la obsesión por La recuperación por el mundo perdido.” (BATAILLE, 2008a, p. 192. Mayúscula y cursivas del original). Semejante obsesión provocada por dicha pérdida, en el diagnóstico batailleano, provocará un intento de solución que emprenderán los fascistas, tal y como veremos a continuación.

 

2 LA SOLUCIÓN FASCISTA

Bataille reacciona ante la experiencia fascista de una forma un tanto ambigua al formar parte de las publicaciones realizadas por Contre-Attaque. Allí, Bataille forma parte de “[…] un grupo de intelectuales que se declara anticapitalista, antinacionalista, antifascista, pero que sin embargo se muestra fascinado por la exaltación y el fanatismo que suscita el fascismo.” (RAMOS MEJÍA, 2017, p. 18).[84] El fascismo es una experiencia a denunciar, ciertamente, pero no por ello deja de comportar rasgos que producen encantamiento en las personas que adhieren a éste.

Para volver a los términos con los que acabamos el acápite anterior, podemos decir que, ante esa situación en donde la totalidad y la comunidad se han perdido, en la que los individuos han quedado a la deriva, donde los ámbitos de la vida han sido sometidos a un proceso de administración, la solución a la cual se echa mano más raudamente viene de la mano de una operación que, en el decir de Bataille , es bastante simple, puesto que “lo más simple es restablecer la vida en circunstancias favorables para lo que subsiste[, e]s más fácil restaurar que crear.” (BATAILLE, 2008a, p. 194).

La solución que el fascismo propugna se encierra en esta operación eminentemente reaccionaria que consiste en, antes que crear nuevos valores, restaurar aquellos otrora existentes: “Con una ascensión que le permite a la existencia caminar de nuevo erguida bajo el azote de la dura necesidad comienza la RECOMPOSICIÓN DE LOS VALORES SAGRADOS.” (BATAILLE, 2008a, p. 195. Mayúsculas del original). La respuesta fascista, así, tiene por cometido recuperar un mundo dado por perdido, satisfacer el anhelo de dar una respuesta definitiva al sentimiento de nostalgia de comunidad experimentado. Esa es la génesis del fascismo que, de acuerdo al filósofo francés, “[…] no tiene otro desenlace que la disciplina militar y el apaciguamiento limitado ofrecidos por una brutalidad que destruye con rabia todo aquello que no ha sido capaz de seducir.” (BATAILLE, 2008a, p. 195).

            El fascismo, en este sentido, es la apuesta por reintroducir un principio heterogéneo[85] en medio de una época caracterizado por un principio homogéneo, esto es, el fascismo busca reintroducir la inconmensurabilidad propia de los elementos heterogéneos en un desencantamiento provocado por la llanura y la horizontalidad que la homogeneidad demanda. “La reunión fascista […] no es sólo una reunión de poderes de diferentes orígenes y una reunión simbólica de clases: es además la reunión plasmada de los elementos heterogéneos con los elementos homogéneos.” (BATAILLE, 2008e, p. 171).

Antes de seguir avanzando, expliquemos un poco la terminología utilizada por Bataille.

La homogeneidad define el aspecto más visible y accesible a la comprensión de la sociedad, y se caracteriza por la “conmensurabilidad”. Ésta se define como “la identidad posible” de personas y situaciones e implica reglas fijas así como la exclusión de la violencia, lo que significa una transgresión de esas mismas reglas. Es importante destacar que Bataille define la homogeneidad no sólo como la posibilidad de conformidad de personas y situaciones, sino también como la conciencia de esta conmensurabilidad (PULLANO, 2017, p. 134).

 

El avance de la técnica, promovido por el cálculo y el patrón o medida común, cercan lo que se entiende por homogeneidad: hacer del hombre un elemento fungible, un objeto indiferenciado de la producción colectiva. La sociedad industrial ha arrojado este pavoroso resultado, dentro del cual lo heterogéneo se ve expulsado y sometido al ostracismo.

Quebrantando las leyes de la homogeneidad, la intentona fascista se impondrá como algo intempestivo, como una fuerza de choque “[…] que provoca reacciones afectivas de intensidad variable” (BATAILLE, 2008e, p. 147) que apunta a restaurar lo sagrado en el contexto de la sociedad industrial y capitalista. A decir verdad, este comportamiento del fascismo va de la mano de su concepción del Estado. El Estado fascista difícilmente pueda efectuar algo para remediar la situación de disolución de vínculos comunitarios: por más inflacionado o agigantado que se encuentre, éste apenas se comporta como un intermediario entre las fuerzas productivas de la sociedad y las clases homogéneas. Aún más, el Estado actúa como una fuerza que se aboca a neutralizar la heterogeneidad y a afianzar la homogeneidad. El Estado, de alguna manera, no es otra expresión que la actividad política que le es concomitante: el ejercicio de la autoridad y del sadismo que discierne y aparta a la heterogeneidad.

            Así, el fascismo como forma soberana de la heterogeneidad se caracteriza por el hecho de que “[…] su fundación es al mismo tiempo religiosa y militar, sin que los elementos habitualmente diferenciados puedan separarse unos de otros: se presenta así desde su base como una concentración consumada.” (BATAILLE, 2008e, p. 168). De ambos aspectos, el predominante es el militar; el conductor, cual general respecto de sus soldados, mantiene una relación de índole imperativo en relación con el partido: una relación de dominación que, al mismo tiempo, niega la efervescencia inyectada por la figura del conductor: emana revolución y le pone un coto a la vez. De esta manera, la disciplina, el deber y el orden, todas cualidades propias de un régimen homogéneo, subsisten a razón de una heterogeneidad que implica la consideración de la figura del jefe como trascendente y superior al resto de la afectividad colectiva. Y este valor militar que detenta el jefe se encuentra, como dijimos, vinculado a un valor religioso que otorga a los militantes un valor afectivo propio, en pos de una patria revestida de carácter divino, pues “[…] encarnada en la persona del jefe […], la patria desempeña así el mismo papel que Alá para el Islam, encarnado en la persona de Mahoma o del Califa.” (BATAILLE, 2008e, p. 169).

            Si todo tipo de producción homogénea genera sus propias contradicciones, individuos excluidos del beneficio de la producción, respecto de la cual la propia parte homogénea resiste, podemos ver que la lógica fascista se encarga de hallar una respuesta a semejantes tensiones: “[…] las fuerzas heterogéneas desarrolladas [de tipo fascista], luego de haberse adueñado del poder, disponen de los medios de coerción necesarios para arbitrar los diferendos surgidos entre los elementos anteriormente irreconciliables.” (BATAILLE, 2008e, p. 174). Si bien el fascismo conserva el régimen de producción homogénea (aunque a veces cuestionándolo, en especial en los periodos de crisis), lo particular del fascismo residiría en su estructura psicológica que se caracteriza por una conciencia del peligro y un deseo de evitarlo que se nutre en forma permanente de la región heterogénea de la sociedad. Así, “[l]o sagrado, en el sentido que le da Bataille a este término, es una amenaza interna al orden homogéneo de la sociedad; crece dentro de la esfera heterogénea y se opone activamente a las actividades económicas productivas.” (PAWLETT, 2013, p. 120).

            Se trata, en efecto, de dar una contestación a las contradicciones que aquejan al mundo moderno homogéneo y de proponer una alternativa a la pérdida de la autoridad de los absolutos propios de la comunidad. Introduciendo un elemento del orden de lo heterogéneo en la figura del líder o del jefe, erigido como una instancia trascendente, que logra articular y dar salida a las contradicciones de la porción homogénea de la sociedad, el fascismo también permite hallar una solución a obliteración del ideal comunitario al postular una comunidad en la cual la homogeneidad es cimentada y asegurada: esa es la comunidad fascista, “[…] materialización de un ideal comunitario capaz tan sólo de la autoafirmación, reluctante a cualquier forma de otredad.” (MARTÍNEZ RODRÍGUEZ, 2010, p. 145). En el fascismo todos los esfuerzos deben canalizarse hacia el carisma del líder, anulando el gasto improductivo de la acción social, conjurando una reunión de clases que hace del Estado una reunión orgánica acabada, efectuando “[…] la reunión plasmada de los elementos heterogéneos con los elementos homogéneos.” (BATAILLE, 2008e, p. 171). Dicha reunión y comunión de elementos heterogéneos con homogéneos es realizada bajo un fondo de integración completa y acabada que no dejaría resto alguno para ningún tipo de alteridad u otredad. Así,

[e]s su capacidad sincrética, su aglutinación de fuerzas heterogéneas, la capacidad fascista para alcanzar la cohesión identitaria de los miembros bajo un mismo palio autoritario, lo que ocupa a Bataille. El fascismo consuma la asimilación a cualquier precio como el mecanismo garante de la integridad y seguridad comunitarias. (MARTÍNEZ RODRÍGUEZ, 2010, p. 150).

 

Entonces, para resumir, en el estado de efervescencia social que lo caracteriza, la estructura de la sociedad homogénea gira en torno de la figura del líder, un líder que es manifestación de un poder heterogéneo que concentra los poderes militar y religioso en su persona: esto es, el líder, por un lado, aparece como irreductible del resto de la sociedad, pero, por el otro, encuentra su fundamento en ella. El líder logra otorgarle sentido a la actividad de los dirigidos, en él los subordinados experimentan una verdadera fuerza divina que exige devoción y que inculca un éxtasis inaudito. El líder, dicho de otra manera, restituye la unidad perdida, acomete una cohesión en el marco de un proceso de unificación vertical.

En síntesis, una comunidad reaccionaria, que inutiliza las potencialidades humanas de la misma forma que la producción utilitaria y que nada tiene que ver con la libertad en el sentido de exposición a ese límite que implica un más allá de las funciones serviles. (SADRINAS, 2014, p. 13).

 

Una comunidad finita pero expulsiva, que excluye cualquier otredad, que rinde culto a la nostalgia, que esconde un culta al sometimiento, un tipo de comunidad que, como veremos, es muy distinta del tipo de comunidad que Bataille conceptualiza.

 

3 La comunidad (in)finita

“La cuestión es cómo la dimensión colectiva puede ser revigorizada una vez que las creencias mitológicas y religiosas que sostenían la existencia de la comunidad han muerto o se han atrofiado” escriben Hewson y Coelen (2016, p. 29) sobre el propósito del Colegio de Sociología francés fundado por Bataille junto con Michel Leiris y Roger Caillois. Desde sus inicios como investigador, siempre se ha tratado, para Bataille, de entender cómo la comunidad se ha disuelto pero, y esto no es menos importante, tratar de pensar también cómo puede recuperarse desde una nueva perspectiva novedosa e inédita, aún a pesar del pesimismo de Pawlett que aventura que “[…] la política y la sociedad también deben fallar.” (PAWLETT, 2017, p. 93). Ciertamente, como hacen notar Bottin y Wilson, en una de las presentaciones inaugurales del Colegio de Sociología, Bataille contrastó “[…] la acción determinada, servilismo e inutilidad de las democracias sociales con el movimiento total en el cual la vida juega y se arriesga.” (BOTTIN; WILSON, 1997, p. 6). Pero, sostenemos, esta no será la última palabra de Bataille a cuentas de cómo remediar la comunidad. A pesar de la experiencia fascista, la cual parecía ensalzar a la comunidad por sobre todo, ello no significa que debamos desligarnos de esa noción, ya que, como dice Blanchot, “[…] estamos ligados a ella [a la comunidad] precisamente por su defección.” (BLANCHOT, 1999, p. 11). Esa exaltación de la inmanencia o de la transparencia conduce inevitablemente a una “comunidad finita” (BLANCHOT, 1999, p. 22), comunidad que se asienta en la finitud efectiva de los seres que la componen pero solamente con miras a superar esa finitud en una comunión o fusión para constituir una unidad que salve sus deficiencias. Una comunidad finita, pero distinta de la finitud fascista en tanto busca superarse inmanentemente hacia la infinitud heterogénea.

            No debe llegarse a la insuficiencia a partir de un ideal de suficiencia. Una comunidad finita reenvía, paradójicamente, a la afirmación del cercamiento de los individuos aislados en su inmanencia propia, esto es, a una comunidad infinita. Finito e infinito se anudan inevitablemente en el pensamiento de la comunidad propuesta, esa, en el decir de Hernández Cuevas, “[…] comunidad de los que no tienen comunidad.” (HERNÁNDEZ CUEVAS, 2020, p. 278).

Para poder dilucidar la forma en que Bataille concibe la comunidad, es menester analizar antes de qué manera aparece representada la propia existencia de los hombres, definida, ante nada, por una falta, por una discontinuidad: “Entre un ser y otro hay un abismo, una discontinuidad.” (BATAILLE, 2010, p. 17). Somos, entonces, cada uno de nosotros, seres discontinuos, separados por un abismo que hace que las experiencias de uno sean irreductibles a las del otro: un abismo que es la propia muerte que nos muestra, en toda su violencia desnuda, la finitud que nos marca. Y si podemos encontrar tal discontinuidad no es sólo en el carácter de individuos que somos, sino que dicha discontinuidad permea y es extensible al resto del mundo: la discontinuidad que nos signa se hace el fundamento de las distintas formas de la vida social. “Repito: una disolución de esas formas de vida social, regular, que fundamentan el orden discontinuo de las individualidades que somos. […] [E]l interior del mundo [se encuentra] fundado sobre el orden de la discontinuidad.” (BATAILLE, 2010, p. 23).

            La explicitación de este trasfondo ontológico que hace al estatuto de los individuos permite comprender, así, por qué Bataille no experimenta ninguna nostalgia ante la constatación de que la comunidad se ha perdido y la trascendencia nunca puede ser recobrada. Somos seres discontinuos, por lo que cualquier intento de obturar o de suplementar ese abismo fundante, como si se tratara de ocultarlo o de eliminarlo, está condenado al fracaso y tiene consecuencias sumamente ominosas, como sucede con la intentona del fascismo. Bataille, ante esta situación, comporta, para retomar la expresión de Nancy (2001, p. 41), una “conciencia clara”:

El punto crucial de esta experiencia fue la exigencia, poniendo al revés toda nostalgia, es decir, toda metafísica comunional, de una “conciencia clara” de la separación, es decir, de una “conciencia clara” de que la inmanencia o la intimidad no pueden ser recobradas, y de que, en definitiva, no tienen que ser recobradas.

 

Inmanencia para Nancy, transparencia para Blanchot (1999, p. 12), la conclusión es la misma: la comunidad no puede ser recuperada, pero tampoco es deseable que no lo sea. En cualquier caso, si ha de proponer una comunidad, la misma debe evitar una inmanencia o una transparencia absoluta, verdaderos hontanares de todos los totalitarismos. Esa pretensión absolutista hiperbólica no puede hacer más que derivar en una “comunidad de ausencia”, siempre con el riesgo de devenir en una “ausencia de comunidad” (BLANCHOT, 1999, p. 16).

En este sentido, la propuesta de Bataille no implica un énfasis del individuo, un repliegue a las posiciones de la individualidad, puesto que éste es, al fin y al cabo, para nuestro filósofo, una cosa: “El individuo separado es de la misma naturaleza que la cosa, o mejor, la angustia de durar personalmente que plantea la individualidad está ligada a la integración de la existencia en el mundo de las cosas.” (1975, p. 55). Tal “cosa”, tal individuo, no puede erguirse en el fundamento de la comunidad que Bataille propondrá porque tal “cosa”, o individuo, como veremos a continuación, no comunica. Aún más, la insuficiencia, como ya hemos hecho notar, no debe suplementarse por una suficiencia, sino más bien por todo lo contrario, por un cuestionamiento: “[…] la insuficiencia requiere la impugnación que, así viniere sólo de mí, es siempre la exposición a otro (a lo otro), único capaz, por su posición misma, de ponerme en juego.” (BLANCHOT, 1999, p. 28).

            Así, como mencionamos, el hombre se experimenta una angustia producto del estar arrojado en su existencia y que tiene su origen en ese “[…] miedo de la muerte que penetra en el edificio de los proyectos, […] altera el orden de las cosas.” (BATAILLE, 1977, p. 55). El individuo se encuentra marcado, entonces, por esa falta, esa finitud, que suscita en él una angustia. Esa es la experiencia interior, tal como Bataille la define: “La experiencia interior es la puesta en cuestión (puesta a prueba), en la fiebre y la angustia, de lo que un hombre sabe por el hecho de existir.” (1986, p. 14). En este estado místico de exageración y de arrobamiento, provocado por la representación de su incompletitud, los hombres logran efectuar una comunicación entre ellos. Una comunicación harto aporética, pues la misma se realiza a través de su falta:

[L]os seres, los hombres, no pueden “comunicarse” – vivir – más que fuera de sí mismos. Y como deben “comunicarse”, deben querer ese mal, la mancha, que poniendo su propio ser en juego, los vuelve penetrables el uno para el otro […]. Es derruyendo en mí mismo, en otro, la integridad del ser, como me abro a la comunicación, como accedo a la cumbre moral. (BATAILLE, 1989, p. 54-55).

 

La cumbre que responde al exceso, a la exuberancia, es similar al gasto improductivo. La apertura que los individuos experimentan frente al límite, frente a lo desconocido de su falta, es aquello que se denomina como el “no-saber” de los sujetos: “La honestidad del no-saber, la reducción del saber a lo que es.” (BATAILLE, 2008c, p. 252), precisamente, la coincidencia con “[…] el saber: no saber, o saber de nada, nada-de-saber.” (ESPOSITO, 2012, p. 188). Un no-saber que pone a los individuos en suspenso, que permeabiliza su disolución, que anula los límites, la discontinuidad que los separan de los demás. En su finitud, en este no-saber, en su falta, los individuos pueden entonces comunicarse, salir de su aislamiento, experimentar los límites de su sujeción y entrar en contactos con los otros. He aquí dicha comunicación que no resulta en absoluto ajena al concepto de comunidad: “[…] la noche comunial […] sólo puede tener lugar como la comunicación de la comunidad: a la vez como lo que comunica en la comunidad, y lo que la comunidad comunica.” (NANCY, 2001, p. 42).

            Sin embargo, hay algo que permite quebrar la intimidad de la persona consigo misma y rescatarla de su introspección angustiante: “el potlatch” (SURYA, 1987, p. 382). El potlatch o, como dice Surya, el sacrificio, permite establecer una comunicación perdida. Los hombres son exageradamente menesterosos o pobres y mortales o finitos. El potlatch permite brindar algo distinto de ellos gracias a su operación suntuaria: permite “[…] enriquecerlos de una gloria proporcional a la riqueza dilapidada [y] […] darse cuenta, tanto a los sacrificantes como sacrificados, del exceso de identidad que se demuestra en la operación sacrificial.” (SURYA, 1987, p. 382).

            Hay algo, entonces, en la desmesura que hace posible interrumpir el decurso común y cotidiano de las personas, al menos de aquellas que viven en las sociedades industriales, ya que lo desproporcionado formaba parte de la vida de las sociedades primitivas. Propio de los aztecas era justamente la práctica del potlatch, ya que “[…] la gloria […] era lo único que los mexicanos perseguían.” (BATAILLE, 2005, p. 29). Una economía de la vanagloria y de la fiesta, el “[…] sentido del potlatch es el efecto glorioso de las pérdidas […]. La gloria se concede al que más da.” (BATAILLE, 2005, p. 38). Una gloria fundada sobre el desperdicio, el despilfarro de riqueza que dotaba a los hombres de autoridad, rango y jerarquía.

            Se trataba esta de una desmesura que, asimismo, también pretendía emular a la naturaleza: “[…] los mexicanos no podían hacer que la naturaleza les siguiese pero vivían de acuerdo con la naturaleza.” (BATAILLE, 2005, p. 30). Una suerte, dice Bataille, de apareamiento con el universo encarnado en las fiestas y guerras aztecas y, por demás, en el soberano, verdadera materialización de la gloria de la comunidad. Frente a esto, la Modernidad no puede verse más que descolocada y áfona, ya que el gasto improductivo de las sociedades primitivas se encuentra subordinado siempre a la utilidad que la producción persigue sin cesar, de forma acelerada, haciendo “[…] del hombre un animal servil y mecánico. […] [L]os principios utilitarios sobre los que descansa esta civilización inhumana.” (BATAILLE, 2005, p. 33).

Precisamente, en un célebre ensayo, intitulado “La noción del gasto”, el filósofo francés argumentará, en una posición que rehúsa de cualquier tipo de utilitarismo, que “[…] la utilidad humana no puede reducirse íntegramente a procesos de producción y conservación.” (BATAILLE, 2008f, p. 113). Irreductibles a los gastos relacionados con la conservación de la vida, instrumentos que propenden a un fin determinado, mesurados y cuantificados, hallamos otra serie de gastos denominados como improductivos, pues no tienden a ningún fin en particular. Este tipo de gastos improductivos se encuentran regidos por un principio de pérdida, del orden de lo incondicionado y que no comportan ningún tipo de límite, sin tener una productividad aneja, presente en la dimensión de lo sagrado.

Ahora bien ¿de qué manera se relaciona este principio económico de la pérdida con los conceptos de comunidad y comunicación? La respuesta: tanto “[…] una como otra son formas de derroche.” (GARCÍA PÉREZ, 2014, p. 122). En este sentido, el gasto improductivo, el despilfarro, la fiesta, el sacrificio, el erotismo, entro otros, apuntan justamente a “[…] regresar al mundo de la continuidad [que] equivaldría a liberarse de las ataduras de todo proyecto, y al mismo tiempo, establecer la comunicación de la experiencia con otros.” (GARDUÑO, 2010, p. 203). La comunidad propuesta por Bataille, informada por la economía general, no se encuentra guiada por los preceptos utilitarios o productivos del trabajo, evitando que la misma sea entendida de acuerdo a un telos o en función de un progreso constante.

            En “La noción del gasto” se encuentra in nuce La parte maldita, obra que explorará de forma más acabada su visión de una serie de tópicos importantes, como la filosofía de la naturaleza, de la economía y de la historia, todos los cuales se articulan alrededor “la reflexión de Bataille sobre el mundo, sobre el hombre en el mundo” (PIEL, 1987, p. 14).

Es, en suma, en tales perspectivas en las que aparecen las verdades que toman su sentido de las proposiciones más generales, según las cuales no es la necesidad sino su contrario, el “lujo”, quien plantea a la materia viviente y al hombre sus problemas fundamentales. (BATAILLE, 2009, p. 26. Cursivas del original).

 

Esa es la tesis fundamental de La parte maldita, tesis que, como es sabido, se opone a la concepción hegemónica y ortodoxa de la economía que postula que los recursos son acotados o escasos y que deben ser administrados de la manera más eficiente. Bataille quiebra toda servidumbre con todo gasto que implica “[…] la economía restringida, de ahí su apuesta por una experiencia vital incitada por el gasto improductivo. Para Bataille, la soberanía es la afirmación del pensamiento desobrado o (anti)productivo.” (HERNÁNDEZ CUEVAS, 2020, p. 274). Bataille, sencillamente, recusa la productividad como índice de articulación comunitaria. “Al principio de la utilidad, por lo tanto, se le opone el principio de la pérdida, que divide claramente las formas del consumos de bienes y cuerpos en cualquier sociedad” (MATTONI, 2011, p. 51); esto es, o bien la conservación de la vida y el aseguramiento de las actividades económico-productivos, o bien los gastos que no tienen ninguna finalidad prefijada.

¿Qué es el sacrificio sino un derroche sanguinolento, una operación de degradación y de pérdida? […] A la humanidad consciente que no ha abandonado la minoría de edad, que se otorga el derecho a consumir y a conservar racionalmente, de justificar utilitariamente su conducta, en suma, la utilización de lo mínimo necesario para la conservación de la vida y la continuación de la actividad productiva, a ello es que Bataille opone el gasto improductivo, actividades que, en su forma primitivas, tienen su fin en sí mismas y adquieren su sentido a partir de la mayor pérdida posible. (RICCI CERNADAS, 2015, p. 15).

 

            Si ponemos en relación este elemento del gasto sin fin puesto de antemano con la comunidad, se podrá ver que la de Bataille será “[…] una comunidad que admite la falta, que es lo único que permite a los hombres comunicarse entre sí.” (SADRINAS, 2014, p. 16). Así, se tratará de una comunicación, o de una comunización fuera de toda instrumentalización o relación utilitaria, se tratará de una unión de elementos heterogéneos que resisten cualquier homogeneización que rebalsarán los límites que los separa, experimentando aquello que los une y que, al mismo tiempo, los singulariza.

            Hete aquí la comunidad sin cabeza, la comunidad acéfala por la cual Bataille aboga. Una comunidad que hace posible establecer un lazo entre distintos individuos, siempre a condición de que no homogeneice, de que no anule las singularidades. Una comunidad que aborda el límite de la existencia, que nunca cierra por completo, que es dinámica. Una comunidad que no es, como sucedía con las experiencias fascistas, finita, en la que un líder irreductible hace de fundamento a la comunidad, devolviéndole una unidad sustancial, marginando la otredad. La comunidad batailleana se ubica en las antípodas de esta concepción: “[…] a la unidad cesareana que funda un jefe, se opone la comunidad sin jefe.” (BATAILLE, 2008a, p. 205).

“Una comunidad humana sin cabeza” (2008a, p. 205), esto es por lo que Bataille aboga. Una comunidad que acoja en su seno los elementos heterogéneos que la componen, aunados por esa búsqueda de la tragedia: “[…] la ejecución del jefe es la misma tragedia […]. Se inicia entonces una verdad que cambiará el aspecto de las cosas humanas: el elemento emocional que le da un valor obsesivo a la existencia común es la muerte.” (BATAILLE, 2008a, p. 205). En todo caso, podría decirse que la comunidad no admite más que un amo: la muerte, que hace del destino de la comunidad y de los hombres una tragedia. Angustia ante la falta de sentido, precisamente. Porque “¿[p]ara qué sirve [la comunidad]? Para nada.” (BLANCHOT, 1999, p. 36). Se trata, empero, de un “para nada” que es proseguido de una conjunción adversativa: “Para nada, si no es para hacer presente el servicio al prójimo [autrui] hasta en la muerte, para que el prójimo no se pierda solitariamente, sino que se halle suplido, al mismo tiempo que le proporciona a otro esta suplencia que le es procurada.” (BLANCHOT, 1999, p. 36).

Una comunidad que se encamina a la muerte, que se revela ante la muerte del prójimo o del otro, ya que la muerte es la única comunidad de los hombres. Los hombres se mancomunan en virtud de la angustia de su propia finitud, exteriorizando su singularidad, en una comunidad universal e infinita que rechaza cualquier clausura ni trascendencia, que acepta la contingencia y el azar, una comunidad que expresa su propio desgarramiento, el hecho de que ella debe ser emprendida como tarea en una época en que su realización se ve obturada ante la ausencia de su fundamento. En fin, sabiendo que la comunidad debe fundarse ante la ausencia de comunidad, la cual no es el signo de su fracaso, sino de su necesidad.

 

CONCLUSIÓN

En el presente trabajo hemos querido problematizar la noción de comunidad en el pensamiento de Bataille. Para realizar esto hemos procedido en tres tiempos.

            En un primer lugar, hemos restituido la caracterización que hace el filósofo francés del tiempo moderno, una época marcada por la pérdida de lo sagrado, de lo trascendente y del absoluto; en fin, una época de la inmanencia que iba de la mano de la pérdida de la comunidad en detrimento de la sociedad actual. Ahora bien, semejante diagnóstico, que da lugar a un tiempo donde lo prosaico hace su llegada triunfal, no puede desterrar en forma definitiva el hecho de que la propia ausencia del mito se constituya, precisamente, en un mito. Como si se tratara de algo supérstite, el mito, como así también lo sagrado, es incapaz de ser desterrado en forma completa aún en un paradigma signado por la homogeneidad. Es por ella que, ante la pérdida de la autoridad y de los fundamentos, el deseo por recuperar una unidad perdida sigue vigente.

            Luego, hemos querido explayarnos respecto de cómo los fascistas intentarían dar una respuesta a esa unidad perdida. En un sentido interesante, el fascismo buscaría introducir un principio heterogéneo en la base de una sociedad homogénea. Pero, como vimos, semejante tentativa se realiza haciendo del jefe, aquella figura que reviste una investidura militar y religiosa a la cual se le subliman los esfuerzos de sus dirigidos, una cosa trascendente que se relaciona de manera heterogénea con la sociedad homogénea. Así, el intento fascista por recobrar esta unidad en la comunidad es lograda a partir de esta figura del líder, quien otorga un sentido a los subordinados, dimanando así en una comunidad de tipo finito, hostil a cualquier otredad, que no respeta la heterogeneidad. Una comunidad, al fin y al cabo, finita.

            Finalmente, hemos visto cuál es la contestación de Bataille al diagnóstico realizado en un primer momento. Una respuesta no reaccionaria ni nostálgica, que no pretende recuperar, sino crear. Se trata entonces de crear una comunidad, de producir una comunidad, aún en su imposibilidad, una comunidad desobrada, que no comporte una unidad jerárquica verticalista ni una predominancia cesareana, como sucedía con el fascismo, sino que, en un plano de inmanente horizontalidad, carente de jefe alguno, pueda contener la heterogeneidad y permita lograr que los individuos, finitos y precarios en su ser, logren comunicarse y relacionarse unos con otros en virtud de esa misma falta que los caracteriza.

            “La comunidad es y debe permanecer constitutivamente impolítica, en el sentido de que podemos corresponder a nuestro ser en común sólo en la medida en que lo mantenemos alejado de toda pretensión de realización histórico-política.” (ESPOSITO, 2012, p. 163). Debemos interpretar correctamente la categoría de lo impolítico de Esposito, esto es, no como aquello antinómico a lo propiamente político, sino más bien como

[…] algo que concierne a la radicalidad de su existencia: el hecho de que el espacio político es irreductible a la negatividad dialéctica y se caracteriza más bien por […] una negatividad que no produce y que no se traduce en obra, irreductible a la dimensión subjetiva del proyecto. Lo impolítico es el vaciamiento del espacio político de cualquier sustancia y el hecho de su finitud radical. (DE LA HIGUERA, 2008, p. 140).

 

Algo irrepresentable, como así también algo inasible o inenarrable (cf. SERRATORE, 2017, p. 283): aquí reside lo problemático pero también lo potencial de la comunidad batailleana, porque lejos de atender a cualquier realización histórica o política, como dice Esposito, la comunidad no puede no ser. “[E]s justamente este inacabamiento [de la comunidad] lo único que puede permitir a los seres ‘comunicarse’ entre sí.” (CAMPILLO, 1993, p. XX) La comunidad se vuelve impolíticamente política en sí en el trazado de la comunicación y de la singularidad, “[…] una comunidad que hace conscientemente la experiencia de su partición” (NANCY, 2001, p. 77): una comunidad que se hace en la apertura hacia la muerte, pero también infinitamente hacia los demás. Una comunidad finita que busca trascenderse a sí misma hacia lo imposible, en devenir infinita.

 

Georges Bataille: loss, fascism and the community proposal

 

Abstract: The hypothesis that this paper seeks to propose is that, despite all the difficulties for its conceptualization, Bataille postulates that the community is, after all, possible. To do this, we will seek to study the place of the community in Bataille's thought, a place that is not precisely identifiable at all, but rather is scattered throughout his work at different points. Thus, we will try, in the first instance, to analyze how a lost community appears in the French philosopher, in order to, in a second place, investigate what was the – misguided – fascist response to that fact, and, finally, outline how it could erect a proactive model of community according to Bataille.

 

Keywords: Bataille. Community. Fascism. Myth. Finite. Infinite.

 

 

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Recibido: 13/07/2022

Aceptado: 26/08/2022

 

Comentario a “Georges Bataille: la pérdida, el fascismo y la propuesta comunitaria”: por una vida no fascista

 

Agustín Lucas Prestifilippo[86]

 

Referencia del artículo comentado: RICCI Cernadas, Gonzalo. Georges Bataille: la pérdida, el fascismo y la propuesta comunitaria. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 97 - 122, 2023.

 

Al hacer añicos el Mito del individuo soberano, el derrumbe en el que se cifra nuestro presente ha inaugurado la oportunidad de una revisión crítica del heteróclito y potente legado de un pensamiento ético y político acerca de la vida en común. Allí donde la ficción moderna de un sujeto autosuficiente se ha vuelto reiteradamente desmentida por las flagrantes tendencias a la precarización de las condiciones de vida en la mayoría de los estratos sociales; ante la obscena limitación capitalista de todo y cualquier proyecto de una vida vivible en condiciones de dignidad, en ese abismo que cuartea la tersa superficie de la narrativa narcisista acerca de capacidad ilimitada del Yo para darse a sí mismo un mundo –siempre concebido como suyo, se abre la posibilidad de una pregunta radical por los fundamentos de las formas libres de vida, así como por la constitutiva necesidad recíproca de los individuos de infraestructuras de apoyo y de tramas solidarias de cuidado en el que puedan atenderse a las necesidades en las que se sostiene todo proceso reproductivo, tanto material como simbólico.

Quien pretenda responder hoy a la pregunta por el modo en el que se articula el “nosotros” en las sociedades capitalistas en crisis no puede desentenderse de la tarea de articular dos cuestiones: por un lado, las situaciones anómicas de desintegración, en la que asume el primer plano la lógica individualizadora de la ideología neoliberal (tanto a través de la cultura del consumismo como de la precarización de la sociedad salarial); por otro, la emergencia de nuevos fenómenos de autoritarismo social en distintos estratos en donde la dinámica psico-afectiva de las identificaciones comunitarias cobra especial relevancia.

Pues, ¿cómo concebir esas formas reactivas de violencia que emergen ante la invención política de existencias compartidas en las cuales los motivos emancipatorios de la discontinuidad, de la heterogeneidad, de la finitud y de la generosidad son asumidos como principios organizativos de luchas renovadas por la liberación? Las manifestaciones de crueldad contra las subversiones populares de la partición excluyente de lo sensible en las grandes urbes, el rechazo agresivo de las formas deseantes de vida en las que se forjan los múltiples colectivos feministas y LGBT, el desprecio intenso de los activismos juveniles por la protección del medioambiente y la regeneración de la vida de la naturaleza; en fin, las expresiones y acciones de odio hacia quienes no se subordinan a los mandatos de una valorización capitalista omnipresente, demuestran que el Fascismo no es el nombre de una experiencia histórica limitada, un tiempo fechable y localizable en un espacio pasados, sino el signo ominoso cuya referencia acecha al presente como latencia, maldición que acompaña toda forma de vida capitalista como su sombra.

Esta tentación fascista no solamente se expresa como rechazo y segregación de aquello que amenaza desde el interior, poniendo en riesgo la consistencia simbólica de un Yo siempre expuesto a la posibilidad de su ocaso, sino también como capacidad, poder, posibilidad de reintegración en un mecanismo que hace de los afectos sádicos de destrucción la base libidinal de un Nosotros cuya identificación depende del castigo y la búsqueda de recomposición de un orden imaginado como perdido. En este movimiento regresivo la teoría psicoanalítica de la identificación sigue resultando de extrema actualidad.

La reciente declinación punitivista del discurso capitalista facilita en sus desnudas expresiones de agresividad desatada una nueva versión de “des-sublimación represiva” en la que se resuelve el conflicto interno entre las instancias psíquicas del individuo a favor de una radicalización de su sujeción. En estas formas colectivas de exhibición de la pulsión de muerte, la sustancia vital libidinal es privada de su carácter inmediato y aparece completamente controlada por los mecanismos de dominación social. En los términos de la segunda tópica freudiana, en la “des-sublimación represiva” que configura el nuevo neoliberalismo, se socializa el inconsciente a través de una identificación entre el Ello y el Superyó a expensas de la instancia de la reflexión que representa el Yo. Los sujetos des-sublimados por el neoliberalismo son, como alguna vez escribió Adorno, “[…] rebeldes en cuyos puñetazos sobre la mesa resuena ya la adoración por los amos.” (ADORNO, 2017, § 123).

Las manifestaciones colectivas de júbilo contra las políticas de protección social de les más vulnerables o los gritos de las audiencias a favor de la muerte de les débiles descansan en la misma percepción: determinadas constricciones de la vida social no dejan expresar una verdad auténtica arbitrariamente contenida. El goce no sólo en la percepción del sufrimiento ajeno, sino en el ejercicio práctico de la violencia contra el otro, determina así la estructura libidinosa de la masa neoliberal.

Al respecto, resulta esclarecedor recordar la importancia del ideal de yo que Freud presentaba como condición para la satisfacción desviada de las pulsiones yoicas inhibidas en el proceso de socialización del individuo. De la formación de esta instancia en la vida anímica del sujeto dependía su capacidad para superar el narcisismo primario de la etapa temprana de su formación. En el ámbito de la masa, el ideal de yo es desplazado hacia el ideal colectivo, representando para los individuos que la integran la instancia de autoridad que prescribe los comportamientos, inhibiendo aquellas formas de conducta que se desvíen de sus mandatos. Al identificarse con la masa, “[…] el individuo resigna su ideal del yo y lo permuta por el ideal de la masa”. Sin embargo, esta resignación no necesariamente tiene que conducir al debilitamiento del yo, sino que, en ciertos casos, es posible que en la masa “el yo conserve su antigua vanidad narcisista.” (FREUD, 2014, 122).

En la identificación de masa que opera el neoliberalismo las renuncias del Yo a favor de las exigencias del ideal de la masa no excluye comportamientos desinhibidos y la satisfacción de pulsiones destructivas en las que el Yo puede volver a confirmarse a sí mismo en su narcisismo. A este paradójico movimiento de retorno del narcisismo del Yo mediante la puesta en suspenso del ideal de yo en la masa Freud lo denominó “un grado en el interior del Yo”.

A pesar de todas las renuncias y restricciones impuestas al yo, la regla es la infracción periódica de las prohibiciones. [...] Ahora bien, el ideal del yo abarca la suma de todas las restricciones que el yo debe obedecer, y por eso la suspensión del ideal no podría menos que ser una fiesta grandiosa para el yo, que así tendría permitido volver a contentarse consigo mismo. (FREUD, 2014, 124)

 

Por todo ello es que resultan de suma actualidad las diferenciaciones conceptuales entre una concepción restauradora y una dimensión revolucionaria de la comunidad, entre la proyección mítica de una vida comunitaria concebida como naturaleza, y el trazado de su realidad como tarea histórica, programa; en pocas palabras: futuro.

Sin embargo el retorno de las fuerzas reactivas de la destrucción no puede denegar los modos en los que aquellos conceptos cuya principal virtud sigue siendo la de haber formulado por primera vez los términos para pensar el Fascismo han quedado atados a determinadas formaciones históricas del Capital que, en parte, ya no son las nuestras. Nos encontramos por caso lejos de la época del industrialismo, de ese auge de la maquinaria capitalista que tantas figuraciones y conceptualizaciones potentes ha inspirado en la literatura y la filosofía de fines del siglo XIX y de la primera mitad del siguiente. Al ubicarnos pues alejados de una época que hizo de la orientación a la creación de valor el hito de la dominancia capitalista, lejos entonces del paradigma productivista de la economía de mercado, nos vemos obligados a pensar de un nuevo modo el modo en que hoy se conjugan las formas más inasibles de la financiarización económica, la profundización del endeudamiento, y la transnacionalización de los flujos de información y dinero, con las nuevas estrategias de reintegración punitivista que apelan a un “Nosotros del castigo”.

¿Cómo se ven afectados los motivos del sacrificio, el don, el derroche y el gasto improductivo en tiempos en los cuales la valorización capitalista se sostiene a base de extracción, despojo, expoliación y especulación inmaterial? Se trata de preguntas fundamentales que hacen a la tarea de reconstrucción de un repertorio textual al servicio de una forma no fascista de vida. Una forma que no puede pues concebirse sino como eminentemente anti-capitalista.

 

Referencias

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FREUD, Sigmund. Psicología de las masas y análisis del yo. Obras completas XVIII. Buenos Aires: Amorrortu ediciones, 2014.

RICCI Cernadas, Gonzalo. Georges Bataille: la pérdida, el fascismo y la propuesta comunitaria. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 2, p. 97 122, 2023.

Recebido: 16/12/2022

Aceito: 05/01/2023

 

Comentario a “Georges Bataille: la pérdida, el fascismo y la propuesta comunitaria”

 

Ricardo Laleff Ilieff[87]

 

Referencia del artículo comentado: RICCI Cernadas, Gonzalo. Georges Bataille: la pérdida, el fascismo y la propuesta comunitaria. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 97 122, 2023.

 

El artículo de Gonzalo Ricci Cernadas (2023) ostenta el mérito de informar cómo operaron los trazos de un tópico crucial – el de la comunidad – en la obra de Georges Bataille. Se trata de un mérito indudable a tono con los desafíos de una escritura enrevesada, entretejida con un modo de pensamiento cuyo hermetismo parece haber sido ensayado deliberadamente. En ese marco, Ricci Cernadas añade algunos componentes analíticos que sitúan lo fundamental del decir de Bataille acerca de la comunidad vinculándolo tanto con los filamentos de una serie de tradiciones que lo antecedieron y constituyeron, como con la estela de una corriente que se forjó tras su muerte. Así, la perdurabilidad de la cuestión de la comunidad aparece registrada en debates posteriores, dando vida a eso que bien podría llamarse su “renacimiento” tras los horrores de la primera mitad del siglo XX. Es que ciertos pensadores franceses y anglosajones, con marcadas diferencias, volvieron sobre ella, la invocaron como algo inexorable, aunque también decididamente maldito. De una u otra manera, el vocablo se convirtió en eje de distintas reflexiones abjurando siempre del esencialismo o el sustancialismo del pasado. La comunidad, por tanto, fue desarticulada, resignificada; y lo fue aún más al constituirse en un producto del intelecto que en un tópico que hundía sus raíces en las urgencias del mundo de la vida. Y en eso, a pesar de algunas de sus polémicas aristas, Bataille fue crucial, es decir, fue crucial – como señala Ricci Cernadas (2023) – para pensar una comunidad de otra manera, para pensar una comunidad “(in)finita”, con las potencialidades y peligros que ello conlleva.

Ahora bien, no quisiera adentrarme en este aspecto que remarca muy bien el artículo de Ricci Cernadas (2023); más bien preferiría indicar, solamente, el enraizamiento conceptual de la comunidad.

Como es harto conocido, toda evocación o tematización sobre dicho término suele señalar sus versiones primeras en tiempos de la koinonía griega. Su dignidad conceptual y su intensidad política deben, sin embargo, ser acreditadas al pensamiento alemán, al romanticismo primero y a sus continuadores después, hayan sido estos detractores o simplemente contaminados por su estela. Así, diversos referentes de las ideas se constituyeron en una suerte de reflejo de los intentos de una cultura obstinada en pensar lo común sin entender a lo común como lo universal, más bien haciendo de lo “común” algo solo pensable desde Alemania. Se ocuparon, más allá de sus ribetes, de imputar lo falso de un tipo de lazo hegemónico en Occidente, típicamente moderno y hasta “anglosajón”, como diría Oswald Spengler. El fundacional tratado de sociología Gemeinschaft und Gesellschaft – publicado por Ferdinand Tönnies en 1887 – fue crucial para ello; también las elaboraciones sobre el fondo mismo de la vida política – pienso, sobre todo, en los textos de Carl Schmitt (LALEFF ILIEFF, 2020) – del período de entreguerras. No es casual que este sentido de comunidad emergiera en una nación que tardó mucho en constituirse como Estado – Hegel ya lo había alertado en La constitución alemana – y que incluso cuando esto finalmente sucedió, siguió siendo un elemento evocado como sustancial, mucho más tras la caída del orden imperial y la centrífuga crisis weimariana. He aquí, pues, lo evidente: el esfuerzo categorial de la naciente sociología y las variaciones del pasado romántico se enquistaron en un marco epocal que, con toda su gravedad intrínseca, reflejaba oposiciones existenciales que insuflaban a la política. El fascismo en su versión nazi se presentó como epígono de una unión entre hombres y mujeres tan natural como deseable y verdadera, opuesta al perecedero mundo del discurso económico, en ruinas por los años 1930, basada en la sangre y el suelo. En este sentido, el concepto “comunidad” se convirtió en un verdadero “punto de ataque” – la expresión es de Max Weber – contra el liberalismo; significó, por ello mismo, una contestación a eso que la tradición hegemónica de la Modernidad parecía no poder garantizar con la irrupción de las masas y la crisis del capitalismo, a saber: la unidad política. Visto de este modo, la comunidad fue una respuesta contingente y radicalizada al problema siempre presente de la unidad política; una opción, para decirlo de otra manera, a la opción en decadencia que ofrecía el liberalismo.

Que el mundo haya sido siempre una pluralidad – de seres humanos, de individuos, de órdenes o de clases – se sabe desde los tiempos de Aristóteles. La constitución de algo que lidie con lo heterogéneo asumió asuntos conexos a lo largo del pensamiento occidental; recuérdese, por caso, el problema de la estabilidad del régimen que atormentó a antiguos y medievales y la seguridad del Estado, el reconocimiento de ciertos derechos y la necesidad de que no se supriman ni se avasallen las diferencias que marcó a modernos y contemporáneos. Se podría decir, entonces, que a pesar de los pruritos, a pesar de los márgenes de apertura, de homogeneización y de heterogeneización, el Uno sigue siendo el tópico crucial de la política. Es cierto que sus marcas se hacen sentir, incluso en las posibilidades del lenguaje, atravesado y constituido por equívocos, que hacen al mundo algo compartido y siempre en disputa. Pero esta permanencia del Uno en su más mínima y destacable expresión es lo que no puede ser naturalizado; no pudo el discurso sobre la pretendida naturalidad de la comunidad frente al artificio de la sociedad; tampoco la mera abstracción que evita las inclusiones y las exclusiones que suponen el lugar imposible de lo universal y que constituyen al campo por excelencia de la política y que afecta a toda buena teoría que se precia de su capacidad heurística.

 

Referencias

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LALEFF ILIEFF, Ricardo. Lo política y la derrota. Un contrapunto entre Antonio Gramsci y Carl Schmitt. Madrid: Guillermo Escolar, 2020.

RICCI Cernadas, Gonzalo. Georges Bataille: la pérdida, el fascismo y la propuesta comunitaria. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 97 122, 2023.

 

Recebido: 11/01/2023

Aceito: 22/01/2023


 

El animal, ¿es una otredad posible? Indagaciones fenomenológicas a partir de Husserl y Heidegger

 

Jesús Ayala-Colqui[88]

 

Resumen: El presente artículo tiene como objetivo analizar el concepto de animalidad desde la perspectiva de Edmund Husserl y Martin Heidegger. Más precisamente se plantea la pregunta de si el animal posee el estatuto de la otredad o carece de él. En efecto, el animal, respecto al humano, resulta un ente otro, pero, desde los supuestos de la fenomenología, ¿eso basta para que este sea aprehendido como una intersubjetividad o una coexistencia que se dona al mundo de los seres humanos? Para responder esta cuestión revisaremos la argumentación de Husserl, especialmente en Hua IV y Hua XXXIX y la de Heidegger en GA 2 y GA 29/30. Finalmente añadiremos una consideración crítica de las ideas de los autores estudiados de cara a los desarrollos de la biología contemporánea para preguntarnos en qué medida su indagación filosófica se condeciría con la evidencia zoológica actual.

 

Palabras clave: Animal. Otredad. Husserl. Heidegger. Fenomenología. Biología.

 

Introducción

Por lo general, la mención del término otredad involucra a los otros humanos. Resulta curioso este privilegio, puesto que en un sentido genérico tanto yo como el prójimo somos lo mismo, a saber: entes humanos. Resulta comprensible, por esto, que Lévinas al tematizar la otredad señale que en rigor lo absolutamente otro sería lo divino y no lo humano.[89] En consecuencia, hay ya una contradicción en el concepto de otredad o, al menos, una limitación esencial: su despliegue conceptual presupone forzosamente una cierta mismidad desde la cual resulta inteligible. Ahora bien, ¿el otro, en sentido más radical, no sería lo no-humano? Lo no-humano, sin embargo, se dice en muchos sentidos: cosas, bacterias, plantas, animales, máquinas. Si hemos constatado una limitación inherente al concepto de otredad, quisiéramos en este artículo abordar una de las posibles declinaciones de esta otredad no humana sin que esta elección presuponga un privilegio ontológico, a saber: la otredad animal. Dado la multiplicidad de abordajes que puede recibir esta cuestión, acotaremos nuestro campo de acción a dos autores relevantes y seminales del s. XX, quienes, a su manera, han pensado la cuestión de la intersubjetividad y la coexistencia: Husserl y Heidegger. Ergo, nuestra pregunta de investigación es la siguiente: ¿en qué sentido para Husserl y Heidegger el animal puede ser un otro?

 

1 La otredad animal en Husserl: actitud naturalista y actitud personalista

Husserl en el § 30 de Ideen II distingue entre el yo trascendental (transzendentalen Ich) y el sujeto anímico (seelische Subjekt)[90]. Este último tiene vivencias (Erlebnisse) que no son meras propiedades, sino maneras de comportamiento y estados anímicos que son uno con el cuerpo viviente (Leib). Y en el § 34 establece una diferencia entre la actitud naturalista (naturalistischer Einstellung) y la personalista (personalistischer Einstellung), las cuales abordan respectivamente al humano como objeto de la zoología y como miembro del mundo espiritual[91]. Es en la actitud personalista donde uno aparece como persona (Person), la cual se solapa, pese a que aparece como su regente, con el sujeto anímico: la persona está inmersa en un mundo espiritual en el cual vive y se desenvuelve anímicamente. Pues bien, es en el marco de esta distinción que Husserl tematiza la cuestión de lo animado y la animalidad.

Para empezar, Husserl no opone al ser humano con el ser animado, sino que considera que el ser humano tiene una dimensión “animada”. En efecto, visto desde la actitud naturalista, el humano en tanto sujeto anímico y no en tanto persona, tiene un “ser animal” (animalisches Wesen) (Hua IV, 143; HUSSERL, 2005, p. 183). Aquí resulta importante no confundir dos términos: seres animados (Animalien) y seres animales (Tiere). Aunque pareciera que Husserl emplea indistintamente ambos términos, por lo general –siguiendo a Ciocan (2019) – el primero incluye tanto a los seres humanos y a los animales (o, dicho de otro modo, a los animales humanos y a los animales no humanos), mientras que el segundo refiere exclusivamente a los animales (no humanos).[92] En tal sentido, tanto die Menschen como die Tiere son Animalien. Bajo estas coordenadas, el humano y los animales presentan una “identidad de naturaleza” (Hua IV, p. 162; HUSSERL, 2005, p. 203). Y es sobre el fondo de esta que la otredad de los otros seres animados (Animalien) tiene una corporalidad física protopresente (urpräsente Leibkörper) con una interioridad apresente (appräsenter Innerlichkeit), es decir, en el mundo encuentro y percibo cuerpos físicos de otros seres animados, pero al mismo tiempo no puedo aprehender sus vivencias anímicas interiores (Hua IV, §44).[93] Es preciso resaltar que la protopresencia y la apresencia no se predica exclusivamente de los hombres,[94] sino de la categoría más general de los Animalien. En consecuencia, los seres animados, incluyendo a los animales, son una otredad e inclusive son una subjetividad en la medida que son sujetos anímicos anclados en un cuerpo viviente:

[…] los animales: estos incluyen en efecto subjetividades [die Animalien: sie enthalten ja Subjektivitäten]. Son objetidades peculiares, cuya dación primigenia es de tal índole que presupone protopresencias, mientras que ellas mismas no pueden darse en protopresencias […]: los cuerpos [Leiber] que se hallan frente a mí externamente los experimento, como otras cosas, en protopresencia; la interioridad de lo anímico [Seelischen], por apresencia. (Hua IV, 163; HUSSERL, 2005, p. 205)

 

Además, por el hecho de que los otros seres animados (animales y humanos, por ende) posean un cuerpo puede, uno “empatizar” con ellos y aprehenderlos como “sujetos-yo”: “[…] los aprehendo como cuerpos, es decir, empatizo en ellos [ich fühle ihnen] en cada caso un sujeto-yo [Ichsubjekt] con todo lo que le pertenece y con el contenido particular que cada caso exige.” (Hua IV, 164; HUSSERL, 2005, p. 205). Al poseer también los otros seres animados un cuerpo localizable espacial y temporalmente, la empatía (Einfühlung) los revela entonces como “análogos de nosotros mismos.” (Hua IV, 164; HUSSERL, 2005, p. 209). Y es así como la empatía nos conduce, en el ámbito de la actitud naturalista, a una objetividad intersubjetiva (intersubjektiven Objektivität) donde uno se confronta con una otredad humana y animal. Por ello, la naturaleza se patentiza como esta intersubjetividad de entes anímicos: “[…] la naturaleza se constituye como intersubjetivamente común” (Hua IV, 171; HUSSERL, 2005, p. 212) y como “[…] una unidad de apariciones puesta y susceptible de ser puesta por sujetos” (Hua IV, 171; HUSSERL, 2005, p. 213).

No obstante, visto desde la actitud personalista, esa contigüidad y continuidad entre el animal humano y el animal no humano –en donde ambos son seres animados poseedores de un cuerpo y, todavía más, “sujetos”– cesa abruptamente. En efecto, en esta última actitud, el cuerpo viviente ya no remite al cuerpo físico, sino a la persona y más aún al espíritu (Geist). Aquí el humano posee, además de una vida física corporal, una vida práctica (praktisches Leben): está inmerso en un mundo circundante (Umwelt) compuesto no de cosas (Dinge) sino de “[…] objetos de uso (Gebrauchsobjekte) (vestidos, enseres domésticos, armas, herramientas)” (Hua IV, 182; HUSSERL, 2005, p. 227)[95] donde las personas antes que encontrarse aisladas son “miembros de comunidades” (Glieder von Gemeinschaften), es decir, “[…] tienen sus contexturas comunitarias, sus ordenamientos morales y jurídicos.” (Hua IV, 182; HUSSERL, 2005, p. 227-228).

A este nuevo ámbito, que ya no es naturaleza sino cultura, le corresponde ser estudiado por las “ciencias del espíritu” (Geisteswissenschaften).[96] A este respecto, el animal no humano (Tier), para Husserl, carecería de esta dimensión cultural y espiritual. Aún más, cuando se habla de la otredad en la actitud personalista, en la cual la persona no está sino en un “conglomerado de personas” (Personenverband) (Hua IV, §51), cesa toda referencia al animal (Tier), lo que contrasta fuertemente con lo acontecido en la actitud naturalista, donde la mención al animal y, en general, a la inclusiva categoría de Animalien es constante. Esto es así porque el mundo circundante común de las personas es un mundo comunicativo (kommunikative) donde no se comunican fieras y humanos, sino tan solo estos últimos entre sí en tanto “compañeros” (Genossen) de la socialidad:

La socialidad [Sozialität] se constituye mediante los actos específicamente sociales comunicativos, actos en los cuales el yo se vuelve a otros [das Ich an Andere wendet], y estos otros también le están conscientes al yo como aquellos a quienes se vuelve y quienes además comprenden este volverse [diese Wendung verstehen]. (Hua IV, 194; HUSSERL, 2005, p. 240).

 

Asimismo, si en la actitud personalista es también posible la empatía (además de en la actitud naturalista expuesta con anterioridad), resulta significativo que Husserl no ofrezca ejemplos de un acto de empatía entre los hombres y los animales, como si la empatía para con el animal solo fuera posible en el reino de la naturaleza en tanto que este se muestra como cuerpo anímico viviente, pero no como persona espiritual comunicativa: “Puedo experimentar a otros, pero solamente mediante empatía […]. Puedo “comprender” qué es un matrimonio en tanto puedo empatizarme en un matrimonio […]” (Hua IV, p. 200; HUSSERL, 2005, p. 245). La empatía en el mundo circundante espiritual se reserva, pues, a fenómenos culturales humanos.[97]

¿Esto quiere decir que los animales carecerían de cultura y serían irreductibles a la personalidad? En Husserliana XXXIX, el autor alemán complejiza la situación de los animales. Por ejemplo, aquí interroga por los mundos de los animales (die Welten der Tiere) e incluso por el mundo natural prehistórico (die vorgeschichtliche Naturwel). Si bien Husserl se refiere al mundo natural prehistórico, accesible a una ciencia como la paleontología (lo que nos haría pensar que las consideraciones se enmarcarían dentro de la actitud naturalista de Hua IV), no deja de ser significativo que, en primer lugar, señale que el mundo humano es ya un “mundo animal”: “[…] este mundo [diese Welt] no solo es un mundo de los humanos [Menschenwelt], sino también un mundo animal [Tierwelt] y así es como este se constituye para nosotros los humanos.” (Hua XXXIX, p. 510; la traducción es nuestra). En segundo lugar, el autor indica que este mundo compartido entre humanos y animales es, sorprendentemente, un “mundo de la cultura”:

El mundo es un mundo humanizado y animalizado [humanisierte und animalisierte Welt] y se presenta como tal en cada actual mundo de la vida o mundo de la experiencia [Lebens- oder Erfahrungswelt], en cada fase del mundo histórico [historischen Welt] […]. Es el mundo de la cultura [Welt der Kultur]. Los objetos del mundo [Weltobjekte] se dan en el mundo de la vida mismo [Lebenswelt selbst], en una experiencia concreta, como armas [Waffen], como casas [Häuser], como objetos con propósito [Zweckobjekte] de todo tipo, como huellas en la hierba, como puntos de apoyo, etc. Pero lo mismo se aplica a los animales [Ebenso aber auch schon für die Tiere]. A partir de las “huellas animales” [„Tierspuren“] y su tipo “vemos” qué animales y qué tipo de animales habían. (Hua XXXIX, 510; la traducción es nuestra).

 

En primer lugar, según esta cita, el animal y las consecuencias de sus acciones aparecen, para el hombre, como objetos mundanos. Ahora bien, en segundo lugar, este mismo párrafo deja traslucir la idea de que los animales no solo son objetos mundanos, sino que también ellos mismos poseen sus propios vestigios. Por lo tanto, no se puede descartar sin más la presencia de un mundo experimentado por los animales, en la modalidad de una vivencia enfrentada a objetos de uso y no a simples cosas naturales. Aunque no se diga explícitamente que los animales tengan “cultura” (algo propio del ámbito espiritual), sí se afirma que poseen, en su lugar, “huellas animales” (Tierspuren) que como una suerte de reliquias de civilizaciones remotas testimonian su mundo vivido. Es decir, oblicua, tangencial, circunstancialmente Husserl deja abierta la posibilidad de que ese mundo animal (die Welten der Tiere), y más ampliamente el mundo –que es forzosamente uno humanizado y animalizado (humanisierte und animalisierte Welt)–, sea también o posea, para usar un término de Hua IV, una vida práctica (praktisches Leben) donde no hay meras cosas presentes (Dinge), sino objetos de uso (Gebrauchsobjekte). Con esto se matizaría o se complejizaría la idea inicial de que los animales son meras naturalezas presentes, sin ninguna intervención pragmática y comunitaria.

Husserl, empero, no ahonda en esta idea y, por el contrario, se limita a señalar una primordialidad (Primordialität): el ente humano es el “modal primordial” (urmodalen) desde el cual se extrapola una posible mundanidad animal (Hua XXXIX, 510). Es más, el mundo animal es un mundo en un sentido parcial, puesto que no es, como el humano, un mundo de conocimiento posible (Welt möglicher Erkenntnis)[98]. Si este “mundo” animal, en tanto mundo prehistórico, permite una ampliación (Erweiterung) del mundo humano (Hua XXXIX, 511), es menester señalar que no por ello se pierde la centralidad humana: “[…] pero por mucho que se expanda [el mundo] […] es el mundo de la vida humana [menschliche Lebenswelt].” (Hua XXXIX, p. 540). En tal sentido, los mundos de los animales aparecen, en rigor, como “modificaciones humanas” (menschliche Modifikationen) (Hua XXXIX, 541).

Ahora bien, según todo lo mencionado, ¿qué lugar ocupa el animal, en tanto otredad, en la fenomenología de Husserl?

Por un lado, el animal aparece como una otredad en la actitud naturalista ya que es también un otro con un cuerpo físico y un cuerpo viviente que posee estados de ánimos. De hecho, esta posesión de estados anímicos del animal es el fundamento de que el humano puede “empatizar” con él, tal como un hombre empatiza con otro hombre:

[…] supongamos ahora que yo fuese un pájaro y que pudiese volar […]. Comprenderlos es ponerse uno mismo en el lugar de ellos en cuanto voladores. El pájaro está sobre la rama o se posa en el suelo; despega, levanta el vuelo […]; y ello de modo similar a como ocurre al andar. (HUSSERL, 2006a, p. 33-34).

 

Es más, esta empatía se explica por el hecho de que el hombre es juzgado como el caso “normal” de la animalidad, de suerte que los animales no humanos aparecen como “variantes anormales” de la humanidad (Hua I, 154; HUSSERL, 1985, p. 192).[99] El animal, desde la actitud naturalista, es entonces un otro anormal que se aleja de la norma corpórea de lo humano.

Por otro lado, desde la actitud personalista en Hua IV el animal no es convocado como una otredad espiritual y, en consecuencia, no se menciona la posibilidad de una empatía espiritual ya no fundada en la analogía corpórea. Y, sin embargo, en Hua XXXIX, por más de que sea el ente humano el pivote desde el cual realizar una aprehensión de lo animal, se deja abierta la posibilidad de que los animales posean objetos de cultura y, por tanto, prolongando el argumento husserliano, resplandezca en ellos una suerte de personalidad.

Podemos decir, por consiguiente, que Husserl mantiene un doble registro respecto a la otredad animal: de un lado, es un otro corpóreo-viviente, ciertamente anormal, del hombre en tanto ser natural y, de otro lado, es ambigua su dación como otredad personalista-espiritual dado que no es de entrada un miembro más de la comunidad comunicativa y dado que, empero, el mundo humano es también un mundo animal poseyendo este último sus propios vestigios y objetos mundanos. En todo caso, lo que queda claro es que el animal sí posee para Husserl un estatuto de otredad, con sus respectivos ámbitos y niveles de análisis. Es ese otro anormal de la naturaleza y ese otro ambiguo del espíritu que se da al mismo tiempo que las otredades humanas, otredades que, a fin de cuentas, con sus mundos, conforman nuestro mundo.

 

2 La otredad animal en Heidegger: la coexistencia mundana y la pobreza de mundo

A diferencia de Husserl, para Heidegger la cuestión de la animalidad no está vinculada al tema de la corporalidad y la espiritualidad, pero sí al de la mundanidad (Weltlichkeit). En Die Grundprobleme der Methapysik (GA 29/30) Heidegger aborda con detalle la cuestión del ser del animal. Sin embargo, para comprender esta tematización resulta útil partir de las consideraciones heideggerianas contenidas en trabajos anteriores. Como se sabe, Sein und Zeit (GA 2) sintetiza varios de los intentos teóricos precedentes en torno a la pregunta por el sentido del ser (Sinn vom Sein)[100]; de ahí que sea pertinente partir de esta obra para tener un horizonte conceptual desde el cual abordar el seminario heideggeriano sobre la animalidad.

En Sein und Zeit, Heidegger no solo plantea la pregunta por el sentido del ser, sino que también ofrece un marco específico desde el cual avizorar una respuesta, esto es, la elección de un ente privilegiado que guíe el interrogar ontológico. Este ente se elige en función de que el preguntar (fragen) mismo es un modo de ser de este ente y, más precisamente, en función de que todo interrogar involucra a un ente específico tanto como inquirente (Frager) que como interrogado (Befragtes) (GA 2, §2). ¿Cuál es ese ente? Respuesta: es “el ente que somos en cada caso nosotros mismos” (dieses Seiende, das wir selbst je sind), el cual es designado deliberadamente como Dasein. Esto quiere decir que desplegar la pregunta por el ser no es sino hacer que este ente “se vuelva transparente en su ser” (GA 2, 7; HEIDEGGER, 2012, p. 28), lo que equivale a realizar, preliminarmente, una analítica de tal ente, esto es, una analítica del Dasein (Analytik des Daseins).[101]

Sein und Zeit aborda este análisis partiendo de la idea de que el Dasein “es” su existencia (Existenz) en el sentido de un poder-ser comprensor que tiene posibilidades y no propiedades: “[…] la idea de la existencia ha sido perfilada como un poder-ser comprensor [verstehendes Seinkönnen] al que le va su ser mismo.” (GA 2, 232; HEIDEGGER, 2012, p. 249). Bajo este marco se estudia, desde las coordenadas de una fenomenología hermenéutica (hermeneutische Phänomenologie)[102], la “estructura fundamental” del Dasein que comparece a priori en él: “el-ser-en-el-mundo” (In-der-Welt-sein) (GA 2, §12). Esta posee tres momentos constitutivos co-originarios: la mundanidad del mundo (Die Weltlichkeit der Welt), el coestar (Mitsein) y el estar-en como tal (Das In-Sein als solches). Es a partir de estos elementos que podemos plantear el estatuto de la otredad en Heidegger y, especialmente, la cuestión de la otredad animal en Sein und Zeit.

En el mundo, el Dasein no se encuentra frente a cosas (Dinge), sino frente a útiles (Zeuge) que son objeto de la ocupación (Besorge), es decir, el Dasein se encuentra absorbido cotidianamente en un trato pragmático con entes intramundanos que aparecen como útiles en tanto entes a la mano: “[…] este ente no es entonces el objeto de un conocimiento teorético del “mundo”, es lo que está siendo usado, producido, etc.” (GA 2, 67; HEIDEGGER, 2012, p. 89). Solo cuando el útil falla es que se muestra como un ente accesible a la mirada teorética, esto es, deja de ser tratado como utensilio (Zeug) para ser aprehendido como un ser-ahí presente (Vorhanden) (GA 2, §16). Resulta significativo que en los §§ 14-24 de Sein und Zeit Heidegger no mencione a otro tipo de entes que no sean Dasein ni útiles o, mejor dicho, que reduzca toda la multiplicidad óntica a estas dos opciones dicotómicas[103]. Por ejemplo, la naturaleza y los animales comparecen primordialmente como útiles. En efecto, la obra (Werk), en tanto “para-qué” (Wozu) del útil, es también un útil, y aquella remite a materiales que se obtienen a partir de los animales y la naturaleza:

En la obra hay también una remisión a “materiales”. Ella está necesitada del cuero, del hilo, de los clavos, etc. El cuero, a su vez, es producido a partir de las pieles. Éstas se sacan de animales que han sido criados por otros. En el mundo hay también animales que no son de cría, y en la misma crianza ellos se producen en cierto modo por sí mismos. Según esto, en el mundo circundante se da el acceso a entes que, no teniendo en sí mismos necesidad de ser producidos, ya siempre están a la mano. (GA 2, 70; HEIDEGGER, 2012, p. 92)

 

Si se ha divido, en lo que respecta al mundo, a los entes en Dasein y útiles, ¿qué posición ocuparían los animales en este esquema fuertemente dualista? Los animales, para Heidegger, no podrían ser un Dasein, toda vez que no es el ente que somos en cada caso nosotros mismos. Por lo demás, que los animales no sean Dasein queda corroborado en el momento en que Heidegger aborda la muerte (Tode): esta solo es una posibilidad existencial, la más cierta e irrespectiva, del Dasein; por el contrario, los animales (Tiere) no mueren, sino tan solo fenecen, la palman: “Al terminar del viviente lo hemos llamado fenecer (verenden).” (GA 2, 247; HEIDEGGER, 2012, p. 263). Si no son Dasein, dada la dicotomía excluyente que plantea Heidegger en el ámbito intramundano, la única opción que quedaría es que fueran útiles. El párrafo anteriormente citado ratifica esto: aunque los animales no son producidos (como, por ejemplo, un martillo), “ya siempre están a la mano” (immer schon zuhanden ist), de suerte que se los usa como parte de la crianza doméstica o industrial.

Ahora, cuando Heidegger tematiza explícitamente la otredad en Sein und Zeit, la mención de los animales desaparece totalmente.[104] En efecto, el Dasein es un Mitdasein lo que quiere decir que el Dasein solo coexiste y comparte un mundo con otros Dasein y no con los útiles: “El ‘otro’ ente tiene, él mismo, el modo de ser del Dasein [Das »andere« Seiende hat selbst die Seinsart des Daseins].” (GA 2, 124; HEIDEGGER, 2012, p. 144). Frente a los otros Dasein se trata de una relación de solicitud (Fürsorge) y no de ocupación (Besorge) (GA 2, §26). Aunque cotidianamente el “sujeto” de la existencia sea el uno impersonal (das Man) (GA 2, §27), ni en la autenticidad o inautenticidad de la existencia aparece como factible la posibilidad de una coexistencia y, por tanto, una otredad del Dasein para con entes que no son Dasein como, por ejemplo, los animales. Por consiguiente, para Heidegger en Sein und Zeit el animal no es ni puede ser una otredad; a lo sumo, comparece como útil en tanto material de la obra-útil en que se encuentra ocupado pragmáticamente el Dasein.

En Die Grundbegriffe der Metaphysik (GA 29/30), Heidegger aborda propiamente la cuestión de la animalidad. En la segunda parte de este seminario Heidegger esgrime tres tesis: “1) la piedra (lo material) es sin mundo [Weltlos]; 2) el animal es pobre de mundo [Weltarm]; 3) el hombre configura mundo [Weltbildend]” (GA 29/30, p. 263; HEIDEGGER, 2002, p. 227). ¿Qué significa que el animal sea pobre de mundo? Ante todo, hay que partir de la noción de mundo (Welt). Heidegger la define como “la accesibilidad de lo ente en cuanto tal [Zugänglichkeit von Seiendem als solchem]” (GA 29/30, p. 263; HEIDEGGER, 2002, p. 227).

El animal, en tanto organismo (Organismus) poseedor de órganos (Organe), no posee una existencia pragmática que obra y actúa, sino un mero hacer instintivo: “La conducta del animal no es un obrar y actuar [Tun und Handeln], como el comportamiento del hombre, sino un hacer [Treiben] […] todo hacer del animal caracteriza el ser impulsado [Getriebenheit] por lo impulsivo [Triebhafte].” (GA 29/30, p. 346; HEIDEGGER, 2002, p. 290).

Si en Sein und Zeit el ser del Dasein que explica su modo de ser no es sino el cuidado (die Sorge), en Die Grundbegriffe der Metaphysik el ser del animal que explica su hacer impulsivo es el “perturbamiento” (Benommenheit): “El perturbamiento [Benommenheit] es la condición de posibilidad [Bedingund der Möglichkeit] gracias a la cual el animal, según su esencia, se conduzca en un medio circundante [Umgebung], pero nunca en un mundo [Welt].” (GA 29/30, p. 347-348; HEIDEGGER, 2002, p. 291). Esto quiere decir que es el perturbamiento lo que permite a Heidegger afirmar que el animal es pobre de mundo: su pobreza (Armut) estriba en que no capta el ente en cuanto ente.

Ahora bien, esta caracterización del animal ha sido posible porque ha habido un “transponerse en otro ente” (Sichversetzenkönnen in einen anderes Seiendes): “Transponerse en este ente significa acompañar [mitgehen] como aquello que es y como lo que es [was und wie das Seiende ist].” (GA 29/30, p. 296; HEIDEGGER, 2002, p. 252). Heidegger incluso utiliza expresamente la noción de “transponerse” (Sichversetzen) contra la noción de “empatía” (Einfühlung), esencial en el lenguaje husserliano como se ha visto en el apartado anterior. A diferencia de Husserl, no se trata de que un hombre empatice con otro hombre, ni que haga lo mismo con el animal: “La palabra “Einfühlung” ha venido a ser el hilo conductor de toda una cadena de teorías fundamentalmente equivocadas sobre la relación del hombre con otro hombre y, en general, con otro ente, teorías que hoy solo lentamente vamos superando” (GA 29/30, p. 297; HEIDEGGER, 2002, p. 253).[105]

Antes que una empatía con el animal, existe un transponerse que acompaña y que, en teoría, ofrece el ser de este otro ente. Sin embargo, al llegar al perturbamiento como esencia del ente animal, a partir precisamente de este transponerse metodológico, Heidegger contraviene su punto de partida, es decir, no llega a acompañar al animal tal como es[106]. En efecto, el perturbamiento no nos arroja el en-sí del animal, sino tan solo la proyección de su ser a partir del hombre: die Benommenheit no es otra cosa que “[…] la caracterización meramente comparativa de la animalidad mediante la pobreza de mundo, en la medida que el animal se ve desde el hombre.” (GA 29/39, p. 394; HEIDEGGER, 2002, p. 327). Dicho de otro modo: aunque la transponibilidad del hombre hacia el animal parte de la asunción de que el animal es otro ente (andere Seiende), aquella no nos conduce hacia la constatación de que el animal es una otredad que confluye, término a término, con nosotros el mundo. De hecho, es la pobreza de mundo del animal, que determina un hiato radical entre hombre y animal, la que exige dicha transponibilidad.[107]

Hay, entonces, un círculo: la transponibilidad conlleva a la pobreza del mundo y la pobreza del mundo asegura la transponibilidad. Y en este trazo el animal aparece como un ente que, merced a su pobreza de mundo, carece propiamente de una otredad a la que, por ejemplo, se la pudiera acoger en una relación de solicitud (Fürsorge). El transponerse del hombre con el hombre involucra, por el contrario, una otredad en la que se puede compartir el mismo comportamiento según Heidegger, algo imposible en el caso del animal:

[…] los otros hombres [die anderen Menschen] en ciertos ámbitos y situaciones por término medio se comportan respecto de las cosas exactamente igual que nosotros [verhalten wie wir], más aún, que en hombres diversos [mehreren Menschen] no solo aparece el mismo comportamiento [dasselbe Verhalten] para con las mismas cosas, sino que hombres diversos pueden compartir conjuntamente [miteinander teilen] el mismo comportamiento sin que lo compartido se despedace. [...] Esta es una constante fundamental [Grundbestand] de la experiencia inmediata de la existencia [unmittelbaren Existenzerfahrung] del propio hombre [des Menschen selbst]. (GA 29/30, p. 300; HEIDEGGER, 2002, p. 255).

 

Por todo lo dicho, en Sein und Zeit la carencia de otredad del animal se configuraba en su presentación como útil en la medida que está a la mano en la ocupación cotidiana y que, sobre todo, no es un Dasein; en Die Grundbegriffe der Metaphysik, el animal carece de otredad porque es pobre de mundo en tanto esencialmente aturdido. El animal no es, por tanto, un otro de la misma categoría que el Dasein, es un ente distinto que no puede ser tematizado como otro; es, en una palabra, un otro sin otredad. El animal es un ente diverso cuya transposición no implica un reconocimiento de otredad, sino tan solo una reconfirmación de la singularidad humana en tanto ser-en-el-mundo y configurador-de-mundo.[108]

 

 

3 La fenomenología husserliana y heideggeriana a la luz de la biología contemporánea

 

Entendiendo los respectivos abordajes de los autores mencionados como modos de encarar fenomenológicamente a la animalidad y la otredad animal podría preguntarse, a fin de incentivar ulteriores cavilaciones, ¿qué propuesta fenomenológica se condice con la evidencia biológica contemporánea?

En primer lugar, la positividad de la ciencia es un asunto que posee un estatuto filosófico particular para ambos filósofos. En el caso del fundador de la fenomenología, de hecho, la mirada fenomenológica implica una puesta entre paréntesis de la actitud natural que permea la ciencia positiva (HUSSERL, 2013); y en el caso del filósofo de Messkirch, la fenomenología, entendida como ontología fundamental, no hace otra cosa que abrir los fundamentos conceptuales desde los cuales se vuelve inteligible toda ontología regional y toda ciencia positiva (HEIDEGGER, 2012). Es decir para ambos la ciencia positiva, no filtrada por la reflexión filosófica, trataría a los entes como meras cosas (Dinge) y seres-ahí presentes (Vorhandenen) eludiendo el punto de vista de las vivencias de la primera persona (Person) y la facticidad del ser-ahí (Dasein). Sin embargo, ¿la biología contemporánea realmente considera a los entes animales como cosas y desaparece en ella, sin más, la vivencialidad y la existencialidad humana?

En segundo lugar, y a contramano de lo anterior, tanto Husserl como Heidegger parten, de una u otra manera, de la ciencia biológica de su época en su reflexión filosófica sobre los animales. Si bien no se limitan a repetir, sino que reinterpretan los resultados de la biología cuestionando sus presupuestos, ambos dialogan con la biología. En efecto, en el caso de Husserl, la fenomenología no ha de descartar a la biología, toda vez que la posición de esta ciencia “[…] está más cerca de la filosofía y del conocimiento” en la medida que permite producir “nuevas cuestiones trascendentales” (HUSSERL citado en MEACHAN, 2013, p. 19; traducción nuestra) – es más, la fenomenología requiere una dimensión biológica para su proyecto genético (GAITSCH, 2018)–; en el caso de Heidegger, como ha mostrado Agamben (2006), toda su reflexión sobre la animalidad no se encuentra sino mediada por una interpretación filosófica de la obra del biólogo von Uexküll: la noción de mundo circundante (Umwelt) es transformada, bajo el lente heideggeriano, en la pobreza de mundo del animal. ¿Se justificaría, entonces, una confrontación filosófica entre lo obtenido por la investigación fenomenológica y aquello que nos da la actual investigación científica positiva?

Por todo esto, nuestra pregunta sobre la consistencia entre los resultados biológicos actuales y las propuestas fenomenológicas de Husserl y Heidegger en torno a la animalidad es una cuestión que no deba ser desterrada del análisis filosófico y que, como tal, amerite al menos una evaluación sucinta.

¿Qué es eso, por consiguiente, que nos dice la biología contemporánea sobre los animales y que puede ser confrontada con la fenomenología husserliana y heideggeriana? Para empezar, nos referimos a la zoología evolutiva que considera que existe una particular historicidad en el mundo natural donde los entes no solo se adaptan o modifican su medio, sino que también se individúan junto a él dando origen a fenómenos emergentes y modificaciones de pretendidas “esencias” atemporales (ALCOCK, 2009). Asimismo, nos referimos a la genética que, en tanto subdisciplina biológica, permite comprender los elementos comunes, expresados en un código genético específico, que existen en aquella modificación histórica que irrumpe las discontinuidades del mundo natural (HARAWAY, 2004). Para la biología evolucionista, los entes no son cosas estáticas, sino entidades con vivencias y comportamientos pragmáticos. Por ende, se puede decir que sus presupuestos coinciden con la exigencia fenomenológica de tematizar a los entes a partir de las vivencias y no tratarlos como meras cosas (SHEETS-JOHNSTONE, 2007). Para la genética, los entes no son objetos con esencias fijas, sino entramados a partir de los cuales se pueden crear y recrear diversos vínculos comunitarios y políticos (HARAWAY, 2004). Es decir, tampoco entra en contradicción, al menos desde este punto de vista, con las pretensiones fenomenológicas.

En tal sentido, la biología evolutiva contemporánea cada vez resulta más clara en devolver cultura, o al menos un grado de ella, a los animales no humanos, puesto que se aprecia en ellos una modificación deliberada de la naturaleza, una fabricación inteligente y heredable de herramientas, una existencia de rituales sociales, máxime fenómenos éticos (ALCOCK, 2009; BROSNAN; DE WAAL, 2003; WHITEN; HORNER; DE WALL, 2005; WHITEN, 2019). De igual manera, la genética obtiene como resultados que existe una diferencia genética asaz pequeña entre el animal humano (homo sapiens) y el chimpancé (pan troglodytes): ambos comparten al menos el 96 % de su código genético (THE CHIMPANZEE SEQUENCING AND ANALYSIS CONSORTIUM, 2005), lo que echa por la borda toda pretensión de establecer un corte drástico entre ambas especies, entre el animal humano y el animal no humano.

Evidentemente no podemos juzgar anacrónicamente a Husserl y Heidegger respecto a los desarrollos de la biológica contemporánea. Hacerlo sería como cuestionar, mutatis mutandis, a Aristóteles por no tener en cuenta la evidencia zoológica actual en sus reflexiones filosóficas. Lo que queda por hacer es juzgar la viabilidad de ampliar y extrapolar los resultados filosóficos de Husserl y Heidegger a las discusiones biológicas actuales.

Bajo este programa de investigación, salta a la vista la gran diferencia entre Husserl y Heidegger. Para el primero resulta totalmente viable en términos conceptuales acoger la evidencia zoológica contemporánea, dado que en última instancia hay un fondo común entre ambos: tanto el animal humano como el animal no humano son Animalien, esto es, tienen un cuerpo viviente. Lo que habría que añadir simplemente es un nivel personal en los animales interpretando como mundo “espiritual” a sus caracteres culturales, posibilidad que Husserl deja abierta, al menos mínimamente, cuando en Hua XXXIX menciona que hay un mundo de los animales y que estos tienen vestigios. Para el segundo, en cambio, no es posible incluir los resultados biológicos actuales, dado que él propone un hiato radical entre el ente humano y el animal, tanto en GA 2 como en GA 29/30. Por consiguiente, en el caso de Husserl no se requiere modificar su esquema conceptual para aceptar la complejidad cultural de los animales: basta con arriesgar su consideración como personas; en el caso de Heidegger la aceptación de la evidencia zoológica pone en cuestión su propuesta filosófica, puesto que deja de ser sostenible un abismo entre lo humano y el animal no humano.

Por último, más allá de esta diferencia, tanto Husserl como Heidegger compartirían un “especismo” – una posición discriminatoria para con las otras especies no humanas (SINGER, 1990) – o, si se quiere, un “ontocentrismo humano” – el presupuesto filosófico que afirma que el ente humano es singular y superior respecto a todos los demás entes (AYALA-COLQUI, 2021) –. Esto se expresa en la idea, implícita o explícita, de normatividad en ambos autores. Para Husserl, el animal humano es una normatividad comparativa y empero incluyente: el mundo de los animales, y toda posible otredad, solo existe porque es un caso anormal de la primordialidad humana; para Heidegger, el animal humano es una normatividad jerárquica y excluyente: solo el humano tiene un mundo y de este ámbito ontológico privilegiado están excluidos los que no son como él.[109]

En todo caso, para Husserl es posible, por todo lo dicho, ofrecer una interpretación no especista de su obra, sin alterar radicalmente el sentido de sus proposiciones; en cambio, en el caso de Heidegger, no resulta viable dar una interpretación no especista, no “ontocéntrica humana”, so pena de contradecir abiertamente su presunción de la diferencia tajante, radical, insalvable entre lo humano y lo no humano. De este modo, la biología contemporánea no hace más que enriquecer nuestra comprensión sobre las posturas fenomenológicas de los autores, planteando renovados escenarios de discusión que aquí tan solo nos limitamos a indicar y propiciar. 

 

Consideraciones finales

Hemos visto que el animal para Husserl es una otredad ambigua, matizada, parcial; en Heidegger, una otredad ausente, una a-otredad. Es decir, para el primero sí existe una otredad animal (allende su ambigüedad naturalista y personalista), puesto que ambos son corporalidades presentes con una interioridad anímica apresente e, incluso, los animales, tal como los humanos prehistóricos, dejan huellas de su actividad pretérita; para el segundo, por el contrario, no hay otredad animal, dado que el ente humano solo coexiste con otros entes humanos y más aún dado que solo los entes humanos configuran mundo y son ser-en-el-mundo, de suerte que la posibilidad de una coexistencia con los animales –más allá de que se dé un acompañar (acompañar que, en todo caso, es sesgado porque no muestra el en-sí del animal, sino tan solo una proyección interesada desde el hombre) – está imposibilitada de antemano.

Por otro lado, si traemos a colación los considerandos de la zoología contemporánea que cuestionan, desde la genética hasta la biología evolutiva, la separación tajante entre el animal humano y los animales no humanos y tratamos de acoger conceptualmente esta información y de discutirla filosóficamente, resulta que se puede obtener una nueva perspectiva para los abordajes fenomenológicos de la animalidad de Husserl y Heidegger. Aunque ambos compartan una posición especista y “ontocéntrica humana”, es la perspectiva de Husserl, maestro de Heidegger, la que permite darle nuevos planteamientos y recursos a la investigación fenomenológica en lo que respecta al asunto del animal acogiendo fenómenos culturales, comunitarios, pragmáticos y, en última instancia, políticos en ellos. Con todo, ambos esfuerzos, sobre todo en un contexto de destrucción del medio ambiente por parte de la acción humana y de la actividad empresarial burguesa (MOORE, 2020), nos invitan a una renovada discusión sobre el rol del humano en el mundo y la posición de lo no humano en un horizonte donde la biología no anula la reflexión filosófica, sino que incita a ella.

 

The animal, is it a possible otherness? Phenomenological inquiries from Husserl and Heidegger

 

Abstract: This article aims to analyze the concept of animality from the perspective of Edmund Husserl and Martin Heidegger. More precisely, the question arises as to whether the animal possesses the status of otherness or lacks it. Indeed, the animal, with respect to the human, turns out to be another entity, but, from the assumptions of phenomenology, is that enough for it to be apprehended as an intersubjectivity or a coexistence that is donated to the world of human beings? To answer this question, we will review Husserl's argumentation, especially in Hua IV and Hua XXXIX, and Heidegger's in GA 2 and GA 29/30. Finally, we will add a critical consideration of the ideas of the authors studied in the face of developments in contemporary biology to ask ourselves to what extent their philosophical inquiry would be consistent with current zoological evidence.

Keywords: Animal. Otherness. Husserl. Heidegger. Phenomenology. Biology.

 

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Recibido: 26/05/2022

Acepto: 13/09/2022

 

Comentário a El animal, ¿es una otredad posible? Indagaciones fenomenológicas a partir de Husserl y Heidegger

 

Paulo Mendes Taddei[110]

 

Referência do artigo comentado: Ayala-Colqui, Jesús. El animal, ¿es una otredad posible? Indagaciones fenomenológicas a partir de Husserl y Heidegger. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 133 – 158, 2023.

 

Duas limitações se destacam no trato acadêmico com a tradição fenomenológica, de modo geral: uma atenção exclusiva à mera exegese de autores clássicos, em detrimento de questões sistemáticas (GALLAGHER; ZAHAVI, 2021, p. 33), e a tendência a interpretá-la como possuindo divisões internas inegociáveis (ZAHAVI, 2003, p. 326). A combinação das duas limitações gerou nichos acadêmicos os quais raramente dialogam entre si e que pouco se engajam com os problemas de sua época. Se, por um lado, a pesquisa exegética em Husserl pode ao menos contar com um material bibliográfico elaborado por um aparato crítico rigoroso e com uma tarefa bem definida, qual seja, a de interpretar um autor cujos manuscritos davam conta de uma riqueza de material que em muito excedia suas publicações em vida, por outro lado, a pesquisa exegética em Heidegger sequer dispunha de um aparato crítico adequado para a interpretação de seus póstumos, gerando uma situação que Kisiel caracterizou, já nos anos 90 do século passado, como um verdadeiro escândalo do trabalho acadêmico (1991, 1995, 2007).

Quaisquer que sejam os méritos que possua uma literatura secundária de tal natureza para nossa compreensão de Husserl, de Heidegger e de outros autores dessa tradição – e não há dúvida de que os tem –, representam incontestavelmente um marco na história da recepção da fenomenologia as assimilações, a partir de questões sistemáticas as quais começaram a ser realizadas nos anos 60 e 70 do século XX, por autores tão distintos como Tugendhat, Føllesdal e Dreyfus, dentre outros. Mapeando Husserl e, no caso de Tugendhat e Dreyfus, também Heidegger, no âmbito de debates tão diversos, como os concernentes ao conceito de verdade, às noções de sentido e referência e ao campo da inteligência artificial, tais interpretações puderam mostrar a fecundidade dessa tradição, no diálogo com a chamada filosofia analítica.

Em alguns casos, como no da chamada interpretação West Coast de Husserl, proposta por Føllesdal e Dreyfus, tais interpretações incorreram em certos abusos exegéticos. Se hoje ela é vista enquanto uma linha interpretativa equivocada, ela é celebrada por haver ressuscitado o debate em torno de conceitos centrais de Husserl (STAITI, 2015, p. 3). É, todavia, a interpretação que Dreyfus realiza de Husserl e Heidegger que pode ser considerada típica da segunda limitação a qual acima caracterizamos – Dreyfus toma os modelos de fenomenologia de Husserl e de Heidegger como duas alternativas excludentes (DREYFUS, 1991, p. 3, 30). Nisso, não está sozinho, no que se refere à interpretação de Heidegger – um intérprete tão diferente de Dreyfus como Van Buren, influenciado pela tradição desconstrucionista de Derrida, defende algo semelhante (VAN BUREN, 1994, p. 203). Tampouco concerne a fenômeno restrito à relação entre Husserl e Heidegger: conforme aponta Zahavi (2002), também a relação entre Husserl e Merleau-Ponty foi erroneamente caracterizada como a de uma ruptura radical. Nesse sentido, como Zahavi bem ressaltou, é a leitura de Heidegger e sua radical crítica à subjetividade moderna que motivou exegeses que buscaram divisões internas insolúveis, no âmbito da tradição fenomenológica.

É por essa razão que o trabalho de Crowell (2001, 2013) deve ser apreciado como decisivo na literatura secundária da fenomenologia: tratou-se de buscar a continuidade da tradição fenomenológica ali onde sempre se supôs haver um abismo intransponível – a saber, entre Husserl e Heidegger. Não se trata de homogeneizar os autores da tradição, mas de mostrar que, se formos hermeneuticamente benevolentes com todos os autores, as linhas de continuidade se deixam prolongar a muito além do que se esperava – o que, por sua vez, permite a circunscrição muito mais precisa das reais rupturas e cisões, superando, com isso, julgamentos simplórios dos modelos de fenomenologia baseados em diferenças no vocabulário e em caracterizações genéricas de projetos filosóficos. A principal consequência disso foi a redescoberta de uma unidade de fundo da tradição fenomenológica.

Independentemente das inegáveis virtudes do trabalho de Crowell, seu foco na dimensão de “espaço de sentido”, de normatividade e de responsividade evidencia seu compromisso com uma fenomenologia transcendental. E, embora esse caráter transcendental não precise ser considerado incompatível com propostas modestas de naturalização, é no contexto dessas propostas que podemos mais bem apreciar a contribuição de Ayala-Colqui: a proposta de mútuo esclarecimento entre fenomenologia e ciências cognitivas, levada à frente por Gallagher e Zahavi (2008, 2012, 2021), dentre outros, resguarda um espaço para uma dimensão transcendental e uma dimensão empírica, contudo, recomenda que fenomenologia e ciências empíricas – especialmente, mas não apenas, as ciências cognitivas – entrem em diálogo para o benefício de seu mútuo desenvolvimento.

A importante contribuição de Ayala-Colqui sobre alteridade animal em Husserl e Heidegger faz justamente isso: a partir de uma cuidadosa leitura de Husserl e de Heidegger, o autor os põe em diálogo com indícios empíricos contemporâneos da zoologia – da biologia evolutiva à genética. Trata-se não de julgar anacronicamente os autores, como Ayala-Colqui bem aponta, todavia, de buscar entender se os modelos de fenomenologia do animal não humano e de sua diferença com relação ao humano se prestam a assimilar tais resultados ou se os põem em xeque. Sua conclusão, a saber, de que a fenomenologia de Husserl se mostra mais propícia para o diálogo com as ciências biológicas do que a fenomenologia de Heidegger[111], pode surpreender aqueles que conhecem a fenomenologia husserliana a partir unicamente do método da epoché, e, ademais, interpretam esse passo em função do ponto de vista de um solipsismo metodológico, isto é, de uma filosofia de poltrona (armchair philosophy), mas ela é perfeitamente condizente com a influência, hoje reconhecida, a qual o fundador da fenomenologia exerceu sobre a fenomenologia de Merleau-Ponty, cujo diálogo com as ciências empíricas da psicologia e da biologia é conhecido. Nesse contexto, conquanto o trabalho de Heidegger também se baseie na biologia de sua época, a saber, no trabalho de Von Uexküll, uma tese como a do hiato entre humanos e animais não humanos é colocada em questão por resultados contemporâneos da zoologia. É, assim, o caráter eminentemente hermenêutico da fenomenologia heideggeriana – mais do que o caráter transcendental da de Husserl – que representa o maior desafio para um diálogo com as ciências biológicas.

Nesse contexto, proponho aqui esboçar, em prol de um mapa dos modelos de fenomenologia, uma terceira posição com relação às posições de Husserl e de Heidegger, no que se refere à alteridade animal: trata-se justamente da posição de Merleau-Ponty. A posição do fenomenólogo francês é intermediária às dos dois autores. Enquanto, em Husserl, vemos em ação uma fenomenologia que se propõe elucidar camadas de sentido naturais que fundam camadas de sentido personalistas, em Heidegger, temos uma fenomenologia hermenêutica unidimensional: qualquer assunção de uma dimensão natural embutida na experiência implica, para Heidegger, a aceitação da ontologia de ser-simplesmente-dado (Vorhandenheit). Assim, a natureza, por intermédio da perspectiva hermenêutica de uma fenomenologia da cotidianidade, aparece no contexto da manualidade (Zuhandenheit).

Como enfatiza Dupont (2008, p. 13), o comportamento animal tem, em Fenomenologia da Percepção, o poder de contribuir para a compreensão do comportamento humano. Nessa obra, Merleau-Ponty faz claro uso da ideia husserliana de Fundierung, com uma análise de dimensões naturais do corpo-próprio como um sistema de funcionamento anônimo. O corpo-próprio diz respeito à nossa vinculação pré-objetiva ao mundo – note-se que a expressão être-au-monde, tradução do in-der-Welt-sein heideggeriano, ganha um significado que não é restrito ao humano, mas se estende aos organismos (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 128). Nesse sentido, Merleau-Ponty alude ao corpo como um eu natural, ao mesmo tempo diferente do eu pessoal e um pressuposto para este – uma dimensão de funcionamento “pré-histórico”, ou “mais velha do que nós”, anterior às nossas decisões pessoais e ao nosso senso de objetividade.

Por essa caracterização, poder-se-ia levar em conta que Fenomenologia da Percepção segue a proposta husserliana. É preciso ponderar, todavia, que Merleau-Ponty complexifica o quadro husserliano, ao considerar que a atuação do espírito – isto é, de nossa dimensão pessoal – tem a possibilidade de descer até a dimensão natural:

É impossível sobrepor, no homem, uma primeira camada de comportamento que chamaríamos de “naturais” e um mundo cultural ou espiritual fabricado. No homem, tudo é natural e tudo é fabricado, [...] no sentido em que não há uma só palavra, uma só conduta que não deva algo ao ser simplesmente biológico – e que ao mesmo tempo não furte à simplicidade da vida animal, não desvie as condutas vitais de sua direção, por uma espécie de regulagem [d’échappement] e por um gênio do equívoco que poderiam servir para definir o homem. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 257, grifo no original)

Assim, diferentemente de Husserl, torna-se impossível distinguir, em Merleau-Ponty, uma camada de mera natureza de uma camada espiritual (cf. HUA I, HUSSERL, 1991, p. 121-130); diferentemente de Heidegger, isso não nos impede de extrair lições valiosas para compreender o ser humano, a partir do comportamento animal. O complexo quadro merleau-pontiano do humano envolve a compreensão da ambiguidade de nosso ser-no-mundo: se “[...] até mesmo os reflexos têm sentido” (2006, p. 126), isso não implica que “[...] a sublimação biológica em existência pessoal, do mundo natural em mundo cultural” (2006, p. 125) seja absoluta e sem falha. “O que nos permite centrar nossa existência é também o que nos impede de centrá-la absolutamente.” (2006, p. 125). A elucidação dessa ambiguidade e dessa precariedade fundamental, Merleau-Ponty pretende nos oferecer através de uma fenomenologia do tempo, a qual explicaria a transformação do tempo natural em tempo pessoal e histórico – o que está para além das indicações aqui esboçadas.

 

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Recibido: 12/01/2023

Aceito: 20/01/2023


 

‘Who Announces the Nonrecourse?’: The fort/da in ‘To do Justice to Freud’ and in the Derrida/Foucault debate

 

Joaquín Montalva[112]

 

Abstract: This article consists of a commentary on Derrida’s essay “To do Justice to Freud: The History of Madness in the Age of Psychoanalysis”, with the aim of tracing what cannot be re-appropriated by the presuppositions of the Derrida/Foucault debate. By analysing the question “who announces the nonrecourse?”, I will explore the way in which Derrida’s writing is affected by the necessity and impossibility of not repressing unreason. I will defend that Derrida compulsively writes the effects of his own resistance to repress unreason by reproducing the Foucauldian quest for a “beyond of reason”. This repetition compulsion not only keeps re-opening the debate, but more importantly, it triggers the return of unreason as a disarrangement of the principles of identity and linear time which destabilizes any authorial ground for a history of madness in general and for any of its critiques. This article will read the exchanges between Derrida and Foucault by deconstructing the premises of any debate in general.

 

Keywords: Fort/da. Madness. Psychoanalysis. Deconstruction. Transference.

 

Introduction[113]

Jacques Derrida’s critique of Michel Foucault’s interpretation of the Cartesian Cogito in Histoire de la folie triggered a widely commented “debate”. The underlying assumption for many commentators is that there was a disagreement between these two thinkers and that disagreement can be settled, as any debate, by giving reason to one of the parties involved. However, these readings have tended to disregard that, in the Foucault/Derrida exchange, there is an excess that overflows the logics and principles of debates in general. This, since to donner la raison to one of the names involved in the discussion implies overlooking the fact that the “debate” itself – if we can even call it a “debate” – is concerned with the very limits of reason and meaning in general. In this article, I will present a commentary on Derrida’s essay “To do Justice to Freud: The History of Madness in the Age of Psychoanalysis”, with the aim of tracing what cannot be re-appropriated by the presuppositions of a debate. In other words, I will focus my attention on some gestures and elements that cannot be ruled by the reassuring figure of an author who can respond for its rubric and be held responsible for an argument. Instead, this exchange will be read as a movement of compulsion to repeat itself which allows madness to return over and over again, not as a language alien to reason (like Foucault suggested), but as a disarrangement of the principles of authorship, non-contradiction and linear time. Using Derrida’s expression, I will approach these maddening repetitions as a “[…] torment interior to meaning in general.” (DERRIDA, 2005, p. 46). Thus, by analysing the question “who announces the nonrecourse?” (posed by Derrida, but inspired by the Foucauldian project), I will defend that Derrida’s own writing is affected – by means of transference – by the necessity and impossibility of not repressing unreason. However, this should not be interpreted as a contradiction or mistake on Derrida’s behalf, but as a symptom that he inherits from Freud’s and Foucault’s common project of listening to madness. As I will show, this inherited compulsion and its rhythm are embraced by Derrida and expanded in order to evidence, through their movements, that “[…] reason is madder than madness.” (DERRIDA, 2005, p. 76). Following this line of inquire, I will claim that even though Derrida questions the possibility of writing a history of madness, he compulsively writes his own resistance by reproducing (in the form of a debate that gives and takes reason) the Foucauldian quest for a “beyond of reason”. This repetition compulsion not only keeps re-opening the debate. But more importantly, it triggers the return of unreason as a disarrangement of the principle of identity which destabilizes any authorial ground for a history of madness in general and for any of its critiques. I am not, however, suggesting that both authors are guilty of the same fault. That would imply to remain working under the constraints of a debate. Instead, I will show that when analysing this chapter from French intellectual history it becomes irrelevant to ask who is right or wrong. This, insofar that distinction and pretension erases the fact that, as both authors claim, “madness” is inextricably linked to the possibility of meaning in general.[114] Thus, I am interested in displaying the effects of repression and “eternal return” of unreason in a scene of writing that faces the limits of its own possibility. In this case, the madness of this “debate” is that in “To do Justice to Freud” the notion of authorship is gradually disseminated, insofar the transference of its compulsion to repeat itself impersonates Freud’s, Foucault’s and Derrida’s name, making it impossible to differentiate between “parties” that can be accountable for their arguments. Finally, by tracing this uncanny repetition, I will show that the essay “To do Justice to Freud” allows to read madness, not as another language or as a primal murmur foreign to logos, but as a compulsive rhythm that messes with principles such as authorship, linear time and of no contradiction.

 

1 To donner la raison

Before submerging myself into the currents of Derrida’s text, I would like to open the archive of the debate yet another time. I am aware it is, as Geoffrey Bennington puts it, “[…] a well-trodden ‘debate’ […] which has arguably been a dialogue de sourds.” (BENNINGTON, 2016, p. 205). This dialogue of sourds has mainly inspired two distinct types of reactions, as Bennington (2016, p. 205) continues:

[…] historically inclined readers are impressed by the historical nature of Foucault’s reply to Derrida and his parting jibe at Derrida’s supposedly “historical well-determined little pedagogy”, and philosophically inclined readers are more impressed by Foucault’s failure to respond to Derrida’s more general questions except by means of invective.

 

This division between these two groups has been referred by Antonio Campillo (2000) as the difference between a quasi-transcendental and a quasi-empirical approach to history and by Amy Allen (2016) as a clash between a transcendental critique and an immanent critique of reason. Regardless of the fact that these distinctions hardly do justice to the intellectual richness of the debate and of the literature inspired by it, they still convey a certain compulsion to pick a side, either on the side of history/empiricism or of philosophy/theory (FLAHERTY, 1986, p. 155). Renowned authors such as Slavoj Žižek, Edward Said, Gayarti C. Spivak, Carlo Ginzburg and Jürgen Habermas have taken a stand in this debate, and they have been followed by an ever-growing number of researchers that keep commenting this debate as a debate.

The publication in 2016 of the book Foucault/Derrida: Fifty years later, edited by Olivia Custer, Penelope Deutscher and Samir Haddad, stands as proof of the way in which the Derrida/Foucault debate has become a tradition. This work is remarkable not only because it gathers very interesting essays by influential authors, but also because it captures very well the main positions on the debate and reproduces their respective trenches. There is a first group of essays that aligned with Foucault’s famous response: 1) claims that Derrida  misread the Cartesian Cogito (Pierre Macherey), 2) argues that Derrida could not appreciate the value of Foucault’s archival thinking as a form of groundless ground (Lynne Huffer), 3) portrays Derrida as a Hegelian metaphysician that violently imposes the teaching of philosophy (Colin Koopman) and 4) asserts that Derrida did not understand Foucault’s immanent critique of reason because he just reproduces the tradition of transcendental philosophy (Amy Allen). Then, there is a second group of readers that, following Derrida’s critique: 1) unpacks Derrida’s understanding of the concepts of “violence” and “hyperbole” beyond the Cartesian discussion to show how they operate in Derrida’s later work (Michael Naas), 2) shows how Foucault’s virulent response to Derrida misses the point of the complexity of his approach to philosophy and pedagogy (Samir Haddad), 3) rearticulates Derrida’s original critique in light of Foucault’s later work in order to show the way in which his lack of a theory of reading makes it impossible for him to be accountable for his metahistorical enunciative position (Geoffrey Bennington) and 4) unpacks one of the multiple arguments of Derrida’s “To do Justice to Freud” in order to display the way in which Derrida’s deconstruction is not limited to Foucault’s early work (Robert Trumbull). And lastly, there is a fairly new tendency to advocate for the reconciliation of these two thinkers. This attempt at bridging their differences operates by means of resorting to works that are not directly related to the debate to supplement the fallacies of the dialogue of sourds. In this group, we find: 1) interesting attempts to bridge the differences between Foucault and Derrida by claiming that in their later work both of them transformed the transcendental question (Thomas Khurana), 2) efforts at showing that Derrida’s critique influenced Foucault’s concept of “critical ontology of ourselves” and his later understanding of history (Judith Revel), 3) essays that show how Derrida’s sexual difference and Foucault’s biopolitical analysis on motherhood  enhances the perspective of the other (Penelope Deutscher) and 4) works that  vindicates the intellectual benefits of approaching Derrida’s and Foucault’s corpus from the perspective of their combined legacy in a non-antagonistic manner (Olivia Custer). It is way beyond my possibilities to do justice to the compelling and interesting emphasises, turns, arguments and possibilities that each of these works provides, nor my intentions to simply disregard them as “wrong interpretations”. They actually form an invaluable archive on which my reading is anchored. It is fairly clear how the first two groups fit into the idea of the debate as a debate, however the third one is not. The latter provides very interesting inputs for understanding the shared problems, perspectives and concerns of an entire generation of French thinkers from a collaborative perspective that resists the allure of conflict, antagonism and sectarianism. Nonetheless, an uncomfortable sense of finitude and reconciliation sits at the core of this last tendency. These readings still operate under the aim of overcoming difference and thus to reappropriate negativity. It is a pragmatic choice sustained by a very reasonable decision that allows us to look for new inputs and possibilities for critical thought. But, in this choice, there is something about not tolerating conflict, disorder, incompleteness and (why not?) a bit of unreason as well. But then again, there is good reason for that: this quarrel is 50 years old and they did not even listen to each other! Thus, the impulse to fix this by acting as mediators that can re-establish the broken dialogue is almost of good taste and manners. However, we should not forget that the entire discussion revolves around the problem of undecidability, the limits of reason, the aim of not reappropriating negativity and the eternal return of the repressed. Thus, any decision involved in the resolution of the debate will trigger the repetition of the debate itself about the possibility of not reappropriating unreason, which will keep us blind to its maddening compulsion to repeat the drive for resolution.

 

2 To Enunciate Madness

It is time for us to read the “debate”. Regardless of all the acknowledged impossibilities, Foucault wanted to write his Histoire de la folie in a “relativity without recourse”, that is to say, in a language without support of the logos.[115] This, as an attempt to reproduce an “[…] obstinate murmur of a language talking to itself – without any speaking subject and without an interlocutor.” (FOUCAULT, 2006, p. XXXI). This premise led Derrida to open the “debate” in 1963 by asking the following questions:

[…] who enunciates the possibility of nonrecourse [le non-recours]? Who wrote and who is to understand, in what language and from what historical situation of logos, who wrote and who is to understand this history of madness? For it is not by chance that such a project could take shape today (DERRIDA, 2005, p. 44-45).

 

This questioning of the “who”, as the author of a “nonrecourse” that was written “today”, is at the core of Derrida’s critique of the Foucauldian project. These questions refer to Foucault’s pretention of opening an “empty space” (without recourse or support on the logos) in which “madness” enunciates itself. That is to say, as a text in which madness becomes the author of its own discourse. Thus, in these questions there is some kind of “core” of the debate that highlights the fundamental contradiction of the Foucauldian project of trying to narrate, in the form of a chronological history, an experience that should be alien to any structure of meaning.[116] However, they have not received much attention in the literature of the “debate”. One of the only exceptions is Geoffrey Bennington’s work (2016, p. 219) to which I will come back later in this article. It is no accidental that when Derrida re-opened the “debate” in 1991, he reproduced these exact same words that resisted the changes of tone and emphasis, that marked a silence of 28 years. What is at stake in this quote is the permanence of the query about the condition of possibility for writing – in a particular “today” – a history that pretends to be written in a language without recourse of the logos and its authorial ground. Derrida inherited this aporia by facing, in a first instance, the necessity for transgressing the margins of logos to question the possibility of conceiving madness without reproducing the violence of reason. And, in a second instance, by facing the impossibility of enunciating madness without falling back into reason. From Derrida’s perspective, it is impossible to move beyond logos in order to listen to madness in a pure state. Any attempt would be doomed to repeat the repression of unreason by the language of reason. However, Derrida insists in asking Foucault’s question: “who enunciates the possibility of nonrecourse?”, not in order to look for an outside of language. Instead, he wanted to show, through the compulsive and uncanny movements of his writing, that reason and madness are inextricably linked. In this sense, Derrida’s repetition of Foucault’s question implies a change of emphasis marked by an understanding of madness as a constitutive part of reason, and not as an isolated element that pre-existed the reason/unreason binominal opposition.

 

3 Histories of Madness

As Derrida claims, Foucault wanted “[…] madness to be the subject of his book in every sense of the word: its theme and its first-person narrator, its author, madness speaking about itself.” (DERRIDA, 2005, p. 39). This is the relativity without recourse on which Foucault sustains his book. However, as I already stated, Foucault openly recognizes the difficulties that his project faces. Thus, Derrida’s attention on this issue should not be understood as a mere critique, but as a problematization of an issue already acknowledged by Foucault.

In “Cogito and History of Madness”, Derrida addresses this problem from two perspectives. Firstly, he recognizes that Foucault’s book was written from a relativity without recourse and questions the condition of possibility for this event to have taken place. Secondly, he criticizes the notion of “madness” that Foucault relates to the relativity without recourse. With respect to the latter, Foucault’s notion of madness, according to Derrida, is based upon the assumption of a “pre-history” in which logos had no contrary and the binominal relationship between reason and unreason did not exist yet. Thus, for Derrida, the history that Foucault narrates presupposes the previous existence of a unitary logos that allows him to conceive the idea of an original “madness” in “natural” or “wild” state. Derrida argues that Foucault, by grounding his premises on a pre-historical unity, his narrative relies on a foundational event (“the Cartesian exclusion”) which broke the “original unity” of logos by founding the “classical age” on the constitution of the reason/unreason binominal opposition. Derrida criticises this a priori arguing that, by writing a history that is opened by the decision that separates reason from unreason, Foucault “[…] runs the risk of construing the division as an event or a structure subsequent to the unity of an original presence, thereby confirming metaphysics in its fundamental operation.” (DERRIDA, 2005, p. 48). Therefore, the intention of narrating a Histoire de la folie in itself takes part of the doctrine of classical logos, insofar as it presupposes that reason has a contrary which can be unveiled and that does not correspond to the distribution of truth that derives from the “Cartesian exclusion”. Thus, Foucault would be reproducing the logos of metaphysics from which derives the notion of reason that he tries to avoid.

But that is not all. Derrida also claims that, even if the Foucauldian project would not depend on this a priori, the idea of making a division between reason and unreason to conduct an archaeology of one of its parts also reproduces the binominal differences of metaphysics. Subsequently, by attempting to trace the path of unreason (which can only be thought in contraposition to reason), Foucault would be falling into the unescapable repetition of the reclusion/division of madness. In a nutshell, Derrida states that Foucault, by essentializing madness, inevitably repeats the tradition of classical logos. And by doing this, he contradicts his pretension of trying to escape “every original division” in order to let “madness enunciate itself”. However, Derrida is aware that Histoire de la folie was still written, that the nonrecourse has been enunciated, and therefore, he keeps questioning the condition of possibility for writing a Histoire de la folie. Derrida is aware of the impossibility of the project, yet still, he compulsively returns to this problem in his writings.  Nevertheless, the words that he quotes and re-quotes from Foucault’s book take a completely different meaning in Derrida’s writings. For Derrida is not that Foucault achieved the impossible task of opening a space where madness itself could be listened to. Instead of this, he realises that Foucault’s book, by repeating the maddening decision of repressing unreason, reveals the madness from within reason. In other words, the impossibility for Foucault to enunciate madness is what allows reason to reveal its madness. This “other” type of madness, which always already seems to have been smuggled into the realm of reason, is what mobilizes Derrida’s analysis in “To do Justice to Freud”.

 

4 To do Justice to Freud/Foucault

The problem of the repressed is directly addressed in the text “To do Justice to Freud”. This essay announces in its subtitle (“The History of Madness in the Age of Psychoanalysis”) a methodological declaration of principles that reveals a certain contemporaneity between the enunciation of a nonrecourse and a specific “today”. This distinction is what drives Derrida’s change of emphasis and reading criteria in this return of/to the “debate”. His analysis does not consist (anymore) in addressing the time of classical age. In its place, it is a particular “now”, from which Derrida re-frames the question for the condition of possibility of a Histoire de la folie. Thus, he places at the centre of his queries the “age of the book” (DERRIDA, 1998, p. 76). However, this does not constitute a mere change of time frame of the object analysed. Rather than that, what emerges in this temporal displacement is a re-adjustment of the understanding of the subject/object opposition by means of the introduction of the Foucauldian notion of “objectivization”. By resorting to the concept of “objectivization”, Derrida wants to question the object/subject opposition in order to argue that Foucault’s “classical age” would be intrinsically related to an “age of psychoanalysis”. This, insofar the latter constitutes the place of enunciation from which it is possible to conceive a “classical age” in the first place.[117] This approach blurs the opposition between context of production and historical object. According to Derrida, maintaining it would “[…] be neither possible nor just, and hardly faithful to Foucault’s own intention.” (DERRIDA, 1998, p. 76). Therefore, in order to do “justice to Foucault”, Derrida claims that he “[…] regularly attempts to objectify psychoanalysis and to reduce it to that of which he speaks rather than to that from out of which he speaks.” (DERRIDA, 1998, p. 76). In other words, Foucault would be writing of and from “the age of psychoanalysis”, which blends the enunciative position with the object of the book.

Having said this, a question remains: what does Derrida understand by age of psychoanalysis? In the introduction of the book Résistances de la psychanalyse, Derrida refers to a bleak present of the psychoanalytic institutions that derives from two types of resistances. On the one hand, as a result of the European antipsychiatry movement of the 60’s and 70’s, there is what he refers as to a generalized (social and institutional) resistance and fear towards psychoanalysis (DERRIDA, 1998, p. VII). On the other hand, this first resistance coexists with another resistance that has “always already been there”: the resistance of psychoanalysis to itself. This resistance has been part of Freud’s practice since its beginnings, and it is encapsulated in the Freudian concept of “resistance to analysis”. It is the resistance experienced by the analyst that pretends to speak and understand the language of madness at the same time that he/she faces the patient’s irreducibility who resists analysis. According to Derrida, both resistances constitute “[…] perhaps one of the cards dealt to our time.” (DERRIDA, 1998, p. VIII). Hence, to approach Derrida’s reading of Histoire de la folie, we must understand that the age of psychoanalysis is founded upon a crisis that transgresses Foucault’s project twice. Firstly, his book was conceived as a critique of every institution that derives from the tradition of the objectivization of mental health. Secondly, Foucault faces the impossibility of listening madness in its own language, as far as his book must be written from within the reason/unreason binominal opposition. Thus, Foucault’s place of enunciation would be marked by a resistance to psychoanalysis and a resistance of psychoanalysis, and this places him in a contemporaneity to the “age of psychoanalysis”. This specific “place of enunciation” opens the possibility to voice a discourse that is presented as a discourse without recourse of the logos. Thus, since Foucault’s project is crossed twice by the psychoanalytic legacy, his discourse, like the one of the “analyst” that fails to listen to madness, is affected by the transference with its object/subject of study.[118] That is to say, Derrida’s interpretation of Foucault’s book presupposes a heritage that is common to the analyst and the author who faces the impossibility of listening to madness without reproducing the reason/unreason binominal opposition. Thus, the madness of this situation is that the thematic shore of the book commences to affect the thematizing one, that is to say, the scene of writing in general.

The importance of the concept of “Age of Psychoanalysis” and its relation to the problem of inheritance and transference in “To do Justice to Freud” have passed largely unnoticed in the literature of the “debate”. Scholars have mainly focussed their analyses on elements related to mourning (NAAS, 2003), hospitality (BOOTHROYD, 2005), the archive (ARVATU, 2011) or on the way in which Freud’s understanding of the duality pleasure/power allows for the deconstruction of Foucault’s concept of power (TRUMBULL, 2016). One reason that explains this could be that a shorter version of this essay was published in English in The Work of Mourning, a book that has received more attention than Résistances de la psychanalyse where the concepts of transference, age and fort/da are treated more explicitly. However, we can only speculate on how this might have affected the reception of this essay in the Anglophone tradition.

Alongside the embracing of the concept of “age of psychoanalysis”, Derrida introduces a range of psychoanalytic concepts to approach Foucault’s work. For this purpose, he re-directs the reader to his essay “To speculate – on ‘Freud’” in different parts of the text. An example of this shift is when Derrida, after alluding to different Freudian concepts, calls for the need of moving from the problem of the Cartesian Evil Genius (which he addressed in Cogito and History of Madness) to the demoniac in Freud. In Derrida’s words, what is at the core of “To do Justice to Freud” is

[…] to recall the necessity of taking into account a certain Evil Genius of Freud, namely, the presence of the demonic, the devil, the devil's advocate, the limping devil, and so on in Beyond the Pleasure Principle, where psychoanalysis finds, it seems to me, its greatest speculative power but also the place of greatest resistance to psychoanalysis (death drive, repetition compulsion, and so on, and fort/da!). (DERRIDA, 1998, p. 86).

 

This quotation, along with introducing the coordinates that Derrida follows to re-interpret the problem of the Evil Genius in Foucault, directs our attention to Freud’s Beyond the pleasure principle. In this book, Freud’s demoniac represents the possibility of speculation and, at the same time, the strongest resistance to analysis. Thus, Derrida, by borrowing some psychoanalytical concepts, defines Foucault’s book as the writing of a fort/da. And, as he asserts in “To speculate – on ‘Freud’”, the depiction of every fort/da must be interpreted as a reading pattern for the gestures and movements that are present in the narration of “another” fort/da. Accordingly, he writes: “[…] the scene of writing does not recount something, the content of an event which would be called the fort/da. This remains unrepresentable, but produces, there producing itself, the scene of writing.” (DERRIDA, 1987, p. 336). Consequently, Freud/Foucault’s text is confined to represent a resistance to analysis in the repetition of its own writing. There, the fort/da constitutes, using some of Derrida’s expressions, a “saccadic rhythm” (between “to limp” and “to falter”), a detour that always comes back, “[…] ‘a beyond…’ that walks without advancing one step.” However, this same resistance, by framing the scene of writing, constitutes the condition of possibility for the analyst to write. This, as long as the transference opens a space where an exchange between psychoanalysis and the patient’s irreducibility can take place. Therefore, the transference operates as the only condition in which the analyst can “bridge” the object/patient resistance to the “repressed”. But once again, we must bear in mind that the “[…] transference itself displaces, but it only displaces the resistance. It operates a resistance, as a resistance.” (DERRIDA, 1987, p. 339). Thereby, Derrida expresses that transference neurosis triggers an eternal tendency to reproduction. That is to say, to a “compulsion of repetition” of and in Freud/Foucault, which sets the foundations for a writing that spins while eternally reproduces its resistance. Consequently, it unleashes the advent of multiple doubles that come to occupy the place of the “original” resistance.

Hence, according to Derrida, the Freudian/Foucauldian scene of writing faces its resistance. It inherits it and writes it down in the form of a resistance to/of psychoanalysis. It is the outstanding debt that both authors contracted with the theoretical language that allows them to repeat the transference. It is a debt that opens an “age of psychoanalysis” which is marked by the acknowledgement of a resistance to analysis and by the need to have recourse to a kind of language that provides them with the foundations for a discourse without recourse. Bennington has referred to the problem of borrowed language in Foucault by “scattering” his concept of Parrhēsia. He asserts that “[…] whereby Foucault has to borrow his resource from his object without explaining how he does so, goes along with a parallel fudging of the question of reading. Foucault has no theory of reading and cannot have one within the terms of his discourse.” (BENNINGTON, 2016, p. 216). This issue is manifested symptomatically in Foucault’s work as an impossibility to account for any metahistorical a priori that could allow him to “distinguish” his enunciative position from his objects of study.

 

5 The Doubles of the Repressed

From this (maddening) perspective, Derrida traces the effects of this Freudian transference in Foucault’s book. He claims that, in the book there are two figures that represent the “eternal return of the repressed”. Two figures that, by standing at the edge of the “place of enunciation” of Histoire de la folie, disjoint its chronology. Firstly, Derrida focuses his attention on the multiple apparitions and identities of Freud’s figure in Foucault’s narrative. Secondly, he analyses the different shapes that the “Evil Genius” embodies in the text, which are not constrained to the Cartesian cogito, since they represent different characters that, by means of metonymy, come to embody the Freudian demoniac.

He begins with Freud who is depicted by Foucault as a fragmented figure: he personifies two identities and inhabiting two temporal structures. Regarding time distribution, Derrida interprets the multiple placings of the “Father of Psychoanalysis” in Foucault’s book as a manifestation of what he denominates as the “pluralization of psychoanalysis”. Chronologically speaking, Foucault’s Freud is divided: in some passages, he belongs to the “classical age” and, in others, he belongs to the contemporary age. Freud is constantly re-situated between ages. This “father figure” is used by Foucault as a historic artefact that allows him to refer to a new phase in the relationship between reason and madness. As “The Father of Psychoanalysis”, Freud has a place in this history of madness due to his pretension to re-open the dialogue with “madness” (DERRIDA, 1998, p. 97).

Regarding the meaning of these apparitions/repetitions of “Freud” in Foucault’s narrative, Derrida argues that Freud’s identity is also double. At first, Foucault introduces a “good Freud” that belongs to the tradition of the “mad geniuses”, who are presented as people that allowed the mad “to stop being mad”.[119] In this sense, the psychoanalytical attempt at listening the “mad ones” in their own language, according to Foucault, would re-open the dialogue that the division between reason and unreason has broken (assuming that that is possible).[120] But then, Freud is also endowed with an antagonistic role that situates him in the “tradition of asylum”. However, for Foucault, Freud also embodies and perpetuates the doctor’s thaumaturgical powers since he is the one who confines and diagnoses the “mad ones”. Thus, alongside the “good Freud” stands a “bad Freud”; a Freud that, even though keeps trying to re-open the dialogue with madness, is condemned (as any doctor) to constantly face his limitations and the resistances to analysis. This inevitably perpetuates the monologue of reason. Consequently, in the Foucauldian reading that Derrida displays, the “bad Freud” remains trapped in the asylum that the Cartesian exclusion inaugurates. This duplicity in/of Freud should not be considered as a critique of a historical contradiction, but as an effect of the legacy of the “age of psychoanalysis”. Furthermore, as Christopher Johnson shows, in Derrida’s essay “Freud and the Scene of Writing” Freud is also a twofold figure. He belongs both to the tradition of logocentric metaphysics and his “[…] discourse is at the same time foreign to the tradition which, since Plato and Aristotle, has consistently used graphical metaphors to illustrate the relationship between reason and experience, perception and memory.” (JOHNSON, 2005, p. 68). Thus, it could be argued that this duality, in the treatment of Freud, could be related to the different positions that characterize any figure that stands at the edge of two historical structures. Nevertheless, Derrida goes a “step beyond…” by showing that what makes this distribution of historical identities even madder is that Foucault’s Freud is not only standing at the edge of the “classical age” and the “contemporary age”. If we carefully follow Derrida’s analysis, it can be observed that the distribution of Freud in the text depends on a chiasmatic effect that disjoints the temporal apparitions of the “Father of Psychoanalysis”. The range of action of the “good Freud” (as the analyst that re-opens the dialogue with madness) is delimited to the time and space of the “contemporary age”. However, this temporal placement is described by Foucault as a return. It is Freud’s return to a moment that is prior to the “Cartesian exclusion”. It is the arrival to a point that is before the “classical age”. A moment that takes place, according to Foucault, during the constitution of the age that opens and perpetuates the historicity of this history, by means of the constant reproduction of the disruption of the reason/unreason dialogue. Thus, the “madness” of the Foucauldian project is that Freud is given an identity as “contemporary man” only by returning to a moment that is prior to the “classical age”. The chronology of Histoire de la folie blends “past” and “present” in a synchronic movement that re-introduces (by endlessly returning/advancing and multiplying its temporal structures) a Freud that is always already divided from within. By following the traces of these multiple “apparitions”, Derrida argues that the condition of possibility for announcing this discourse without recourse is given by a certain belonging to an “age” that inherits a psychoanalytic language. Thus, this condition of possibility made Foucault’s book contemporary to Freud and to his resistance to analysis in return. Nevertheless, this is not the most decisive effect of Derrida’s use of the Foucauldian concept of objectivization. He advances yet another step “beyond…” in order to return – as a “compulsion of repetition” – to the figure of the Evil Genius to re-interpret it in relation to the “age of psychoanalysis”.

As I asserted before, with the adoption of the concept of “age of psychoanalysis”, Derrida introduces a repertoire of concepts with psychoanalytic filiations; one of those is the demoniac in/of Freud.[121] This figure comes to occupy the place that the Cartesian Evil Genius has in Cogito and History of Madness. In “To do Justice to Freud”, the threat of the Evil Genius is radicalized and generalized by means of hyperbole.[122] At this stage of the “debate”, the threat is not delimited or exclusively restricted to a “classical age” constructed by Foucault. Instead, through the scene of writing, the place of enunciation (the frame of Foucault’s book) becomes threaten by multiple avatars of the Evil Genius. According to Derrida, these manifestations of the “demoniac” are constantly being multiplied by means of a regular metonymic operation in Foucault’s writing, in which figures such as “the divine”, “the demoniac”, “evil genius”, among others, come to represent the “eternal return of the repressed”. Consequently, the acknowledged impossibility (by Foucault) of temporalizing madness through the chronological language of reason, is reproduced in/by the analyst/author that writes/repeats his own resistance to analysis. Thus, what emerges with the recourse of Foucault’s language would be the transference and repetition of an age of psychoanalysis which marks the impossibility for enunciating madness without falling into the “compulsion of repetition” of the “original” resistance. In this sense, this scene displays the unavoidability of a return that challenges the distinction between representation and apparition. Moreover, in Derrida’s (1987, p. 270) words:

[…] the devil comes back [revient] in a mode which is neither that of an imaginary representation (of an imaginary double), nor that of an apparition in person. His way of coming back [revenance] defies such a distinction or opposition. Everything occurs and proceeds as if the devil “in person” came back [revenait] in order to double his double. So, as a doubling his double, the devil overflows his double at the moment when he is nothing but his double, the double of his double that produces the unheimlich effect.

 

This uncanny multiplying effect alters the reassuring order of representation by reproducing a duplicity of the “original” double as a fundamental form of the “diabolical”. This makes it impossible to conceive any simple “origin” nor to distinguish between “presence” and “absence”, and by no means to gain access to the “experience of madness in itself”.

Another of the “advents” of the demoniac, that Derrida finds in Foucault’s book, is embodied by the doctor’s figure. In Foucault’s narrative, the structure of the asylum provides psychoanalysis with a “power” of “magical” attributions that derives from a form of thaumaturgy that operates by simulacrum. In different passages of the book, Foucault attributes demoniac features to medical knowledge which derives from the relationship of complicity that the doctor establishes with the patient. This patient/doctor relationship provides supernatural qualities to medical interventions inside the asylum (FOUCAULT, 2006, p. 507-509). The interesting thing about these passages is that this “return of the demoniac” complicates even further the chiasmatic representation of Freud as a doctor. With Freud/doctor’s arrival, the demoniac stops representing the threat of unreason and re-appears under a “moral power” which is based upon a secret that, as Foucault writes, is “almost demoniacal.” (FOUCAULT, 2006, p. 509). Thus, at the asylum, the demoniac takes control over the mad patient’s figure and the doctor’s one alike. At this stage of the analysis the displacement is total: the Evil Genius threatens the scene of writing in general without distinguishing between reason and unreason. Foucault/Freud is eternally threatened by the internal division of reason and unreason, which is transferred and repeated by the analysist and his object. Hence, in all these chiasmatic repetitions of the Evil Genius of/in Foucault/Freud we find over and over again, as Derrida writes: “[…] the Cartesian exclusion being repeated in a deadly and devilish way, like a heritage inscribed within a diabolical and almost all-powerful program that one should admit one never get rid of or frees oneself from without remainder.” (DERRIDA, 1998, p. 95). Consequently, Derrida’s argument consists of showing that Foucault writes from and about an “age of psychoanalysis” which is affected – by means of transference – by the fears, limitations and residues of psychoanalysis. Therefore, what provides the Foucauldian discourse its recourse to enunciate a discourse, without recourse is to speak from a historical proximity to madness that, in return, makes him pay the price of being “eternally threatened” by the demoniac (inherited) from Freud.

 

6 “Who annunciates the nonrecourse?”

If I would to stop here, I could assert that Derrida has “answered” the question “who announces the nonrecourse?” Moreover, I could even say that he has “found” the condition of possibility for a Histoire de la Folie. However, defending such a statement would imply trusting too much in the psychoanalytical solution and forgetting, once more, the role of transference. Derrida’s entire argument is rooted on one idea: “Foucault writes about and from an age of psychoanalysis.” That is to say, he writes from a particular “today” that provides him with the discursive foundations to articulate a discourse without recourse, which, as I have shown, unavoidably makes it impossible to distinguish between object and subject. Nevertheless, would not a specific age be preceded and overflowed by the same history that makes it possible? I have been defending that Derrida’s reading is based on an historical positioning of Foucault’s book through the concept of objectivization. This reading protocol implies melting the borders that divide the object (“classical age”) from the subject (Foucault in the “age of psychoanalysis”). However, Derrida is aware that “to do justice” to Foucault also implies to consider that the concept of objectivization cannot be isolated from the concept of subjectivization, insofar both concepts derive from modes of problematization. It is for this reason that, at the end of his essay, he returns to the concept of “age of psychoanalysis” to problematize it and to take yet another step “beyond…” without advancing a single inch. Derrida writes: “[…] the book entitled The History of Madness, like the history of madness itself, is and is not the same age as Freudian psychoanalysis.” (DERRIDA, 1998, p. 100). What this paradoxical sentence introduces is the necessary fragmentation of Foucault’s identity in relation to his belonging to a particular place of enunciation. Thus, instead of closing the “debate” to remain the author that exposed “Foucault’s contradictions”, Derrida decides to take the repercussions of his deconstructive work seriously and to keep proceeding consistently towards its ultimate consequences. This, in order to demonstrate that he is dealing with a structural issue that cannot be contained nor controlled by any authorial agency (including his). In other words, Derrida shows to be aware of the effects that derive from using a borrowed language to announce a nonrecourse, not only in his deconstruction of Freud/Foucault’s work. But, instead of limiting his reading solely to unveil how this aporia operates in the work of other authors (a gestures that could easily be appropriated by the structure of a “debate”), he displays the way in which his writings cannot escape this same maddening principle. He is “now” the one that places the author of Histoire de la folie at the edge. It is the return of a constitutive impossibility which announces the Demoniac’s most radical apparition: it no longer represents a threat confined to the “classical age”, neither a threat that prefigures an “age of psychoanalysis” that, in 1961, made (im)possible Foucault’s book. “Now”, it is a threat that emerges from within the scene of writing from which Derrida writes in 1991. It is the “final” threat, one that disrupts all our (already internally fragmented) formulations and makes it impossible to establish a secure relationship of identity between Foucault and “the age of psychoanalysis”. Let us follow the traces of this “last” fort/da.

In “To do Justice to Freud”, Derrida updates the “debate”. On the one hand, he comes back to his 1963 arguments by re-interpreting them under the light of psychoanalytical concepts. On the other hand, he attempts “to do justice” to Foucault by applying Foucault’s concept of objectivization to problematize his “place of enunciation”, according to his later work. It is important to consider that for Foucault the exercise of problematization implies to critically assess the universe of practices of the self, on which every subjectivization and objectivization emerged intertwined with the context in which men became and object for knowledge.[123] Therefore, in his later works, he resorts to practices of problematization that allows him to dismantle the structures of power that shape the subject, and one of these practices is the exercise of historical writing. This specific practice of problematization is described by Foucault in the text “What is Enlightenment?” In this essay, he situates Kant as part of a critical tradition that he denominates Historical Ontology of Ourselves which he defines as the philosophical ethos constituted by a modern limit-attitude of permanent critique of our time. This standpoint, according to Foucault, constitutes an approach to critique that must, he writes, “[…] move beyond the outside-inside alternative; we have to be at the frontiers. Criticism indeed consists of analysing and reflecting upon limits.” (FOUCAULT, 1997, p. 315). Thus, the limits must not be understood as contours of possible knowledge, but as spaces of transgression on which we must exert our own freedom in order to resist historical determinations. Therefore, for Foucault, through a re-interpretation of Kantian ideas, “the present” – as the place of enunciation of contemporary philosophy – becomes part of the same critique in which the thinker’s discourse roots the possibility of his/her critique. Consequently, the critical practice of the constitution of the self (as part of the problematization of the process of objectivization) also forms part of the problematization of the process of subjectivization.

We should not be naive in believing that Derrida’s use of this Foucauldian framework for placing Foucault in a temporal distribution (the age of psychoanalysis) is exempted from these paradoxes. Particularly since from this perspective he addresses the possibility of announcing a nonrecourse as a critical way of exerting freedom. Therefore, Derrida inherits, exposes and expands the Foucauldian paradox of a problematization of a problematization that compulsively repeats the predetermination/freedom duality. In other words, by incorporating into his analysis a borrowed language (objectivization, subjectivization and problematization) in order “to do justice to Foucault”, Derrida reproduces, as a debt/legacy, the paradoxes of Foucauldian ethics that derive from the attempt to imagine ways to free the subject from the structures of power. Thus, as Derrida shows, it is no longer possible to determine who announces the nonrecourse, if it is Foucault writing a history of madness, if it is Freud and the legacy of psychoanalysis talking about himself/itself, or if it is Derrida repeating his return to the “debate”. We cannot determine the authorship of any of these (im)possible annunciations. Thus, the problem of using a “borrowed language” goes beyond Bennington’s critique of Foucault’s lack of a theory of reading (BENNINGTON, 2016, p. 216), since it also affects the determination of any historical figure that is indebted to an “age of psychoanalysis” which includes Derrida’s writing as he was consistently aware.

Derrida returns to the question for a “today” that allows a subject to announce a nonrecourse by asking who is the subject of that announcement though the problematization of the “age of psychoanalysis” to which Foucault belongs and does not belong to. Thus, what returns with/in this essay is the question for the place of enunciation and the subject that enunciates what appears in the form of a fort/da. It is a fort/da that as any fort/da will tell us more about the scene of writing of a Derrida that inherits the Foucauldian play of eternally problematizing its own problematization, than about the subject it attempts to analyse. Hence, the idea of a “debate” (which heavily relies on the notion of authorship) collapses as Derrida (1998, p. 109) writes:

[…] the “we” who is saying “we think in that place” is evidently, tautologically, the “we” out of which the signatory of these lines, the author of The History of Madness and The Order of Things speaks, writes, and thinks. But this “we” never stops dividing, and the places of its signature are displaced in being divided up. A certain untimeliness always disturbs the contemporary who reassures him or herself in a “we.”

 

Derrida openly drops the possibility of recognizing the historical stability of a single Foucault that can be situated in an “age of psychoanalysis”. That is to say, he abandons the “today” from where the “we” speaks.  Instead, he writes about the “now” as a space of transgression that disrupts every identity and sense of belonging, and eternally divides and blends the “inside” and the “outside”. However, Derrida takes yet another step “beyond…” by alluding to the Foucauldian concept of “contemporary men” in order to transgress the limits of his own historical positioning by asserting:

[…] this “we,” our “we,” is not its own contemporary. The self-identity of its age, or of any age, appears as divided, and thus problematic, problematizable (I underscore this word for a reason that will perhaps become apparent in a moment), as the age of madness or an age of psychoanalysis – as well as, in fact, all the historical or archaeological categories that promise us the determinable stability of a configurable whole. (DERRIDA, 1998, p. 109).

 

Derrida’s use of the Foucauldian objectivization that, in a first seemed to allow us to find the condition of possibility of writing a history of madness, “now” drives Derrida to the problematization of a problematization. That is, to a paradox which precludes him to recourse to any stable place of enunciation that could sustain his writing. In face of this situation, Derrida questions the condition of possibility of history in general, by asking if this disparagement of principles, this difference to the self, and always with the self, is what perpetually threatens historicity in general. He asks: “[…] would there be any history, would anything ever happen, without this principle of disturbance? Would there ever be any event without this disturbance of the principality?” (DERRIDA, 1998, p. 110). These questions and problems (re)appear in the text over and over again, without giving us a chance to reply. Thus, in face of the dominion of the “principle” (either of power or pleasure), Derrida “closes” the “debate” asking for the relationship of a “French Freudian legacy” and the Foucauldian attempt of going “Beyond…” the dominion of power in The Will to Knowledge. Thus, in the last pages of “To do Justice to Freud”, Derrida alludes to a legacy of Freud’s Beyond the principle of pleasure in the first volume of History of Sexuality. In this way, Derrida returns to Freud in order to defend that, in History of Sexuality, the father of psychoanalysis:

[…] would not only never let itself be objectified by the Foucauldian problematization, but would actually contribute to it in the most determinate and efficient way, thereby deserving to be inscribed on the thematizing rather than on the thematized border of this history of sexuality. (DERRIDA, 1998, p. 116).

 

Thus, Derrida refers to the problem of the frame in order to claim that the critical strategy of Freud’s writing would be inherited by Foucault. This, insofar both share the quest for a “beyond…” power/pleasure, which is triggered by the drive of a duality that moves between both principles without beginning or “origin”. For Foucault, power is mobile and essentially dispersed in such a way that its movements cannot be attributed to any given subject. Moreover, he claims that it emerges from countless scattered points of resistance. In his History of Sexuality: Volume I, he challenges the power/pleasure opposition by showing how these two terms are intrinsically related to each other. This, insofar for Foucault, pleasure emerges penetrated by multiple manifestations of power to the extent that by means of repression, power re-directs and enhances sexual desire (TRUMBULL, 2016, p. 154). As Foucault asserts, the institutions that attempt to control unproductive sexualities

[…] function as mechanisms with a double impetus: pleasure and power. The pleasure that comes of exercising a power that questions, monitors, watches, spies, searches out, palpates, bring to light; and on the other hand, the pleasure that kindles at having to evade this power, flee from it, fool it, or travesty it. The power that lets itself be invaded by the pleasure it is pursuing; and opposite it, power asserting itself in the pleasure of showing off, scandalizing, or resisting […] These attractions, these evasions, these circular incitements have traced around bodies and sexes, not boundaries not to be crossed, but perpetual spirals of power pleasure. (FOUCAULT, 1978, p. 45).

 

Many years before, Freud approached the power/pleasure opposition in Beyond the Pleasure Principle in order to speculate on the possibility of finding an “original drive for mastery” that could operate independently of the pleasure principle. However, by relating the concept of mastery to his drives theory, he found a structural dualism where neither life drives (from where the pleasure principle derives) or death drives (from where the power/master principle derives) can permanently overtake the other. Thus, they remain in an unsaleable tension. Hence, for Freud, the mastery of power is fundamentally compromised and, therefore, it cannot become a foundational force, which leads to a structure of eternal duplicity that mimics the devil’s march in a way that anticipates Foucault’s spiral of power pleasure. Moving through these coordinates, Derrida asks for the place that Freud would occupy in regard to the Foucauldian problematization. That is to say, he asks if Foucault would locate Freud on the side of the thematizing or the thematised shore. However, as the last recourse after Foucault’s death, Derrida can only imagine the principle of a reply, and by sketching a hypothetical answer, he takes Foucault’s place and writes:

[…] what one must stop believing in is principality or principleness, in the problematic of the principle, in the principled unity of pleasure and power, or of some drive that is thought to be more originary than the other. The theme of the spiral would be that of a drive duality (power! pleasure) that is without principle. (DERRIDA, 1998, p. 117).[124]

 

The ending is the beginning

This “Foucauldian/Derridian” response (eternally) perpetuates the silence of a Foucault that can no longer answer. Then what remains is the repetition of a hypothetical response that resounds as an echo of Derrida’s voice talking about and for the two. This echo repeats and multiplies the question for the condition of possibility for a History of Madness. It is the eternal return of the scene of a fort/da that displays, over and over again, that the condition of possibility for history in general is its condition of impossibility. A contradiction in principle, that reproduces the division between reason and unreason, from within a “debate” between Derrida and Foucault. A “debate” that became a “compulsion of repetition” that eternally reproduces the question for the condition of possibility for the history of a “debate”. A history that does not stop writing itself, repeating, without giving reason to any of the parties involved, without reason, without parties, without any principle of reason…

 

¿Quién anuncia el no recurso?: El fort/da en Ser justo con Freud y en el debate entre Derrida y Foucault

Resumen: Este artículo consiste en un comentario del ensayo Ser justo con Freud: La historia de la locura en la era del psicoanálisis de Derrida con el objeto de rastrear lo que no puede ser reapropiado por la presuposición del marco del debate entre Derrida y Foucault. Al analizar la pregunta “¿quién anuncia el no-recurso?”, exploraré la forma en que la escritura de Derrida es afectada por la necesidad e imposibilidad de no reprimir la sinrazón. Argumentaré que Derrida compulsivamente escribe los efectos de dicha resistencia a no reprimir la sinrazón a través de la repetición de la búsqueda Foucaultiana de un más allá de la razón. Esta “compulsión de repetición’ no solamente reabre una y otra vez el debate, sino que desencadena el retorno de la sinrazón en la forma de un desarreglo de los principios de identidad y tiempo lineal, desestabilizando todo forma de autoría sobre la historia de la locura en general y cada una de sus críticas. Este artículo se aproxima a los intercambios entre Derrida y Foucault deconstruyendo la premisa de la posibilidad de un debate sobre la historia de la locura.

Palabras Claves: Fort/da. Locura. Psicoanálisis. Deconstrucción. Transferencia.

 

References

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Received: 02/06/2022

Accept: 22/08/2022

Dissolving the Self: the cognitive turn of the extended mind theory

 

Léo Peruzzo Júnior[125]

Amanda Luiza Stroparo[126]

 

Abstract: In this article, we intend to show how the theory of the extended mind, particularly Andy Clark’s arguments, can explain mental processes not as restrictive phenomena to the brain and endorse their connection to the body and the environment. Therefore, initially, we reconstruct the main materialist perspectives that have enclosed the self to the cranium; then, we indicate how the extended character of the mind escapes its natural limits and blends “shamelessly” into the world. We argue that external artifacts play an important role in guiding our actions, so that changes in the environment can cause changes in the behavior of the cognitive agent, what constitutes a constitutive dependence. In this way, the extended mind thesis challenges both traditional functionalism and externalism as it considers cognitive processes, on the one hand, to be relevant interactions of the individual with the environment and, on the other, intention-driven behaviors. Through the integration of biological bodies with artifacts or tools, we support a reading that dissolves the classic “explanatory gap” of cognitive sciences.

 

Keywords: Cognition. Self. Extended mind. Brainocentrism. Andy Clark.

 

Introduction

One of the most debated topics in cognitive science, philosophy of mind, neuroscience and psychology is, according to Shaun Gallagher (2013) and Richard Heersmink (2020), the “self” and its implications for certain perspectives of the mind. The question addressed by these sciences is to explain whether there is an agent behind human action and thought and, consequently, what would be the nature and limits of this agent. Thus, rather than demonstrating that there are phenomena or properties that we can refer to as “personal identity,” we need to understand how a semantic dilemma could form something more substantial. Throughout this discussion, we first argue that the misunderstanding originating from most theories of mind is that they presuppose the existence of the concept and, then, analyze its constitution.

According to materialist theories of the mind, mental states are an attribute of matter or the physical world, be it any or all matter, or a special state that exists in the highly organized nervous system of higher animals and humankind. Thus, the claim, that mental events are identical to neural events, has become rather peculiar, especially if we assume that neurophysiological concepts are highly complicated processes of branching patterns of neuron discharges. Thus, which ontological status should we assign to mental events that have appeared in a world hitherto considered monistically physical? Moreover, if that is really the case, should we dissolve the concept of self and situate it as an extension in the world?

In the article “The Self and Its Brain”, published in 1977, John Eccles and Karl Popper argued that the problem of the relationship between our bodies and our minds, especially the link between brain structures and mental dispositions, was an extremely difficult question. According to them, the self-conscious mind is an independent entity actively engaged in reading the multitude of active centers in the modules of the connecting areas of the dominant cerebral hemisphere.  In other words, “[…] the self-conscious mind selects from these centers in accord with its attention and its interests and integrates its selection to give the unity of conscious experience from moment to moment. It also acts back on the neural centers.” (POPPER; ECCLES, 1985, p. 355).

This argument, however, has yet another development: the self-conscious mind continues to play an interpretative role and superior control over neural events due to a bidirectional interaction at the interface between World 1 and World 2. What would this mean to cognitive science and the implications of a dualist-interactionist hypothesis? For the authors, the unity of conscious experience does not come from a final synthesis in the neural machinery but from the integration of the self-conscious mind concerning what it reads from the immense diversity of neural activities between brain connections.

            The primacy given to the self-conscious mind reveals that it would be responsible, on the one hand, for the unitary character of the experience and, on the other hand, for the relationship between the neural events in the connecting brain. Finally, the self-conscious mind would play an integrating role, giving a degree of correspondence between neural events and mental phenomena, but not of identity. The fact is that the unity of conscious experience is provided by the self-conscious mind, not through the neural machinery of the connecting areas of the cerebral hemisphere.  A neurophysiological theory, therefore, should be able not only to explain the diversity of brain events, that allows for a global character unified conscious experience, but also how “[…] the self-conscious mind is developed in order to give this unity of the self in all of its conscious experiences and actions.” (POPPER; ECCLES, 1985, p. 362). However, if there is a correlation between neural events and the unity of conscious experience, where, then, should we locate the self?

Patricia Churchland (2013), in Touching a Nerve: the self as brain, seeks to answer the above problem by assuming that neuroscience can reveal the physical mechanisms underlying psychological functions while acknowledging that the strategy can be extremely risky if one tries to explain the macrolevels (psychological properties) in terms of microlevels (properties of neural networks). In this sense, already in the first lines of her work, she states that “[…] my brain and I are inseparable. I am who I am because my brain is what it is. Even so, I often think about my brain in different terms  from those ones I use when thinking about myself. I think about my brain as that and about myself as me.” (CHURCHLAND, 2013, p.11). Therefore, to the extent that an empirical hypothesis is tested in a way that dissolves the higher-level capabilities of the human brain, we would also be doomed to reconstruct categories such as "memory,” "attention,” and "reasoning" and, consequently, rethink linguistic categories as self-sufficient components for understanding mental processes. More precisely, Churchland argues that explanatory power, coherence, and economy will favor the hypothesis that consciousness is simply a pattern of neuronal activity. Obviously, the possibility of preventing the advance of the dualist argument from a neurophysiological perspective still seems to be far from the hypotheses that advocate non-reductionism for the concept of “self” and, consequently, for what we refer to as conscious mental life. Hence, Churchland writes (2013, p. 225):

[...] the Neurobiology of Consciousness can be addressed through different strategies, each of which targets this question: What are the differences in the brain between conditions when we are conscious and those when we are not? Once those differences begin to be clarified, then the next question is this: What mechanisms support and regulate conscious states? With progress on those two questions, we may be able to address why hunger and thirst, or sound and sight, or the passage of time and the relations in space are experienced in the unique ways that they are. The neurobiology of consciousness is not a single problem in the way that the structure of oxytocin receptors, for example, is a single problem. It is a many-factored problem.

 

In a convergent way, Petar Dimkov (2020) mentions a great opposition between Eastern and Western theories of mind. The first, in general, postulate the non-existence of a self, while the second present countless variations, many of them assuming the existence of an entity that could be named as I. According to him, when discussing the subject, Eccles and Popper (1985, p. 108) would support the last perspective, as they point out, on the one hand, that “our personalities, our selves – are anchored in all the three worlds, and especially in World 3.” On the other hand, authors such as Albert Newen, Leon de Bruin, and Shaun Gallagher (2018) bear that computational and materialist theses were predominant in the history of the philosophy of mind, particularly because they relegate a large part of the causal or ontological role of mental processes in the brain. Therefore, the brainocentric theses seek to justify that between the self and the brain, there is an extremely close connection, and there are important facts that can explain this mechanical relationship.

In this sense, we argue that, contrary to previous positions, the thesis of the extended and embodied mind represents an important step in refuting physical localizationism within the scope of brain processes (PERUZZO JÚNIOR, 2014, 2021). Thus, the mind is not just the pilot, as Plato put it, but it is an extension of various processes that extend intimately with the environment. Therefore, this position indicates that the cognitive turn of this argument does not circumscribe mental processes to what occurs in the bodily self, as brainocentered arguments do not claim any identity that could make possible the emergence of self-awareness.

 

1 The self imprisoned in the skull

The physicalist conception that the brain structure, particularly its plasticity, can explain why an active psychophysical self is the programmer and coordinator of the brain is not sufficient to dissolve the consistency of the identity problem, which is the possible parallelism between physical and mental states. Jaegwon Kim (2010, p. 11), in Philosophy of Mind, states that “materialism, or physicalism, broadly understood is the basic framework in which contemporary philosophy of mind has been debated”. In other words, according to Kim, the conception that all explanations about objects and phenomena in the world would be reducible to physical explanations continues to support several theories of mind, such as John C. C. Smart's Theory of Mind-Brain Identity (1959). It follows, therefore, that the physical properties capable of explaining mental processes would be the brain properties, which, then, confine the mind to the limits of the skull (KIM, 2010). However, this argument does not clarify how we should deal with the apparent unity between mental processes and conscious experience, as discussed above.

In this sense, some research on the theme of emotions, such as those carried out by Luiz Pessoa (2017), Dean Burnett (2018), and Ralph Adolphs and David Anderson (2018), insisted on the central role played by the brain, which Giovanna Colombetti and Eder Zavala (2019) called affective brainocentrism. Adolphs and Anderson (2018, p. 308), for example, argue that “[…] emotions are fundamentally biological phenomena […] implemented by neural mechanisms that we can discover and manipulate with neuroscience methods”; therefore, a “science of emotion” does not need theories about subjective aspects and consciousness. According to Damásio (2012, p. 135), in Descartes’ Error, the essence of an emotion is the “[…] collection of changes in the state of the body that are induced in a multitude of organs through nerve endings under the control of a dedicated brain system, which responds to the content of thoughts related to a particular entity or event.” Furthermore, Damásio (2012, p. 202) also states that the I – for lack of a more adequate word – “[…] is based on the activities taking place throughout the body, that is, in the body itself and in the brain.”

In any case, even arguments, that assume a narrative identity of the self, have been colonized by localizationist and brainocentrist tendencies. Therefore, we need to separate hypotheses that explain the functioning of the cognitive system from those that are defined under the influence of exogenous components to extend such functions of the self. In relation to the “self” and the notion of personal identity, it is also possible to identify proposals whose focus lies on the  biological apparatus of the brain, for example,  David DeGrazia’s work (2005, p.73) in the book Human Identity and Bioethics: “[…] we have defended the biological view, which holds that we are essentially human animals and that human identity consists of the sameness of biological life.” Similarly, Galen Strawson (2013) states that both experiences can be applied as brain activity and what the author calls minimal subject, that is, the subject of the experience. However, is it possible that a physical structure, like the brain, emerges as something such an apparent unity?

In Churchland's conception, this time in Brain-Wise: studies in Neurophilosophy, published in 2002, the self simply emerges from the brain. More specifically, it depends on the following three factors:

Such unity and coherence as there is in my conception of myself as a self depends on, among other things, these neurobiological facts: (1) my body is equipped with one brain, (2) body and brain are in close communication, and (3) activity in diverse parts of the brain is coordinated at a range of time scales, from milliseconds to hours. (CHURCHLAND, 2002, p. 61).

 

According to Churchland (2002), what most defines the self par excellence are the self-representation capabilities with which the organism is endowed. Representations, in this sense, would be nothing more than patterns of brain activity whose function is to contain certain information. This ability results in the formation of a neural map. Unlike the geographic map that we consult, however, Churchland (2013) clarifies that there is no I that undertakes to read this map. Her reductionist thesis is that the brain is the self itself, making mental life dependent exclusively on neural events.

Sandro Nannini (2018) argued, in a complementary way, that both intentionality (i.e., the experience endowed with content) and self-awareness and awareness of living the experience have neural correlates, as it is possible to verify the specific deficiency of these characteristics in individuals with injuries or syndromes. People whose cerebral hemispheres have been separated often identify whether a bar is positioned vertically or horizontally while claiming that they cannot see the bar. That is, they do not experience consciously (WEISKRANTZ, 2009).

John Barresi and Raymond Martin (2013), likewise, state that most philosophers of mind are currently materialists and that, therefore, the question they seek to answer about the self would refer only to the connections of social and experiential factors from the material basis of the mind, that is, the brain. According to them, “[…] in addition, the issue of self-unity is less of a problem if the organic dimension is taken as primary than if the experiential or social dimensions are taken as primary.” (BARRESI; MARTINS, 2013, p. 33). In other words, for materialist and brainocentered theses, the question about the self would not be pertinent.

Thus, it seems evident that a number of studies from neuroscience seem to be in the search for neural correlates to explain the self and, consequently, its functions (such as the first-person perspective, self-image recognition or recognition of personal characteristics, etc.). The research by Kai Vogeley et al. (2004) and George Northoff et al. (2006) follows the argument mentioned above. Vogeley and Gallagher (2013) argue, however, that such investigations demonstrate that the self is simultaneously in all and none of the regions of the brain, as different correlates demonstrate activations in different brain areas, while these same areas present activations for activities not related to the self.

In any case, the brainocentric position has argued that the self is not a kind of homunculus that occupies a special place in the human brain. On the contrary, they insist on an approach that considers psychic life absolutely dependent and coincident with its physical constitution. This hypothesis, however, cannot deal with what would seem to give unity to a conscious experience. Thus, in the wake of this impasse, the perspective of the embodied mind locates cognition not as something that occurs in us in isolation but as distributed and/or extended throughout this world. Cognition is, thus, embodied because it emerges from the body as a whole, going beyond the brain and placing itself in the shaping environment from which it emerges. Therefore, unlike physicalist and dualist proposals, embodied cognition dissolves the mythological timbre that inflates the concept of personal identity and, consequently, offers an alternative to the problem of consciousness by relocating cognitive processes as parts of the world.

 

2 From the enclosed self to the extended self in the world

Andy Clark's thesis (1993, 1997, 2003, 2008, 2016), known as the extended mind thesis, in contrast to the brainocentric conceptions mentioned above, postulates that cognitive processes are far beyond the skull and, therefore, the brain. According to him, human development could not occur in a brain isolated from an environment: “Mind is a leaky organ, forever escaping its "natural" confines and shamelessly mingling with body and with world.” (CLARK, 1997, p. 53). The mind, the body, and the world would be deeply connected and mutually constituted constantly and inseparably.

This position is exemplified by the analysis of simple tools that we use in our daily lives, such as a pencil or a spoon. Some people may report formulating their ideas in a more elaborate and complex way when they are in front of a sheet of paper and a pencil, or a blank screen and a keyboard, than when they have no artifacts to act in the world. Hence, Clark (1993, 1997, 2003) calls, on the one hand, the tools we incorporate into our cognitive processes as cognitive artifacts or cognitive extensions and, on the other hand, the mind as scaffolded mind or extended mind.

However, the extended character of the mind follows an even more critical trail. Clark (1997, p. 69) argues, for example, that “[…] it would be comforting to suppose that this more integrated image of mind and world poses no threat to any of our familiar ideas about mind, cognition, and self. Comforting but false.” That is, when we refer to the extended mind, we should also be conceiving an extended self. Therefore, the old notion of the organizing center of the mind would be illusory. Through ordinary impressions, we would be used to confuse the stream of conscious thought with what we commonly name as "I."

This stream of conscious thought is responsible for making broader decisions regarding the organism's system as a whole. However, it would not, in turn, be a separate entity, as we usually think. In other words, this thought would be able to formulate a narrative that we may call the narrative self, responsible for drawing the illusion that the self should be a special organization center (CLARK, 1993, 1997, 2003). In the author's words:

My sense of myself as the protagonist in my own ongoing story is conditioned by my understanding of my own capacities and potentials—an understanding that must surely be impacted, in deep and abiding ways, by the technological cocoons in which my projects are conceived, incubated, and matured. (CLARK, 2003, p. 142).

 

The self would, therefore, be a soft self (CLARK, 2003, p. 134) and/or a hybrid self (CLARK, 2003, p. 56) immersed in a system of hybrid cognitive circuits (CLARK, 2008, p. 68). After all, it would encompass the supposedly external processes; moreover, obviously, it would always be blending in with the environment and its artifacts. Damásio, for example, in Self comes to mind: constructing the conscious brain, states that consciousness is produced by an autobiographical self – which is an autobiography that has become conscious – and by a central self – which pulsates incessantly and is always online. According to him, the autobiographical self “[…] matures, thanks to the gradual sedimentation and the re-elaboration of our memory.” (DAMÁSIO, 2011, p. 260). Damásio's view, however, bears that to build the autobiographical self, the brain needs two combined mechanisms: First, to subside to the mechanism of the central self  [which guarantees memories the possibility of being treated as objects and being conscious]. Second, a coordinated operation of the brain that involves steps such as relationships between memory and images, interactions of these ordered images with another part of the brain, that is, with the protoself, and, coherent results during a certain period. However, he rejects coordinating mechanisms as the center of consciousness or interpreting homunculi, as the results of every operation materialize “[…] in the brain structures that generate images and generate the mind.” (DAMÁSIO, 2011, p. 263).

Gallagher (2014), from a perspective that also distributed and extended regarding the mind, as mentioned, argues that several dimensions need consideration to explain the human functioning of the self: affections, motivations, sense of agency (i.e., who makes certain decisions and acts in the world is me), and sense of ownership (i.e., that a certain part of my body is mine), among others. Therefore, in line with Clark's defense that the mind is a system also constituted by the body and the world, the notion of intercorporeality needs to attack positions that enclose the self and cognitive processes in the cranial structure, as in Damásio’s case. Thus, in other words, the embodied perception of the movements and the actions of others and oneself actively act in the construction of the self. This purports, therefore, to dissolve the ontological concept of identity as a property.

Thus, the extended mind thesis seems to propose that the notion of a system, although this generates the impression that it is an individuated system, is characterized by ecological control in the cognitive sphere. According to Clark, in Soft selves and ecological control, “[…] these larger problem-solving wholes, I would like to argue, are not simply extended cocoons for the 'real' selves, choosing agents and cognitive engines hidden deep within. Rather (or so I wish to suggest) they then are those selves, agents and cognitive engines.” (CLARK, 2007, p. 104). The fact is that if the “I” is not a cocoon, our cognitive mechanisms are shamelessly diluted in the web of relationships that make up the world, as suggested by the phenomenological or functionalist reading of the extended mind. Therefore, an epistemic action should be understood as an action that changes the nature of cognitive tasks, because we make use of structures available in the environment (maps, language, culture, etc.) to perform certain tasks.

 

3 The fluid and dynamic nature of cognitive processes

If computational, physicalist, and/or materialist paradigms of the mind, figured as an expression of a brain-centrist reductionism (SEARLE, 1992; MALAFOURIS, 2013; CHAMBLISS, 2018; NEWEN; DE  BRUIN; GALLAGHER, 2018), the advent of the extended and embodied theories of mind allows to radically redefine the way in which cognitive processes should be thought: there is no demarcated border region between them and the environment. In fact, the environment plays an extremely active role in cognitive processes. Obviously, this is not a relationship of dependence, but the constitution, as the organism and the environment purported here dissolve the classic argument between the internal and the external. As Somogy Varga (2019) argues, it would be a nature dependence given that the character and nature of cognition depend on the body and the world. Therefore, this position represents a cognitive shift in relation to prospects that place the mind as a phenomenon attached to the skull or brain. However, this is only a part of the issue that needs to be addressed more rigorously. Clark (1989, 1993, 1997), for example, tries to oppose his thesis to Fodor's Computational Theory of Syntactic Image, seeking to reverse any conceptual distinctions between perception and action, mind and world, direct and indirect access, and so on.

For this reason, in the theories mentioned above (SEARLE, 1992; NEWEN; DE  BRUIN; GALLAGHER, 2018), the brain is located as the locus of mental processes and representations and, in a broader sense, as a vehicle for mental content. However, if cognition can be extended and if it is in a process together with the environment, would mental states still be determined by brain ones? A physicalist answer, for example, would assert that representations are mental processes that, in turn, would have an identity relationship with brain processes. Clark, however, makes a mistake in arguing that the coupling of external objects to cognition is sufficient to explain their transfer of content. Thus, indirectly, the functionalist argument behind this position cannot indicate what the cognitive brand would consist of. Kenneth Silver (2021), for example, points out that members of a group could fulfill their role in the action without mentioning their mental states, as the behavior would not be caused by such states and the agent could simply respond to aspects of beliefs, desires, and intentions that are necessary for rational agency.

Now, if, on the one hand, the extended mind thesis seems to account for how artifacts contribute to expand and improve cognition, on the other hand, the argument cannot dissolve the criticism that could be attributed to the interaction and division between bodies, biological and inorganic artifacts. When Clark (2016) defends, for example, the notion of cycles between predictions and perceptions, it would be possible to argue that the boundaries between the interior and the exterior are still present, albeit in a microfunctionalist way, or, perhaps, according to Peruzzo Júnior and Stroparo (2020), in a neofuncionalist metaphor. However, the paradigm of embodied cognition, as we have argued, by positioning itself in a favorable way for the hybridism between organic and cybernetic, also fails to show whether such tools can repair or replace damaged organs by assuming their cognitive functions. According to Malafouris (2013, p. 59), the success of embodied cognition allows for a new basis for the mind-body issue, as it recognizes that bodily characteristics play a significant role in the way the organism thinks and relates to the world.

In any case, the theories of the embodied mind share the defense of a rescue of the body and the environment because the psychological processes would be incomplete without the former. Visual perception, for example, would be a meaningless process if we did not consider the characteristics of the human body or even the stimuli that reach the specialized areas of the brain in the visual cortex, which is responsible for synthesizing the information received in terms of color, shape, texture, relief, and so on. In this sense, visual perception requires a body, just as a body is intrinsically linked to various functions. This could explain, for example, the extent to which direct experience about one's own mind and the minds of others would not be an internal attribution but a recognition that occurs from the emphasis on the stimuli shared between the subjects.

Another example, also associated with vision, is the binocular rivalry experiment reported by Jean-Luc Schwartz et al. (2012) and mentioned by Clark (2016). It is a rivalry in that a human subject is exposed to two images, each one arranged only for the perception of one eye. From this, if the image is, for example, a house and a face, the perception will not form a junction between them. On the contrary, the result will be an endless oscillation between the perceptions of one image and the other. The extended mind thesis would explain this through the aforementioned predictive processing cycles: predictions and perceptions take turns and interact continuously, one responding to the other, without being able to delineate a beginning or an end. Thus, the two images would take turns given that both do not cancel the forecasts made by the system.

In this sense, Varga (2019), in Scaffolded Minds: integration and disintegration, illustrates the role of the body and spatial conceptions appealing to the way we refer to people who are more receptive or more emotionally distant through the temperature, such as warm people and cold people, or to some uses of the notion of heavy to qualify issues, for example, a heavy responsibility, the severity of the situation, and so on. In other words, we should accept that cognitive niche construction includes unloading, modifying, and incorporating environmental structures because they enhance cognitive abilities.

Thus, as mental phenomena could never be dissociated from such artifacts and tools, including language (LUPYAN et al., 2020), the notion all in the head becomes a mistaken metaphor for positing that cognitive processes, in general, should be reduced to the brain. Therefore, it is not necessary to have mental representations to postulate the existence of the given cognitive content. These are possible simply because the idea of external reality is not the opposite of the symbols that we manipulate daily or the neurophysiological makeup of the brain. On that account, the intersubjective dimension of this argument ends up inhibiting the need for a homunculus to organize actions and behaviors, as the consequence is a self composed of this hybridism between perceptions, actions, and the world. What would, then, be left in place of the self?

In Andy Clark's conception of the extended mind (1997, 2003, 2008), for example, mental processes extend through objects and devices present in the world when they respect what the author, together with David Chalmers in the paper “The extended mind” (1998), names parity principle:

All one needs is the very weak functionalism captured in the Parity Principle: roughly, if a state plays the same causal role in the cognitive network as a mental state, then there is a presumption of mentality, one that can only be defeated by displaying a relevant difference between the two (and not merely the brute difference between inner and outer). (CHALMERS, 2008, p. xv).

 

The consequence of this, as Clark (2008, p. xxviii) argues, is accentuated in the following statement: "In building our physical and social worlds, we build (or rather, we massively reconfigure) our minds and our capacities of thought and reason." Thus, from the moment we use a certain tool, in accordance with the parity principle, a temporary whole new agent-world circuit is formed (CLARK, 2008, p. 31). A fundamental aspect of the cognitive turn is, therefore, both the junction between action and perception and the partial and hybrid nature of mental representations. The understanding of numbers, for example, simultaneously derives from words, that is, from language, and from visuo-spatial competences, more specifically, notions of quantity and relative location in a number sequence. In other words, finally "[…] what we perceive is determined not only by the physical properties of the current input, but also by our perceptual history." (LUPYAN et al., 2015).

Therefore, Clark’s functionalist externalism differs from traditional functionalism precisely because it adds external elements to cognitive functions. In other words, while traditional functionalism - the one that conceives a mental state as a causal function between sensory inputs and behavioral outputs, for example - challenged those thesis that reduced cognitive processes to neural states, the extended functionalism derived from Clark’s thesis  , in turn, expands this initial functionalist proposal. According to Wheeler (2010), Clark's thesis extends the cognitive status to external elements, since, according to the aforementioned parity principle, such elements have roles that are functionally equivalent to internal elements. Such functionalism, however, not only challenged the traditional, but also added to “classical externalism” - for example, the one proposed by Putnam (1976) - the active character of external elements. That is, while the traditional conceived intentional states as "relational properties", since they would always be referring to something external, the active externalism in Clark and Chalmers (1998) conceives certain objects and processes as having an active role in cognitive processes.

The implications of such a turn look promising. Varga (2019), for example, argues that the perspectives of the embodied mind offer psychotherapeutic studies and interventions that classical materialistic and/or computational proposals could not reach. Depression, from this cognitive turn prospect, can finally be contemplated in its entirety: states that somehow afflict the emotions, the body, and the phenomenal consciousness, which would show that it is not just about brain dysfunctions.

This is where approaches that draw on EC [embodied cognition] could offer significant contributions to understanding mental disorders, analyzing them not merely as “brain dysfunctions” but as disturbances of an immersed embodied interaction with the environment, mediated by the brain. (VARGA, 2019, p. 9).

 

The cognitive turn carried out by the extended theory of mind, at this point, becomes self-explanatory: mental processes are not phenomena restricted to the brain and disconnected from the body and the individual’s action in its environment. On the contrary, such processes explore different ways of performing from a certain functional profile that endorses, on the one hand, external components and, on the other hand, their functional extensions. The world has become a reservoir of relevant information, such as perceiving, reasoning, and remembering, among others, through which cognitive processes become hybrids; that is, they have a dynamic nature dependence and are not disconnected from the world, the action, and the context. Hence, it is not a radical dissolution of the self, but a recognition that human minds are in deep and important contact with the wider world, in the same manner as feelings, learning, and thinking are structured by the interactions of our body with the world around us. The self, then, assumes the form of a higher cognition, which is built on a substrate of embodied perceptual-motor capacities, since the action itself becomes simply the structuring of information and the ability to choose, nothing more than the internal architecture executed by the predictions.

Some might argue that this view of a dissolved self would automatically be refuted in the face of arguments that appeal to the notion of qualia, such as Nagel's (1974) classic argument in "What is it like to be a bat?" or that of Jackson (2012) in Mary and the perception of the redness. But there are also alternatives in the extended mind functionalism paradigm, whose dissolution takes place, we might argue, on the assumptions of predictive processing. In this sense, Clark (2019, p. 659) suggests that we should specifically ask “under what conditions would creatures like that infer that they are home to puzzling ‘qualia’?” and adds that “we must here read ‘infer’ in an experientially neutral way”. The inference of qualia would be the result of a predictive system that captures a series of details and whose complexity fails to emerge completely for conscious thought, which, for beings that express themselves in verbal language, for example, makes it difficult to explain what we perceive and how it is to have the experience of this perception. The discrepancy between what iscaptured and what emerges to consciousness would explain our “puzzlement” with qualia.

The question of qualia, for Clark (2019, p. 661), does not end at this point, however. As might be expected from a functionalist thesis, qualia would also play a role in the cognitive system, namely: “[…] capturing useful coarse patterns in our own behavior: ones that can inform our own reasoning and planning, and help us co-ordinate with other similarly designed agents.” In the face of such arguments, selves come to be understood as a wider extended cognitive system, or even hybrid (MILOJEVIC, 2018), whose dimensions of both qualitative experiences and personal identity, for example, would not be threatened, since the sense of stability and continuity of the agent in question would remain preserved (GRIGC, NOVINA, 2022).

 

Conclusion

The main criticism of brainocentric perspectives refers, roughly, to the explanatory gap or the hard problem of consciousness, a term coined by Chalmers (1996; NANNINI, 2018). It is, as we have seen, the absence of an effective explanatory potential connection between neuronal activities and phenomenal experiences. Therefore, embodied cognition claims that the formation of representations does not work as an internal painting of the external world, as cognitive processes tend to follow simpler and more accessible solutions to show how we act in and with the world. According to this view, we are not facing two distinct domains (physical and mental) because we are, in the final analysis, our bodies and the environment that we build and that act on us. Therefore, selves are distributed agents, hybrid problem-solving sets, being essentially opportunists and explorers, transforming everything around them into fluent problem-solving routines and promoting guided activities and flexible adaptive responses.

In any case, some authors, such as Chalmers (1996) and Ned Block and Robert Stalnaker (1999), argue that this explanatory gap can never be overcome, as the reduction of phenomenal experience to physical or cerebral processes would be impossible. The hard problem, thus, would be how physical processes give rise to subjective experience, particularly as the concept of information would be ubiquitous and could transcend physical processes. Therefore, the theory of embodied cognition does not assume that cognitive processes have a purely physical domain, which also does not mean accepting that conscious experience and self occur “shamelessly” anywhere in the world.

How is it possible, we may ask, to conceive the “self” from the cognitive turn? The mind is a system designed to solve problems and optimize and amplify its action; thus, using available artifacts as effectively as possible and, therefore, incorporating them into a single mind-world circuit, "[…] minds like ours are transformed by the web of material symbols and epistemic artifacts.” (CLARK, 2008, p. 57). The mind-body-world system becomes a cognitive niche, taking the brain from the prominence of the previous theses and putting it as a component. Human intelligence, therefore, develops through immersion in this niche along with the neural plasticity with which the brain is endowed.

 

Dissolvendo o self: a virada cognitiva da teoria da mente estendida

 

Resumo: O objetivo deste artigo é demonstrar como a teoria da mente estendida, particularmente os argumentos de Andy Clark, pode explicar os processos mentais não como fenômenos restritivos ao cérebro e endossar sua conexão com o corpo e o ambiente. Dessa forma, inicialmente, reconstroem-se as principais perspectivas materialistas que limitaram o self ao crânio; em seguida, aponta-se como o caráter estendido da mente escapa aos seus limites naturais e se mistura “descaradamente” ao mundo. Argumenta-se que artefatos externos desempenham um papel importante na orientação de ações, de modo que mudanças no ambiente podem causar mudanças no comportamento do agente cognitivo, configurando uma dependência constitutiva. Desse modo, a tese da mente estendida desafia tanto o funcionalismo tradicional quanto o externalismo, pois, por um lado, considera os processos cognitivos e os estados mentais como interações relevantes do indivíduo com o ambiente e, por outro, como comportamentos orientados pela intenção. Por meio da integração dos corpos biológicos com artefatos ou ferramentas, sustenta-se uma leitura que dissolve a clássica “lacuna explicativa” das ciências cognitivas.

 

Palavras-chave: Cognição. Self. Mente Estendida. Cerebrocentrismo. Andy Clark.

 

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Received: 16/02/2022

Accept: 17/07/2022

 

Comentário a “Dissolving the Self: the cognitive turn of the extended mind theory” 25 Anos da Tese da Mente Estendida

 

Bernardo Alonso[127]

 

Referência do artigo comentado: Peruzzo Júnior, Léo; Stroparo Amanda Luiza. Dissolving the Self: the cognitive turn of the extended mind theory. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 2, p. 193 – 214, 2023.

 

Vinte e cinco anos após The extended mind (CLARK; CHALMERS, 1998) e 133 anos depois de The Principles of Psychology (JAMES, 1890), o embate internalismo x externalismo segue forte. Em suas numerosas variantes e minúcias técnicas, a distinção, que tem como motivação a antiga necessidade de demarcação sobre as confusas fronteiras entre corpo, pensamento, linguagem e mundo, persiste viva como tema de pesquisas em Filosofia da Mente, Filosofia da Psicologia, Psicologia e Ciências Cognitivas. Neste breve artigo, tratarei apenas sobre como processos cognitivos se estendem no mundo, segundo a Tese da Mente Estendida (TME), deixando de fora muita coisa.

A TME, ao apresentar um tipo de externalismo baseado no papel ativo do ambiente na condução dos processos cognitivos, inaugura uma posição estranha ao cognitivismo, o qual, segundo Clark e Chalmers (1998), é fundado em preconceitos intracranianos. De modo resumido, a TME distancia-se do cognitivismo clássico, ao propor que (1) talvez a mente não seja uma res cogitans fundamentalmente distinta de qualquer res extensa física. Ao adotarmos (1), evitam-se os espólios do cartesianismo. E, (2) ao mesmo tempo, é recusado que, seja lá o que a for o que costumamos chamar de “mente”, esta seja idêntica ao cérebro. Tal como a cognição corporificada, a cognição estendida considera que processos e estados cognitivos não se dão apenas no espaço intracraniano.

Embora a cognição corporificada se distancie do cognitivismo, por conceber que a cognição não se dá unicamente de modo neural, ela ainda mantém a cognição dentro dos limites biológicos do organismo. De maneira diversa, a TME afirma que nossa mente não está confinada dentro de um organismo (corpo), tampouco no cérebro, podendo ser estendida para fora dos limites de nossa pele. É sustentado que uma porção significativa da cognição humana se estende além do cérebro (e corpo) para o mundo, incorporando ativamente artefatos, utensílios e ferramentas.

Mas, o que é estendido, exatamente? Mente? Cognição? O que é a marca do cognitivo? Em artigo recente (ALONSO; RAMOS, 2022), foi defendido que uma noção adequada da marca do cognitivo é oferecida por Hatfield (2014,) ao afirmar que “[…] os principais pontos em comum envolvem a noção de que a cognição é o processamento de informações que explica o comportamento inteligente.” Tal definição possibilita abarcar como processos cognitivos a diversidade de fenômenos estudados pelas Ciências Cognitivas, em especial acomodar os mais recentes desafios apresentados por certos tipos de cognição, tais como: cognição estendida, cognição incorporada, cognição estruturada, cognição corporificada, cognição situada, cognição distribuída, cognição de grupo, cognição social, cognição enativa, cognição fundamentada, cognição aumentada e metacognição (SMART; CLOWES; HEERSMINK, 2017, p. 16).

Ao se ter em vista somente a TME, é correto dizer que a extensão da mente pode ser compreendida através de três dimensões distintas. A primeira dimensão que é estendida, segundo a TME, é a dos processos cognitivos. Clark e Chalmers (1998, p .7-8) tomam o exemplo de um trabalho anterior de Kirsh e Maglio (1994) e nos convidam, através de um cenário com o jogo Tetris, a visualizar diferentes formas geométricas bidimensionais que descem, em sequência, pela tela. (a) Podemos fazê-lo enquanto giramos cada peça do Tetris na mente (ou cérebro ou em algum lugar dentro do crânio). Por outro lado, (b) podemos manualmente girar a peça da tela, pressionando um botão no teclado, enquanto verificamos sua congruência com outras peças do jogo, utilizando o sentido da visão (olhos), como fazemos habitualmente ao jogar Tetris no computador. Este último é um caso de processo cognitivo ocorrendo externamente.

Ao que tudo indica, a capacidade de girar as peças com o teclado e a confirmação de seu posicionamento, através do recurso visual de exibição no monitor do computador, garantem que a execução dos movimentos, assim como cumprimento das regras e sucesso das jogadas, seja otimizada. Ainda no exemplo Tetris, (c) em um futuro cyberpunk, a pessoa se senta diante da tela do computador e visualiza diferentes formas geométricas bidimensionais, as quais descem, em sequência, pela tela. Por meio de um implante neural, a pessoa pode girar a forma com a mesma velocidade que faria no cenário anterior (b). É argumentado que, no cenário (c), haveria uma tendência a se considerar como cognitivo o processo realizado, ao contrário de (b), o qual envolve o auxílio de controles manuais e aparatos visuais. Apesar do cenário (c) ter um mecanismo de realização muito próximo ao do cenário (b), a tarefa é intracraniana (implante). Presumivelmente, a localização da realização é o fator levado em conta, ao se decidir se um processo é ou não cognitivo. Considerar o cenário (c) como envolvendo processos genuinamente cognitivos e não (b) constitui um caso de preconceito intracraniano.

A segunda dimensão da extensão, segundo a TME, é a dos estados cognitivos, tais como crenças disposicionais e memórias. Temos o exemplo de Otto, paciente de Alzheimer, o qual armazena informações em um caderno que consulta frequentemente. Sempre que Otto vai ao museu, ele abre seu caderno, confere o endereço e usa “O museu está localizado na rua 53”, para guiá-lo a ações. As informações armazenadas no caderno enquadram-se em uma crença disposicional, o segundo tipo de extensão.

Um ponto que é pouco explorado, embora seja importante para a compreensão do que está de fato envolvido na formulação da TME, é a distinção feita por Kirsh e Maglio (1994, p. 524) entre ações pragmáticas e ações epistêmicas. Ações pragmáticas são aquelas executadas para se alcançar fisicamente um objetivo. São ações que alteram o mundo, em casos nos quais tais mudanças físicas são o objetivo em si mesmas. Varrer o chão, trocar uma lâmpada, costurar uma camisa são exemplos de ações pragmáticas. Por outro lado, ações epistêmicas são caracterizadas por serem tarefas físicas que tornam a computação mental mais fácil, mais rápida ou mais confiável. Utilizar lápis e papel para fazer cálculos, em vez de realizá-los inteiramente “de cabeça”, é um exemplo de uma ação epistêmica. É uma ação externa que um agente executa para alterar seu próprio estado computacional e simplificar o processo cognitivo ao descarregar parte de sua complexidade para o ambiente (ALONSO; RAMOS, 2022, p. 41).

Finalmente, a terceira extensão é a do self. Um indivíduo pode compor um sistema transitório e integrado, quando acoplado a recursos externos; ora, Clark e Chalmers (1998, p. 18) afirmam que isso pode ser tomado como um self estendido:

A mente estendida implica um eu estendido? Parece que sim . . . . As informações do caderno de Otto, por exemplo, são parte central de sua identidade como agente cognitivo. O que isso significa é que o próprio Otto é melhor considerado como um sistema estendido, um acoplamento de organismo biológico e recursos externos. Para resistir consistentemente a essa conclusão, teríamos de reduzir o eu a um mero feixe de estados que ocorrem, ameaçando gravemente sua profunda continuidade psicológica.

 

Esse impulso naturalizante não é novo. O filósofo e psicólogo americano William James (1890, p. 294) integrou o impulso naturalizante à psicologia, ao propor uma filosofia científica do self:

Apropriadamente falando, um homem tem tantos eus sociais quantos são os indivíduos que o reconhecem e carregam uma imagem dele em sua mente. Ferir qualquer uma dessas imagens é feri-lo. Mas como os indivíduos que carregam as imagens se enquadram naturalmente em classes, podemos praticamente dizer que ele tem tantos eus sociais diferentes quantos grupos distintos de pessoas cuja opinião ele se importa.

 

Segundo a citação sugere, a sociedade não é algo que se acrescenta, por assim dizer, ao self como uma espécie de ambiente puramente, unicamente externo. De modo diverso, a sociedade é refletida no self estendido em termos de uma multiplicidade de constituintes, os quais exibem diferentes níveis de organização e divisões de trabalho. Este é o nosso comentário a partir do texto de Peruzzo Junior e Stroparo (2023).

 

Referências

ALONSO, B.; RAMOS, R. A Marca do Cognitivo e Cognição 4E. Princípios, UFRN, v. 29, n. 58, 2022.

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Peruzzo Júnior, L.; Stroparo, A. L. Dissolving the Self: the cognitive turn of the extended mind theory. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 2, p. 193 – 214, 2023.

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Recebido: 10/01/2023

Aceito: 14/01/2023


 

Ética hermenêutica: circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer a partir do Filebo de Platão[128]

 

Luiz Rohden[129]

 

Que agora cada um de nós tentará indicar o estado e a disposição da alma capaz de fornecer a todos os homens uma vida feliz. (PLATÃO, 2012, p. 27).

 

[...] não há a proposição ou o conjunto de proposições sobre a vida boa que possa formular de uma vez e para sempre a resposta à pergunta pela vida feliz, pois, em cada ocasião da vida nos vemos confrontados com a tarefa de combinar novamente, e com prudência, os ingredientes desiderativos e cognitivos que a constituem. E sempre podemos falar. (MONCADA, 2009, p. 208).

 

Resumo: No contexto do projeto do autor, no sentido de justificar a dimensão ética da Hermenêutica, neste artigo, propõem-se respostas à pergunta central em torno da qual se articula o diálogo Filebo de Platão, a saber, qual o estado e a disposição da alma (hexis kai diathesis) que pode outorgar aos homens uma vida feliz? É pelo conhecimento, ou pelo prazer?”. A partir das pistas propostas no diálogo, será desenvolvida a noção de vida boa e feliz como processo e resultado da mistura correta entre o conhecimento e o prazer. Sob a égide da hermenêutica gadameriana, tomada enquanto práxis ética, objetiva-se fundamentar a tese de que a felicidade é fruto da circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer, em contraposição à circularidade viciosa que implementa a infelicidade, instaura uma vida escrava, a qual implica a destruição pessoal, social e ambiental. Isso se fará, explicitando-se, inicialmente, o tipo de ontologia e a racionalidade própria para lidar com a vida boa e feliz conjugada com o prazer, possibilitando serem indicadas pistas da alquimia apropriada – mediante a apuração dialógico-phronética – entre o conhecimento e o prazer, para instaurar a vida boa e feliz. A contribuição original desta reflexão reside em propor critérios para aferir se a mistura foi bem feita, através da apresentação de implicações da circularidade viciosa e corolários da circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer. Mostrar-se-á que a circularidade viciosa fomenta a infelicidade, ao passo que a virtuosa faculta a criação de uma vida boa e feliz, em termos individuais, sociais, além de instaurar uma relação harmônica e de integração com o meio ambiente.

 

Palavras-Chave: Ética Hermenêutica. Gadamer. Conhecimento. Prazer. Filebo. Platão.

 

INTRODUÇÃO

            Não raramente, repetimos e praticamos hábitos como “primeiro trabalhar, para depois se aposentar e daí aproveitar a vida”, “primeiro o conhecimento, o dever, depois o prazer!” Na outra margem estão os que praticam o oposto e despendem suas vidas em gozar, desfrutar os prazeres no presente, à margem das implicações disso, no futuro. O dilema que brota dessa situação nos remete à seguinte questão: “Vale a pena uma vida vivida apenas em função do conhecimento ou do prazer?” É com esse retrato que me reporto ao Filebo, porque nele o filósofo Platão, amadurecido com os choques da realidade, lidou com esse dilema ético-metafísico. Platão estampou o problema na pergunta para a qual propôs algumas pistas, ao longo do diálogo, a saber, qual o estado e a disposição da alma (hexis kai diathesis) que pode outorgar aos homens uma vida feliz? É pelo conhecimento (razão), ou pelo prazer?” (MONCADA, 2009, p. 207); ou, dito de outro modo, “[...] cada um de nós tentará indicar o estado e a disposição da alma capaz de fornecer a todos os homens uma vida feliz.” (PLATÃO, 2012, p. 27).

            Cientes dos incontáveis fatores que independem da nossa vontade, força e empenho, para gozarmos de uma vida boa e feliz, há outros, poucos, que estão em nossas mãos para sua consecução. E é desses fatores que me ocuparei, propondo uma reflexão sobre a alquimia entre o conhecimento e o prazer que constitui a ética dialética desenvolvida no Filebo, sob a égide da hermenêutica filosófica. A partir dela, proporei o desenvolvimento de uma circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer e, com isso, desenvolver mais uma parte do meu projeto de justificar a teoria e a práxis hermenêutica como uma ética. Destaco que a apropriação do Filebo, com o escopo de explicitar a ética dialética entre o conhecimento e o prazer, complementa, corrobora e consolida o propósito similar que desenvolvi, a partir do Sofista (ROHDEN; KUSSLER, 2021) e do Fédon.[130]

            Farei isso apresentando, inicialmente, o tipo de ontologia e a racionalidade própria para lidar com a felicidade[131] e o prazer, o que me possibilitará apontar pistas da medida apropriada – mediante apuração dialógico-phronética – para a consecução da vida boa e feliz. Por fim, explicitarei critérios para aferir se a medida da mistura foi adequadamente feita, expondo especificidades da circularidade viciosa e da circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer.

 

1 Racionalidade própria para lidar com a felicidade e o prazer

1.1 Ética dialética: racionalidade dianoética, phronética

No Filebo, Platão desenvolveu a relação entre ontologia e ética, entre o modo de ser do ser e o modo de abordá-lo, entre o bem e o tipo de racionalidade para tratá-lo. Platão sustenta a ontologia do uno-múltiplo e a racionalidade dianoética própria para abordar o indeterminado, na versão do prazer, ambas conducentes à ética dialética. Essa proposta se retrata na resposta à pergunta de Sócrates: “Qual é, portanto, nesta mistura, o componente que vemos como o mais precioso e como sendo, de maneira mais decisiva, o causador?” – posta por Benoit (2007, p. 217), ou seja, “[...] na verdade, o que caracteriza essa região fronteiriça ao Bem, como já sabia desde a República, é o saber dianoético das matemáticas.”

Conforme Benoit (2007, p. 218), no Filebo, o caminho proposto para pavimentar a vida feliz não “[...] é mais a austeridade absoluta dos guardiães de A República, mas “[...] uma vida que mescla saberes puros e impuros com prazeres mais puros possíveis, esta mistura híbrida, para não resultar em droga perniciosa”, a qual “[...] depende antes de tudo de saber dosar, quantitativamente, cada elemento da fórmula” e a racionalidade escolhida foi “a razão dianoética”, que constitui a ética dialética. A medida própria para lidar, explicar e justificar a compreensão e a efetivação da felicidade se pauta pela racionalidade adequada às coisas humanas, segundo o pressuposto de uma ontologia aberta, porque é composta pelo uno e múltiplo, pelo definido e indefinido, pelo ser e pelo não ser, que, nesse caso, corresponde ao prazer.

A ontologia e a ética, no Filebo, se descortinam para se materializar numa ressonância dialética em constante realinhamento. Gadamer chega a nos dizer, no prefácio de sua tese sobre o diálogo platônico, o quanto à dialética ora em causa efetivamente concerne um problema de natureza ética (GADAMER, 1991, p. XXV).[132] Sabe-se o quanto Platão elabora as reflexões acerca do bem humano, em analogia ao que o filósofo supõe ser a estrutura da realidade em geral, vale dizer, com suporte na efetivação de uma mistura, respectivamente, entre o conhecimento e o prazer, e entre o uno e o múltiplo (REALE, 1997, p. 336). A justa medida, em especial no terreno da ética, do qual aqui nos ocupamos, envolve a proporção adequada da limitação do ilimitado: dita conciliação representa a própria ideia do Bem como algo concluído, mas igualmente suscetível de um contínuo ajustamento em vista da abertura inevitável ao novo (ALMEIDA, 2002, p. 212).

Como se pode perceber, essa reflexão sobre o prazer tecido com o conhecimento é imprescindível, porque não diz respeito apenas à vida boa pessoal ou à felicidade individual (reino da ética), mas, em Platão – e para nossos dias –, ela é ou deveria ser o diapasão da política. A vida pessoal do político regido pela desarmonia entre o conhecimento e o prazer gera desequilíbrio, cisão, polarização, divisão no ethos.

 

1.2 A felicidade se faz com prazer!

À luz da ética dialética, na versão da racionalidade phronética, maleável, proposta pelo Filebo, vou me ater agora ao seu objeto, tema em que consiste a felicidade ou, nas palavras de Platão (2012, p. 27), “[...] o estado e a disposição da alma capaz de fornecer a todos os homens uma vida feliz” relativamente ao tema do prazer e do conhecimento.

Nos diálogos Protágoras, Górgias, República, é possível rastrear, em Platão, conforme Iglésias (2007, p. 89), “[...] como a questão central sobre o papel do prazer na vida humana aparece [...] e como ela se desenvolve em direção a uma concepção mais complexa, incorporando elementos novos em suas reflexões”, cujo ápice encontramos no Filebo. Segundo ressalta Iglésias (2007, p. 89), é importante lembrar e situar que “[...] as reflexões sobre o prazer se ligam essencialmente a suas reflexões sobre o próprio bem”, não apenas nos diálogos mencionados, mas inclusive nos textos sobre a Doutrina Não Escrita e, de modo especial, na Carta Sétima.[133]

Na trilha de Maura Iglésias (2007, p. 90), vou me deter na “questão do prazer [...] essencialmente ligada à questão do bem”, ou seja, “sobre a natureza do bem” que “[...] implica essencialmente a questão sobre a natureza e o papel do prazer na vida humana”. Ora, a questão central é “o que é o bem?”, que “[...] poderia ser reformulada como: ‘o que é a vida boa?’, ou ainda ‘o que é felicidade – mais exatamente, a eudaimonia – e o que fazer para alcançá-la’?” (IGLÉSIAS, 2007, p. 91). E, para responder a isso, a autora faz a distinção entre

[...] felicidade e eudaimonia, para evitar que se confunda nossa noção atual e corriqueira de felicidade, que leva em conta sobretudo uma satisfação do indivíduo consigo mesmo, com a eudaimonia entre os gregos, que significa especialmente, e este certamente é o caso nas discussões filosóficas, o que poderíamos entender como a plena realização da vida (...) De fato, nenhum grego duvidaria que o que está em jogo na vida é realizar plenamente a vida, e isso tem que ver com a compreensão do que seja o significado, ou a finalidade, da vida humana. Atingir esse fim é alcançar a eudaimonia, é ser, plenamente feliz. (IGLÉSIAS, 2007, p. 91).

 

É essa acepção de felicidade que norteia a presente reflexão. E, enquanto estado e processo,

[n]ão há a proposição ou o conjunto de proposições sobre a vida boa que possa formular de uma vez e para sempre a resposta à pergunta pela vida feliz, pois, em cada ocasião da vida nos vemos confrontados com a tarefa de combinar novamente, e com prudência, os ingredientes desiderativos e cognitivos que a constituem. E sempre podemos falar. (MONCADA, 2009, p. 208).

 

E “sempre podemos falar”, ou seja, compreender, explicar, porque a felicidade é uma construção que precisa de cuidado e de atenção com os nossos desejos, os nossos sonhos, os nossos projetos, no tempo e no espaço onde vivemos. E, assim como o “ser se diz de muitas maneiras”, em Aristóteles, penso que é possível dizer, a partir do Filebo, que também o bem, a felicidade, a vida boa e a vida plena – à luz da unidade dos princípios ser e não ser – podem ser ditos de diferentes maneiras, sendo concretizados de diferentes modos, em tempos e espaços distintos, porquanto somos seres humanos e, por isso mesmo, essencialmente históricos. Diferentemente das plantas e dos animais, nosso modo mais próprio de ser[134] – e, portanto, de viver em felicidade – é plurívoco, com suas exigências e consequências distintas, e é por isso que sobre esse tema “[...] sempre podemos falar.” (MONCADA, 2009, p. 208).

Precisamos e podemos falar sobre o estado e o processo de vivermos felizes, porque ambos se fazem com a medida – não dada definitivamente – apropriada entre o dever e o prazer, entre o conhecimento racional e o prazer. Essa dosagem correta necessita ser feita incessantemente e se corporifica na figura e na postura de Hermes, sempre em movimento, cuja identidade consiste em ligar dois pontos da vida, ser e não ser, conhecimento e prazer, eternidade e temporalidade. Não há fórmula pronta nem medida prefixada para compreender e determinar a costura entre essas duas margens; a terceira margem precisa ser configurada, e é de sua dosagem correta que teremos a produção da virtude ou do vício, da felicidade ou da infelicidade, da alegria ou da dor, da tristeza ou da leveza que pendem sobre nossas vidas, tal qual o peso da espada de Dâmocles.

            Somos seres cindidos entre nossa sede de conhecer e de satisfazer nossos desejos de prazer, e somos convocados a lidar apropriadamente com essa procura, para processar uma vida boa, feliz e plena.[135] E sabemos muito bem que

[e]sta oscilação entre carência e satisfação, entre vazio e plenitude, é algo constitutivo da existência humana, de sua tragédia e sua comédia. Uma vida completamente racional, livre das interrupções do desejo, é completamente impossível. No mundo real, Platão sabia, a irracionalidade nem sempre é condenada e a racionalidade nem sempre é reconhecida. Sua filosofia política concebe a possibilidade de reduzir ao mínimo a irracionalidade constitutiva da vida humana ou, dito de outra maneira, quer evitar, ou pensar, como se pode evitar por exemplo fenômenos como a tirania e seu apetite desmesurado de domínio, que para Platão encarna o mal absoluto dentro da polis, pois, destrói a vida individual e coletiva. (MONCADA, 2009, p. 207).

 

Noutros termos, de acordo com Frede (1992, p. 427-428),

[...] nem o prazer nem o conhecimento, tomados por si próprios, podem preencher a conta do que torna a vida humana boa ao obter nossa felicidade [...], pois ninguém poderia desejar uma vida de prazer sem qualquer tipo de razão, nem uma vida de razão sem um pedaço de prazer. Apenas uma vida mista que contém prazer e razão é suficiente a esse respeito e deve, portanto, ser superior à vida do hedonista, bem como à dos “intelectualistas”.

 

Passo a apresentar algumas pistas ou “dicas” da boa medida da vida mista, que é a felicidade feita com prazer.

 

2 Pistas da boa medida para viver uma jornada vitalmente feliz

De acordo com Moncada (2009), em Platão, “a vida boa é possível”. Contudo, para isso, há que se refletir sobre seus componentes essenciais, a saber, os desejos e os prazeres, na medida em que

[...] deixar de pensar, negar-se a ver como desejos e opiniões contribuem para configurá-la, significaria abandonar nossas vidas completamente ao azar, ao capricho das circunstâncias políticas externas, ou ao automatismo dos comportamentos e formas de pensar e sentir adquiridas acriticamente. Certamente todos estes fatores jogam um papel na vida humana, e ainda que não possamos gozar da autonomia dos deles, senão podemos ao menos que nossos desejos, opiniões ou crença, não são dadas por natureza, e que podemos – talvez até devamos – atuar de modo que elas contribuam para configurar nossa existência da melhor maneira possível, se é o caso modificando-os. (MONCADA, 2009, p. 206).

 

No Filebo, vimos Sócrates e Protarco concluírem “[...] que devem entrar na mistura da vida todas as ciências, mas quanto aos prazeres, somente os mais puros, todos eles acompanhados sempre da verdade.” (BENOIT, 2007, p. 217). A vida boa e feliz é tecida, dialeticamente, com o conhecimento e o prazer, sem a hegemonia ou a supressão de um ou de outro. Não faz sentido para uma vida feliz, por conseguinte, a supremacia do conhecimento a despeito dos prazeres, tampouco a prevalência impulsionada pelos instintos humanos[136] mais epidérmicos e tendentes à satisfação imediata. Por outro lado, os prazeres direcionam sensivelmente o conhecimento, e este vem a nortear, pelo discernimento racional, quais são as sensações mais puras suscetíveis da realização de uma vida plena. Em certa medida, a adequada mistura dos dois componentes converge para o tempero equânime, a distar entre um conhecimento abstrato e calculista e certos prazeres instantâneos perdidos na efemeridade.

 

2.1 Em que consiste uma vida feliz?

A vida boa ou feliz é uma “[...] vida mista, uma vida que mescla saberes puros e impuros com prazeres mais puros possíveis”, de modo que “[...] esta mistura híbrida, para não resultar em droga perniciosa, depende antes de tudo de saber dosar, quantitativamente, cada elemento da fórmula”, pois “[...] em toda a mistura privada da medida e da proporção, qualquer que seja a forma pela qual seja composta, corrompem-se os seus componentes e ela própria.” (BENOIT, 2007, p. 218). Diferentemente da vida feliz proposta pela República e reiterada por Platão, em praticamente toda sua obra, no Filebo, ele defende “[...] a vida mista de prazer e sabedoria” que não consiste mais

[...] de ascender ao Bem, ao princípio a-hipotético, fundamento de todas as coisas, planície divina da aletheia; não se trata também mais de construir uma nova cidade inteiramente projetada a partir da contemplação de paradigmas perfeitos, esta vida não é mais aquela da austeridade perigosa dos guardiães comunistas regida pelo rigor absoluto de governantes-filósofos, dominadores da ciência suprema, a dialética, detentores do Bem em si e por si mesmo. (BENOIT, 2007, p. 220).

 

Neste estágio da reflexão, considero oportuno apresentar algumas das respostas de Jairo Moncada à pergunta que caracteriza a vida boa ou vida feliz, a saber, “qual estado e disposição da alma (hexis kai diathesis) que “pode outorgar aos homens uma vida feliz?”

Em primeiro lugar, conforme Moncada (2009, p. 207), nenhuma das disposições do prazer ou do conhecer “[...] pode chegar a constituir um bem em si isolando uma da outra, ou se a concebe com uma prioridade excludente”, pois “[...] viver só no prazer sem ter intelecto nem memória nem opinião correta não é própria da vida humana, mas da vida de um pulmão marinho”, ou, nos termos de Aristóteles, tal vida se restringiria ao seu componente vegetativo, vida indigna de ser vivida por nós.

Em segundo lugar, sem tais disposições,

[a]lguém não estimaria nem saberia apreciar o que se goza, e um gozo que não se pode recordar empobrece a vida. Uma vida prazerosa sem memória alguma do gozado é vazia. Uma vida sem memória do vivido, carente da possibilidade de lembrar-se do gozo experimentado não é uma vida boa nem digna de viver-se. (MONCADA, 2009, p. 207).

 

É a vivência do gozo que torna nossa vida saborosa e nos motiva a vivê-la, diariamente, intensa e de modo pleno.

Em terceiro lugar, “[...] uma vida refletida funde suas raízes na capacidade da memória, a qual, ademais, está mediada proposicionalmente”, ou seja,

[...] uma vida dedicada exclusivamente à razão, à ciência, ao intelecto, porém insensível ao prazer, à dor, é uma vida que carece de motivação para fazê-la digna de eleição. Uma vida dedicada à atividade do conhecer, p. ex., porém que não tem prazer na atividade de conhecer é uma vida absurda. (MONCADA, 2009, p. 206-207).

 

Em quarto lugar, de acordo com Moncada (2009, p. 207), “[...] viver humanamente é poder ser sensível ao gozo e à dor das atividades nas quais se realiza nossa vida”, pois ninguém “[...] busca a dor voluntariamente”, mas, como ela nos sobrevém, “[...] viver implica saber-se exposto à dor e à carência”, que participam de nossa vida. Sabemos que, “[...] na tragédia e na comédia da vida, as dores estão misturadas com os prazeres. Só a vida composta pelos dois é uma vida humana propriamente dita. A vida lograda é a vida que mescla com medida ambos os elementos.” (MONCADA, 2009, p. 207). Embora não queiramos, nem assim o desejemos, a vida é trágica, porque carrega em si gérmens de dor, de tristeza, de sofrimento com os quais precisamos aprender a lidar apropriadamente.

Em quinto lugar, “[...] se a vida mista é a vida humana propriamente dita, preferível às anteriores (uma dedicada exclusivamente ao prazer e outra exclusivamente ao intelecto), a razão, o conhecimento, o juízo correto, são meramente o caminho, não o fim da vida boa possível.” (MONCADA, 2009, p. 207). Esta é, pois, a novidade platônica que inverte a identificação da vida feliz apenas com o cultivo da razão, reorientando-a para uma vida na qual a razão é uma meta a ser conjugada com nosso desejo de prazer.

Enfim, a vida boa e feliz, por paradoxal que pareça, é uma vida pautada pela razão, porém, não se trata mais de uma racionalidade matemática ou abstrata, nem absoluta, mas dianoética:

Viver racionalmente não quer dizer que se tenha que extirpar os afetos, as emoções, os desejos, as carências, as dores que o acompanham, mas saber apoiar-se neles, combiná-los adequadamente, saber tratá-los como elementos de nossas vidas, e não em seguir cegamente valorações que se nos impõe ou se nos querem impor, nem deixá-los crescer de forma desmedida de modo que nos afundem na imprudência e no esquecimento. Para isto, por suposto, não há regras absolutas, e creio que Platão não pretende possuí-las. (MONCADA, 2009, p. 207).

 

O paradoxo está, por conseguinte, na abertura platônica, no Filebo, de uma qualidade própria do discurso racional, no qual se apresenta o compromisso com a verdade, para componentes não lógicos outrora estranhos à razão, como as paixões e os prazeres (CASERTANO, 2018, p. 186). Considerando que a vida boa e feliz é tecida com o auxílio da razão, proponho explicitar, a seguir, seu modo de consecução.

 

2.2 A medida da vida feliz se efetiva dialógico-phroneticamente

No Filebo, Platão nos alerta e nos recomenda a medida apropriada para construir uma vida feliz. Nos termos de Moncada (2009, p. 209), “[...] nunca poderemos encontrar a fórmula que indique de maneira definitiva como combinar com proporção e medida nosso conhecimento e nossos desejos, de modo que a combinação seja bela, adequada ao momento que se vive, e às circunstâncias em que se vive.”

Porém, dizer que não há uma fórmula definitiva para realizar a medida certa da mistura não significa que se possa prescindir de uma metodologia para efetivá-la. Daí porque, segundo ele,

[...] a relação com a verdade no mundo da ação consistiria em que nossa orientação em direção ao bem se apoie sobre opiniões discutíveis, corrigíveis, e as mais possivelmente verdadeiras, como o mostram os diálogos socráticos, e esta orientação em relação à verdade de minhas ações implica que eu possa criticar e modificar os desejos e apetites que guiam minhas ações e as crenças com as quais se vinculam, ou ao menos tratar de minimizar os efeitos destrutivos que podem ter tais desejos e apetites, se se deixam crescer desmedidamente. (MONCADA, 2009, p. 209).

 

Sem abandonar o princípio da razão na consecução da vida boa, da felicidade, a novidade sugerida é que sua medida já não é mais aquela da pureza matemática ou da exatidão abstrata, mas de uma medição que parte e é tecida com e para a finitude, a contingência, a historicidade. A verdade, o bem e, portanto, a felicidade, além de se revestirem de diferentes roupagens, se efetivam situadamente; a vida boa varia no tempo e no espaço, pois o bem se diz de diferentes modos, o que implica precisar ser efetivado com uma medida que lhe seja apropriada. Noutros termos, para ser devidamente vivida, a felicidade requer o uso da racionalidade, nos moldes do entimema,[137] da dialética, e menos ou muito pouco do silogismo ou da ciência apodítica. Em termos metodológicos, por conseguinte, “[...] não há a proposição ou o conjunto de proposições sobre a vida boa que possa formular de uma vez e para sempre a resposta à pergunta pela vida feliz.” (MONCADA, 2009, p. 208).

A alquimia que nos torna felizes se faz por meio do logos – linguagem, discurso, razão, palavra – do diálogo, da prudência.[138] Como em cada ocasião de nosso percurso vital nos confrontamos com a necessidade de combinar elementos desiderativos e cognitivos, estamos às voltas com algo, um processo, em permanente abertura, para poder desfrutar de uma vida boa e feliz, e que, para tanto, nos pede para se implementar um logos com eficácia de argumentar, falar, dialogar. A vida feliz pressupõe e implica, portanto, abertura de horizontes e disponibilidade para gozar o prazer em cada oportunidade, mediante a razão prática.

A vida feliz consiste numa jornada mista, regida pela medida apropriada, assumida em termos de uma terceira margem, cuja configuração não se reduz a uma simples soma nem ao confinamento de uma margem a outra e, muito menos, à fundição delas, mas que se potencializa criativamente em uma nova via a abrangê-las na dosagem certa.[139] Isso constitui a ética dialética encarnada numa ciência prática, distinta do procedimento apodíctico-técnico. A vida ética não requer apenas justificativas e teorias éticas, porém, o exercício e o cultivo da prudência, a qual, de acordo com Theodore George (2015, p. 118), é traduzida por Gadamer como consciência moral concreta que se expressa em conceitos como apropriado, adequado, bom e certo.

Para George (2015, p. 103), Gadamer foi capaz de relacionar a obrigação incondicional da moral kantiana com a condicionalidade da existência humana aristotélica, que aponta para uma vida ética que opera caso a caso, sem poder ser reduzida a teorias opacas ou a memórias desligadas de experiências passadas. Daí a razão por que ele propõe o diálogo como o caminho para respondermos responsavelmente à nossa busca por uma vida feliz, tendo em vista estarmos jogados às contingências, seladas com suas imprevisibilidades que fogem do nosso controle ou da pretensão prévia de erradicá-las.

A boa medida pressupõe e implica a ruptura da postura dogmática aferrada à crença de que a felicidade reside apenas ou na satisfação dos prazeres ou no cultivo do conhecimento.[140] No Filebo, mostra-se e se justifica que a vida feliz é uma síntese, aberta, gerada pela mistura apropriada entre o conhecimento e o prazer; isso pode ser tido na conta de Platão, “[...] independentemente se se compartilha ou não alguns de seus juízos e valorações éticas, é ter visto isto”, de sorte que repensar isso, “[...] entre outras coisas, significa não deixar cair no esquecimento sua pergunta pela vida boa.” (MONCADA, 2009, p. 209). Destaca Moncada (2009, p. 207-208):

Quando Platão fala nos diálogos sobre a importância da reflexão para viver, não está afirmando uma equivalência completa entre vida boa e reflexiva, como se um devesse estar refletindo o tempo todo, mas se refere antes ao fato de não aceitar acriticamente, mas, sim, em submeter à deliberação, os padrões ou critérios sociais e políticos próprios da época, aos quais não são imunes nossos desejos. Ser racional, visto platonicamente, significaria estabelecer uma relação reflexiva e crítica com os fins da ação, por um lado e com os critérios de juízo das ações pelo outro, e com os próprios desejos e afetos que motivam as ações.

 

Finitos, cindidos, entre nossa sede de conhecer e de satisfazer nosso desejo de prazer, “[...] nosso saber sempre tem limites e no caso de poder se obter um saber completo e total sobre a condição humana, teria pouca importância, pois o verdadeiro problema reside em seu uso: a prudência, a medida, o uso oportuno e adequado de tal saber.” (MONCADA, 2009, p. 207-208). Todavia, como fazer a mistura correta entre conhecimento e prazer? A resposta a essa pergunta é posta em procedimento nos seguintes termos de Sócrates e de Protarco, os quais “[...] começam a preparar a mistura perfeita que caracteriza a melhor das vidas” invocando “[...] Dionísio ou Hefaísto ou outro deus que seja encarregado de presidir a mistura”. Nessa perspectiva,

[...] como preparadores de libação, imaginam diante de si duas fontes, aquela do prazer e aquela da sabedoria, a primeira assemelha-se a uma fonte de mel, e a segunda à água austera e saudável, sóbria e sem vinho. À procura da melhor das vidas, a vida na qual residem o bem, devem eles tentar estabelecer a mistura desses elementos da maneira mais perfeita possível. (BENOIT, 2007, p. 215).

 

Por essa imagem, percebe-se que a boa vida depende mais da habilidade similar à arte dialógica que do labor da técnica. O ponto nevrálgico da atividade feliz consiste em “[...] mesclar, na correta dose, os prazeres e os diversos saberes para não produzir uma mistura perigosa” segundo o pressuposto de “[...] que certos prazeres e certos saberes eram mais puros e mais verdadeiros” e que deveriam acrescentar também os saberes menos verdadeiros e impuros para “uma vida feliz.” (BENOIT, 2007, p. 216).

            A dificuldade em obter a medida apropriada faz parte do itinerário de uma vida feliz e, por isso, precisamos falar, argumentar, discorrer e dialogar sobre sua medição correta, no sentido de adequada na proporção fático-histórica de sua concretude. Inclusive o perigo de não saber nem conseguir dosar apropriadamente tais meios participa do processo da vida humana. Esse desafio foi estampado de modo magistral, em linguagem literária, por João Guimarães Rosa (1958, p. 550), ao repetir, no Grande Sertão Veredas, o seguinte mantra: “[...] viver [...] é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é viver, mesmo”, de modo que, em última instância, aprender a medir apropriadamente, vale dizer, praticando-se a alquimia correta entre o conhecimento e o prazer para viver em felicidade importa no que representa o viver mesmo. Nesse caso, é de pouca valia a medida ideal ou exata sob uma fórmula pré-fixada, para vivermos bem e felizes. Eis o motivo pelo qual Sócrates e Protarco equipararam a arte de ser feliz com a elaboração musical em suas imprecisões criativas, uma arte “[...] repleta de suposições e imitações.” (BENOIT, 2007, p. 216).

            No processo alquímico para se viver felizmente, cogita-se se se “[...] deveriam admitir indiscriminadamente todos os prazeres?”, ao que Protágoras responde:

Que primeiro seria melhor aceitar apenas os prazeres mais puros e verdadeiros [...] os prazeres violentos nos trazem muitos problemas, tormentos, desequilíbrios e impedem o nosso desenvolvimento; quanto aos prazeres verdadeiros e puros, são quase nossos parentes e podem ser admitidos, juntamente com aqueles que são acompanhados da saúde, da virtude e da temperança. (BENOIT, 2007, p. 216).

 

Quem faz a alquimia em questão não nega a ciência, não nega o conhecimento, não nega o saber nem prescinde da argumentação, pois “[...] nossas experiências são palavras (logoi) ‘escritas na alma como em um livro’, muitas vezes complementadas por imagens (eikones), que podem ser atualizadas pela própria alma.” (FREDE, 1992, p. 445). E, quanto ao resultado da mistura entre o conhecimento e o prazer, relativamente ao Bem, lemos, no Filebo:

[...] teriam chegado dessa forma a sua morada? Teriam ultrapassado as barreiras postas pela sua transcendência? Na verdade, como em a República, o Bem permanece como algo além, não se chega a ele próprio, somente a sua proximidade. Em a República, porém, pensava-se que era possível chegar até ele, e agora, no Filebo, ao contrário, parece que ele pode permanecer como uma mera referência analógica para os bens atingíveis. Se o Bem é sempre a referência última de todo percurso e de toda ação na vida humana, agora permanece apenas nas suas fronteiras de forma metodologicamente consciente. Assim, agora, se ocorre uma aproximação, no entanto não se chega e não se pretende chegar ao próprio Bem e nem sequer se penetra na sua própria casa, mas apenas se chega às portas de sua morada. (BENOIT, 2007, p. 217).

 

Em outros termos, para Protarco e Sócrates,

[f]ica muito claro que chegaram a algum lugar, mas não à própria meta última da viagem. Sim, certamente, ocorreu a aproximação à terra procurada, mas não a chegada a ela própria. Atingiram apenas ‘as portas externas’, ‘o vestíbulo’ do bem e de sua morada, mas, nem a ele próprio e, nem sequer, sobretudo, puderam penetrar em sua morada. (BENOIT, 2007, p. 217).

 

A felicidade, pois, dista de um estado possuído em definitivo, porquanto envolve um processo em construção a ser construído e reelaborado dialogicamente. A dialética platônica, no Filebo, parte da premissa segundo a qual a realidade, mesmo sendo múltipla, pode ser submetida a um procedimento do logos – qualificado mais como arte e menos como técnica – capaz de efetuar relações, distinguindo e unificando por gêneros, na continuidade de uma tradição “[...] ofertada pelos deuses aos homens para examinar, aprender e ensinar uns aos outros.” (PERINE, 2020, p. 151). O processo alquímico-dialógico da boa medida na proporção correta varia de pessoa para pessoa, de sociedade para sociedade. Embora a adequada mistura seja relativa às pessoas e às sociedades, é preciso postular que há uma objetividade mensurável suscetível de ser aferida pela produção dos seus resultados.

 

3 Critérios para saber se a medida da mistura foi bem ministrada

Inicialmente, sabemos que a complexa realização da medida apropriada não deixa de estar acompanhada de uma certa insegurança, em vista da condição humana, conforme já atestado nas sábias palavras de Sófocles (1973, p. 157), pela boca de Filoctetes:

[...] salva-me, tem pena de mim! Vê como para os mortais tudo é para temer e cheio de perigos, tanto na felicidade como na desgraça. Quem está livre de trabalhos deve abrir os olhos para o pior...

 

Considerando a situação trágica característica da humanidade, é de se propor critérios para saber se a medida foi bem conduzida pela aferição dos seus corolários. Em meio ao torvelinho do processo phronético para aproveitar uma vida feliz, sugerimos averiguar a dosagem correta da mistura pela análise dos seus efeitos. Proponho, destarte, mostrar a mistura correta entre o conhecimento e o prazer, atendo-me às implicações pessoais e sociais, através da ótica de dois registros, a saber, via negationis – ou pela circularidade viciosa entre conhecer e prazer que produz a vida ruim e infeliz – e via afirmationis – ou pela circularidade virtuosa entre conhecer e prazer que produz a vida boa e feliz.

 

3.1 Corolários da circularidade viciosa entre prazer e conhecer

Comecemos com o exemplo do vinho, o qual, se tomado em excesso, pode causar dor de cabeça e mal-estar, ou seja, uma sorte de indisposição que acaba azedando a vida de quem assim o desfruta; ademais, se tomado repetidas vezes, compulsiva e desmedidamente, o mau hábito se converte em dependência, cuja marca se traduz em depressão. Portanto, se ingerido sem a dosagem correta da moderação, cria-se um vício, uma escravidão, que não faz bem nem ao corpo e menos ainda à alma do sujeito. Essa circularidade viciosa se nutre apenas de um dos lados da polaridade e, no caso de ser saciado o desejo de beber sem o uso da razão, o que se obtém é a destruição progressiva da saúde psíquica e física, individual e social das pessoas.

A circularidade viciosa alimenta a desarmonia e o desequilíbrio entre a sede de conhecer e o desejo de prazer, pois gera atos intempestivos, passionais, violentos e agressivos. A desarmonia gerada e alimentada pelo círculo vicioso produz efeitos nefastos, tanto no indivíduo quanto na sociedade; veja-se Creonte, em conflito com Antígona e os seus, veja-se a prática atual de governantes com seu negacionismo científico, no combate à pandemia, cuja administração se assemelha às mais hostis e deliberadas práticas totalitárias contra o seu próprio povo, culminando por engendrar, pelo impacto do péssimo exemplo de quem deveria servir como modelo de virtude, uma circularidade viciosa que fomenta ódio, rancor, ressentimento e polarização sociopolítica.

A circularidade viciosa, por se nutrir apenas de emoções desvencilhadas de razões, produz raiva, indisposição, irritação e tristeza, uma coletânea de sentimentos debitáveis da conta da infelicidade. Nos termos de Frede (1992, p. 451-452), quanto ao papel das emoções vinculadas ao prazer, conforme desenvolvido no Filebo,

Platão é verdadeiramente inovador: todas as nossas afeições apaixonadas resultam numa mistura de prazeres e dores, e os chamamos de um ou de outro porque há uma preponderância de um ou de outro, tal como havia nas condições do corpo. Ele insiste que todas as nossas emoções dolorosas, como raiva, saudade, lamentação, amor, ciúme e inveja, são privações de algum tipo ou outro que contêm uma porção de prazer.[141]

 

O círculo vicioso é capaz de acarretar, em última instância – no agente e no paciente –, morte, dor, sofrimento e tristeza, emoções próprias do acervo de uma vida infeliz. Essa circularidade não faculta nem propicia a realização de uma vida humana plena, porque é tecida por uma parte apenas – e insuficiente – da polaridade própria que pavimenta uma vida boa e feliz.

Esse círculo vicioso possui também implicações ambientais, pois é o desmedido prazer oriundo do beneficiamento individual próprio, em detrimento da coletividade que fomenta, por exemplo, a exploração inesgotável que protagoniza a destruição de nossas florestas em nome do crescimento econômico de interesses privados. O prazer de enriquecer desmedidamente, sem cotejá-lo com o conhecimento responsável, promove o desequilíbrio em todas as esferas e, portanto, tal inclinação parcial, com caráter não holístico, universal e sistêmico, é o que patrocina a destruição da natureza, do nosso ethos, do Lebenswelt que caracteriza o período do Antropoceno. Podemos dizer que a representação antropológica dessa postura se encontra na figura do Homo Deus, de Harari (2016),[142] indisposto e incapaz de rever sua recusa em misturar apropriadamente conhecimento e prazer.

A ruptura desse tipo de circularidade só é possível com uma certa dose de racionalidade. É a prática da racionalidade situada e histórica que pode nos salvar do prazer violento oriundo do ódio destruidor que podemos sentir para com o outro. O uso da razão fraca[143] nos possibilitará evitar a destruição do nosso ethos, em tempo. A aplicação de uma porção de razão no movimento da circularidade viciosa responde, portanto, pela possibilidade de se romper o círculo vicioso para torná-lo virtuoso, de modo a gerar a tão ambicionada harmonia, que é um dos atributos essenciais da vida boa e feliz.

Aliás, o diálogo platônico nos convida a pensar que o estatuto dos prazeres carece, à partida, de um complemento essencial, pois o prazer não pode ser sentido e mensurado como prazer, se não estiver acompanhado pelo conhecimento. Desse modo, a circularidade viciosa no campo dos prazeres já nos aponta para a fragilidade típica de uma configuração dialética claudicante, na qual o conhecimento, apesar de indispensável para identificar a carga da sensibilidade em jogo, vai sendo abandonado e subsumido aos poucos pela força da contraparte. O vício é, por conseguinte, mais um desdobramento desse desequilíbrio do que o resultado de uma unilateralidade.[144] E a reivindicada circularidade virtuosa, a seguir apresentada, nada mais realizará do que a retomada da harmonia entre aqueles dois componentes, sem a qual nada poderá nos fazer conduzir ao bem da vida boa em felicidade.[145]

 

3.2 Corolários da circularidade virtuosa entre o prazer e o conhecer

A circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer se corporifica na produção de saúde, de harmonia, de amor e de alegria, próprios da vida boa e feliz. O prazer de saber tomar um vinho na medida correta expressa bem esse estado desejado de vida! A denominada bebida dos deuses nos alegra, faz bem à nossa saúde e saber bebê-la na medida apropriada não é algo pré-fixado por uma escala abstrata, tampouco adaptável a certos parâmetros, com medida universal a ser aplicada. Cada qual é convocado a fazer a alquimia para produzir o prazer equilibrado com a razão que gera a vida boa e feliz. Note-se bem, a circularidade virtuosa promove o justo equilíbrio da mistura correta entre prazer e conhecimento, propiciando inclusive meios para necessárias adaptações que se irrompam na jornada finita e imperfeita da vida humana.

A vida boa e feliz implica a harmonização ensejada pela conjugação apropriada entre conhecer e prazer, a qual se reverte em sensação de bem-estar físico, de conforto, de plenitude. A vida feliz é uma vida misturada de prazer e conhecimento e, de acordo com Platão,

[a]penas um conjunto muito restrito de prazeres é aceitável para uma vida boa. Além dos prazeres verdadeiros e puros, Sócrates inclui ‘o prazer da saúde e da temperança e todos aqueles que se comprometem com a virtude’, isto é, aqueles que conduzem à saúde e à harmonia da alma e do corpo. (FREDE, 1992, p. 430).

 

Nessa direção, conforme Frede (1992, p. 429), Sócrates defende:

A visão de que os próprios prazeres precisam de moderação e harmonização. Se eles são bons, sua bondade não vem de sua própria natureza genérica, mas está condicionada a algo além do próprio prazer. “Então temos que procurar algo além de seu caráter ilimitado que conceda ao prazer uma parte do bem” [...] os prazeres surgem nos seres vivos que estão em um estado de harmonia, a classe mista.

 

Da mistura feita corretamente decorre e se corrobora, em termos pessoais, a harmonia interna entre sentimentos e ações, sensações e realizações, entre paixões e sede de conhecer; em termos sociais, proporciona e instaura um ethos harmonioso pautado pelo respeito, pela tolerância, pela compreensão da justiça, das razões e dos argumentos do outro.[146]

            Do ponto de vista da temporalidade, a circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer se aplica à vida vivida relativa ao tempo presente e ao futuro, ao passo que, na circularidade viciosa, se absolutiza um daqueles polos, ou apenas o presente, em detrimento do futuro ou o futuro em detrimento de uma vida feliz, no presente, segundo o mantra “primeiro o trabalho, depois o prazer; primeiro acumular para depois gozar”[147]. A crítica dessa circularidade viciosa sempre esteve na pauta dos filósofos e, no caso, retomo as palavras de Sêneca, em sua lúcida advertência:

Ouvirás a maioria dizendo: “aos cinquenta anos me dedicarei ao ócio. Aos setenta, ficarei livre de todos os meus encargos”. Que certeza tens de que há uma vida tão longa? O que garante que as coisas se darão como dispões? Não te envergonhas de destinar para ti somente resquícios da vida e reservar para a meditação apenas a idade que já não é produtiva? Não é tarde demais para começar a viver, quando já é tempo de desistir de fazê-lo? Que tolice dos mortais a de adiar para o quinquagésimo e sexagésimo anos as sábias decisões e, partir daí, onde poucos chegaram, mostrar desejo de começar a viver? (SÊNECA, 2007, p. 32).

 

A circularidade virtuosa rompe a viciosidade dessa lógica anterior, à proporção que faz do tempo presente e do futuro o tempo das nossas vidas a ser experimentado intensamente, em busca da felicidade. A circularidade virtuosa cria a harmonia, a alegria, a saúde e o equilíbrio característicos do estado de uma vida feliz. Se, na República, tal estado da alma foi sugerido como próprio apenas da figura do filósofo, que se atém a contemplar o bem, mediante esforço e exercício puramente racional, específico da parcialidade do círculo vicioso, no Filebo, a felicidade é factível para todo aquele que se envereda na arte virtuosa de dosar, corretamente, o conhecimento com o prazer. Essa circularidade que reabilita nas pessoas a lama dos vícios e, cada vez mais leves, nos possibilita viver com uma visão e ação mais livres e holisticamente integradas.

            Se, no círculo vicioso, se institui o vício, a escravidão – no caso do vinho, ingerido sem o auxílio da razão, para ministrar sua dosagem correta, ao alimentar tão só a dependência de um prazer desmesurado –, na circularidade virtuosa, instaura-se a liberdade, a autonomia e o gozo pleno, porquanto equilibrado, dos prazeres. A prática de ingestão racional da bebida institui uma segunda natureza – à medida que sentimos seus efeitos positivos – que caracteriza a virtude. O corolário da dosagem adequada ou bem-feita se reverte em acréscimo de ser ao nosso modo de ser, uma expansão da nossa liberdade para conosco e com o mundo, um aprimoramento qualitativo em sabedoria. O sábio, antípoda do dogmático – o qual se vincula apenas a uma das margens da polaridade mencionada –, se encontra aberto às inúmeras possibilidades de efetivar a felicidade, acomoda para ela largos horizontes e lhe é peculiar a postura de tolerância, de respeito, de compreensão da diversidade, da vulnerabilidade e da historicidade no rumo dos acontecimentos.

            Nutrido e movido pelo esforço de efetivar a circularidade virtuosa, aquele que se envereda por essa rota acaba por implementar harmonia, justiça e respeito em reciprocidade no ethos. Ao fomentar a harmonia interna – conforme sugerido por Sócrates a Alcibíades –, é possível criar uma morada mais agradável, mais aprazível, com vínculos saudáveis entre seus membros, pois quem cuida de si mesmo pode cuidar apropriadamente dos outros, conforme atributo próprio do político em conformidade ao disposto no Alcibíades.

No caso da Carta Sétima, tanto Dionísio I quanto Dionísio II, embora tivessem simpatia pela filosofia, ficaram presos à busca do prazer oriunda da posse do poder, as quais viabilizaram práticas e políticas totalitárias excludentes do diferente, avessas à instância do outro. Nessa carta, encontramos prelúdios do que caracteriza a gestão virtuosa, filosófica, pela proposição da alquimia entre verdade e bondade, justiça e emoções, conhecimento e prazer. Apenas essa circularidade pode evitar a tirania que maltrata a vida, com o antídoto capaz de fomentar a harmonia e a liberdade das pessoas, uma vez que, como já nos alertaram Hémon e Tirésias, são levadas em consideração a razão e a opinião do outro, isto é, o não ser, na esteira da proposta do estrangeiro de Eleia, no Sofista. A circularidade virtuosa entre conhecimento e prazer gera mais vida, mais saúde, mais harmonia pessoal, social, política e ambiental. A mistura correta implica a maximização da qualidade das nossas vidas e também a sustentabilidade ambiental, porque o desejo de saciar o prazer é pautado pela relação de respeito e de cooperação de uns com os outros, e de todos com o mundo habitável em que vivemos e no qual procuramos ser felizes.

 

Conclusões

Em termos pessoais, qual o sentido de uma vida vivida, se não for examinada e, em simultâneo, se não for investida pelo fio do sabor dos prazeres? Que razão teríamos para viver, se não pudéssemos também gozar o prazer que nos torna plenos, livres, autônomos e felizes? Viver sem prazer equivale a comer uma comida sem sal, a beber um vinho avinagrado, a viver vegetando, a decrescer enquanto ser.

Particularmente, a vivência dolorida e interminável do pathei mathos de Ésquilo tem mostrado, a toda evidência, que a vida plena e feliz se faz entrelaçando o conhecimento – de nós mesmos, dos outros, do real – com o prazer do tempo presente à mira do horizonte de continuidade em perspectiva do futuro. Essa conjunção se corporifica na atenção cuidadosa conosco e com os outros. Aprendemos, com Platão, que a vida boa e feliz consiste na arte, alquímica, de saber dosar o dever e a satisfação, o conhecimento e o prazer, nossa atividade profissional com o tempo livre, cuidando dos seres próximos que fazem parte de nossa história. De fato, não vale a pena uma vida vivida apenas em função da razão ou do prazer isoladamente considerados, porque somos alma e coração, somos espírito e corpo, somos eternidade e temporalidade, somos dever ser e liberdade.

Vimos que a felicidade não é elaborada somente pelo prazer ou pelo conhecimento, mas pela mistura adequada entre ambos, à luz da racionalidade dialética ética, phronética. Não se trata de uma ética intelectualista, formalista, deontológica e, menos ainda, de uma ética utilitarista e hedonista, todavia, de uma ética das virtudes que articula dois componentes antropológico-ontológicos, a saber, nossa sede insaciável de saber e nosso desejo de satisfazer o que nos confere prazer. Trata-se de uma ética hermenêutica, porque nela se realiza o trabalho de Hermes de pontificar essas dimensões humanas constitutivas num todo, o que fomenta um ethos mais harmônico, pautado pela responsabilidade e pelo compromisso de todos os envolvidos para instaurar a vida boa, plena e feliz, senão, ao menos, para vislumbrá-la como uma possibilidade factível, ao alcance de nossa realidade rumo a um futuro provido de esperança.

Enquanto o círculo vicioso torna alguém mais escravo, dependente de seus desejos e infeliz, o círculo virtuoso produz mais vida, mais alegria, mais harmonia, mais liberdade, mais felicidade. Dentre os horizontes do prazer e do conhecer, é mais fácil e mais cômodo se fixar num deles; é mais fácil se ater à crença cega, à adesão a uma lei, a uma regra, às fake news, que se dedicar ao esforço diário e constante de compreensão, de interpretação,[148] de tradução de como viver em felicidade e se empenhar na busca pela vida boa. É mais simples incorporar uma ética idealista, hedonista ou deontológica, porque nela se dispensa a postura phronética para discernir e julgar com constância sobre aquilo que, de fato, nos torna felizes.

Por certo, é difícil praticar sistematicamente a arte de medir, de se empreender a dosagem correta entre prazer e conhecer. A ética dialética, enquanto ética hermenêutica, é exigente e, além disso, nos instabiliza a ponto de nos desacomodar, pois requer permanentemente o uso da razão, para compreender, em cada situação, aquilo que nos plenifica e nos torna felizes. Se, por um lado, é difícil assumir ou incorporar a hermenêutica diária entre o conhecimento e o prazer, por outro lado, parece-me que estamos a cogitar de condição sine qua non para atualizar nosso modo mais genuíno de ser e, portanto, nossa possibilidade de realização plena corporificada no estado e na experiência de felicidade.

A vida boa e feliz parece ser sempre “incompleta”, “limitada”, por isso se diz que é eterna enquanto dure, porém, essa é a nossa condição, porque somos finitos, livres e históricos. Sobre nosso estado e sensação de felicidade pende a espada da Dâmocles, pois ela depende de fatores internos (pessoais) e externos (sociopolíticos). Daí porque, em nossa procura pela felicidade, o que acaba importando mesmo é o caminho, o processo de sua consecução. Nos termos de Guimarães Rosa, o ponto não está nem no começo nem no fim, mas no meio, na travessia, a qual caracteriza o perigo de viver felizmente, porque, ao final, aprender a viver felizmente é o que constitui o viver mesmo. Ou seja, nas palavras de Cícero (2009, p. 169), “[...] as coisas humanas são frágeis e caducas”, o que o leva a recomendar que “[...] sempre devemos procurar alguém a quem amemos e por quem sejamos amados. Pois sem afeto e sem benevolência, a vida perde todo seu encanto”, e, de fato, de que vale uma vida regida pelo dever determinado pelo conhecimento, se não for nutrida pelo prazer e pela alegria de viver bem consigo e com outros?

Da mesma forma, de que vale, por outro lado, a errância hedonista de prazeres sucessivos na vida de alguém, desarticulados do exercício da razão, de uma pauta racionalmente hermenêutica, capaz de direcionar a busca pela mistura correta, cujo destino importe na efetiva felicidade? Na voz de Gonzaguinha, a alquimia entre o conhecimento e o prazer, entre deveres e emoções que nos fazem felizes, se corporifica em cantar e cantar e “viver na esperança de ser um eterno aprendiz” – porque sabemos que sempre pode ser melhor, que sempre há uma luz no final do túnel, que, depois das tempestades, vem a bonança... – o que não nos “impede de cantar que é bonita, é bonita”, porque é na procura de viver na plenitude que está e se encontra o encanto da coisa desejada: eis o estado e a experiência, sempre em movimento, de uma vida feliz.

Em termos do progresso de conhecimento, a arte da mistura correta entre o conhecimento e o prazer combina com a abertura e o acolhimento dos avanços comprovados e disseminados pela ciência, o que leva à disponibilidade para argumentar em combate aos variados dogmatismos, à ignorância, ao negacionismo, práticas que desdenham e destroem as conquistas científicas e a sua inquietude para novas perguntas e formulações. De posse dessa dialética, podemos nos precaver frente ao desequilíbrio interno assentado sobre nossas crenças e dependências (o que não deixa de ser uma supremacia viciosa de prazeres egoístas), as quais excluem dados e conjecturas reconhecidos pela comunidade dos cientistas.

Em termos políticos, em meio à pandemia, não é difícil reconhecer a tragédia gerada por políticos aferrados à margem da satisfação da obtenção e do uso do poder e da riqueza. Desequilibrado, o irresponsável administrador da coisa pública pauta sua conduta pela margem do prazer e, tal qual Creonte, redunda em ser fonte de tragédias pessoais e sociais. Daí porque Alcibíades pode ser visto como protótipo de político doente que Sócrates procurou curar, pela argumentação, recomendando cultivo e cuidado de si mesmo – naquele exercício constante de autoconhecimento, autoaferição e auscultação da medida correta entre conhecer e prazer – para poder gerenciar a vida e os interesses da cidade (ROHDEN; KUSSLER, 2017).

Em termos ecológicos, a busca para saciar a sede do prazer de acumular riquezas patrocina uma ação predatória, destrutiva da nossa casa, da mãe natureza. Desmesuradamente, a satisfação gananciosa do prazer de enriquecer em acúmulo envenena nossas águas, polui nosso ar e, em última análise, vai nos aniquilando aos poucos. Fazer a mistura correta entre nossa ânsia de satisfação pessoal com nossa racionalidade não é coisa de pequena monta, tampouco constitui assunto privado ou de ordem pessoal, pois tem sérias implicações sociais, políticas e ecológicas. Enfim, fazer a dosagem apropriada entre ambas não é uma questão de somenos importância, irênica, romântica, mas diz respeito à nossa sobrevivência e, fundamentalmente, à condição de construir uma vida boa e feliz para nós mesmos, nossos semelhantes e descendentes.

 

Hermeneutic ethics: Virtuous circularity between knowledge and pleasure from Plato’s Philebus

 

Abstract: In the context of my project to justify the ethical dimension of Hermeneutics, in this article I will propose answers to the central question around which Plato’s Filebo dialogue is articulated, namely, “what is the state and disposition of the soul (hexis kai diathesis)? that can grant men a happy life? Is it for knowledge, or for pleasure?” From the clues proposed in the dialogue, I will develop the notion of a good and happy life as a process and result of the correct mixture between knowledge and pleasure. Under the aegis of Gadamerian hermeneutics, taken as an ethical praxis, the objective is to substantiate the thesis that happiness is the result of the virtuous circularity between knowledge and pleasure as opposed to the vicious circularity that implements unhappiness, establishes a slave life that implies the personal, social and environmental destruction. I will do this by explaining, initially, the type of ontology and the rationality proper to dealing with the good and happy life combined with pleasure; this will make it possible to indicate clues of the appropriate alchemy – through dialogical-phronetic investigation – between knowledge and pleasure to establish a good and happy life. Finally, the original contribution of this reflection lies in proposing criteria to assess whether the mixture was well done by presenting the implications of the vicious circularity and corollaries of the virtuous circularity between knowledge and pleasure. I will show that vicious circularity fosters unhappiness, while virtuous circularity enables the creation of a good and happy life in individual and social terms, in addition to establishing a harmonious relationship and integration with the environment.

 

Keywords: Hermeneutic ethics. Gadamer. Knowledge. Pleasure. Philebus. Plato.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 04/07/2022

Aceito: 22/08/2022

 

Comentário a “Ética hermenêutica: circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer a partir do Filebo de Platão”: Os prazeres de Céfalo

 

Admar Costa[149]

 

Referência do artigo comentado: ROHDEN, Luiz. Ética hermenêutica: circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer a partir do Filebo de Platão. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 2, p. 221 – 248, 2023.

 

Platão aborda o tema do prazer e do desejo, em diversas obras, e isso traz implicações diretas para a sua concepção de quem é o ser humano e como ele deve ser educado, como vive em comunidade, como resolve seus conflitos psíquicos e como deve escolher seus líderes.

Nas primeiras páginas da República, o tema comparece em um interessante contexto. Céfalo, com a idade de 70 anos, confessa a Sócrates que, com o passar do tempo, descobriu que os prazeres da conversa aumentavam à medida que os prazeres do corpo diminuíam. A descoberta é celebrada por tornar a velhice – a qual é reputada como uma fase difícil da existência – mais prazerosa. Por esse motivo, Sócrates ouve a reclamação de que anda sumido, de que deveria vir mais vezes ao Pireu, para conversar, não só com o dono da casa, mas com os filhos e amigos que lá se encontram, como expectadores do longo diálogo que receberá o nome de Politeía.

 A fala de Céfalo[150] sugere que aqueles que não substituíram os prazeres do corpo pelos prazeres da conversa continuam a lamentar a velhice e a sonhar com os dias passados. Relacionando a vida a prazeres sensuais, esses velhos concluem que já não vivem ou que não é vida o que usufruem, no momento. Até que ponto Céfalo tem razão? Podemos trocar um prazer do tipo físico, como o sexo, pelo prazer de conversar com amigos? Podemos trocar o prazer de dançar e sair para a “balada”, pelo prazer de ver ópera ou filmes na televisão? O que Platão acharia disso?

No Filebo (PLATÃO, 2012), um diálogo que investiga a fundo a questão do prazer, encontramos algumas pistas para pensar o problema. Esse diálogo afirma que dor e prazer constituem um movimento de afecção o qual se realiza no corpo e na alma, movimento que pode ser chamado de sensação (aísthesisFil., 34ª3). Na sequência, é dito que a memória (mnémen Fil., 34ª10) é a conservação da sensação. Como somos movidos, constantemente, por desejos ou apetites, o próprio viver se confunde com esse movimento que segue a cadência da falta e da plenitude, constantemente. Por essa razão, os prazeres estariam para a obtenção de plenitude, assim como as dores se associam à falta, ou seja, dor é caracterizada como movimento de dissolução ou perda de algo, ao passo que prazer é o oposto: restauração de um estado perdido. Nesse movimento, porém, a memória desempenha função primordial, por ser a conservação da sensação de plenitude ou de falta e, ao mesmo tempo, a informação de como ela é alcançada, isto é, beber é a solução para quem tem sede e assim por diante.

É comum, então, que a alma busque o objeto já associado ao prazer ou repleção de uma falta já conhecida, enquanto evita o objeto que a leva à dor. A recorrência nas escolhas, porém, ignora duas dificuldades, quando pensamos em desejos não primários. Primeiro, por estarmos submetidos à temporalidade, tanto a alma quanto o objeto que ela deseja sofrem mudanças e, quando essa mudança é grande, ela causa uma alteração, a saber, o que antes causava prazer, agora pode vir a causar dor e vice-versa. Além do tempo, o Filebo ensina que o prazer é complexo ou multifacetado (poikílon – 12c). Com uma tal natureza, portanto, é provável que nos enganemos ao tentar identificar certo objeto de prazer, já que a mesma coisa pode aparecer também como dor, a depender da intensidade e da ocasião ou, simplesmente, pela natureza mista que a identifica.

Para que a alma não reitere sempre na escolha do mesmo tipo de objeto que lhe cause frustração, é útil, pois, que se busquem os mais puros prazeres possíveis, cuja interrupção não nos faça cair, imediatamente, na dor. Um tal prazer, apresentado como o de aprender, por exemplo, não se transforma em dor, quando é interrompido ou perdido, servindo de alento para aqueles que não querem abrir mão dos prazeres, mas temem a porção de sofrimento que, às vezes, eles trazem.

Voltando a Céfalo, é possível defender como válida a sua opinião sobre os prazeres, pelas seguintes razões. Uma vez que os prazeres tocam tanto o corpo quanto a alma, é possível, sim, substituir um objeto de prazer por outro e evitar a situação em que a perda de um prazer signifique, necessariamente, sofrimento. Ainda em alinhamento com o Filebo, o prazer da conversa pode ser pensado como um prazer mais puro que o sexo e, ao mesmo tempo, como uma espécie de restauração – em constante luta contra a dissolução – de uma memória cuja preservação se dá através de conversas amigáveis, cujo benefício, na velhice, é tanto maior pela ausência da competitividade com outros prazeres que acometem os jovens. A única e pequena objeção que se poderia fazer a Céfalo é que ele deveria ter feito essa descoberta antes, pois também os jovens se beneficiam das conversas, já que elas abrem a porta à filosofia e à uma vida menos vulgar.

Por fim, apesar de toda a importância da temática dos prazeres, nos autores antigos, é sempre bom relembrar que, em geral, felicidade para os gregos não se restringia apenas a momentos de obtenção de prazer, mas, muito pelo contrário, se relacionava à realização plena de uma vida e do fim a que ela se destina. Por esse motivo, é comum encontrar a discussão sobre felicidade associada mais a preocupações de ordem política, atinente à ordenação da pólis e do coletivo, e menos centrada no individual, nos interesses que o caracterizam e na quantidade de prazer que ele pode obter, ao longo da existência. Assim terminamos nossa reflexão a partir do texto de Rohden (2023).

 

Referências

PLATÃO República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980.

PLATÃO. Filebo. Tradução de Fernando Muniz. Rio de Janeiro: Loyola, 2012.

ROHDEN, Luiz. Ética hermenêutica: circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer a partir do Filebo de Platão. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 221 – 248, 2023.

 

Recebido: 21/01/2023

Aceito: 26/01/2023


 

Impulso criador e drama vital em Bergson

 

Rita Paiva[151]

 

Resumo: Ao voltar-se para a teoria de H. Bergson acerca do processo evolutivo, este texto toma como objeto de reflexão o caráter antinômico das tendências fundamentais do movimento vital: tempo puro e materialidade. Partindo da importância da imagem, nessa filosofia, debruça-se sobre a ontologia bergsoniana, problematizando tanto a noção de elã vital quanto o modo pelo qual a matéria advém e o tempo real nela se inscreve. Ao destacar a ambiguidade do papel desempenhado pela materialidade, no tensionamento das forças vitais, a discussão explicita que o impulso originário instaura, ele próprio, seu antípoda. Revela-se, assim, o caráter dramático que impregna o movimento intrínseco à história da vida, no qual esforço e luta são correlatos dos limites do impulso que a move e quesitos incontornáveis para o ato criador que a define.

Palavras-chave: Elã vital. Matéria. Obstáculo. Esforço. Criação.

 

 

INTRODUÇÃO

Na direção inversa àquela seguida pela tradição filosófica, Henri Bergson postula que a realidade última do ser, dentro e fora de nós, se altera permanentemente. O ser dura, confunde-se com a passagem do tempo. E, se esse devir se renova e abre as vertentes do indeterminado, é porque o passado nele se inscreve: “A duração é o progresso contínuo do passado que rói o porvir e que incha ao avançar.” (BERGSON, 2005, p. 5).

No limiar da obra bergsoniana, o objeto privilegiado será a duração subjetivamente vivenciada, e serão lançados os fundamentos que permitirão compreender a ação criadora do tempo, na consciência humana. A vida psicológica revela-se, assim, uma sucessão de mudanças incessantes, de estados que se conservam numa continuidade heterogênea, geradora de estados de alma imprevisíveis que avançam e se prolongam uns nos outros, inscrevendo-se num tempo futuro. Em tal escoar, a vida interior se traduz na memória contínua que garante a sobrevivência do passado no presente, sem a qual a realidade psíquica não seria mais do que uma sucessão de instantaneidades. Nesse momento, ainda que o autor postule a clivagem entre interioridade e exterioridade como necessária para a apreensão, a duração, a consciência, considerada apenas em sua “[...] dimensão subjetiva e finita” (PRADO JÚNIOR,1989, p. 117), é isolada de sua relação com a exterioridade; a natureza da extensão, em sua natureza última, aquela sobre a qual o eu deve atuar e agir, não é ainda submetida à investigação.

Com Matéria e Memória, a profundidade movente do eu, tal como constatada na inspeção bergsoniana acerca da natureza da consciência humana, encontra conexão com a consciência mais exteriorizada e espacializada pelas vias da memória, em suas formas múltiplas de manifestação. A lembrança constituirá, pois, o “[...] ponto de intersecção entre o espírito e a matéria.” (BERGSON, 2020, p. 5). A investigação psicológica acerca do modo pelo qual o corpo se relaciona com a vida do espírito conduz o autor a algo que, reitera ele mesmo, não poderia ficar em suspenso. Ou seja, a análise psicológica, ao revelar a distinção clara, bem como a irredutibilidade, entre matéria e espírito, a partir das considerações sobre a percepção pura e a vida mnemônica, explicita o modo de sua união.

A alusão aqui a esse problema tem o intuito de destacar que a reflexão acerca desse vínculo culmina na necessidade de compreender a realidade última da matéria; as teses metafísicas tecidas no terceiro livro bergsoniano vêm explicitar que a sua realidade última é mudança qualitativa; ela se nos desvela, quando nos esquivamos do caráter matemático e abstrato de nossas representações, bem como da natureza descontínua do ato perceptivo, e apreendemos o movente nele mesmo, enquanto transição de qualidades sensíveis. Captamos assim a mudança – a duração – como o fundo de toda a realidade. O movimento temporal, enquanto constitutivo da existência, em sua generalidade, vem revelar o caráter contínuo e qualitativo da extensão material, ainda que nesta ele se apresente com um tensionamento outro, mais distendido, com ritmos e graus diversos daqueles próprios à duração interna à consciência humana.

O horizonte totalizante da duração é assim desnudado; em todo o universo ela assume ritmos singulares, graus variáveis de tensionamento. A matéria, malgrado sua tendência a estender-se, será mobilizada por uma tensão interna, “[...] uma duração quase adormecida”, no dizer de Prado Júnior (1989, p.162). Ou em termos bergsonianos: “Em realidade, não há um ritmo único da duração; é possível imaginar muitos ritmos bem diferentes, os quais, mais lentos ou mais rápidos, mediriam o grau de tensão ou de relaxamento das consciências, e deste modo assim fixariam seus lugares respectivos na série dos seres.” (BERGSON, 2010, p. 243).

A evolução criadora (2005) aprofundará o viés aberto pela obra antecedente – a saber, “[...] a conciliação entre consciência e presença global”, ainda no dizer de Prado Jr. (1989, p.162). Particularmente com a imagem do elã vital, Bergson vislumbrará a expressão mais direta do princípio interior à vida, ou seja, nele, o filósofo encontrará a força que viabiliza a expansão da duração para a totalidade da existência. A imagem do elã vital vem, pois, alicerçar uma teoria da vida calcada numa nova ontologia, segundo a qual o ser coincide com movimento, duração. Decorre daí que a vida, produtora das formas objetivas e vivas, com sua natureza intrinsecamente psicológica, seja compreendida como uma consciência ou uma memória, pautada, tal como na vida subjetiva, pela interpenetração recíproca e contínua dos elementos temporais, cujo ímpeto – ou elã – se prolonga pelos seres, impulsionando o progresso evolutivo. Escreverá o autor, em seu terceiro livro: “Assim é minha vida interior e assim é também a vida em geral.” (BERGSON, 2005, p. 280). Sob esse registro, o dinamismo vital traz sem cessar algo novo ao mundo. Eis a ousadia dessa filosofia, a saber, decretar a impossibilidade de se pensar uma evolução que não seja criadora e situar no centro de sua reflexão o impulso que a move e garante sua marcha progressiva.

Eis o escopo destas linhas: problematizar esse avanço da vida, destacando que a força que a impulsiona estará sujeita a um percurso dificultoso. Seu progresso só se efetuará no embate com uma força outra – aquela da materialidade – que contradita seu dinamismo e retarda seu movimento. Gerada pela própria impulsão vital, essa força que antinomiza com o impulso vital constituirá simultaneamente impedimento para seu o avanço e condição não apenas para que as obras da vida se efetivem, mas para que vertentes inauditas continuem a aflorar no imprevisível movimento da duração. Procuremos fundamentar essa tensão central na filosofia da vida.

 

1 DAS IMAGENS: O ELÃ E O OBUS

Em A evolução criadora (2005), Bergson postula a tese de um princípio interior e fecundo, que viceja na origem da vida. Esse impulso, cuja natureza espiritual e força criadora é responsável pelo engendramento e pela variação das existências, prolifera a partir de si mesmo, num dinamismo, continuidade e progresso similar àquele que rege a consciência humana. Essa força de vida nada tem de germe primeiro com potencialidades cativas e prontas, mas se configura, antes, como potência de indeterminação e de invenção.

O avanço desse “fluxo de consciência” efetua-se por linhas que se diferenciam e se tornam cada vez mais incompatíveis entre si, à medida que delas se dissociam novas vertentes de criação. Não obstante, nessa crescente independência das vias seguidas por essa força que se divide – e cujos termos se encontravam inicialmente confundidos –, um mesmo princípio interno de direção continua a progredir, de sorte que, na produção sem número de diferenças e das formas engendradas em linhas díspares, se inscreva sempre algo do todo, uma permanente remissão a uma única e mesma origem. Sublinha o autor: “Por mais que se tenham produzido bifurcações, que se tenham aberto vias laterais onde os elementos dissociados se desenrolavam de modo independente, nem por isso deixa de ser pelo elã primitivo do todo que o movimento das partes se prolonga.” (BERGSON, 2011c, p. 108). Por outro lado, o irromper de cada nova diferenciação equivale, na verdade, a uma inédita invenção originada nesse fluxo vivo, o qual, no limite, se substancializa numa força que é querer pleno de vida. As direções por elas tomadas, no entanto, configuram-se como tendências imanentes ao princípio movente interior à vida.

Esse princípio movente irrompe nessa filosofia como uma noção pouco ajustada à pretensão de exatidão almejada pelos conceitos, mas, justamente por essa razão, traduzirá de modo mais preciso o processo criador no qual a vida se substancializa em nós e fora de nós. Menos um princípio de explicação universal e mais próxima de um personagem metafísico, para ficarmos com Jankélévitch, essa noção nos insere na atmosfera da evolução: “Uma impulsão, [...] quer dizer alguma coisa de dinâmica e de motor que deixa o campo livre a todos os caprichos da invenção, longe de impor a ela o desenvolvimento de um formulário analítico.” (JANKÉLÉVITCH, 2011, p. 136).

Com efeito, a imagem do elã será a que mais nos aproxima do dinamismo da vida. Antes uma imagem do que um instrumento conceitual propriamente dito, uma vez que, sustenta Bergson, conceito algum daria conta de traduzir essa realidade movente que escapa aos quadros fixos da inteligência, que a tudo esquadrinha e representa como conjunto de partes fixas justapostas. Embora a imagem tenha também suas limitações, esta em particular nos abre a perspectiva de um “[...] aparelho conceitual” (BERNET, 2012, p. 26) que trairia em menor medida o movimento vital. E aqui é preciso uma palavra acerca da relação entre esse caráter imagético do elã e o evocar de imagens que transbordam pelos textos bergsonianos.

O recurso às imagens escritas que peculiariza essa filosofia não concerne a uma estratégia meramente estilística que finda por aproximar o registro filosófico do literário, todavia deriva, antes, de uma imperiosidade metodológica provocada por um impasse intrínseco à linguagem. Esta última, coadunada à natureza operatória e prática da inteligência, permite representar as coisas todas em seus contornos fixos e estáveis, sacrificando a dinâmica da existência. Auxiliar da ação, a linguagem completa o trabalho do intelecto na transposição do real para o espaço representacional, com vistas à eficácia e à instrumentalidade; é seu papel estabilizar o movente e garantir que a duração se expresse em extensão. Os conceitos, por seu turno, resultantes do trabalho intelectual e recursos dessa mesma linguagem, são incapazes de coincidir com o âmago da realidade movente que a filosofia busca apreender e comunicar; eles visam à exatidão que só pode ser extraída de realidades regidas pela fixidez e apreendidas por um viés exterior e abstrato.

Ante tal impotência, ainda que não minimize o valor do esforço de conceituação e não abandone por inteiro esse registro, é a conceitos flexíveis que Bergson nos remeterá, a representações imagéticas, as quais, na sua diversidade e no jogo que tecem entre si, logram nos manter no concreto e operam a sugestão das experiências inconciliáveis, arredias aos quadros representativos do intelecto em geral. As imagens são ainda expressas com palavras, mas elas se instalam na cesura entre os sinais linguísticos e as significações por eles encarnadas, aspecto próprio da linguagem humana e do caráter convencional de seus símbolos, o que permite o deslocamento incessante dos significados, a reinvenção de sentidos cristalizados.

São, pois, as imagens, que, ao serem mobilizadas, tecem uma espécie de trama sugestiva de significações, que nos remetem às experiências concretas, à realidade movente da duração, e cuja visão direta apenas a intuição alcança: “Comparações e metáforas sugerirão aqui aquilo que não conseguiremos exprimir.” (BERNET, 2012, p. 45). Eis a motivação bergsoniana para uma escrita que mescla conceitos e imagens. Esse esforço, decerto, culmina numa inequívoca vizinhança da linguagem própria à poesia e à prosa, visto que é nessa região que a união convencionada entre os sentidos e os símbolos linguísticos é implodida, de sorte que esses últimos, libertos da instrumentalidade, se tornam mais aptos a fluírem com o movimento do real a ser expresso.

Nesse sentido, diferentemente da estabilidade com que tradicionalmente se revestem os conceitos filosóficos, nessa filosofia, noções cruciais, como duração, matéria, vida e liberdade, as quais remetem sempre a realidades em movimento, não se coadunarão com a exatidão almejada pela inteligência e seus instrumentos; em contrapartida, associam-se às imagens e dão lugar aos conceitos fluidos, os quais nos remetem às direções cambiantes do real e do ser. Conceitos derivados de um esforço intuitivo, aptos a moldar-se às sinuosidades do real e ao seu movimento interior. Ao aludir às imagens que transbordam em seu livro sobre a evolução da vida, Bergson escreve: “Fora da imagem, há apenas o conceito, quer dizer uma rubrica com a qual se classifica objetos diferentes. Se a vida é uma coisa única em seu gênero, ela não pode ingressar em nenhum conceito. [...] eu devia proceder por sugestões e a sugestão só é possível pelas imagens.” (BERGSON, 2011b, p. 862).

Assim ocorre com a imagem de elã vital, que escapa à vocação paralisante do pensamento e mais nos aproxima do dinamismo intrínseco à vida. Bergson alude à imperiosidade dessa imagem única e mediadora, a qual, por si só, evoca o movimento, ao observar que nenhuma outra representação imagética a ele teria se imposto como meio necessário para viabilizar a comunicação – ou a sugestão – de uma realidade que subverte a lógica espacial da inteligência:

Em todo movimento vital há sempre um poder de continuar esse movimento além do estado atual. É isto que quis exprimir e escolhi aquela do elã vital. Uma imagem que não é para mim um ornamento: é um modo de situar um problema em relação a outros problemas insuficientemente claros; esta imagem do elã vital esclarece um ponto obscuro do fato vital e faz sentir que esse movimento nele se prolonga. (Bergson, 2011b, p. 966)

 

Procuremos acompanhar a reflexão bergsoniana, no que concerne à relação entre as tendências que a vida traz em si e as razões da divisão primeira do impulso originário, sem negligenciar, contudo, sejam a imagem do elã ou as imagens outras que o autor evoca na construção de seus argumentos. Afinal, como o precisa Nicolas Cornibert, “[...] em Bergson tudo parte de e tudo retorna à experiência da imagem. Esta permanece, com a duração, da qual ela figura o conteúdo variável, o alfa e o ômega de todo seu pensamento.” (CORNIBERT, 2008, p. 524).

Ao refletir sobre a história da vida, o autor mobiliza a imagem perturbadora do elã, como uma totalidade simples e virtual, uma energia criadora perpassada por tendências múltiplas, cujo anseio por expansão provoca a sua divisão e instaura as vertentes, em forma de feixes pelos quais esse impulso avança. Notemos que, com a noção de virtualidade, Bergson nos remete a realidades múltiplas e imateriais que se interpenetram, as quais, seja na consciência humana, seja fora dela, tendem a se atualizar, mas só o logram, diferenciando-se das potências irrealizadas que trazem consigo.[152] Desse modo, o ímpeto vital, como assinala Deleuze, constitui uma “[...] virtualidade em vias de atualizar-se, [...] uma simplicidade em vias de diferenciar-se, [...] uma totalidade em vias de dividir-se: a essência da vida é proceder por dissociação e desdobramento, por ‘dicotomia’.” (DELEUZE, 1999, p. 75).

É preciso frisar também que a totalidade plena de virtualidades desse movimento mutante e criador não será jamais apreendida em sua completude; ela jamais estará plenamente dada, mas sempre em vias de se fazer, uma vez que o impulso originário e temporal que viabiliza a expansão da duração não apenas engendra novas formas ao avançar, mas continua a perpassá-las com suas tendências virtuais. Destarte, as formas que advêm do processo evolutivo e criador, ainda que pareçam se cristalizar em contornos fechados, ao atualizarem certas disposições virtuais numa existência específica, mantêm a abertura pela qual avança nelas o elã que carrega a totalidade das tendências originalmente fundidas. Bergson, outra vez: “Uma definição perfeita se aplica apenas a uma realidade feita: ora, as propriedades vitais jamais estão inteiramente realizadas, mas sempre em vias de realização; são menos estados que tendências.” (BERGSON, 2005, p. 14).

Não obstante, a fragmentação da vida em vertentes independentes e diversas não se deve apenas à carga explosiva das tendências instáveis, intrínsecas ao impulso vital, mesmo que esta seja a razão precípua de sua divisão. Outra série de causas, argumenta Bergson, contribuirá igualmente para tal acontecimento. Aflora aqui, inclusive, aquela que será a um só tempo condição de concretização da vida e grande ameaça ao prosseguimento de seu dinamismo criador e vital, a saber, a “[...] resistência que a vida experimenta por parte da matéria bruta [...]” (BERGSON, 2005, p. 107). Ao se deparar com os entraves fixados pela matéria, o elã vital não somente se divide, como nota o autor, mas tem a desenvoltura de seu avanço comprometida. Será preciso que o impulso, em sua imaterialidade, atravesse paulatina e vagarosamente os primeiros fenômenos físicos e químicos, inserindo neles, a despeito da vocação para a inércia que caracteriza as realidades materializadas, alguma vitalidade que desperte a vida animada em formas elementares e simples. A força expansiva e movente da vida será, então, contraditada por uma força outra que rejeita o movimento.

Nesse sentido, a imagem que mais nos aproximará da explosão originária do impulso vital e do caminho por ele seguido será a de um obus que explode e de cujos fragmentos lançados sucedem novas explosões e linhas divergentes, as quais vão se sucedendo e se multiplicando, no decorrer do tempo. Decerto, essa imagem já sugere o movimento, visto que o texto nos remete a um obus em processo de explosão e não ao seu estado anterior e estático. Não há elã senão em movimento, em ato de se criar a si mesmo e de engendrar o novo. Pontua Gouhier: “Não se saberia conceber um elã que não existe em ato, quer dizer, em processo de lançar-se, uma vida que não estaria em ação, quer dizer, em processo de viver.” (GOUHIER, 1961, p. 97).

Daí a pertinência dessa imagem, para sugerir a dinâmica vital. E cumpre atentar para a advertência bergsoniana, segundo a qual a imagem da explosão originária se associe a um obus e não a uma bala de canhão maciça, que teceria uma trajetória única e direta, na qual não haveria forças que contraditassem o impulso. Contrariamente a essa fluidez livre e plena, a imagem do obus que explode expressa o contraponto entre a força que tende ao desdobramento incessante de si mesma, “a força explosiva”, a qual tem seu correlato na pólvora – e aquela que resiste a esse movimento, contrapondo-se à lógica da pura alteração, evocando assim a matéria. Jogo entre forças antinômicas que não cessa de renascer nas novas vertentes instauradas por sucessivas explosões, por meio das quais se expande o impulso vital, em sua dilemática relação com a força que a ele se opõe.

 Situamo-nos, assim, no ponto fulcral de nossa discussão. Antes de enfrentá-lo, convém observar que, sob a letra bergsoniana, o impulso vital, enquanto fluxo temporal no qual a totalidade do passado adentra o presente, engendrando novas realidades, produz a partir de si mesmo as travas que interditarão a sua liberdade criadora. Tais travas, entretanto, constituirão também o pressuposto para que as invenções da vida se atualizem e realizem a tessitura de sua história.

 

2 A CRIAÇÃO DA MATERIALIDADE E A BIFURCAÇÃO DO MOVIMENTO VITAL

É ainda em seu terceiro livro, com argumentos concisos e enigmáticos, que Bergson se refere a uma espécie de descuido no dinamismo temporal – uma distensão no movimento da vida – com o qual o elã criador, aquilo que se faz, a pura multiplicidade imaterial ou espiritualidade que gera continuamente novas realidades, se inverte. Essa inversão, entretanto, decorre apenas de um relaxamento da vontade ocorrido no átimo de repouso que irrompe no dinamismo do próprio movimento, ocasionando uma flexibilização na impulsão vital. Uma espécie de contramovimento faz com que a vontade impulsiva – entendida como uma força criadora, “[...] capaz de desenvolver-se por si mesma” (BERGSON, 2011a, p. 491) – se interrompa, inserindo uma pausa na tensão entre as tendências.

Essa espécie de relaxamento no movimento tenso impõe uma cisão, uma descontinuidade. O que assim se delineia não vem a ser um ato propriamente positivo, mas, antes, como nota Frédéric Worms, uma súbita estagnação, um retorno do movimento, “um nada” que deriva do próprio elã ou de seu esforço inicial (WORMS, 2020, p. 194). Não há uma causa antecedente que articule essa virada ou essa estagnação. Nada de positivo a suscita, a não ser, o comentador o assinala, um lapso na concentração intrínseca ao movimento da duração, o qual interrompe sua inequívoca marcha para a frente. Dessa desconfiguração do frágil equilíbrio vigente entre as tendências vitais decorrerão corolários definitivos e irreversíveis.

É a partir desse lapso ontológico que o impulso criador empreende uma divisão entre direções opostas, as quais apontam para aspectos diversos da experiência. Por um lado, sua impetuosidade segue numa via ascendente, concernente à tendência para o espírito criador, para a imaterialidade e para o psíquico, sem que se configurem obstáculos quaisquer, porquanto ele mesmo – o espírito – se constitui como pura energia e visceral mobilidade; nessa vertente, prepondera a geração das diferenças qualitativas e a duração genuína, em sua permanente e intrínseca alteração. Nessa direção da duração pura, nada se delineará plenamente, uma vez que será prevalecente a interpenetração recíproca de tendências virtuais, heterogêneas, indistintas. Por outro lado, o movimento envereda por uma direção descendente, como um peso que cai; nessa direção, as formas sólidas se atualizam com contornos fixos, os fatos justapõem-se e se repetem, perfazendo uma multiplicidade distinta; eis o domínio do que permanece igual a si mesmo.

Numa palavra, o breve flerte com o repouso, no contrapelo do puro dinamismo, incitará o impulso movente, para além do seu avanço concentrado e imaterial, à criação de uma realidade que antagoniza com sua natureza movente e criadora. Gouhier é preciso: “Haverá, então, a vida que continua ser elã, que se desenvolve como potência de invenção, que avança de criação em criação; [...] haverá também a vida que perde seu elã, a vida na qual se extingue a potência de invenção, a vida que, cessando de ser criadora, tomba em torpor [...]” (GOUHIER, 1961, p. 97). Instaura-se, assim, em concomitância com a realidade da duração, uma realidade outra, que tende à cristalização, a qual admite graus, decerto, mas que será regida pelas leis dos processos físicos.

É, pois, com a interrupção do movimento concentrado e com o engendrar da materialidade pelo impulso criador que irrompe o fator impeditivo, para que o dinamismo da vida possa tecer um percurso similar àquele de uma bala de canhão, sem desvios ou alentecimentos. Não obstante, se as duas direções que se delineiam com o progresso do elã vital instauram o antagonismo que estará no cerne da vida e que retardará a sua marcha, o fato é que ambas não deixam de se imbricar na tessitura de um mesmo e único movimento. Logo, o peso que cai, ao distender a tensão virtual e consumar a passagem do inextenso ao extenso, não logra erradicar ou anular o dinamismo pelo qual a vida avança, visto que a impulsão originária – a consciência ou o princípio interior da vida – persiste, não só se lançando no sentido inverso àquele em que se consumará a materialidade, mas também a perpassando, como um foguete que, a um só tempo, deixa cair os destroços e os atravessa (BERGSON, 2005, p. 283).

Outra imagem é aqui mobilizada pelo autor: a do gesto que, movido por uma vontade, eleva o braço, o qual torna a cair. Malgrado a queda, o ato de querer que vivificou e realizou o movimento ascendente não se exaure no processo em que o braço vem abaixo; mesmo diante do peso e das dificuldades, o impulso subsiste, perpetua-se, esforça-se para uma nova ascensão, o que indica a continuidade de uma realidade movente naquela realidade outra, cuja tendência é inversa à da primeira. Sublinha Bergson: “E então veremos na atividade vital aquilo que subsiste do movimento direto no movimento invertido, uma realidade que se faz através daquela que se desfaz.” (BERGSON, 2005, p. 269). “[...] tal é, sem dúvida alguma, um dos traços essenciais da materialidade.” (BERGSON, 2005, p. 266). Insistamos: na direção da solidez e das formas extensas que se fixam de modo aparentemente inerte, o ímpeto vital ainda persevera numa tênue continuidade, que se traduz na distensão e no alentecimento, mas nunca se exaure por completo.

É importante observar que essa perspectiva, como mencionado inicialmente, já se anuncia em Matéria e memória (2010), momento em que Bergson defende a existência de diferentes ritmos da duração, com diferentes níveis de tensão. Enuncia o autor: “Entre a matéria bruta e o espírito mais capaz de reflexão há todas as intensidades possíveis da memória, ou, o que vem a ser o mesmo, todos os graus de liberdade.” (BERGSON, 2010, p. 261). O filósofo argumenta que a realidade última da matéria é a continuidade. Nossa percepção dos objetos, das coisas, e de tudo o que se estende fora de nós, entretanto, opera uma síntese das qualidades sensivelmente apreendidas, orientando-as ao uso, às nossas necessidades e às imposições de nossa vida prática. A extensão aparece-nos, assim, como uma realidade múltipla infinitamente divisível, suscetível de “[...] mudanças homogêneas e calculáveis.” (BERGSON, 2010, p. 211).

Sob esse prisma, a distância entre a heterogeneidade e os movimentos homogêneos, sujeitos a cálculos, soa para o pensamento inteligente como insuperável e a incomunicabilidade entre a realidade da consciência com suas sensações, e os movimentos no espaço parece selada. Em revanche, o autor enfatiza a artificialidade da divisão da realidade material operada por uma inteligência constrangida por suas urgências utilitárias, aos quais vem se contrapor uma percepção primitiva, na qual “[...] uma continuidade movente nos é dada, em que tudo muda e permanece ao mesmo tempo.” (BERGSON, 2010, p. 231). Sob esse viés, a extensão seria materialmente mutante e contínua, em sua totalidade. “[...] a estrita solidariedade que liga todos os objetos do universo material, a perpetuidade de suas ações e reações recíprocas, demonstra suficientemente que eles não têm os limites precisos que lhes atribuímos.” (BERGSON, 2010, p. 246).

Sob essa concepção bergsoniana da matéria, no lugar da solidez, a natureza da extensão concreta apresenta-se internamente mobilizada por perturbações, por diferentes tensões. Esse movimento íntimo e material será concebido como qualidade, como uma vibração temporal particular e indivisível, análogo à continuidade de nossa consciência – ou de nossa memória –, mas com ritmo próprio e específico. A defesa da presença da duração na matéria conduz o filósofo, como dizíamos, à tese dos diferentes graus de contração entre a duração de nossa consciência e aquela pertinente à materialidade. Nesse sentido, o universo da matéria caracteriza-se também por um tensionamento, ainda que as qualidades materiais se constituam com uma duração mais distendida e lenta, com uma tensão interior diversa daquela pertinente à nossa consciência.

Ancorado numa analogia com a memória humana, Bergson aponta para a existência de ritmos diversos de duração, o que o conduz a conceber, tal como na memória humana, a pluralidade das durações da existência e a “[...] vislumbrar uma ontologia geral e diversificada de acordo com os diferentes graus ou ritmos de duração, os quais se referem aos graus de ser ou de tensão próprio às coisas.” (TORRES, 2013, p. 78). Decerto, desde que aprendida de modo contraído em nossa memória imediata, a heterogeneidade diluída na realidade extensiva se solidifica em nossa percepção, bem como em nossas representações; não obstante, tal apreensão não logra jamais anular o fato de que a realidade material se perpetua numa continuidade de ritmos alentecidos, para além da “[...] moldura vazia inerte” (BERGSON, 2010, p. 214) na qual aprisionamos a unidade viva do movimento dentro e fora de nós, estabelecendo um abismo entre as realidades quantitativas e qualitativas.[153]

Voltando-nos para A evolução criadora, vemos que a diferença entre esses níveis do real é de grau, de intensidade de vida. Decorre daí que, a despeito dessas duas vertentes seguidas pelo impulso, vida e matéria não se dissociam; o fluxo temporal apenas muda de ritmo quando decai, de modo que uma duração menos tensa, em termos deleuzianos, exterioriza seus momentos e materializa-se. Nas duas direções, entretanto, é o mesmo elã, em sua virtualidade, que avança, explicitando as duas tendências da vida, as quais, em seu desenvolvimento e no processo de inversão, se diferenciam e divergem, porém, original e virtualmente, se encontram fundidas e comungam a mesma fonte.

Se, no processo vital, o impulso, por um lado, se lança para a direção contrária à da materialidade, perseverando em ritmos intensos, por outro, ao lançar-se na direção descendente, viabiliza que a vida se atém aos corpos vivos, como se almejasse, a um só tempo, ali se perpetuar e deles se desvencilhar. Com essa propensão autonomizante, a qual se traduz num esforço para reerguer o peso que cai (BERGSON, 2011c, p. 130), mesmo que logre apenas postergar o movimento descendente com um vestígio do querer que antes a mobilizava, a impulsão permanente da vida impede que a matéria se traduza em repouso absoluto ou em total necessidade, de sorte que “[...] se estenda no espaço sem estar nele absolutamente estendida [...]” (BERGSON, 2005, p. 222). Para uma percepção exterior, a materialidade oferece-se indubitavelmente sólida e imóvel; internamente, contudo, tal como ocorre no interior de uma crisálida, aponta o filósofo, seu movimento prossegue e “[...] ela vive e vibra em profundidade.” (BERGSON, 2010, p. 168).

A solidez incontornável e definitiva não deixa de ser apenas uma tendência à estabilização, às formas estanques, mas uma tendência que permanece inacabada e só se completa com a vocação do intelecto humano, para instaurar mundos abstratos e simbólicos e sobre eles atuar. O autor, outra vez: “[...] veremos que a matéria tem uma tendência a constituir sistemas isoláveis, que possam ser tratados geometricamente. E até mesmo por essa tendência que a definiremos. Mas não é mais do que uma tendência.” (BERGSON, 2005, p. 11). Notadamente, destaca-se aqui o caráter fluido que esse conceito assume, nessa filosofia, de maneira que não poderia se definir como um conceito fixo, um representante simbólico do pensamento que analisa exteriormente seus objetos.

Em suma, a ilusória solidez da materialidade, frisada por Bergson, vem reforçar ainda mais a ideia de que, entre matéria e espírito, se instaura uma diferença de ritmo e de tensão, como já destacava o autor de Matéria e Memória. Com A Evolução Criadora, o lapso de inversão operado pelo elã cinde o movimento vital em direções opostas. Delineiam-se, assim, distintas configurações de uma mesma experiência, a qual, num de seus extremos, aponta para a pureza da materialidade – ou do espaço – e, no outro, duração pura. Essa cisão, contudo, não obsta que a continuidade vital permaneça atuando como uma força que aponta sempre para a direção contrária àquela para a qual tende toda realidade sólida. Entretanto, ao avançar e viabilizar a expansão da duração, a qual culminará no engendramento das formas vivas, a impulsão que move a vida se depara com a outra causa de sua divisão: a resistência da matéria por ela mesma engendrada, a qual impõe a ela limites incontornáveis e finda por minimizar sua potência dinâmica. Decorre daí que, se o processo criador, tal como bergsonianamente compreendido, se efetua no interior de um mesmo movimento, não se deve minimizar o fato de que a criação é movida por um jogo entre forças que se opõem, jogo fecundo e não destituído de tensão e obstáculos.

 

3 O JOGO DRAMÁTICO NA MARCHA DA VIDA

Em A consciência e a vida (2009), Bergson sustenta que o princípio virtual – e, portanto, espiritual – por meio do qual a vida se expande e avança, materializando-se num contínuo processo de autossuperação, é norteado por uma espécie de antieconomia; sua tônica é o excesso. Enquanto virtualidade, a potência dessa força é a de crescer, a partir de si mesma, de sorte que sua natureza consiste em dar tudo e mais do que tem e, para além disso, dar o que não tem. Todavia, no confronto com a materialidade que ela própria engendra, a força que impulsiona a marcha da vida interrompe seu tino, perde-se de si, sacrifica tendências. Quando os impedimentos que as formas criadas oferecem para a continuidade da atividade criadora se revelam intransponíveis, o elã, muitas vezes fascinado com sua própria obra, adormece, submete-se à repetição, cede a armadilhas: “A matéria enrola-se em torno dela [a consciência], curva-a a seu próprio automatismo, entorpece-a em sua própria inconsciência.” (BERGSON, 2009, p. 19).

Eis porque, de acordo com Bergson, o movimento que, para além de engendrar, perpassa a matéria, é longo e exige um empenho árduo e obstinado ao avançar pelas diferentes vertentes. Essa lentidão indica que o impulso da vida, apesar das interdições – e graças ao seu excesso –, persiste; ele invade com suas tendências virtuais o reino da necessidade; quando já não logra prosseguir, contorna os obstáculos, instaura novas divisões e prossegue em novas linhas; advêm assim inauditas formas de vida, cada vez mais complexas e livres. Mas a criação de formas em que a liberdade se alarga, as quais, por vezes, constituem “verdadeiras obras de arte”, não impedirá que a materialidade volte a interditar a tensão criadora, de modo que a consciência vital finde novamente por sujeitar-se ao automatismo que a espreita em graus variáveis. De fato, a materialidade é tendência à distensão, ao repouso; por essa razão, nota Bergson, as obras criadas estão sempre atrasadas em relação à vida que as produz. Elas são reveladoras da desproporção ou da vertiginosa disparidade de ritmos à qual nos referíamos anteriormente, ou seja, entre a realidade virtual que o impulso traz consigo e os resultados que gera.

As dificuldades imanentes ao percurso da vida se devem substancialmente ao fato de que o processo em que a materialidade advém, e no qual afloram os seres vivos, nada tem a ver com uma remissão ao registro da transcendência. Não há uma potência sobrenatural a nutrir o elã, porquanto sua fonte não é outra que a vida mesma. Antoine-Miguel releva esse aspecto, ao enfatizar a coincidência entre o impulso interior da vida e o próprio tempo: “[...] não há uma flecha metafísica que orientaria os acontecimentos sem deles depender. Ao contrário, nós o vemos [o elán vital] aparecer [...] como uma tendência que é [...] o simples e puro efeito de uma certa maneira que os acontecimentos têm de se suceder no tempo.” (MIGUEL, 2010, p. 238). Ante a ausência de transcendências que o mobilizem, o elã revela sua força, sempre passível de esgotamento, de sorte que não logra consumar plenamente as potencialidades que traz em si. Ele “[...] encontra à sua frente a matéria, isto é, o movimento inverso ao seu.” (BERGSON, 2005, p. 272).

Assim, se o impulso vital dá mais do que tem e dá o que não tem, Bergson não deixa de enfatizar que as suas incessantes hesitações e a sua impotência para se esquivar da peleja com a materialidade são sintomas de suas limitações. O limite é inerente ao movimento evolutivo. O esforço de superá-lo inscreve-se na luta com a matéria e será travado em todos os níveis do mundo organizado, de maneira que as resistências e os transtornos que se contrapõem ao ímpeto vital constituirão, por vezes, um risco fatídico.

Revela-se, destarte, a tendência mortal que viceja no vivo. Certamente, a obstinação dessa corrente de consciência consiste em superar a impenetrabilidade de uma rocha, para evocarmos ainda uma imagem bergsoniana. Isso não impede que a matéria atue para negativar a potência criadora e se atualize com um permanente e incansável inimigo. Logo, na história da vida, sob lentes bergsonianas, assistiremos ao desenrolar de um verdadeiro teatro, com atos plenos de carga dramática. Lemos, em A evolução Criadora: “Mas o elã é finito, e foi dado de uma vez por todas. O movimento que imprime é ora desviado, ora dividido, sempre contrariado e a evolução do mundo organizado não é mais que o desenrolar dessa luta.” (BERGSON, 2005, p. 275). Ao instituir a repetição, a matéria destrói o impulso e coteja a vida com espectros mortais.

No entanto, se a matéria constitui uma tendência que negativiza a continuidade criadora e atua como uma contraforça vital, ela não deixa de ser a atualização de uma tendência intrínseca à dinâmica da vida. A materialidade que obsta o movimento, e que advém pela inversão desse mesmo elã ao qual ela se opõe, não deixa de incitar o impulso originário a resoluções inesperadas, para as tendências virtualmente esboçadas no esquematismo da duração. Daí deriva que, graças à sua potência limitada, como nota H. Fujita, algum tipo de acordo será tecido entre o princípio interior da vida e as forças que o contraditam (FUJITA, 2020, p. 279). Essa específica harmonização, em concomitância com um embate dramático entre forças opostas, encaminha-nos para o término de nossa reflexão.

 

4 ESFORÇO E DESAFIO: O FASCÍNIO DA MATÉRIA

Em A consciência e a vida (2009), Bergson indaga a razão pela qual o elã – ou a consciência coextensiva à vida –, mesmo se deparando com impedimentos por vezes intransponíveis, prolonga sua luta, seu esforço e persevera em seu afã criador, dividindo-se incessantemente e engendrando formas cada vez mais livres e complexas, inclusive aquela em que sua liberdade se amplia radicalmente, a saber, o homem. Sem dúvida, a materialidade deixada a si mesma jamais extrapolaria os horizontes da repetição; ao se atualizar no processo de inversão, ela se traduz em obstáculo e desnuda os limites do elã. Entretanto, é inequívoco que o impulso vivo e virtual, enquanto pura continuidade, interpenetração entre passado e presente, potência criadora que gera incessantemente o futuro, num estado incessante de fusão e concentração, por si só jamais se distenderia.

Por conseguinte, “[...] por uma derrisão singular a vida tem necessidade para se afirmar desta matéria que a mata [...]” (JANKÉLEVITCH, 2008, p. 175). Numa palavra, a vida engendra uma realidade que será, a uma só vez, impedimento do seu avanço e a condição que incitará permanentemente tanto sua força inventiva quanto seu esforço, estimulando-a a superar aquela que a interrompe. Eis a dupla conotação com a qual a extensão se reveste: ela é simultaneamente obstáculo e instrumento. Dessa forma, além da sedução da inércia para a qual tendem as obras geradas no movimento vital, há um apelo outro que emana da matéria, com o qual o ímpeto criador se deixa fascinar. Com a resistência que oferece ao movimento criador, a materialidade, advoga Bergson, constitui um desafio ao espírito, um chamado para a aventura da organização, cujos resultados são imprevisíveis, na qual tanto a matéria como o impulso que a atravessa cedem em suas disposições, para que o novo advenha.

Afinal, é por meio da materialidade que a vida mesma se revela e logra exteriorizar seu movimento, de modo que sua história seja tecida. Gouhier o pontua: “O elã vital cuja experiência íntima nos revela a natureza e do qual as ciências biológicas nos contam a história, este elã só é apreendido na luta com uma matéria que alentece sua potência criadora e comprime sua consciência.” (GOUHIER, 1961, p. 132). O confronto com forças propensas à inércia e que resistem à lógica da alteração sem fim açula o interesse do espírito por façanhas inesperadas e pela diferença, impele-o à ambição de ultrapassar os desafios que se configuram em seu percurso e ameaçam interditar o seu avanço. Decerto, perdas se consumam nesse embate, porquanto, ao se atualizar em formas vivas e exteriorizar-se em resultados concretos, o movimento intrínseco à vida, mesmo quando culmina em seres mais superiores e livres, sucumbirá a algum grau de imobilidade e será de certa forma aprisionado, permanecendo aquém das promessas intrínsecas às tendências que nele pulsam. Dito de outro modo, ao se curvar às exigências da matéria, a virtualidade espiritual das tendências revela sempre uma baixa na intensidade do querer, de sorte que algo na intensidade da energia criadora se perde ou se arruína.

Não obstante, esse refluxo da energia criadora, que degrada a potência da vida, cujas criações ficam aquém de seu ritmo e daquilo que a vida lograria gerar, se avançasse livremente, constituirá o fundamento crucial para que formas imprevistas advenham, as quais não se enunciavam nem mesmo nas tendências virtuais. A imagem bergsoniana que aqui nos aproxima desse processo, o qual é, a um só tempo, decaimento e realização, é a criação artística ou mais particularmente a da criação poética. A imaginação criadora que rege os atos dos artistas é repleta de tendências e de intuições originais, mas, no embate com a matéria na qual se atualizará a forma individualizada e por ele perseguida, muitas das promessas virtualmente acenadas permanecerão inatualizadas.

Na realização da obra, a realidade criada permanece aquém das promessas imanentes à potência virtual. Contudo, é nessa concreção minimizadora das potencialidades sonhadas que, de certo modo, negativiza a liberdade do espírito ou ante as exigências da necessidade, que a forma concreta advém, se organizando com as exigências materiais que a limitam. Uma espécie de jogo de imposições recíprocas assim se tece; nele, a atividade criadora do artista instaura sua realização genuína, a qual não encontrará equivalente nem mesmo no âmbito da virtualidade: “É assim que, acerca de um sentimento poético que se explica em estrofes distintas, em versos distintos, em palavras distintas, se poderá dizer que continha essa multiplicidade de elementos individuados e que, no entanto, é a materialidade da linguagem que a cria.” (BERGSON, 2005, p. 280).

A analogia com a vida é aqui inequívoca. As virtualidades concentradas, as tendências múltiplas que se interpenetram no elã só consumarão sua existência se lançando de modo incerto sobre os impedimentos com que se deparam, porquanto anseiam por inscrever neles as formas, os esboços e tendências temporais imbricadas e sempre virtuais que trazem em si, ainda que essas não permaneçam incólumes ao embate e se sujeitem a reconfigurações inesperadas. Nesse sentido, a consumação das tendências numa forma que permanece aquém do ensejado configura, a um só tempo, fracasso e apoteose. Nesse processo, a vida enobrece a matéria, espiritualizando-a; a matéria permite a exteriorização do trabalho temporal da vida, em formas concretas, infinitamente diversas e individualizadas. Na tensão entre a virtualidade múltipla que anseia avançar e uma materialidade que resiste, o esforço criador se consuma, atualizando a ação do elã vital, com a qual a virtualidade passará, enfim, de uma existência de direito a uma existência de fato.

Contemporizemos com P. A. Miguel. Para além de ser apenas tendência virtual, o elã vital adquire, em Bergson, uma conotação material, ao menos em parte, uma vez que é no confronto com a materialidade que há tensão, ou seja, sem extensão não haveria a tensão entre as forças geradoras da matéria e do movimento que a transforma: “Só há vitalidade na materialidade.” (MIGUEL, 2020, p. 231). A matéria condiciona a consumação da vida, já que a realidade de suas formas irrompe no confronto da diferença visceral entre duas tendências que fundamenta a realidade ontológica. A vida é, pois, uma tendência cuja apreensão exige a presença de sua contratendência, a qual se traduz na extensão material. Sem a materialidade, a vida seria talvez um processo de atuação intensa, mas que jamais abandonaria a condição de tendência; ela exige, pois, o seu antípoda, ainda que tal exigência implique sua limitação e um confronto permanente para transcender as leis que obstam sua virulência criadora.

Justamente por essa razão, o processo no qual a vida se consuma se revela uma façanha que exige imenso dispêndio de energia, um esforço intenso, sem deixar de ser uma aposta, porque tal aventura, a despeito de sucessos e retrocessos, é radicalmente indeterminada. O vingar das formas criadas e imprevisíveis estará à mercê das especificidades do compromisso estabelecido entre impulso vital e matéria, no qual se tece o enlace da organização recíproca. Sucesso que está diretamente ligado à potência da criação, bem como às interdições que a ela se apresentam. Como observa H. Fujita, os limites do elã, no fim das contas, é que garantem a eficácia do processo criador, porque a vida exige a alteridade para se efetivar: “[...] a vulnerabilidade, a fragilidade, a finitude do elã vital é em si mesma fonte de sua potência.” (FUJITA, 2010, p. 280).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No processo dinâmico da vida, a materialidade configura-se como resistência e forja impasses que interditam o afã criador, instaurando o drama do movimento vital; todavia, ela também se apresenta como um apelo sedutor que estimula e aguça o espírito, convidando-o a se inscrever nela, moldando-a no mesmo movimento em que testa sua força e concretiza sua aventura. O arranjo encontrado entre as forças antagonistas que se confrontam no âmago da vida é apontado por Bergson: “Na verdade, a vida é um movimento, a materialidade é um movimento inverso. [...] a segunda contraria a primeira, mas a primeira obtém, apesar de tudo, algo da segunda: disso resulta entre elas um modus vivendi que é precisamente organização.” (BERGSON, 2005, p. 271).

A vida impõe às forças que engendra e que a contraditam algum tipo de reconciliação. Ela atua, ratifiquemos, inserindo liberdade na necessidade, potencializado a energia para convertê-la em movimento ou, para voltarmos à imagem bergsoniana, acumulando a energia da pólvora até provocar a fagulha que fará explodir o metal: “A vida seria impossível se o determinismo a que a matéria obedece não pudesse afrouxar seu rigor.” (BERGSON, 2009, p. 13). Contudo, se algum equilíbrio assim se instaura, esse ensaio harmônico jamais se estabiliza por completo, porque não há avanço da vida sem confronto e sem esforço da impulsão vital para superar a resistência que com ela antinomiza.

Afinal, “[...] a vida toma seu impulso no próprio momento em que, pelo efeito de um movimento inverso, a matéria nebular aparece.” (BERGSON, 2005, p. 276). O drama com que se tinge essa espécie de conciliação antinômica, a um só tempo, impede que o movimento do elã – essa imagem que mais nos aproxima da vida – se assemelhe àquele de uma bala de canhão de trajetória unívoca e o transforma num esforço árduo que segue um caminho repleto de desarmonias, mas cujo norte reside na continuidade da explosão criadora da vida.

 

Creative Impulse and Vital Drama in Bergson

Abstract: By referring to H. Bergson's theory about the evolutionary process, this article reflects on the antinomic character of the two fundamental tendencies of the vital movement, which are pure time and materiality. Starting from the importance of the image in this philosophy, it focuses on the Bergsonian ontology, questioning the notion of vital elan and how matter comes and the real-time is inscribed in it. By highlighting the ambiguity of the role played by materiality in the tensioning of vital forces, the discussion explains that the original impulse establishes its antipode. Thus, it reveals the dramatic character that permeates the movement intrinsic to the history of life, in which effort and struggle are correlated to the limits of the impulse that moves it – and inevitable questions for the creative act that defines it.

Keywords: Élan vital. Matter. Obstacle. Effort. Creation.

 

Referências

BERGSON, H. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BERGSON, H. Introdução (primeira e segunda parte); Introdução à metafísica. In: BERGSON, H. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BERGSON, H. A consciência e a vida. In: BERGSON, H. A energia espiritual. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

BERGSON, H. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

BERGSON, H. Lettre à Henri Gouhier de 09.06.1932. Écrits (Le choc). Paris: Quadrige/PUF, 2011a.

BERGSON, H. Écrits (Le choc). Paris: Quadrige/PUF, 2011b.

BERGSON, H. Memória e vida, textos escolhidos. São Paulo: Martins Fontes, 2011c.

CORNIBERT, N. Les deux sens de l’absolu et a notion d’image. In: Annales bergsoniennes IV. Paris: PUF, 2008.

DELEUZE, G. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999.

FUJITA, H. Le tremplin et la table. La materialité chez Bergson et Levinas. In: Annales bergsoniennes IV. Paris: PUF, 2008.

GOUHIER, H. Le Christ des évangiles. Mayene: Arthème Fayard, 1961.

JANKÉLÉVITCH, V. Henri Bergson. 3. éd. Paris: Quadrige/PUF, 2008.

MARQUES, S. T. A busca da experiência em sua fonte: matéria, movimento e percepção em Bergson. Trans/Form/Ação, Marília, v. 36, p. 61-80, 2013.

MIGUEL, P.A. Comentaires. In: FRANÇOIS, A. (ed.). Études e comentairesL’évolution créatrice, de Bergson. Paris: Libraririe Philosophique J. Vrin, 2010.

PRADO JÚNIOR, B. Presença e campo Transcendental. São Paulo: EDUSP, 1989.

WORMS, F. Introduction. In: BERGSON, H. L’évolution creatrice (Le choc). Paris: Quadrige/PUF, 2008b.

WORMS, F. Os dois sentidos da vida. São Paulo: Editora Unifesp, 2010.

 

Recebido: 22/02/2022

Aceito: 13/09/2022

 

Comentário a “Impulso criador e drama vital em Bergson”: A dialética do devir e a dramatização do elã vital

 

Pablo Enrique Abraham Zunino[154]

 

Referência do artigo comentado: PAIVA, Rita. Impulso criador e drama vital em Bergson. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 253 – 274, 2023.

 

O objetivo deste comentário é estabelecer um diálogo com o artigo de Rita Paiva (2023), intitulado “Impulso criador e drama vital em Bergson”. Para tanto, retomamos três elementos do artigo original: (1) o problema da apreensão da passagem do tempo, ou seja, do “devir”; (2) a noção de “drama” ou a dramatização como recurso a personagens metafísicos; (3) o conceito de “ação” entendido como luta ou esforço.

Ao contornar obstáculos, a matéria viva se abre caminho e se organiza, prolongando-se em ação: essa seria uma das teses centrais do artigo, a qual interpretamos livremente como uma dialética da criação da matéria como obstáculo ou, sinteticamente, como uma dialética do devir. A presença do obstáculo, como aquilo que opõe uma resistência necessária à criação, opera aqui uma negatividade inerente à positividade da ação. Os obstáculos que a própria materialidade impõe à vida são como uma negação que limita, mas ao mesmo tempo exige criação. O elã vital, portanto, precisa de um meio para agir, um solo que lhe permita exercer sua adaptação inventiva. Nisso consiste sua luta.

Assim, a abertura de um canal se explica pela própria força da água que, ao deparar com certos obstáculos, prolonga sua ação no sentido que lhe ofereça menor resistência. O movimento, segundo Bergson, é um ato indivisível como aquele que fazemos, ao erguer a mão, onde a contração muscular vence a gravidade. O impulso criador também se compreende de modo análogo, visto que a matéria viva é atravessada por uma ação indivisível que prolonga seu esforço invisível: “Imaginemos que, em vez de mover-se no ar, minha mão tenha que atravessar uma quantidade de limalha de ferro que se comprime e resiste à medida que progrido.” (BERGSON, 2005, p. 103). Se fixarmos um determinado momento dessa evolução, teremos um arranjo de grãos dessa limalha que expressa negativamente o movimento indiviso da mão que os organizou.

Contudo, é preciso aclarar que o termo “dialética” não remete a um “diálogo” cuja finalidade seria a de estabelecer o acordo sobre o sentido das palavras, nem a uma “distribuição” das coisas, segundo as indicações da linguagem (BERGSON, 2006a, p. 91). Usamos essa expressão – dialética do devir – para indicar uma mudança radical do pensamento de Bergson em relação à metafísica tradicional. O movimento dialético não estaria em nossa racionalidade, muito menos em nosso discurso, mas antes na própria realidade em devir. A intuição é o reconhecimento dessa dialética imanente à duração, uma espécie de “instinto” pelo qual abrimos o espaço à nossa frente, à medida que fechamos o tempo que vai passando (BERGSON, 2006b, p. 169). Merleau-Ponty sintetiza bem essa ideia: “Visão dialética, porque é um mesmo movimento que abre o futuro e fecha o passado. Ultrapassamos o simples misto de sujeito e objeto para constituir uma verdadeira dialética do tempo.” (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 88-89). Nesse sentido, o movimento de inversão sublinhado por Rita Paiva pode ser interpretado como uma “dialética da passividade e da atividade” (WORMS, 2004, p. 61), a qual explica como o real pode passar da tensão para a extensão e da liberdade para a necessidade mecânica por via da inversão.

Ora, se o propósito de Bergson era reencontrar a “unidade verdadeira, interior e viva” da natureza, talvez as críticas de Barbaras e Lebrun sejam instrutivas, porquanto advertem que o privilégio metafísico atribuído à duração acaba por substancializar o devir. Em outras palavras, a dramatização metafísica do elã vital poderia ofuscar a realidade em devir, se buscamos traduzir em imagem o sentido dessa evolução dialética. O castelo de Bergson é maleável, feito areia molhada, onde o processo de fazer e desfazer quase não se distinguem.

É claro que a noção de imagem que propõe Paiva está mais próxima do cinema que da fotografia, isto é, trata-se de uma imagem-movimento e não de recortes fixos; de um conceito fluido, antes que de uma essência. Malgrado Deleuze (1983), o problema não se resolve no cinema, pois a dialética do devir exige uma diferenciação mais nítida entre positividade e negatividade, entre o ser e o nada.

Ao deslocar a positividade da essência para o devir, Bergson teria substancializado o devir, ao invés de conceder-lhe a negatividade que faltava à essência. Dessa maneira, o filósofo da duração apenas teria mudado o conteúdo do Ser: “Bergson reconhece sem dúvida que a verdadeira mobilidade, a duração, é diferença consigo, mas é para fazê-la aceder à dignidade substancial. O bergsonismo é, portanto, menos uma crítica à metafísica do que um deslocamento da sua tópica: o Ser só mudou de conteúdo.” (LEBRUN, 1972, p. 240 apud BARBARAS, 1998, p. 51). Para eles, Bergson atribui ao devir um privilégio metafísico contraditório.

Barbaras buscará em Merleau-Ponty uma saída para esse impasse: “A neutralização do nada não conduz ao devir por oposição à essência imutável, mas antes a um sentido do ser que inclui o negativo, por oposição à plena positividade.” (BARBARAS, 1998, p. 51). Enquanto Bergson acentua a positividade do devir contra as perspectivas clássicas que o relegam ao não-ser, Merleau-Ponty amplia essa análise e vê no imutável uma modalidade do positivo sob a qual o Ser pode abrigar a negatividade em seu seio. Assim, a duração assume um sentido original do ser, integrando a negatividade sem sabê-lo: uma “negatividade nativa”, ou seja, aquilo que é próprio do ser percebido como ser à distância: “[...] a distância faz parte do seu ser. Tal é o sentido autêntico da negatividade interior ao Ser sobre a qual se debruça a crítica do nada.” (BARBARAS, 1998, p. 56).

Essa distância fenomenológica supõe a “separação” entre duas regiões do real: a subjetividade e o Ser – justamente um dos falsos problemas que Bergson queria superar com a imagem do elã vital. Porém, o que era apenas um movimento imparcial tende a solidificar-se na palavras “consciência” e “vontade”, instituindo-se quiçá como princípio filosófico. Esse procedimento de dramatização, capaz de despertar entidades metafísicas, deve ter motivado certas interpretações, como as de Barbaras e Lebrun.

Sem embargo, a noção bergsoniana de “coincidência” não admite tal separação, visto que o real se integra em um mesmo movimento: a dialética do devir. Entretanto, Bergson consente que é impossível manter esse esforço antinatural que faria coincidir, ao menos em algum grau, a ação humana com a vontade do elã:

Na ação livre, quando contraímos todo nosso ser para lançá-lo para frente, temos a consciência mais ou menos clara dos motivos e dos móveis e mesmo, a rigor, do devir pelo qual estes se organizam em ato; mas o puro querer, a corrente que atravessa essa matéria comunicando-lhe a vida é algo que mal sentimos, algo que no máximo roçamos de passagem. (BERGSON, 2005, p. 258).

 

Por um esforço de vontade, então, nós nos instalamos no puro querer do elã vital, mas essa coincidência não durará mais que um instante e sempre será um “[...] querer individual e fragmentário.” (BERGSON, 2005, p. 258). A coincidência parcial, portanto, não pode ser concebida como fusão ou contato com o Ser, mas como “[...] uma coincidência que está sempre defasada ou sempre por vir, uma experiência que se segue de um passado impossível e que antecipa um futuro impossível.” (BARBARAS, 1998, p. 58). Não se trata apenas de renovar a metafísica pela substituição dos conteúdos, senão de mostrar a possibilidade de outra metafísica:

A duração não é somente mudança, devir, mobilidade, é o ser no sentido vivo e ativo da palavra. O tempo não é colocado no lugar do ser, é compreendido como ser nascente, e agora é o ser inteiro que é preciso abordar junto com o tempo. (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 204).

 

Bergson não busca um princípio filosófico absoluto, seja da vida, seja da materialidade, nem quer pôr o devir no lugar da essência, realizando o sonho da metafísica tradicional. Os conceitos de ação e movimento caracterizam a fluidez dessa nova maneira de fazer metafísica aliada ao esforço da intuição. Em certa medida, a metafísica clássica e a intuição sugerem dois esforços em sentido contrário, pois “[...] o mesmo esforço pelo qual ligamos ideias a ideias faz desvanecer a intuição que as ideias se propunham a armazenar.” (BERGSON, 2005, p. 258).

Na história da filosofia, qualquer intuição original se desenvolve por conceitos. Entretanto, para reestabelecer o contato primitivo com a intuição, haveria que desfazer toda essa construção conceitual. Daí se desprende a “dialética bergsoniana” como uma distensão da intuição (PRADO JÚNIOR, 1989, p. 29). Para um discípulo atento, exercer a intuição de acordo com o mestre significa habituar-se a esse “[...] vai-e-vem contínuo entre a natureza e o espírito.” (BERGSON, 2005, p. 259).

 

Referências

BARBARAS, R. Le tournant de l’expérience. Paris: Vrin, 1998.

BERGSON, H. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BERGSON, H. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006a.

BERGSON, H. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 2006b.

DELEUZE, G. Cinema I – A imagem-movimento. São Paulo: Editora 34, 2018.

LEBRUN, G. La patience du concept. Paris: NRF, 1972.

MERLEAU-PONTY, M. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

PAIVA, R. Impulso criador e drama vital em Bergson. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 253 – 274, 2023.

PRADO JÚNIOR, B. Presença e campo Transcendental. São Paulo: Edusp, 1989.

WORMS, F. Bergson ou les deux sens de la vie. Paris: PUF, 2004.

 

Recebido: 23/01/2023

Aceito: 30/01/2023

 

Comentário a “Impulso criador e drama vital em Bergson”

 

Sinomar Ferreira do Rio [155]

 

Referência do artigo comentado: PAIVA, Rita. Impulso criador e drama vital em Bergson. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 253 – 274, 2023.

 

Uma característica inerente da vida, conforme revela a filosofia evolucionista de Bergson, é ser impulso criador. Em sua atividade criadora, a vida inaugura o seu outro, a matéria. Esta surge enlaçando a vida, freando seu movimento originário, mantendo-a, aqui e ali, de certa forma, estagnada, dificultando o avançar da vida em todas as suas manifestações. Nesse script, o embate entre vida e matéria se institui no próprio movimento criador, desde o primeiro impulso em que a vida se lança em sua odisseia. A condição dramática da vida em criação parece ser inelutável.

O título “Impulso criador e drama vital em Bergson”, que Rita Paiva (2023) dá ao seu texto, coloca-nos, de início, no enredo desse drama em curso. Ainda podemos perguntar: poderia a vida passar sem a matéria, uma vez que a vida é, nessa compreensão, originária, ela mesma, criadora de suas condições específicas? A pergunta é provocativa e nos coloca mais no interior desse drama. Vladimir Jankélévitch, em seu livro Henri Bergson, faz a seguinte reflexão:

É provável que, se não houvesse matéria, haveria ainda a vida, mas não o élan vital: a evolução propriamente dita perderia sua razão de ser, que é a prevalência crescente da liberdade; o espírito, desesperadamente solitário em um mundo desértico, teria esquecido a alegria, ao mesmo tempo que a angústia de mudar. (JANKÉLÉVITCH, 2015, p. 172, tradução nossa).

 

Sem a matéria, a qual aparece nas palavras do comentador como implicada no movimento evolutivo levado avante pelo élan vital, a vida seria um em si, sem expressão de ser, uma totalidade indiferenciada. Essa condição, ainda que possa ser dita, parece não ser possível como fato, pois a vida, no pensamento de Bergson, é duração, é memória. “Duração é o progresso contínuo do passado que rói o futuro e infla ao avançar”, como segundo frisa Bergson (2009, p. 4, tradução livre), no primeiro capítulo d’A evolução criadora.

Assim posto, duração compreende duas – digamos assim – temporalidades, passado e futuro, sendo o passado um movimento contínuo criador disso que sempre vem a ser o futuro. Essas duas temporalidades implicam uma terceira, o presente, o qual se revela como passagem contínua do passado, ao se efetivar em suas diferenças, originalmente em estado de virtualidade indiferenciada, pelo próprio movimento inerente à duração – na qual o passado está compreendido – de fazer, a partir de si, a sua diferença. Assim pensada, a duração se revela como um dinamismo absolutamente vivo, ativo. Passado, presente e futuro, três temporalidades indissociáveis, constituintes de uma totalidade movente, que é a duração.

Essas considerações muito rápidas de um ponto extremamente chave do pensamento de Bergson tem por propósito destacar que a vida, enquanto vida, é esse dinamismo criador e, como tal, não se detém como passado sempre inatual, como um em si que não progride. A sua natureza é ser mobilidade, a qual se dá como movimento de criação contínua de si por si. É desse movimento que a vida enseja seu outro, a matéria. É por efeito de a vida ser criação que a matéria aparece como um dos seus momentos, como uma necessidade colocada por efeito de seu movimento próprio, que é evoluir. Daí a condição inelutável do drama vital, implicado no seu impulso criador.

Contudo, o que é a matéria e como ela surge, no seio da duração? A resposta a essa pergunta é dada por Bergson, no terceiro capítulo d’A evolução criadora, quando analisa a razão do acordo evidente entre inteligência e matéria, o que exige a análise da gênese de uma e de outra. A matéria e a inteligência que a acompanha se dão por efeito de inversão de um princípio que ele denomina consciência. Não se trata, ressalva Bergson, naquela ocasião, dessa consciência distinta vivida por nós, mas de uma consciência geral, a qual é a vida mesma ou duração originária.

A matéria, assim, surge dessa consciência geral que se inverte, de modo a ser ainda participante do princípio gerador de vida. Considerada em seu conjunto, a matéria “[...] é como uma consciência em que tudo se equilibra, se compensa e se neutraliza”, como nos diz Bergson, no quarto capítulo de Matéria e memória (2011, p. 258). Nesse sentido, a matéria é consciência, embora seja como consciência que a vida tem de si em sua materialidade, derivada de seu movimento original invertido. Ela vem por efeito de a vida se fazer élan vital, a qual se efetiva como diferenças organizadas que se determinam na ordem da existência em diferenciação mantida, como esse e aquele momento efetivado que se quer a si ser o que se fez. Ela se constitui como um movimento da duração, o qual é ele mesmo criação contínua, que se deteve sobre si e se fez tendência a se repetir.

Assim, a matéria é a dimensão da realidade surgida concomitantemente com o movimento que a vida efetiva, ao se atualizar em suas tendências. Ela vem com a criação das condições que a vida requer para evoluir, para se fazer expressão de liberdade. Nessa leitura, essa dimensão material da realidade vem como organização vital que a vida realiza, em seu evoluir, de sorte que a evolução não passa sem a materialidade. Essa compreensão é assinalada por Bergson, no terceiro capítulo d’As duas fontes da moral e da religião, quando está a pensar o amor como uma emoção criadora, por meio da qual a vida se lança e avança como um esforço contínuo de elevar a si mesma e se fazer expressão de amor e liberdade. Ressalta Bergson (2005, p. 272):

Mas mostramos, pelo contrário, que a matéria e a vida, tal como a definimos, são dadas conjunta e solidariamente. Em tais condições, nada impede o filósofo de levar até o fim a ideia, que o misticismo sugere, de um universo que não seria mais do que o aspecto visível e tangível do amor e da necessidade de amar, com todas as conseqüências que acarreta esta emoção criadora, quero dizer com o aparecimento de seres vivos nos quais a descobre o seu complemento, e de uma infinidade de outros seres vivos sem os quais os primeiros não teriam podido aparecer e, por fim, de uma imensidão de materialidade sem a qual a vida não seria possível.

 

Dessa forma, a vida não passa sem a matéria. A matéria aparece como a condição que a vida cria para si, quando avança em seu impulso criador, ou ainda, é o próprio efeito que a vida produz em seu evoluir. Ela surge como um momento de parada, quando se faz tendência em ser o que se fez, isto é, repetição de si na ordem do ser. Mas é por dentro de si que a vida avança como impulso criador. Essa materialidade que lhe veio como efeito de sua atualização dificulta, retarda e até mesmo aprisiona, aqui a ali, a vida que se efetivou, todavia, não a detém por completo. A vida, enquanto impulso, sempre atravessará essa materialidade e imprimirá, na realidade, sua atividade criadora. A matéria estará sempre aí, vinda por efeito dessa atividade criadora que é a vida. O drama vital, em sua relação com a matéria, é inelutável, mas os atos, embora dificultados pela materialidade que a envolve, são sempre escritos pela própria vida.

 

Referências

BERGSON, H. As duas fontes da moral e da religião. Coimbra: Almedina, 2005.

BERGSON, H. L’évolution créatrice. Paris: Quadrige/PUF, 2009. (Le choc Bergson).

BERGSON, H. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. (Biblioteca do Pensamento Moderno).

JANKELÉVITCH, V. Henri Bergson. Paris: Quadrige/PUF, 2015.

PAIVA, Rita. Impulso criador e drama vital em Bergson. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 253 – 274, 2023.

 

Recebido: 02/02/2023

Aceito: 12/02/2023


A visão em deus e o primado da representação em Malebranche[156]

 

Sacha Zilber Kontic[157]

 

Resumo: O presente artigo visa a examinar a noção de representação presente na exposição malebranchiana da tese da visão das ideias em Deus. Para tanto, volta-se para a progressiva precisão atribuída por Malebranche ao termo ideia, buscando ressaltar o caráter radicalmente representativo do conceito. Em seguida, analisa-se de que modo essa ideia representativa prescinde, na filosofia do oratoriano, de uma correspondência com a existência. Por fim, busca-se mostrar como esse primado da representação se articula com a tese da visão em Deus. Com isso, torna-se possível conceber como essas ideias representativas podem fundar, na filosofia de Malebranche, uma verdadeira ciência.

 

Palavras-chave: Nicolas Malebranche. Ideia. Conhecimento. Representação. Visão em Deus.

 

Introdução

O objeto de nosso pensamento, quando percebemos os corpos, não são os próprios corpos percebidos, mas sim suas ideias. Essa tese, central para a compreensão de todo o malebranchismo, se encontra formulada na segunda parte do Livro III da Recherche de la vérité, na qual a teoria da visão das ideias em Deus é explicitada pela primeira vez, na obra do oratoriano. Mas a questão da origem das ideias é antecedida, nesse mesmo livro, por uma discussão do caráter propriamente representativo delas, cuja característica principal é a cisão entre a coisa percebida por meio da ideia e a existência efetiva dessa mesma coisa, no mundo material.

É a partir dessa cisão que se torna possível compreender a especificidade da concepção de ideia que Malebranche começa a desenvolver, em 1674, na primeira edição da Recherche, e que é aprofundada e desenvolvida em seus textos posteriores. O primado da representação que o oratoriano atribui às ideias – e, por conseguinte, a todo conhecimento distinto – é o que fornece à tese da Visão em Deus sua importância para além de uma simples teoria sobre a origem das ideias.

 

1 A EQUIVOCIDADE DO TERMO IDEIA

O primeiro capítulo da segunda parte do Livro III da Recherche deixa clara a importância que Malebranche atribui ao caráter representativo das ideias. Nele, Malebranche introduz a questão pela negação, amplamente aceita, da noção de que o objeto imediato de nosso espírito não são as coisas mesmas, mas suas ideias:

Creio que todo mundo está de acordo que não percebemos os objetos que estão fora de nós em si mesmos. Nós vemos o Sol, as Estrelas e uma infinidade de objetos fora de nós, e não é verossímil afirmar que a alma saia do corpo e que ela vá, por assim dizer, caminhar nos céus para contemplar nele todos esses objetos. Ela não os vê, portanto, em si mesmos, e o objeto imediato de nosso espírito quando ele vê o Sol, por exemplo, não é o sol, mas algo que está intimamente unido à nossa alma, e é isso que chamo de ideia. (RV, III, II, I, §I, OC I, p. 413-414).[158]

 

            Ao afirmar que não vemos os objetos neles mesmos e que, portanto, é absurdo considerar que a alma sai de si mesma para caminhar nos céus, quando vemos o sol ou as estrelas, Malebranche aponta para a necessidade de haver algo diferente desses objetos materialmente existentes que os represente a nós. É por isso que a ideia é definida, na sequência do argumento, como “[...] aquilo que é o objeto imediato, ou mais próximo do espírito, quando ele percebe alguma coisa” (RV, III, II, I, §I, OC I, p. 414). Visto que, tal como para Descartes, a alma e o corpo são para o oratoriano duas substâncias realmente distintas, é inconcebível que haja alguma espécie de comércio real e imediato entre o espírito e o mundo material. É necessário, por conseguinte, que o objeto imediato de nossa percepção dos corpos seja algo distinto da matéria. Não vemos os corpos criados imediatamente, pois nossa alma não é capaz de tocar aquilo que é extenso. A alma não se abre ao mundo exterior, para apreendê-lo. O que percebemos não pode ser o objeto em si mesmo, mas sim sua representação, ou seja, sua ideia enquanto ela representa as coisas percebidas pelo espírito.

Não deixa de ser curiosa, no entanto, a pretensão de universalidade colocada no início do argumento. Rodis-Lewis (1963, p. 57) conjectura que isso se deve ao acordo, nesse ponto, entre o cartesianismo e a escolástica. Do ponto de vista da Escola, ao menos em sua vertente tomista, há entre os corpos percebidos e a percepção propriamente dita a mediação das espécies intencionais, as quais permitem uma espécie de assimilação intencional do objeto na mente.[159] Para o cartesianismo, a ideia é apresentada como aquilo pelo que nossa mente percebe os objetos exteriores ou, em outras palavras, a realidade objetiva da coisa representada e não sua realidade formal. Isso é afirmado com toda clareza por Descartes, na carta a Gibieuf, de 19 de janeiro de 1642:

Pois, estando seguro de que não posso ter nenhum conhecimento do que está fora de mim senão por intermédio das ideias que tive dele em mim, evito relacionar os juízos imediatamente às coisas e não atribuir a elas nada de positivo que eu não perceba antes em suas ideias. Mas creio também que tudo aquilo que se encontra nas ideias está necessariamente nas coisas. (Descartes, 1996, AT III, p. 474).

 

            Contudo, a sequência do argumento da Recherche não se afasta da hipótese tomista somente ao reforçar a distinção entre o sujeito e o objeto percebido, mas ainda ao afirmar a independência entre a realidade da representação e a existência do objeto representado. Para que haja representação, não é necessário postular que haja um correlato externo semelhante ao objeto representado pela ideia. Podemos perceber coisas que não existem ou até mesmo que nunca existiram, como uma montanha de ouro, além de perceber coisas em nossos sonhos que sabemos inexistir fora deles. A ideia, uma vez que representa a essência de um objeto, não possui por si mesma nenhuma relação com o objeto propriamente existente. Se a percepção sensível de um objeto nos leva a pensar em sua ideia é porque a sensação, em virtude das leis da união da alma e do corpo, pode nos dar a ocasião de pensar em uma dada ideia, porém, não a causar, nem garantir que a coisa percebida pela ideia possua uma existência efetiva para além de sua representação.

            Isto, no entanto, gera uma ambiguidade no uso do termo ideia, que Arnauld, em sua primeira crítica a Malebranche, não deixa de apontar. Na Recherche, o termo é usado ora como nossas percepções em geral – e assim podemos remeter igualmente a uma ideia de Deus, da cor, da dor, das qualidades sensíveis, do mesmo modo que tratamos das ideias dos corpos –, ora como aquilo que nos representa unicamente os objetos exteriores. A incompatibilidade entre esses dois sentidos do termo se torna clara pela distinção feita, no mesmo Livro III da Recherche, entre as duas espécies de coisas que a alma percebe: as coisas que estão na alma e as coisas que estão fora da alma.

Dentro da alma está tudo aquilo que é uma modificação dela, ou seja, todos os modos de pensar, como suas sensações, imaginações, desejos etc. Como essas modificações são somente a própria alma modificada ora de um modo, ora de outro, ela não necessita propriamente falando de ideias que as representem, e são assim percebidas pelo sentimento interior que a alma possui de si mesma. As coisas que estão fora da alma, por sua vez, sendo distintas da alma, necessitam algo distinto delas mesmas que as represente. São as suas representações no espírito que recebem o nome de ideia. Rigorosamente, o mesmo termo não pode ser usado para ambos os casos, segundo apontou Arnauld, pois se referem à percepção de duas coisas distintas, a saber, da alma, de um lado e, do outro, de tudo o que lhe é exterior.

Malebranche não era insensível a essa ambiguidade do termo. No Éclaircissement III, seu sentido é precisado:

[...] essa palavra ideia é equívoca. Tomei-a algumas vezes como tudo o que representa ao espírito algum objeto seja claramente, seja confusamente. Tomei-a ainda mais geralmente como tudo o que é objeto imediato do espírito. Mas também a tomei no sentido mais preciso e mais restrito, isto é, como tudo o que representa as coisas ao espírito de uma maneira tão clara que podemos descobrir por uma simples visão [simple vue] se tais ou tais modificações lhes pertencem. (RV, Écl. III, OC III, p. 44).

 

É por conta desse equívoco que Malebranche chega a aludir à ideia dos objetos sensíveis ou à ideia de Deus. No primeiro sentido (“como tudo o que representa ao espírito algum objeto”), Malebranche se vale do termo ideia, em sua acepção usual na filosofia seiscentista. A ideia, tomada nesse sentido, não é propriamente objeto, mas aquilo que designa o objeto. A coisa visada pode ser, nesse caso, a alma, o mundo, as verdades geométricas, os números etc. O segundo sentido (“como tudo o que é o objeto imediato do espírito”), por sua vez, designa até mesmo aquilo que se apresenta ao espírito, sem a mediação de uma representação, como é o caso de Deus.

Contudo, é no “sentido mais preciso e mais restrito” que Malebranche recorre ao termo ideia, na maior parte das vezes. Nele, a ideia é considerada como aquilo que não somente representa o objeto percebido a nós, mas também que o representa de um modo tão claro, que podemos deduzir dela todas as modificações e propriedades que pertencem a esse objeto. Podemos, por exemplo, deduzir da ideia de um triângulo – tomada nesse sentido restrito – que, qualquer que seja sua configuração particular, a soma de seus ângulos internos é igual à soma de dois ângulos retos. A visão simples [simple vue] traduz para o francês a noção cartesiana de intuição [intuitum]. Ela é essa possibilidade de deduzir intuitivamente do objeto percebido suas propriedades, a partir de uma análise atenciosa. É essa espécie de intuição que não é cabível a Deus ou aos nossos sentimentos, todavia, apenas aos corpos extensos e aos números.

Mas esse não é o único equívoco presente no modo como Malebranche define a ideia. Se, por um lado, ela possui uma ambiguidade quanto à maneira como apreendemos o objeto que se encontra presente ou “mais próximo” ao espírito, há ainda uma ambiguidade subjacente à própria maneira como podemos conceber o objeto do pensamento. Em termos cartesianos, podemos concebê-lo, seja como a correspondência de uma realidade objetiva a uma realidade formal (uma representação na mente de um objeto existente), seja como uma realidade objetiva que nos representa uma essência sem uma referência necessária a uma realidade formal. Essa distinção é explicitada por Malebranche, na carta póstuma a Arnauld, de 1699:

Se por objeto do pensamento entende-se seu objeto imediato e direto que é o que os filósofos chamam de ideia, confesso que não há pensamento que não possua seu objeto. Mas, se por objeto do pensamento entende-se o objeto exterior que a ideia representa, há mil e mil pensamentos que não possuem objeto. Quando pensamos em seres possíveis e que não existem atualmente, por exemplo em um sol plano, em uma terra cúbica, no círculo dos Geômetras, não é verdade que não pensamos em nada. (A Arnauld, 19 de março de 1699, OC VIII-IX, p. 910).

 

A ideia, em sua acepção mais própria, não é, por conseguinte, aquilo que representa ao entendimento o objeto do pensamento, entretanto, é ela mesma uma ideia-objeto. Em outras palavras, a ideia é propriamente aquilo que aparece ao espírito e que lhe representa uma essência, seja essa essência existente ou não.[160] O sentido estrito de ideia, liberto assim de suas ambiguidades e de seus equívocos, designa a representação de uma essência de um modo tão claro que podemos deduzir dela todas as propriedades do objeto em questão e, ao mesmo tempo, uma representação que é completamente independente da correspondência do objeto percebido com uma existência.

É nesse sentido que se deve compreender a possibilidade de uma confluência do cartesianismo e do agostinianismo (e, segundo veremos adiante, também do tomismo, em certo sentido) na concepção malebranchiana de ideia. A ideia clara deve, ao mesmo tempo, permitir que nós conheçamos intuitivamente as propriedades do objeto representado e ensejar que Deus também as tenha conhecido como arquétipo ou modelo das coisas criadas antes mesmo da criação. Podemos, com isso, desfazer a ambiguidade do termo e compreender adequadamente a relação da ideia com as coisas criadas, como precisa a Réponse à Regis:

Em relação às minhas ideias, creio que elas não me representam senão elas mesmas diretamente, que eu não vejo diretamente e imediatamente senão o que elas encerram, pois nada ver é não ver. Mas, se Deus criou algum ser que corresponde à minha ideia como a seu arquétipo, posso dizer que minha ideia representa esse ser, e que, vendo a ideia diretamente, vejo esse ser indiretamente. (RR, II, §22, OC XVII-1, p. 303).

 

2 A INVISIBILIDADE DOS CORPOS

Contudo, não é apenas o uso corrente, na filosofia, que causa dificuldades a respeito da equivocidade do termo. Os homens são naturalmente levados a crer pelos sentidos que as coisas que eles sentem existem atualmente e, amiúde, que elas existem tal como eles as veem. Esse erro se deve sobretudo à confusão entre a realidade das ideias e a realidade do mundo material. É essa confusão que faz com que, nos Entretiens, Aristo se choque com a afirmação de que o gabinete no qual ele e Teodoro conversam não é aquele que ele crê ver. Tudo aquilo que é percebido, seja uma casa, seja um círculo, um número, o ser, salienta Teodoro, é certamente uma realidade, ao menos enquanto pensamos neles. Todos esses objetos nos apresentam diferentes propriedades e porque, seguindo o axioma amplamente aceito pelos cartesianos, o nada não tem propriedades, tudo aquilo que percebemos atualmente possui alguma realidade.[161]

            O procedimento adotado por Malebranche, no primeiro Entretien, consiste assim precisamente em distinguir a realidade das ideias da existência dos corpos, estabelecendo, no âmbito do conhecimento, a precedência daquela sobre esta. A insistência de Teodoro em afirmar que o gabinete no qual ele e Aristo se encontram e onde se desenrola o diálogo não é tal como Aristo crê vê-lo tem como função chamar a atenção para essa dissociação entre a realidade do percebido e a realidade materialmente existente. Afirmar que o que percebemos é o objeto existente, e não a sua ideia, é confundir o objeto imediato da percepção com aquilo que ele representa. Quando Aristo, batendo os pés no chão e mostrando que ele lhe resiste, insiste que nossas percepções devem ter alguma realidade para além das representações, Teodoro lhe recorda que as sensações não se encontram nos corpos, mas somente na alma que as sente. Os erros dos sentidos, as alucinações, e os sonhos são provas suficientes de que não podemos atribuir nenhuma realidade exterior àquilo que sentimos sensivelmente. De fato, se Deus aniquilasse o mundo exterior, mas produzisse em nosso cérebro os mesmos traços que possuímos presentemente, contemplaríamos exatamente o mesmo mundo.[162]

            Por isso, Teodoro pode afirmar que o mundo no qual nosso corpo se desloca e o qual enxergamos, ao virar a cabeça de um lado para o outro, não é o mesmo que nosso espírito contempla. Este é um mundo puramente inteligível, constituído pelas ideias e não pelos seres materiais que elas representam. Valendo-se da distinção entre os sinônimos ver [voir] e enxergar [regarder][163], Malebranche diferencia uma percepção que é ciente de seu caráter meramente representativo de outra que acredita encontrar no mundo material um correlato direto das representações. O mundo que acreditamos ver, quando enxergamos [regardons], é aquele ao qual atribuímos uma existência para além das ideias, e ao qual atribuímos o poder ou a qualidade de causar em nós as sensações. Ele é, em suma, o mundo da Escolástica e do senso comum. O mundo que a atenção à natureza representativa das ideias nos revela é, por sua vez, um mundo puramente inteligível, distinto do mundo dos corpos, no qual se reconhece o caráter propriamente subjetivo das sensações. Ele é, como a doutrina da visão das ideias em Deus deixará claro, o mundo dos arquétipos inteligíveis contidos no Verbo, os quais são o modelo sobre o qual Deus forma o mundo material.

Vê-se, assim, como a noção de visão pode ser deslocada sem grandes dificuldades do campo conceitual do sensível para o campo conceitual das ideias. Se a visão designa aquilo que se apresenta mais imediatamente e de modo mais claro a nós, podemos dizer que só vemos propriamente as ideias e que só sentimos aquilo que se passa em nossa alma. O binômio voir-regarder explicita a radicalidade que a noção de representação assume no interior da doutrina da visão em Deus. Essa radicalidade, no limite, põe em xeque a correspondência entre a realidade objetiva e o corpo material, na medida em que este perde o estatuto de objeto da percepção.

Isso se explicita em uma carta datada somente de 14 de janeiro, sem menção ao ano e endereçada apenas a um “Reverendo Padre”, na qual Malebranche apresenta, talvez de modo mais explícito em toda a sua obra, uma reflexão sobre o caráter da representação. Nele, o oratoriano afirma, de maneira clara, que representar pode ser considerado propriamente uma apresentação, pois aquilo que é representado pela ideia é a própria realidade inteligível do objeto percebido:

Eu vos peço, meu Reverendo Padre, que medite um pouco sobre a noção que devemos unir à palavra representar, pois quanto a mim creio que, falando com exatidão e rigor, nada do que vemos imediatamente é representado [representé], mas somente apresentado [presenté], que não vemos senão aquilo que é, que a ideia contém o que vemos nela, que é precisamente aquilo que vemos que afeta a alma por sua eficácia, que assim as realidades inteligíveis são mais nobres do que aquelas que Deus forma sobre elas como modelos [...]. Mas não vemos as criaturas que são formadas sobre essas ideias, e nada pode representar essas ideias se não contém as perfeições que vemos nelas. (A ?, 14 de janeiro de ?, OC XVIII, p. 279-280).

 

Essa cisão entre a realidade do mundo material e a realidade das ideias, entre a existência das coisas e suas representações, não pode se operar sem que o acesso do entendimento ao mundo material se torne problemático. Se só temos como objeto imediato da percepção as ideias, ou se, em outras palavras, a visibilidade dos corpos criados não é uma propriedade deles, o mundo dos corpos se torna, nas palavras de Teodoro, “invisível em si mesmo” e, por conseguinte, dependente de uma revelação para ser conhecido, a qual se dá de duas maneiras: sobrenaturalmente, pelos livros sagrados, e naturalmente, por meio dos sentidos que Deus causa em nós, em virtude das leis da união da alma e do corpo.

Os sentidos, contudo, podem ser enganosos e dizem respeito mais propriamente ao modo como nosso corpo se relaciona com os objetos exteriores do que com os objetos em si mesmos. Eles não podem, portanto, nos fornecer nenhuma demonstração da existência dos corpos.[164] Também não se pode asseverar, à maneira de Espinosa, que o mundo material emana de Deus: “[...] o mundo corporal só existe pois Deus quis criá-lo.” (EMR I, §V, OC XII-XIII, p. 37). Ele não pode ser deduzido, mas somente revelado. É, por isso, somente pela autoridade das Escrituras que podemos possuir alguma garantia (não racional) da existência do mundo material.

Longe de ser uma dificuldade para o estabelecimento da ciência, o problema da existência dos corpos é, do ponto de vista do conhecimento, algo secundário: “Essa questão encerra dificuldades muito grandes, e talvez não seja tão necessário elucidá-la para aperfeiçoar nossos conhecimentos quanto poderíamos imaginar, nem mesmo para ter um conhecimento exato da Física, da Moral e de algumas outras ciências.” (RV VI, II, VI, OC II, p. 373). “Não é absolutamente necessário examinar se há efetivamente no exterior seres que correspondem a estas ideias, pois não raciocinamos sobre esses seres, mas sobre suas ideias.” (RV VI, II, VI, OC II, p. 377). As ideias bastam para um conhecimento adequado dos corpos e até mesmo para as ciências especulativas, tal como a moral.

Todavia, se, por um lado, essa conclusão aponta para um certo distanciamento da maneira como Descartes concebe nossa relação com o mundo material, por outro, isso se dá em vista de um estabelecimento de fundamentos metafísicos para uma ciência cujo princípio é cartesiano. É a evidência própria às ideias que garante que a ciência se estabeleça de um modo certo e ordenado. Assim, tal como para Descartes, Malebranche pode afirmar que “[...] podemos nos assegurar pertencer a uma coisa aquilo que concebemos claramente estar contido na ideia que a representa.” (RV IV, XI, §III, OC II, p. 99).

Se a correspondência dessas propriedades com o mundo material é desnecessária, é porque a ciência verdadeira, tal como concebe o oratoriano, deve necessariamente estar fundamentada em algo puramente inteligível. Do mesmo modo que o objeto da percepção são as ideias, e não aquilo que elas representam, também a ciência passará a ter como objeto as ideias, e serão elas que darão as regras segundo as quais a experiência deverá interpretar o mundo material que nos é confusamente revelado pelos sentidos.

Separada do mundo material, essa ciência deverá necessariamente ser fundada no exame das propriedades – tanto as atuais quanto as possíveis – das coisas representadas pelas ideias. Entretanto, dada a ausência de referência direta ao mundo criado, ela não poderá possuir como índice de verdade a conformidade ou a correspondência entre a representação e a coisa. É nesse sentido que a definição da ideia como objeto não somente se apresenta como um preâmbulo necessário à Visão das ideias em Deus, como também evidencia que o caráter epistêmico desta é dependente de uma precisão do estatuto representativo das ideias.

É localizando as ideias no Verbo que Malebranche poderá dar a elas um caráter de verdade, não só independente do mundo criado, mas, no limite, independente de qualquer outra exterioridade. Estando em Deus, o caráter de verdade intrínseco das ideias se deve, por um lado, porque vemos elas no Ser que as contém eminentemente e, por outro, porque temos o seu caráter de cientificidade garantido, na medida em que elas se constituem como o próprio arquétipo divino a partir do qual Deus criou o mundo dos corpos. Em suma, a ideia representativa é verdadeira, não porque ela é cópia, mas porque ela é um arquétipo divino.

 

3 A VISÃO EM DEUS DA IDEIA-ARQUÉTIPO

            Essa importância da representação para a tese da visão das ideias em Deus transparece desde sua primeira exposição, a saber, na segunda parte do livro III da Recherche. Nos capítulos II a VI dessa parte, Malebranche demonstra sua tese, a partir de um procedimento que se convencionou chamar de negativo ou por eliminação.[165] Nele, Malebranche elenca cinco maneiras possíveis de se conceber a origem das ideias:

Estamos seguros então de que é absolutamente necessário que as ideias que temos dos corpos e de todos os objetos que não percebemos por si mesmos [1] vêm desses mesmos corpos ou desses objetos; [2] ou bem que nossa alma tenha o poder de produzir essas ideias; [3] ou que Deus as tenha produzido ao criá-las, ou que eles as produza todas as vezes que pensamos em algum objeto; [4] ou que a alma possua em si mesma todas as perfeições que ela vê nesses corpos; [5] ou enfim que ela esteja unida a um ser inteiramente perfeito, e que encerra de modo geral todas as perfeições inteligíveis ou todas as ideias dos seres criados. (RV III, II, I, §II, OC I, p. 417).

           

Com base em um detido exame crítico das quatro primeiras teses, que não cabe detalhar aqui, Malebranche refuta uma a uma as quatro primeiras alternativas, até se debruçar sobre a tese segundo a qual vemos todas as coisas em Deus, a única correta. Contudo, é enganoso imaginar que é só por eliminação ou negativamente que a tese é aceita. O método aparentemente ingênuo de exclusão do qual se vale aqui só encontra o seu sentido, se considerarmos que seu objetivo não é somente afirmar que Deus é a origem das ideias e não os corpos ou a alma, mas afirmar que a natureza das ideias é tal que só é possível conceber que elas se encontram em Deus e que, consequentemente, nós as vemos nele.

Assim, no decorrer do seu exame, Malebranche não se limita a apontar como esta é a única tese dentre as cinco enumeradas que é aceitável e, mais do que isso, como ela é “mais que razoável” (RV III, II, VI, OC I, p. 447). Sua atenção se volta, sobretudo, para a adequação da visão em Deus ao caráter representativo das ideias. É ao localizar as ideias em Deus que se torna possível pensar como essas ideias representativas, as quais prescindem, estritamente falando, de uma relação com a existência da coisa representada, podem fundar uma ciência.

Somente em Deus as ideias podem ser compreendidas como seres espirituais, sem qualquer relação, seja com a matéria, seja com a existência em geral, e como distintas das modificações do espírito. Do mesmo modo, somente Deus pode conter em si o caráter infinito das ideias, assim como possuí-las todas simultaneamente, de modo que nós possamos acessá-las a todos os momentos. Todavia, Deus não somente pode contê-las, como é necessário que ele as contenha. “É absolutamente necessário que Deus tenha em si mesmo as ideias de todos os seres que ele criou, pois de outro modo ele não poderia tê-los produzido, e que assim ele vê todos esses seres ao considerar as perfeições que ele encerra às quais eles se relacionam.” (RV III, II, VI, OC I, p. 437).

            Malebranche defende inicialmente que a tese da visão das ideias em Deus é a mais conforme à economia e à simplicidade divina. Embora a simplicidade não tenha aqui o papel de princípio que ela assume, na fundamentação do ocasionalismo, a partir da segunda parte do Livro VI – e, em particular, no Éclaircissement XV –, ela é apresentada aqui para mostrar a superioridade explicativa da visão em Deus sobre as outras hipóteses.[166] Ademais, ela coloca todos os espíritos em uma dependência absoluta de Deus, pois eles não podem ver nada sem que Deus os faça ver. Essa dependência mostra como a visão em Deus se torna um dos principais elementos que permitem a Malebranche considerar o entendimento como algo completamente destituído de qualquer conteúdo representativo próprio.

            A visão das ideias em Deus garante também o requisito, levantado pelas análises críticas, de possuir atualmente e de forma permanente todas as ideias que podemos ter como objeto. Sendo infinito, Deus pode conter em seu intelecto todas as ideias dos seres criados e revelá-las a nós, a qualquer momento. Supera-se, assim, o problema de saber como um ser finito pode não só potencialmente conhecer, mas, principalmente, ter atualmente acesso a uma quantidade infinita de ideias. Essa é, frisa ele, “a mais forte de todas as razões” para demonstrar a necessidade da visão das ideias em Deus. Ao afirmar que vemos as ideias em Deus, não só afirmamos que as ideias possuem uma realidade enquanto pensamos nelas, mas ainda que elas a possuem, mesmo quando elas não são pensadas por nós. A Visão em Deus enseja, desse modo, que possamos dar razão à experiência que temos de possuir disponível a nosso entendimento todos os objetos que desejamos pensar:

É constante, e todo mundo sabe por experiência, que quando queremos pensar em algo em particular, lançamos inicialmente o olhar sobre todos os seres, e nos aplicamos em seguida à consideração do objeto no qual queremos pensar. Ora, é indubitável que não poderíamos desejar ver um objeto particular se já não o víssemos, embora confusamente e em geral, de modo que podendo desejar ver todos os seres, ora um, ora outro, é certo que todos os seres estão presentes em nosso espírito, e me parece que todos os seres não podem estar em nosso espírito senão porque Deus está presente a ele, isto é, aquele que encerra todas as coisas na simplicidade de seu ser. (RV III, II, VI, OC I, p. 440-441).

 

            Por conseguinte, aqueles que defendem as ideias inatas não estão errados, ao supor que as ideias devem estar de alguma maneira presentes a nós, para que pensemos nelas. De fato, é necessário, e comprovado pela experiência, que, para pensar em um objeto particular, precisamos já pensar nele de alguma forma, mesmo que confusamente. Só assim podemos distingui-lo da infinidade de outros seres. Mas não é necessário, para tanto, que tenhamos essas ideias em nós ou, então que as produzamos a partir de nossas próprias perfeições, mas sim que nossa alma esteja intimamente unida à mente divina, e que, por meio dela, Deus possa nos fazer ver as ideias em função das quais ele criou o mundo material. É por isso que Alquié (1974, p. 195) pode assegurar que, ao menos em sua formulação inicial, a visão em Deus pode ser compreendida como uma espécie de inatismo transposto e exteriorizado, e que é, pois, a partir de Descartes que a doutrina malebranchiana das ideias é pensada.

Torna-se claro, por conseguinte, como a inspiração agostiniana intervém aqui como um elemento para solucionar uma problemática cujo formato é dado pela filosofia de Descartes. Se toda a ideia é inata, ou seja, se ela deve ser compreendida como um modo do eu pensante, como é que ela pode ter por objeto uma realidade exterior? A filosofia de Agostinho fornece um elemento de resposta: é em Deus, e não em nós, que se encontram todas as verdades e, nele, as ideias são eternas, imutáveis e necessárias, sendo pela união íntima entre nosso espírito e Ele que as conhecemos.[167] Entretanto, ao menos na Recherche, é através do campo conceitual cartesiano que o problema da natureza das ideias é colocado.

            Do mesmo modo, Malebranche afirma ser necessário que vejamos as ideias em Deus, para que seja possível representar a nós mesmos as ideias gerais de gênero, de espécie etc., e especialmente a ideia de infinito, pois essas ideias gerais não podem ser abstraídas das ideias particulares. Novamente, é a Descartes que o oratoriano recorre implicitamente, ao sustentar que a prova da existência de Deus, “[...] a mais bela, a mais elevada, a mais sólida, e a primeira ou que supõe menos coisas é a ideia que temos do infinito” (RV III, II, VI, OC I, p.441), já que é necessário que o espírito perceba o infinito, mesmo que ele não o compreenda, porque todas as ideias pressupõem, de algum modo, a ideia do infinito:

Não somente o espírito possui a ideia do infinito, ele tem mesmo antes da ideia do finito. Pois concebemos o ser infinito simplesmente porque concebemos o ser, sem pensar se ele é finito ou infinito. Mas para que concebamos um ser finito, é preciso necessariamente suprimir algo dessa noção geral do ser, a qual consequentemente deve precedê-lo. Assim, o espírito só percebe algo na ideia que ele possui do infinito. (RV III, II, VI, OC I, p. 441).

 

            A influência cartesiana dessa concepção da anterioridade do infinito sobre o infinito é patente.[168] Assim como para Descartes, jamais passamos do finito para o infinito. A determinação da ideia particular se dá negativamente, pela supressão daquilo que há de geral no infinito. Isso quer dizer, portanto, que não se deve considerar que vemos as ideias particulares, porque elas estão contidas em uma quantidade numericamente infinita na mente divina, mas que, estando unidos a Deus, vemos em sua mente o infinito, e nele se determinam as ideias particulares. Como determinações da mente infinita de Deus, as ideias dos seres particulares não aparecem como algo distinto desse infinito, mas como uma participação imperfeita dele. Assim, continua Malebranche, na sequência do trecho citado:

Não é necessário que essa ideia seja formada pela reunião confusa de todas as ideias dos seres particulares, como pensam os Filósofos, mas ao contrário todas as ideias dos seres particulares não são senão participações da ideia geral de infinito, do mesmo modo que Deus não deve seu ser às criaturas, mas todas as criaturas não são senão participações imperfeitas do ser divino. (RV VI, II, VI, OC I, p. 441-442, grifo nosso).

 

É essa noção da ideia dos seres particulares em Deus como participação imperfeita de sua essência[169] que permite a Malebranche compreender a ideia vista em Deus ao mesmo tempo como representativa da essência dos seres representados e os arquétipos, a partir dos quais o mundo material é criado. As ideias são, ao mesmo tempo, as perfeições inteligíveis da mente divina pelas quais os corpos são representados e os arquétipos eternos com os quais Deus cria o mundo material. Essa dupla função das ideias em Deus garante que elas, enquanto nos representam os corpos, não os representem enquanto seres criados, porém, enquanto essências, as quais, por sua vez, são participadas pelo mundo material.

É também por isso que, ao mesmo tempo que afirma que a visão das ideias em Deus é perfeita em si mesma, Malebranche sustenta que, pelas ideias, nós conhecemos somente os corpos. Isso é explicitado pela distinção entre os quatro modos de ver as coisas, feito no mesmo Livro III da Recherche. Nele, o oratoriano distingue entre 1) o modo pelo qual conhecemos Deus por si mesmo, sem o intermédio das ideias, 2) o conhecimento por ideias, ou seja, por algo distinto do que é percebido, que é, como vimos, o caso da visão dos corpos, 3) o conhecimento por consciência ou por sentimento interior, que é como vemos nossa própria alma, e 4) o conhecimento por conjectura, que é restrito ao conhecimento que temos dos outros espíritos.[170]

Para o que nos ocupa, presentemente, é importante ressaltar que o conhecimento dos corpos, diferentemente do conhecimento da alma ou de Deus, exige a mediação de algo que difere deles próprios. Isso gera uma diferenciação de natureza entre a percepção que temos das modificações da nossa própria alma ou, então, da percepção sem mediações do infinito e a representação dos corpos, o que faz com que Malebranche reserve o sentido estrito de ideia apenas à última. Ademais, vendo os corpos em Deus, nós os percebemos de uma maneira perfeita, tal como Deus os vê, isto é, podemos conceber, dessa maneira, todas as propriedades das quais a extensão é capaz. A ideia da extensão vista em Deus é, em outras palavras, necessariamente distinta, e, se não somos capazes de deduzir dela todas as suas propriedades, isso se deve não à imperfeição da ideia, todavia, à limitação de nosso espírito finito:

Como as ideias das coisas que estão em Deus encerram todas as propriedades delas, aquele que vê Nele as ideias pode ver sucessivamente todas as propriedades que elas possuem, pois quando vemos as coisas como elas são em Deus, as vemos de uma maneira muito perfeita, e ela seria infinitamente perfeita se o espírito que as visse Nele fosse infinito. O que falta ao conhecimento que temos da extensão, das figuras e dos movimentos não é um defeito da ideia que os representa, mas de nosso espírito que os considera. (RV III, II, VII, §III, OC I, p. 450).

 

Malebranche inverte, com isso, a concepção cartesiana de ideia segundo a qual, por mais que a existência do objeto representado não seja absolutamente necessária para emitir um juízo verdadeiro sobre ele, não deixava de conceber a ideia como um quadro ou uma cópia da coisa representada.[171] A ideia-arquétipo malebranchiana possui seu valor objetivo, não pela relação com a existência, mas por sua natureza propriamente divina, da qual, por sua vez, os corpos existentes são propriamente participações destas ou, no limite, cópias. No entanto, ao mesmo tempo que se afasta de Descartes, a doutrina da visão em Deus funda em bases metafísicas uma matemática e uma física propriamente cartesianas. Tendo em vista que as ideias dos corpos representam a nós a sua essência, ou seja, os representam como substâncias extensas, constituídas por comprimento, largura e profundidade, a ciência dos corpos se torna fundamentalmente geométrica. Tal como no exemplo cartesiano do pedaço de cera que aproximamos do fogo,[172] o conhecimento dos corpos enquanto substâncias extensas – portanto, enquanto considerados separadamente das qualidades sensíveis que os acompanham – deve ser um conhecimento puramente intelectual. A passagem de uma física baseada unicamente na essência dos corpos para uma física dos corpos existentes exigirá a intervenção da experiência, a qual, atuando em conjunto com o conhecimento puramente metafísico constituído pelas ideias, nos permite vislumbrar, além da mente, também a ação da vontade divina, embora de modo confuso e imperfeito. Mas é pelas ideias que ela poderá se constituir, rigorosamente falando, como uma ciência.

O lugar que as ideias devem necessariamente ocupar coincide, assim, com o próprio Deus ou, mais precisamente, com sua mente ou Verbo divinos. Malebranche estabelece, com isso, uma perfeita homogeneidade entre a inteligência humana e a inteligência divina. Se não somos capazes de conhecer a totalidade da verdade, tal como ela se encontra em Deus, é porque, por um lado, nosso espírito finito é incapaz de compreender em uma só visada o infinito do intelecto divino. Por mais que possamos conceber o infinito e que estejamos sempre necessariamente unidos a ele, devido à nossa união necessária a Deus, não podemos compreendê-lo em sua totalidade e muito menos exauri-lo.

Por outro, Malebranche ressalta que vemos em Deus as suas ideias, porém, não sua vontade, de sorte que essa homogeneidade não transborda para o campo das existências – na medida em que ele é dependente do poder criador de Deus – e se restringe, assim, ao campo das essências.[173] A doutrina da visão das ideias em Deus pode se erigir, dessa maneira, como uma teoria da origem e da natureza das ideias, que, ao mesmo tempo que possibilita uma compreensão metafísica da representação e do conhecimento, exclui qualquer pretensão de fundar, a partir dela, uma ontologia dos corpos.

Ao fazer com que as ideias a partir das quais percebemos os corpos sejam também os seus arquétipos, Malebranche funda a veracidade e a universalidade da representação no caráter necessário e universal da mente divina. Com isso, o conhecimento dos corpos por ideia se torna não só simplesmente claro e distinto, mas também necessário, imutável e universal. Com a visão em Deus, o caráter de necessidade e de veracidade das ideias é dado de antemão, sem que, para tanto, seja necessário refazer o itinerário cartesiano pela dúvida. Na medida em que as ideias são perfeições da mente divina, o modo como os corpos são representados a nosso espírito deve ser tal como Deus os representa a si mesmo, ao criá-los. Isso fornece ao nosso conhecimento dos corpos um caráter de verdade, cuja garantia é intrínseca à natureza da ideia.

Assim, Malebranche pode fundar a representação como o modo privilegiado de acesso do entendimento à verdade. Todo conhecimento concernente às essências é necessariamente representativo e, na medida em que a ideia que o representa se encontra em Deus, a representação é sempre, em si mesma, verdadeira. Ao afirmar que as ideias pelas quais representamos os corpos nos revela a mesma essência que Deus representa a si mesmo, enquanto arquétipos do mundo criado, elas ganham uma dignidade ontológica que as emancipa da necessidade do vínculo à existência.

A ideia-arquétipo garante que o objeto do pensamento representa, de maneira clara e distinta, a essência dos corpos criados, enquanto a existência desses mesmos corpos é opaca à representação. Malebranche pode afirmar, assim, uma ciência que prescinde de qualquer correspondência direta ao mundo criado, isto é, uma ciência puramente representativa.

 

The vision in God and the primacy of representation in Malebranche

 

Abstract: This paper aims to examine the notion of representation that emerges from development of Malebranche’s thesis of the vision of ideas in God. To do so, we turn to the progressive clarification made by the author to the term idea, seeking to highlight the radically representative character of the concept. We then analyze how this representative idea, in the philosophy of the Oratorian, does not require some correspondence with existence. Finally, we show how this primacy of representation is articulated with the thesis of vision in God. Thus, it becomes possible to conceive how these representative ideas can give the foundation to a true science.

 

Keywords: Nicolas Malebranche. Idea. Knowledge. Representation. Vision in God.

 

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Recebido: 29/06/2022

Aprovado: 22/08/2022


Jean Jacques Rousseau’s concept of freedom and equality in the Social Contract

 

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Abstract: One of the common characteristics of early modern Western European philosophers is the emphasis on freedom and equality. Philosophers of this period looked for answers to “what is freedom and equality?” and realized freedom and equality into fundamental human rights. From John Locke to Montesquieu and Jean Jacques Rousseau, all consider freedom and equality as natural rights of human beings. Rousseau’s concept of freedom and equality is reflected in The Social Contract. At the beginning of this work, he commented with a famous opening line, “Man is born free, but is everywhere in chains.” That is the fundamental argument to give a unique view of freedom and equality. Within the scope of the article, the author focuses on analyzing his views on freedom and equality in many different aspectsfreedom and equality in the state of nature, freedom and equality in civil society, and how to achieve freedom and equalitythereby presenting the values and limitations of his views on freedom and equality.

 

Keywords: Civil society. Equality. Freedom. Rousseau. The Social Contract. The state of nature.

 

Introduction

Jean Jacques Rousseau (1712–1778) is a famous thinker of the French Enlightenment movement (BERTRAM, 2017). He spent his whole life fighting for the freedom and equality of the masses. Rousseau’s The Social Contract was published in 1762. This was the period when both Europe and France were on the eve of the 1789 French bourgeois Revolution, when feudal autocracy became obsolete and inhibited the development of capitalist productive forces. Freedom and equality were the main ideas throughout the entire work. Rousseau’s conception of freedom and equality resulted from selectively inheriting the humanistic socio-political ideas of his predecessors, such as Thomas Hobbes (1588–1679), Voltaire, John Locke (1632–1704) and Montesquieu (1689–1755).

Regarding the purpose of the work, Rousseau asserted “I INTEND to examine whether, in the ordering of society, there can be any reliable and legitimate rule of administration, taking men as they are, and laws as they can be.” Rousseau expressed a desire to “[…] combine what is allowed by right* with what is prescribed by self-interest, in order that justice and utility should not be separated.” (ROUSSEAU, 1999, p. 45) The birth of The Social Contract was likened to the birth of Karl Marx and Engels’  Communist Manifesto (1848). If the Communist Manifesto was considered the spark that led to the 1871 Paris Commune and the 1917 Russian October Revolution, Rousseau’s The Social Contract, along with several works by Montesquieu, Voltaire, Diderot, could be considered the theory that led to the great French Revolution 1789-1794. The work was considered a theoretical weapon of the bourgeoisie during revolutionary preparation, claiming freedom and equality. Its sphere of influence was not only in France but also throughout Europe. That contributed to the position and influence of the French Enlightenment philosophy of the 18th century on the development process of the history of Western philosophy. The article opens by analyzing the concept of freedom and equality in its natural state and civil society in order to demonstrate the need to move from a natural state to civil society. The second part of the article focuses on analyzing some measures to achieve freedom and equality. Maintaining common will and sovereignty to ensure freedom and equality demonstrated Rousseau’s genius. He overcame contemporary ideas by outlining a path to fight for human rights, freedom and equality. The article ends with some assessments of the values and limitations of Rousseau’s conception of freedom and equality, which will contribute to clarify his contributions to the French Enlightenment as well as the development of the history of Western philosophy.

 

1 Freedom and equality

1.1 The state of nature

Rousseau was very sharp when presenting two opposing images: “freedom” and “chains.” He acknowledged that the right to freedom and equality is a natural right and human beings’ inherent necessity. However, there is a contradiction between inevitable freedom and the stuck reality that human beings are suffering (NGUYEN, 2014, p. 85). Rousseau went to find out the cause of this by analyzing the man’s current state at the most primitive time – the state of nature.

Like John Locke and Montesquieu, Rousseau assumed that humankind went through two stages in the history of development: the state of nature and the state of civil society. The state of nature has existed since ancient times in human history. Rousseau stated that nature is the most peaceful and lasting state in human history. According to his explanation, human beings are characterized by no difference between people in terms of economics in nature. So, there is no distinction in terms of social status and caste. This is the most peaceful, longest, and happiest colonial period (NGUYEN, 2019, p. 174). This state of nature is different from  Hobbes’ view, who considers the “state of nature” as when the “war of all against all” and the relationship as “man is a wolf to man” (ROSSELLO, 2012, p. 255).

Living in a state of nature, human freedom is not restricted; this means absolute freedom – more specifically, humans freely do all that the force of nature can do and are not contrary to the law of nature. According to Rousseau, man is born free. The first law of freedom is that each person must take care of his or her existence. Therefore, the first concern is self-care. At the age of reason, “[…] man must determine his means of subsistence, and thus master himself.” (ROUSSEAU, 2018, p. 58). In the state of nature, people are allowed to live and act according to their instincts without being hindered by any laws. “In that state, man is everything to him, and he is an arithmetic unity, an absolute integer, any natural law does not bind him.” (NGUYEN, 2015). Thus, the right to freedom and equality in the state of nature that Rousseau talked about is freedom and absolute equality inherent in human nature. Because Rousseau believes that “man is born free” (DENT, 2017, p.201), he upholds the idea of freedom. He identifies freedom as human qualities and human rights. This also means that […] to renounce freedom is to renounce one’s humanity, one’s rights as a man and equally one’s duties.” (CURTIS-WENDLANDT; GIBBARD; GREEN, 2016, p. 60; KOSKENNIEMI, 2021, p. 494).

Rousseau said that man is not born of God or that some supernatural force is an authentic product of the natural world and belongs to it. Hence, human nature is its nature. Because of natural origin, people will have the same innate characteristics of the same rights given by nature: freedom and equality. Humans are born with the right to liberty and equality. Essentially, they are inalienable and unalienable rights in human nature. It can be accepted that the most significant value in Rousseau’s thesis of freedom and equality in the state of nature is the affirmation that liberty and equality are innate: natural human rights that belong to human nature. Since it is a natural and an inherent right, that belongs to human nature, it inevitably has universal, eternal, and immutable values. This  Rousseau’s thesis had come close to  Karl Marx’s one , when Marx (1818-1883) stated: “But because human rights are also called natural, innate rights […], so those rights are naturally brought to me by birth.” (MARX; ENGELS, 1995, p. 469).

Nevertheless, this absolute freedom is what causes people to erase their natural freedom. Because human beings have equal rights and can perform their unlimited acts in the state of nature, complete freedom will cause conflict between individuals, between individuals and people’s groups, and between one group of people and another one. Clashes were inevitable and going to be “the war of all against all” (KAVKA, 1983; ROSSELLO, 2012), as Hobbes mentioned in De Cive and Leviathan. Thus, man’s freedom in the state of nature can be detrimental to all others and himself because others have the opportunity to do the same.

However, the early state of nature is symbolic of humanity’s childhood and youth, a time of hunger interspersed with impatience. People gradually realize that they need to relate to perform communicative behaviors, thereby interacting with and deepening their awareness. Over time, progress has made them more skillful and more perfect in life skills. People make more and more wealth, which leads to an abundance of riches and then to some individuals or people’s groups with a desire to possess an amount of goods that should belong to everyone. They make that happen, and as a result, there is a disparity in wealth. This inevitably leads to a social conflict between one group possessing a large amount of riches and the other having nothing in hand. The first human conflicts occurred when private property emerged, followed by disagreement, injustice, and countless other events. Therefore, the state of nature is destroyed, and people officially step into civil society – a society with state and politics (DINH, 2004, p.153). In other words, natural development requires people to leave “the state of nature” (OPITZ-BELAKHAL, 2010) to step into civil society.

 

1.2 Civil society

With freedom and equality in the state of nature, people live according to their personal preferences and desires. People can do what they want without being hindered by any laws. To do that, people rely entirely on their strengths, being spontaneous and disorganized. In contrast, freedom in the state of civil society is civil liberties. According to Rousseau, it is necessary to distinguish natural freedom, that is narrowly limited to the physical capabilities of an individual, from civil rights, which are broadly defined as many people’s “the general will”  (DAGGER, 1981; FARR; WILLIAMS, 2015; HILEY, 1990; KAIN, 1990).

First, civil liberties – political freedom: the security and safety of citizens – cannot be violated by the individual’s wrongs and by the ones of the state. People inherently have the right to protect their security, but when they enter into the “social contract,” they give their security to civil society. This requires the state to have an obligation to protect that security; that is, the freedom of each individual is guaranteed by the strength of the collective (DINH, 2004). Rousseau upholds the right to free will. For him, this is essential freedom because […] moral freedom, which alone makes man truly the master of himself.” (AFFELDT, 1999; BLUHM, 1984; WILLIAMS, 2010, p. 149). Man is spiritually free; he suppresses his desires, thus mastering himself. Once a person is governed by instinctive desires, that cannot be controlled, he or she is in a state of slavery. Then freedom in a state of nature is not absolute freedom because man is always in fear for his life. Hence, people need to give up their natural freedom to complete the state of freedom in civil society. Thus, with Rousseau’s argument, we can understand that people act according to the calls of instinctive needs and desires separate from the social community. In contrast, in civil society, the freedom of each individual is associated with the freedom of the community and society.

People have freedom in the political sphere and in the economic field of civil society. Rousseau valued the wealth humans have in the state of nature. However, it only becomes a private property by law. Thus, the essential thing in economic freedom is owning what one has. Rousseau believes that financial finance is within the framework of the law. If “[…] in the state of nature, everyone has a right to what he needs” (ROUSSEAU, 2018, p. 75), then in civil society, each individual has the right to own only what he has and he or she must not appropriate other individuals and collectives. Only then one person’s  freedom  will not infringe upon the others’ freedom  (HODGSON, 2010). This can be considered Rousseau’s improvement compared to his predecessors because the freedom he talks about is no longer general but is concretized in the law and guaranteed to be implemented in practice.

Rousseau considered the transition from the natural state to the civil state inevitable when people could not live in harmony. When conditions of excess wealth lead to the appearance of private property, there is inequality in society. At the same time, this change can be considered significant because it gives people moral values ​​that the natural state does not have. Instead of a temporary and unstable lifestyle, they lead a better and more stable life; instead of fearing others, they gain their safety.

In civil society, human equality is reflected in the fact that everyone has the same rights and obligations. Rousseau (ROUSSEAU, 2018, p. 89) argues that “[…] the social contract regulates equality among citizens; everyone must commit to the same conditions and enjoy equal rights.” More specifically, “[…] the social contract does not destroy natural equality; it builds spiritual and legal equality to replace what nature has made man physically unequal.” (ROUSSEAU, 2018, p. 78). In terms of contracts and the rule of law, people are still wholly equal, although they are not equal in body and mind. Thus, although not stated as a definition but as a concept, Rousseau has highlighted the meaning of equality with those arguments. This idea is further asserted by Engels in Anti-Dühring as follows: “[…] equality of men as men, a claim to equal political resp. social status for all human beings, or at least for all citizens of a state or all members of a society.” (MAURIZI, 2021). According to Rousseau, freedom and equality are not genuine if equality only exists in the law but is not realized in practice. Furthermore, if there is a lack of equality or excessive inequality in property, then freedom and equality are just shams. He asserts that “[…] in respect of riches, no citizen shall ever be wealthy enough to buy another, and none poor enough to be forced to sell himself.” (TANGIAN, 2020, p. 120).

Thus, compared with society in the natural state, the state of civil society has reached a qualitatively higher level of development. The social contract does not nullify genuine equality but intervenes in physical inequalities through legal and moral equality. Rousseau evaluates the social compact using economic logic, comparing costs and profits: “What man loses by the social contract is his natural liberty and an unlimited right to everything he tries to get and succeeds in getting; what he gains is civil liberty and the proprietorship of all he possesses.” (FENNELL, 1999; ROUSSEAU, 2016, p. 29; STOER; MAGALHÃES, 2002). People lose when they accept that joining the social contract is natural freedom and unlimited rights in what they try to do and get it done, but they get freedom in civilization and ownership.

Rousseau’s view of freedom has similarities and differences compared to John Locke’s one. According to Locke, freedom in the state of nature is obtained when man obeys the laws of nature, so there is no need for man to give up his natural freedom. Unlike Locke, Rousseau believed that man must give up genuine freedom for the common good. However, he agrees with Locke that the social contract is the only way to ensure general will. Both advocated full participation in that general will.

Rousseau was convincing when he proposed freedom and equality in two different states (the state of nature and the state of civil society) for their reasons. Freedom and equality in civil society are necessary. However, to have freedom and equality, it is impossible not to affirm the role of people’s natural rights. Then freedom and equality in civil society are reflected in ownership, the highest being political freedom, freedom of thought, and freedom of speech. Moreover, these freedoms must be regulated by law and enforced in life. Freedom and equality in the two states mentioned above are logical continuations of development. Although they are different, they are not opposed to each other, but one is a condition for the other as a necessity. There must be a rule of law to protect genuine natural rights, and a state must be built based on the social contract. The tight logic and interconnectedness of Rousseau’s thoughts are so precise that he relied on freedom and equality in the state of nature to argue the struggle for freedom and equality in civil society. The natural rule of law is the basis of the law in practice. Thus, the state of man’s nature was considered by thinkers of this period as the core idea in building notions about the state, law, politics, and society. This has created a widespread concept of freedom and equality among philosophers during this period (DINH; DOAN, 2018, p. 227). The French Enlightenment thinkers’ idea of “freedom, equality, fraternity”, especially Rousseau’s one, became not only the motto of the French revolution (STROMBERG, 1988) but also became the ideal of the times (HEILBRONNER, 2005).

 

2 Measurement for exercising human rights to freedom and equality

In the context of the social conventions that all citizens have joined, it is necessary to have a “force” that acts as a “guideline” for all actions and ideas to orient society in a certain way. However, this is not an individual or an organization that, voluntarily, implements it. But it must carry the public spirit expressed in it.  Rousseau calls it “general will” and “sovereign” (KAIN, 1990).

 

2.1 General will and human freedom

Rousseau states the general will in his commentary on the necessity of forming the social contract. It is understood as the familiar voice drawn from the will of majority. The general will is the premise of the social contract. Rousseau wrote: “In order for the social contract not to become a mere formula, it must implicitly imply an obligation to the individual. Only personal bondage gives strength to all other individuals; whoever resists the general will is resisted by the whole body.” (ROUSSEAU, 2018, p. 72) Only when a man is rational, moral, and perfect will he succeed in achieving the social contract and build a rational and ethical state. On the other hand, the actualized common will is found only in a just state. Only an appropriate state can rest on the universal, indestructible will.

Although people with different aspirations in a society, commonalities, and shared interests can still be drawn after removing individual extremes. These shared interests are what Rousseau calls the general will. Rousseau (ROUSSEAU, 2018, p. 86-87) mentioned the possibility of a difference between the general will and the particular will:

If the particular will can agree with the general will on certain points, it cannot agree with the general will in long-term; for the particular will is, by its very nature, oriented toward self-priority, while the general will tends toward equality. Such consensus cannot be guaranteed; no matter how guaranteed, it is not the effect of skill but the effect of chance.

 

To add to this point, he explained the difference between an individual’s will and the general will. The general will consider only the common good; each person’s will looks to its interests and is the total of the particular wills or the will of all. If the particular wills are incompatible with each other, the balance will be a general will. Therefore, the general will is determined when society performs its responsibility in the leading role in society. Humanity will discover the common good of the community to determine the general will. To determine it is necessary to remove all the members of society’s different opinions so that the general will can be synthesized. Rousseau made a clear distinction between the general will and the particular one.

According to Rousseau, “[…] the general will always right and always tends toward the public utility. But it does not follow that the people’s deliberations always have the same rectitude.” (KAIN, 1990). Everyone wants to be good, but people do not always see the good. People never intentionally corrupt people, but often people still deceive people; that is when it seems like they want bad things. For him, the entire population’s general will was announced as an act of supreme authoritythe law. This law must have all people’s opinion and take effect only when the majority approves it.

Nevertheless, sometimes the majority is not necessarily suitable, and the minority is not necessarily wrong (WALDRON, 1990). Rousseau believes that it is necessary to provide enough information to publicly discuss and decide for themselves. He also warned against tricks of taking advantage of the majority, hiding in the collective shadow for personal gain. According to him, each person must ignore sectarian interests and act as a country citizen when contributing ideas. Society must eliminate groups or organizations with specific interests.

Rousseau also distinguishes between the general will and the will of factions. For him, the general will is the expression of common interests: always aspire to “the common good” (DIGGS, 1973; HUSSAIN, 2018); hence, it is always just or justifiable. In contrast, the  will of factions is only a partial  one, and “[…] the formation of factions or partial associations is not conducive to the general will.” (BOVENS; BEISBART, 2007). If there is a struggle between factions in a country, the general will shall not exist. Thus, to adequately express the general will, so that there are no local divisions and sections in the country, each citizen needs to vote only on their own opinion, avoiding agreement with the others when voting. Only in such an order can the general will be achieved and maintained.

In short, the general will is the basis for forming a social contract and is also a necessary condition for the citizens’ freedom in civil society to be guaranteed. Moreover, the general will can only be exercised through specific “state forces” as the supreme authority that Rousseau calls “the sovereign” (SIMPSON, 2006). Considering the general will as the embodiment of the sovereign, Rousseau believed that man was an object of state power relations and a subject when he was both a citizen and an individual. According to Rousseau’s interpretation, when each one signs a social contract, it means voluntarily giving up all his or her natural rights to the state, thus submitting to the general will. Nevertheless, this does not mean that people will lose their freedom because obeying the general will also follow the individual’s will.

 

2.2 Rousseau’s Sovereign – the supreme authority

As mentioned above, the standard will be viewed as the “embodiment” of the sovereign. So sovereign is the expression of the standard will to serve the common good to create harmony of interests and ensure the existence and development of society. This sovereign is conferred on the supreme authority in the name of “a collective man,” and since, according to Rousseau, the leading authority is “a collective man,” only it represents itself. Authority is transferable, but will is not” (ROUSSEAU, 2018, p. 86).

Rousseau believes that sovereign or supreme power can only realize the general will in the present, not in the future. The supreme power can say it wants what the other person wants now, but it cannot say it will also like what the other person will enjoy tomorrow. Because the common will to tie itself to the future is ambiguous. Besides, there is no need to depend on any will to agree on something contrary to what one wants. If the people promise to submit unconditionally, the people cease to be the people; then, there will be only the master, not the supreme power, and the whole political body will have to disintegrate (ROUSSEAU, 2018, p. 87).

The sovereignty or supremacy established by the social contract would be infinite and absolute. Only the state has the authority to decide what it requires of its citizens. For the general will to be implemented appropriately, each person must submit only to a decision or law that he or she passed. Meanwhile, the association of individuals with political alliances inevitably requires unconditional reciprocity.

It is not an individual in the sovereign’s name, but it must be a collective person, according to Rousseau. The standard will must govern the sovereign because, if an individual represents the sovereign, it is no different from an autocratic society with the rulers and the ruled. Therefore, the sovereign always belongs to the people and is not limited by law. The people’s supremacy is reflected in the fact that it is not bound by previous rules and can even change the original agreements of the contract.

In short, it must be understood that in Rousseau’s conception of freedom, the general will and sovereignty are seen as immutable and inviolable ideas that represent the entire peoplewho share a commitment to that social contract. From the transition from the state of nature to society, the general will and supreme power are meant to guarantee the fulfillment of human rights. In other words, it is creating an accessible environment and ensuring stability for that free environment for citizens within the social framework.

 

2.3 Maintaining the general will for guaranteeing human liberties

Through analyzing the necessity of the general will in the social contract, and the representativeness of the general will of the supreme power, Rousseau emphasized the need of these elements in maintaining the social contract and guaranteeing human liberties. The solutions proposed by Rousseau are found in Book III of The Social Contract.

By introducing the concept of division in the organs of state power, Rousseau argued that the government is the agency representing executive power: “[…] an intermediary between the subjects and the supreme authority, so that the two sides correspond to each other, enforce laws, preserve civil liberties as well as political freedoms.” (ROUSSEAU, 2018, p. 134). Thus, the government is an intermediary between the supreme authority (legislative power) and the people. Its mission is to enforce laws that preserve civil liberties and political liberties. The people in this agency are entrusted by the people to hold executive power but are not the people’s masters but just civil servants. These people must operate within the framework of the law and be under the constant supervision of the legislature with the highest power.

Rousseau mentions the possibility of conflicts between parts in that relational system. The potential here is that the government can act autocratically according to its own will and more robust than the will of the supreme authority because “[…] private will often work against the general will, so the government is also often inclined to contradict the supreme power of the people.” (ROUSSEAU, 2018, p. 176). Furthermore, the consequences of such alienation are “[…] nothing but potential death that destroys the human body.” (ROUSSEAU, 2018, p. 176).

Faced with the risk of abuse and usurping power mentioned above, Rousseau analyzed the need to dissolve the government in two cases. First, when the head of the government does not rule according to the law, it overwhelms the supreme authority, breaking the social contract. In this case, the people’s liberties, including civil rights and political freedoms, will be affected in the people’s front; only the boss and the dictator remain. Second, cabinet members share usurp power, so the government and the country are divided and disintegrated. Rousseau considered both state disintegration and government abuse to be anarchies.

To prevent the abuse of government power and maintain supremacy, Rousseau proposed that a general assembly be convened, including extraordinary and periodic groups, which must be extraordinary meetings when things need to be discussed that have not been foreseen. There must be regular meetings that no one is allowed to postpone or cancel. All people will return to the forum on the due date, convened by the law, without needing any form of summoning procedure (ROUSSEAU, 2018, p. 185).

The “superior” that Rousseau refers to in work is the people. When the all-people assembly took place, “[…] the head of government admits or is forced to acknowledge an existing superior.” (ROUSSEAU, 2018, p. 188). From there, the government can be dismissed if it does not comply with its responsibilities and duties. It can be said that the organization of all-people conferences demonstrates the active maintenance of the people’s standard will, through which they can exercise their political freedoms but also ensure their civil liberties happen naturally.

 

3 Some evaluations of Rousseau’s concept

Rousseau’s The Social Contract can be seen as a call for freedom – freedom from the enslavement of feudalism. Like Montesquieu’s The Spirit of the Laws (BOK, 2014), The Social Contract is considered one of the essential works in the French Enlightenment. Through the research, we draw some values in Rousseau’s concept of freedom and equality as follows.

First, Rousseau and other French Enlightenment thinkers’ contribution is in the idea of promoting freedom and equality. They affirm that freedom and equality are innate, sacred, inviolable, universal, and eternal. Thanks to these affirmations, the movement around the world toward freedom and equality has made great efforts and developed. Many declarations of independence and human rights were born, such as the United States Declaration of Independence, “the French Declaration of the Rights of Man and of the Citizen” in 1789 (JANIS, 1992; LUDWIKOWSKI, 1990), and the Proclamation of Independence of the Democratic Republic of Vietnam in 1945. President Ho Chi Minh quoted the American Declaration of Independence: We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that their Creator endows them with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness.(HALL, 1923). The quote can also be found in the French Declaration of the Rights of Man and the Citizen of 1789: “Men are born and remain free and equal in rights” (DUIKER; SPIELVOGEL, 2016, p. 525; WARMAN, 2016). This is the most profound humanistic meaning of Rousseau’s concept of freedom and equality.

Second, the state results from an agreement between people to ensure natural human rights, such as the right to live and pursue happiness, freedom, and equality. This, at the same time, rejected the entire ideology of feudalism that relied on theocracy to pacify and enslave the masses. The state has to protect these fundamental rights. Hence, building a regime in which state power must belong to the people is necessary.

Third, Rousseau’s concept of freedom and equality in civil society associated with the law is a very progressive thought. When he analyzed the advantages and drawbacks of moving from natural freedom to civil liberties, these ones are spiritual freedoms, and only they can turn people into their true masters. Once a man is stimulated by instinctive desire, he is in a state of slavery. On the other hand, when he obeys the law he ascribes to himself, he obtains freedom. From this point of view, it can be considered that this is the seed of the later Marx and Engels’ views, considering freedom as an action based on an awareness of necessity.

Fourth, Rousseau gave ideas on the possibility of revolution and argued for the right of the masses to overthrow the government when it became corrupt, violated human rights, and abolished the social contract. This thought encouraged and sparked the success of the bourgeois revolutions during this period.

It could not go beyond the framework of his time; however, Rousseau’s political thought in general and his thoughts on freedom in particular still had limitations.

First, the thought of the social contract has not found the true root of the state and law because he thinks that it is only the result of social agreement. It is necessary to consider the basis of economic relations and production relations. In addition, the ideas of the standard will, direct democracy, and unquestioning belief in legislative power lack concreteness, practicability, and even utopia.

Second, the absolutized public will is also a limitation. Rousseau demanded that people give up their natural freedom, transfer it to the state, and submit to the general will to protect individual liberty. Although the general will is the ultimate “guideline” for all thought actions, it is represented by specific people. There cannot be a completely “just” and “righteous” quality in human beings, so it must be admitted that there is still a particular will in it. This includes the risk of abuse of power if the lack of a mechanism to control power and the lack of institutions lead to the inability to guarantee citizens’ human rights and freedoms in that state.

Third, Rousseau absolutized the idea of direct democracy and all citizens’ roles in passing laws (LUND, 2003). For the full implementation of the general will to be possible, a perfect democracy without representation is required.

Fourth, Rousseau considers private property to be the cause of social inequality, but he does not oppose private property but acknowledges the necessity. Furthermore, in favor of natural rights, especially human civil liberties, Rousseau was against abolishing private property. Advocating egalitarianism, he defended small property against large property owners, especially feudal rulers. Rousseau wished to prevent the consequences of private property and considered private property inevitable in society. Therefore, it can be seen that in his views, sometimes there are contradictions: on the one hand, affirming the necessity and, on the other hand, negating the very argument.

 

Final comments

Jean Jacques Rousseau’s work The Social Contract was born with an enlightening meaning on building civil society, paving the way for French social thinking toward the excellent bourgeois revolution. Rousseau’s central ideas are about freedom and equality throughout the work, with profound influence and great historical value. This is shown through the solid and widespread development of the French Enlightenment movement, which became the theoretical banner for the success of the French bourgeois revolution in 1789.

Rousseau’s conception of freedom and equality encourages the contemporary anti-feudal struggle movement when this regime exhibits tyranny oppression to the extreme and capitalism is strong enough to replace the contemporary polity. Until now, his conception of freedom still has theoretical value; many current works have been being studied his concept of freedom, thereby deepening human knowledge and reasoning. Therefore, in general, Rousseau’s conception of freedom and the ideas of liberty of the Enlightenment period fulfilled its historical task and affected society and people today.

 

O conceito de liberdade e igualdade de Jean Jacques Rousseau em O contrato social

Resumo: Uma das características comuns dos primeiros filósofos modernos da Europa Ocidental é a ênfase na liberdade e na igualdade. Os filósofos desse período buscavam respostas para “o que é liberdade e igualdade?” e transformaram a liberdade e a igualdade em direitos humanos fundamentais. De John Locke a Montesquieu e Jean Jacques Rousseau, todos consideram a liberdade e a igualdade como direitos naturais do ser humano. O conceito de liberdade e igualdade de Rousseau é refletido em O Contrato Social. No início desse trabalho, ele comentou, com uma famosa frase de abertura: “O homem nasce livre, mas está em toda parte acorrentado.” Esse é o argumento fundamental para dar uma visão única de liberdade e igualdade. Dentro do escopo do artigo, o autor se concentra em analisar seus pontos de vista sobre liberdade e igualdade, em muitos aspectos diferentes – liberdade e igualdade, no estado de natureza, liberdade e igualdade, na sociedade civil, e como alcançar a liberdade e a igualdade – apresentando, assim, os valores e as limitações de seus pontos de vista sobre liberdade e igualdade.

 

Palavras-chave: Sociedade civil. Igualdade. Liberdade. Rousseau. Contrato Social. Estado de natureza.

 

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Received: 10/03/2022

Approved: 24/08/2022



[1] Docente no Departamento de Filosofia e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Marília, SP – Brasil e Líder do Grupo de Estudos em Filosofia da Informação, da Mente e Epistemologia – GEFIME (CNPq/UNESP). Editor responsável da Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da UNESP. Pesquisador CNPq/Pq-2. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5704-5328. E-mail: marcos.a.alves@unesp.br.

[2] Professor do PPG de Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, RS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8659-3921; abfaria1@ucs.br.

[3] Embora Levinas tenha escrito, em janeiro de 1987, no prefácio à edição alemã de seu Totalité et infini. que “[...] o livro também reivindica no pensamento contemporâneo uma fidelidade à obra renovadora de Henri Bergson que notadamente tornou possível muitas das posições essenciais dos mestres da fenomenologia: na noção de duração, ele liberou o tempo de sua obediência à astronomia, o pensamento de seu apego ao espaço e ao sólido, a seus prolongamentos tecnológicos e até mesmo a seu exclusivismo teorético.” (LEVINAS, 2000, p. I). Todas as traduções são de minha responsabilidade.

[4] Dois trabalhos aqui precisam ser citados: TROTIGNON, Pierre. Autre voie, même voix: Levinas et Bergson. In: L’Herne, 60: Emmanuel Levinas. Paris: Editions de l’Herne, 1991. p. 287-293; VIEILLARD-BARON, Jean-Louis. Levinas et Bergson. Revue philosophique de La France et de l’étranger. v. 4, n. 135, p. 455-478, 2010. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-philosophique-2010-4-page-455.htm. Acesso em: 13 maio de 2021.

[5] Essa opinião quem desenvolve é Frédéric Worms, em suas audioaulas publicadas no Youtube: Henri Bergson expliqué par Frédéric Worms. Disponível em: https://www.fremeaux.com/fr/4706-henri-bergson-explique-par-frederic-worms-3561302541624-fa5416.html. Acesso em: 9 set. 2021.

[6] Ver Derrida (2011, p. 111-223).

[7] Em Autrement qu’être, a subjetivação ética é um movimento de desinteressamento, mas isso ocorre em outro registro, que é o da crítica levinasiana à ontologia. O desinteresse, em Levinas, é sem dúvida uma atitude de alma aberta, no caso, uma transcendência. E quando Levinas alude a obrigação, é também em outro registro, que não é de moral fechada, não havendo qualquer prescrição ou normativa. Levinas, ao tratar de ética, está todo o tempo no plano da abertura. Esse é um ponto muito importante: a ética levinasiana não é uma moral, como é a obrigação fechada em Bergson; por outro lado, Bergson descreve a experiência mística como moral aberta; se quisermos considerar uma moral, em Levinas, devemos sem dúvida entendê-la como abertura, não pressão, mas aspiração, enfim, transcendência, outramente que ser. Ver LEVINAS, E. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Paris: Kluwer Academic, 2001. p. 13-39.

[8] Ver BERGSON, Henri. Les deux sources de la morale et de la religion. Édition critique dirigée par Frédéric Worms. Paris: PUF, 2013a. p. 85-96 (Doravante DS). Precisamente, a crítica do intelectualismo no final do primeiro capítulo de Duas fontes.

[9] O vitalismo de Bergson é um caminho distinto e crítico das abordagens intelectualistas que, ao desconsiderarem a diferença de natureza na qual se constitui a moral, essa mistura entre pressão e aspiração, tende a centralizar o papel da inteligência que acaba por confundir essas duas matérias morais, em termos de categorias da razão pura: “As duas forças, exercendo-se em regiões diferentes da alma, projetam-se sobre o plano intermediário, que é o da inteligência. Elas serão daí por diante substituídas por suas projeções. Estas se mesclam e se interpenetram. Disso resulta uma transposição das ordens e dos chamados em termos de razão pura.” (DS, p. 85-86).

[10] A divisão entre invertebrados e vertebrados.

[11] “Uma experiência sistematicamente falsa, firmando-se diante da inteligência, poderá interrompê-la no momento em que ela iria muito longe nas consequências que ela tira da experiência verdadeira. Assim teria então procedido a natureza. Nessas condições, não haveria surpresa em perceber que a inteligência, uma vez formada, tenha sido invadida pela superstição, que um ser essencialmente inteligente é naturalmente supersticioso, e que somente os seres inteligentes sejam supersticiosos.” (DS, p. 113).

[12] A análise que Bergson faz da sorte, utilizando a figura do jogador, é como uma gênese da nossa disposição religiosa. A sorte preenche o intervalo de insegurança que o lance de dados implica, todavia, ela impõe que se creia nela, ela estabelece a crença. “A sorte não é uma pessoa completa; é preciso mais que isso para fazer uma divindade. Mas ela tem dela certos elementos, precisamente o suficiente para que confieis nela.” (DS, p. 147).

[13] “O impulso vital é otimista. Todas as representações religiosas que saem aqui diretamente dele poderiam, pois, definir-se da mesma maneira: são reações defensivas da natureza contra a representação, pela inteligência, de uma margem desencorajante de imprevisto entre a iniciativa tomada e o efeito desejado.” (DS, p. 146).

[14] Por aqui, chegamos com Bergson a uma questão fundamental, a qual é objeto das análises biopolíticas de Michel Foucault, particularmente no curso Em defesa da sociedade. Na opinião de Foucault, defender a sociedade significa ter que inventar as razões da guerra, explícita ou implícita. A soberania, na biopolítica, está congenitamente articulada à guerra, e entender a política seria compreender como se deve continuar em estado de guerra, sem que se precise declará-la. E aqui também chegamos a um ponto decisivo da argumentação levinasiana, exatamente o tema que abre o prefácio de Totalité et infini, onde aparecem duas ideias bem conhecidas dos leitores de Levinas: a que afirma ser a política a arte de prever e ganhar a guerra e a de que a política se opõe à moral, assim como a filosofia se opõe à ingenuidade (cf. LEVINAS, 2000, p. 5; FOUCAULT, 2010. p. 3-19).

[15] É o caso do nazista Eichmann, o qual afirmava, em seu julgamento, que apenas tinha cumprido ordens, ou seja, ele não estava à altura de merecer aquela responsabilidade. Conforme lemos no capítulo VIII do famoso relato arendtiano, intitulado “Deveres de um cidadão respeitador das leis”: “Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia às ordens, ele também obedecia à lei. Eichmann tinha uma vaga noção de que isso podia ser uma importante distinção, mas nem a defesa nem os juízes jamais insistiram com ele sobre isso.” (ARENDT, 1999, p. 152).

[16] Parte capital do terceiro capítulo de Duas fontes. Ver DS (p. 240-255), onde se leem as análises de Bergson sobre o misticismo cristão, o qual ele considera a experiência mística mais completa. Eis a opinião de Frédéric Worms sobre esse texto crucial de Duas fontes: “Nós tocamos, com o terceiro capítulo das Duas Fontes da Moral e da Religião, não somente em um novo foco central da filosofia de Bergson, mas também no ápice de sua arte de escrever.” (WORMS, 2010, p. 328).

[17] O elogio de Bergson ao cristianismo tem a ver com a simplicidade da fórmula Deus é amor: “Deus é amor, e ele é objeto de amor: todo o aporte do misticismo está aí. Desse duplo amor o misticismo nunca vai parar de falar. Sua descrição é interminável porque a coisa a descrever é inexprimível. Mas o que ela diz claramente, é que o amor divino não é qualquer coisa de Deus: é Deus ele mesmo.” (DS, p. 267).

[18] Ver DS (p. 268), onde Bergson comenta sobre o trabalho de composição de uma sinfonia, no caso, de Beethoven, bem como do tipo de emoção que ela suscita: “Uma emoção desse tipo se assemelha sem dúvida, ainda que de muito longe, ao sublime amor que é para o místico a essência mesma de Deus.”

[19] Ocorre o mesmo com o conceito de misticismo. Bergson inicia o terceiro capítulo de Duas fontes com uma longa exposição que enfatiza a diferença de natureza entre religião e misticismo, e questiona o uso da mesma palavra (religião) para indicar situações que derivam de fontes distintas: a religião é infraintelectual e o misticismo é supraintelectual. Da mesma forma, o fechado é instintivo e o aberto tem natureza intuitiva. Os conceitos de religião e sociedade nivelam por baixo situações que se distinguem por natureza.

[20] “Tudo se passa como se o que permanecia indeterminado na intuição filosófica recebesse uma determinação de um novo gênero na intuição mística – como se a ‘probabilidade’ propriamente filosófica se prolongasse em certeza mística.” (DELEUZE, 2012, p. 99).

[21] Assim como é preciso sempre recordar a importância da biologia para o vitalismo: a obrigação responde a uma demanda da natureza, é uma pressão infraintelectual que produzimos para atender a uma demanda da vida. “Forneçamos, pois, à palavra biologia o sentido muito compreensivo que deveria ter, que tomará talvez um dia, e digamos para concluir que toda moral, pressão ou aspiração, é de essência biológica.” (DS, p. 103).

[22] “Seria talvez a substituição a condição mais original e paradoxal da liberdade: ´avoir l’autre dans sa peau’ – original porque anterior à cultura, ao território e à gramática, portanto livre para inventar a cultura, o território e a gramática; paradoxal porque ninguém escolhe ser refém, e a possibilidade de recusar uma tal eleição ainda não nasceu, vai ser preciso inventar a cultura, o território e a gramática.” (FARIAS, 2018, p. 57).

[23] “Mas os sujeitos da responsabilidade não se somam. A responsabilidade não é um festim do qual cada um, para seu estômago moral, só receberia no final algumas migalhas, um pouco de poeira ou lascas. Ela é indivisível, está nesse ‘responder presente’ que cada um deve repetir para si mesmo. É uma intensidade moral.” (GROS, 2018, p. 194).

[24] E aqui também cabe refletir sobre o papel exercido pelo talmude, na articulação da ética levinasiana. Sim, Levinas permanece um fenomenólogo, mas isso seria suficiente para compreender sua filosofia? Levinas é um dos grandes continuadores do movimento fenomenológico, e o fato de sua obra extrapolar a fenomenologia é sinal do grande respeito que esse singular e radical pensador da ética sempre teve para com seu mestre Husserl.

[25] Embora não seja minha intenção remarcar a diferença entre os filósofos ou a crítica que Levinas endereça a Bergson, cabe lembrar alguns lugares onde podemos verificar pontos críticos importantes: Le temps et l’autre e Dieu, la mort et le temps. A questão mais sensível que causa estranhamento em Levinas parece ser a relação com a morte. Para Levinas, o bergsonismo é uma filosofia onde a morte não tem importância. Ver, a esse respeito, Le temps et l’autre (LEVINAS, 2004, p. 62-64, p. 68-76) e Dieu, la mort et le temps (LEVINAS, 2002, p. 64-66, p. 80, p. 114), onde a questão da morte é o centro da discussão.

[26] “Ser sem ser assassino. Podemos nos desvencilhar dessa responsabilidade, negar o lugar onde ela me incumbe, buscar a salvação do anacoreta. Podemos escolher a utopia. Mas, ao contrário, não se pode fugir, em nome do espírito, das condições onde sua obra ganha seu sentido, permanecer aqui embaixo. E isso quer dizer – escolher a ação ética.” (LEVINAS, 1997, p. 145).

[27] Doutora em Filosofia pela PUC-Rio. Atualmente, é Professora Agregada do Departamento de Filosofia na mesma universidade. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7968-9063. E-mail: csalgadinho92@hotmail.com.

[28] Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais e pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne. Atualmente, é residente pós-doutoral (PNPD/CAPES) no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Minas Gerais. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8304-4732. E-mail: ffvinicius@yahoo.com.br.

[29] Publicado originalmente em 1689. A segunda edição da obra, revisada e com acréscimos feitos por Locke, data de 1694. Doravante, apenas Ensaio.

[30] Essa é a crítica que parte de racionalistas como, por exemplo, Henry Lee (1644-1713), John Sergeant (1621-1707/1710) e Leibniz. Ver John Yolton (1968, p. 72-86). A obra de Yolton, John Locke and the Way of Ideas (1968), é uma leitura fundamental para se conhecer a história da recepção do Ensaio, no fim do século XVII e início do século XVIII. Em nossa introdução, sempre que pertinente, remeteremos o leitor ou leitora às discussões apresentadas nessa obra.

[31] Além de Henry Lee e John Sergeant, outro a acusar Locke de sensacionalista/idealista é John Witty (1682-1712). Ver Yolton (1968, p. 86 e p. 99).

[32] Muitos são os autores que leram o Ensaio como uma obra cética: Peter Browne (1636-1735), Timothy Goodwin (1670-1729), John Milner (1628-1702), Georges Hickes (1642-1715), Jonh Norris (1657-1711), Samuel Bond (1649-1737) e o próprio Stillingfleet são exemplos desses leitores que leram Locke como cético, a partir do contato com o Ensaio. Ver Yolton (1968, p. 87-92 e 99-102).

[33] O deísmo do final do século XVII e início do século XVIII, de modo conciso, é uma tentativa de filósofos do período de racionalizar alguns aspectos da religião cristã. Sobre a associação entre Toland e Locke, sugerimos a leitura de W. M. Spellman (1997, p. 29-30). Anthony Collins (1676-1729), um dos mais ilustres deístas do período e amigo íntimo de Locke, também reconhece o seu débito para com a filosofia do Ensaio. Indicamos, para a relação entre Locke e Collins, a leitura de Robert B. Luehrs (1977, p. 64).

[34] Stuart Brown (1996, p. 224) entende o já citado George Hickes como um dos leitores que compreendem Locke como um espinosista. A seu ver, Carroll teria sido influenciado justamente por essa denúncia de Hickes.

[35] Locke publica, no ano de 1695, um de seus mais importantes escritos teológicos, The Reasonableness of Christianity. Como o próprio título da obra indica, o filósofo pretende apresentar uma visão mais racional de certos aspectos da religião cristã, o que certamente contribui para que seu pensamento seja associado ao de Toland e de Espinosa e, portanto, seja considerado como uma ameaça à religião.

[36] Sobre a atenção que a teoria lockiana da substância registra, nos primeiros anos da recepção do Ensaio, sugerimos a leitura de Edwin McCann (2001, p. 91-95), E. J. Lowe (2005, p. 60) e de Nicholas Jolley (2015, p. 50).

[37] Por exemplo: Richard Aaron (1955, p. 175), Jonathan Bennett (1971, p. 60), J. D. Mabbott (1973, p. 30-32), M. R. Ayer (1975, p. 09), Martha Bolton (1976, p. 488), Daniel Flage (1981, p. 142-149), Margaret Atherton (1984, p. 413), David Armstrong (1989, p. 61), Gábor Forrai (2010, p. 27-28), Matthew Stuart (2016, p. 256-258) e Han-Kyul Kim (2019, p. 116-117).

[38] Ver Jonathan Bennett (1971, p. 83-88) e Michael Ayers (1975).

[39] Ver, por exemplo, Martha Bolton (1976).

[40] Ver, por exemplo, Margaret Atherton (1984).

[41] Gostaríamos de observar que estamos conscientes de que uma das formulações mais sistemáticas de Locke de sua teoria da substância se encontra na primeira de suas cartas a Edward Stillingfleet (1635-1699), Bispo de Worcester, um dos mais ferrenhos críticos da filosofia do Ensaio. No presente artigo, no entanto, não pretendemos considerar essa correspondência. Julgamos que, devido à profundidade e complexidade da exposição de sua teoria da substância, na resposta a Stillingfleet, essa discussão merece um tratamento à parte.

[42] Publicado originalmente em 1710. Berkeley, com efeito, argumenta em favor da compreensão de que os objetos externos são apenas coleções de ideias sensíveis simples, de modo que o espírito humano não tem acesso a nenhuma ideia de suporte ou substrato na qual tais ideias sensíveis existiriam (1973, p. 20).

[43] Publicado originalmente em 1739-1740. Hume desenvolve a teoria berkeliana da substância corporal e a aplica à compreensão do próprio espírito. A seu ver (2001, p. 40), uma substância mental não é senão uma coleção de ideias unidas pela imaginação. Ademais, para Hume (2001, p. 265), um olhar atento para as percepções – impressões e ideias – não é capaz de revelar a existência de suporte para elas.

[44] Para uma compreensão da distinção entre uma “Teoria do substrato”, como a de Locke, e uma “Teoria do feixe” como as de Berkeley e Hume, sugiro a leitura do trabalho do filósofo Theodore Sider (2006, p. 387).

[45] Enfatiza Locke (1999b, p. 389, grifo nosso): “Têm sempre uma ‘noção confusa de algo a que pertencem e no qual subsistem’ ; e, por isso, quando se fala de qualquer tipo de substância, diz-se que é uma coisa que possui estas ou aquelas qualidades.”

[46] Berkeley explicita (1973, p. 24): “Mas, tanto quanto posso julgar, as palavras vontade, ‘alma’, ‘espírito’ não significam idéias diferentes nem, em verdade, idéia alguma, senão algo diferente das idéias e que sendo agente não pode ser semelhante a ou representado por uma idéia qualquer. Embora deva dizer-se ao mesmo tempo que temos alguma ‘noção’ de alma, espírito, e das operações do espírito, como querer, amar, odiar; assim como sabemos ou compreendemos o sentido destas palavras.”

[47] No início do segundo livro do Ensaio, com efeito, Locke (1999b, p. 106-107) observa: “[...] são as observações que fazemos sobre os objectos exteriores e sensíveis ou sobre as operações internas da nossa mente, de que nos apercebemos e sobre as quais nós próprios reflectimos, que fornecem à nossa mente a matéria de todos os seus pensamentos. Estas são as duas fontes de conhecimento, de onde brotam todas as ideias que temos ou podemos naturalmente ter.” No próprio contexto da discussão da ideia de substância, no capítulo XXIII do segundo livro, ele (1999b, p. 410) reitera essa compreensão: “[...] as nossas faculdades não irão para além destas ideias [simples] que são recebidas a partir das fontes adequadas [sensação/reflexão].”

[48] Mabbott destaca (1973, p. 30): “Locke de fato concorda com Sttilingfleet de que a ideia de substância ‘está’ fundada sobre a razão, isto é, na consciência da conexão necessária e não sobre o costume.”. Essa seria uma “necessidade lógica” de que o espírito dependeria para pensar a substância.

[49] Bennett não é totalmente claro sobre como compreender a origem da ideia de SPG. Contudo, o intérprete (1971, p. 59-60) parece sugerir que essa ideia se origina de uma análise da linguagem: “[...] portanto, se alguma declaração existencial ou ‘sujeito objeto’ é verdadeira, então há dois tipos de item – substâncias e propriedades ou qualidades. Os primeiros possuem o privilégio de carregar ou suportar as segundas sem serem, eles próprios, suportados da mesma maneira por alguma coisa. Implicamos a existência de ‘substâncias’ neste sentido toda vez que implicamos que alguma propriedade é instanciada.” E Bennett (1971, p. 60) continua: “[...] pode-se falar do ouro como um tipo de substância, ou reclamar da substância pegajosa no chão da cozinha, sem estar comprometido com esta teoria sobre a análise do que se está dizendo.”

[50] Ayer (1975, p. 11) observa: “[...] outras passagens tornam bastante claro que Locke acredita que a ideia de substância é tal que chegamos a ela racionalmente, e que não podemos, razoavelmente, evitar. A palavra ‘acostumar’ parece referir-se não ao processo pelo qual adquirimos e aplicamos pela primeira vez a ideia, mas à condição em que estamos a partir do momento em que a usamos de forma habitual.”

[51] Kim (2019, p. 119), inicialmente, parece estar inclinado a negar que a origem dessa ideia seja racional, ao recusar a ideia de que a teoria lockiana pudesse ser aproximada da de Descartes. Contudo, essa impressão inicial se desfaz, quando verificamos que, a seu ver, Locke a explicaria a partir de um “processo especial de abstração”. Há uma reinterpretação da noção de “abstração”, para explicar em que medida um substrato poderia ser uma “entidade abstrata”, de acordo com Kim (2019, p. 119, grifo nosso): “[...] por ‘abstrato’, aqui, no entanto, Locke invoca uma noção mais moderna de abstractividade [abstractness] – a saber, a de uma ‘entidade funcional’ [destaque nosso], que é definida em termos do seu ‘papel por si só, sem referência à natureza específica daquilo que, efetivamente, desempenha esse papel’ .”

[52] Obra publicada originalmente em 1970.

[53] Aaron (1955, p. 175) argumenta: “[...] como, então, ela [a ideia de substância] é derivada no caso da ideia de uma substância particular? Deveríamos dizer que é algo conhecido racionalmente, de tal modo que a relação substância-atributo é apreendida logicamente? Mas isto é algo que Locke nega. A substância é um não-sei-o-quê, logo, não é possível discernir racionalmente a relação entre as qualidades observáveis e a substância, que é incognoscível.”

[54] Apesar de não ser sistemática sobre isso, a intérprete (1984, p. 414-415) parece pensar defender uma origem empírica para a ideia de SPG: “[...] sabemos que deve haver substância porque temos experiências sensíveis ou ideias de qualidades sensíveis simples que não se podem trazer a si mesmas à existência, não podem subsistir por si mesmas. As ideias que temos convencem-nos de que deve haver algo com o poder de nos afetar, provocando mudanças em nossas ideias.”

[55] Hume (2001, p. 265) argumenta: “[...] se tivéssemos uma ideia de substância de nossas mentes, teríamos que ter dela também uma impressão – o que é muito difícil, senão impossível, de conceber. Pois como poderia uma impressão representar uma substância, senão assemelhando-se a ela? Pois como poderia uma impressão se assemelhar a uma substância, já que, segundo essa filosofia, ela não é uma substância, e não possui nenhuma das qualidades ou características peculiares de uma substância.”

[56] Hume (2001, p. 265-266) frisa que o apelo à tradicional definição de substância – uma “substância” é aquilo que existe por si mesmo – não auxilia a escapar da dificuldade de discutir a questão da materialidade ou imaterialidade da alma, uma vez que essa definição é aplicável a tudo o que pode ser percebido. Em outras palavras, o conceito tradicional de substância pode ser aplicado a todas as percepções, de modo que a distinção entre substância e percepção não seria inteligível. O raciocínio humiano baseia-se sobre dois princípios: “tudo o que é concebido claramente pode existir”; “tudo o que é distinguível é separável pela imaginação”.

[57] Locke (1999b, p. 423) explica: “[...] o conhecimento de uma acção ou de uma ideia simples é muitas vezes suficiente para me oferecer uma noção clara de uma relação, mas para se conhecer um ser concreto é necessário um conjunto de várias ideias precisas.” E, adiante (1999b, p. 423-424): “[...] ‘portanto, as ideias de relações são capazes, pelo menos, de ser mais perfeitas e distintas nas nossas mentes do que as ideias de substâncias’. Porque normalmente é difícil conhecer todas as ideias simples que realmente se encontram em qualquer substância, mas, para a maioria, é bastante fácil conhecer as ideias simples que formam qualquer relação em que se pense, ou para a qual se possua um nome, isto é, ao comparar dois homens em relação a um pai comum é muito fácil formar as ideias de irmãos sem se ter, contudo, a ideia perfeita de um homem.”

[58] Escreve Locke (1999b, p. 424): “[...] visto que palavras relativas significativas, bem como outras, representando apenas ideias e aquelas ideias sendo todas ou simples, ou compostas de ideias simples, para conhecer a ideia precisa que o termo relativo representa, é suficiente ter uma concepção clara do que é a base de uma relação, o que pode fazer-se sem ter uma noção clara e perfeita da coisa à qual ela é atribuída.”

[59] De acordo com Locke (1999b, p. 387-388), “[...] se a alguém se perguntasse a que ideia a cor ou o peso adere, ele só teria que dizer que aderia às suas componentes sólidas ampliadas. E se lhe fosse perguntado a que se liga essa solidez e extensão, ele não estaria em muito melhor situação do que o indiano mencionado anteriormente, que referia que o mundo era suportado por um grande elefante, e ao perguntarem-lhe em que é que o elefante descansava, ele respondeu: sobre uma grande tartaruga. Mas ao ser uma vez mais pressionado para se saber o que sustentava a tartaruga com tão grande carapaça, ele respondeu que era ‘qualquer coisa, não sabia o quê’.”

[60] Para Locke (1999b, p. 388, grifo nosso), “[...] significa também que a coisa que julgam conhecer e sobre a qual falam é algo sobre que não têm a mínima ideia e, portanto, ‘ignoram-na perfeitamente e estão às escuras em relação a ela’.”

[61] Locke (1999b, p. 390-391) observa: “[...] portanto, qualquer que seja a natureza secreta e abstracta da substância em geral, todas as ideias que tenhamos de tipos específicos e distintos de substâncias não são mais do que múltiplas combinações de ideias simples, coexistindo na ‘tal causa da sua união, embora desconhecida’, [destaque nosso] que faz com que o todo subsista em si.”

[62] Locke (1999b, p. 410-411) observa: “portanto, e em poucas palavras, a ideia que possuímos de espírito comparada com a ideia que temos de corpo apresenta-se da seguinte forma: a substância dos espíritos ‘é-nos desconhecida e a substância do corpo também nos é igualmente desconhecida’ [destaque nosso]”.

[63] Ressalta Locke (1999b, p. 401): “[...] pela ideia complexa de extensão, de forma, de cor e de quaisquer outras qualidades sensíveis, que é tudo o que sabemos do corpo, continuamos tão longe da ideia da substância do corpo como se não soubéssemos nada.” E, adiante (1999b, p. 410): “[...] portanto, somos tão incapazes de descobrir onde as ideias pertencentes ao corpo estão alojadas, como de o fazer em relação às ideias pertencentes ao espírito.”

[64] Não queremos sugerir que a compreensão das ideias de relação esteja livre de problemas. Por exemplo, em algumas ocasiões, Locke (1999b, p. 205) considera que uma ideia de relação é complexa: “[...] a última espécie de ideias complexas é a que chamamos ‘relação’, e que consiste na consideração e comparação de uma ideia com outra.” Em outros casos, no entanto, ele (1999b, p. 425) realça: todas as ideias de relação são ideias simples: “[...] todas as ideias que temos de relação são constituídas somente por ideias simples, tal como são as outras; e que todas elas - não importando o quanto parecem libertas e afastadas do sentido - terminam, por fim, em ideias simples.”

[65] Locke (1999b, p. 309) apresenta alguns exemplos de ideias que carregam consigo, nas relações mantidas entre elas, a ideia de poder: “As nossas ideias de extensão, duração e número não contêm em si uma relação secreta entre as suas componentes? A forma e o movimento têm mais visivelmente algo de relativo. E as qualidades sensíveis, como as cores e os cheiros, etc., o que são senão poderes de corpos diferentes, em relação à nossa percepção, etc.? E, se as considerarmos nas próprias coisas, não dependem elas do tamanho, da forma, da textura e do movimento das suas componentes? Todos possuem em si algum tipo de relação.”

[66] Locke (1999b, p. 311) explica esse fenômeno nos seguintes termos: “[...] só temos a ideia de ‘começo’ do movimento a partir da reflexão do que se passa em nós próprios; aí descobrimos, através da experiência, que apenas por o ter desejado ou por o ter pensado, podemos mover partes do nosso corpo, que antes estavam em repouso. Por isso, parece-me que temos apenas uma ideia pouco clara acerca do que é o ‘poder activo’ a partir da observação das acções dos corpos pelos nossos sentidos, uma vez que eles não nos oferecem qualquer ideia do poder de iniciar qualquer acção, seja movimento ou pensamento.”

[67] Segundo Locke (1999b, p. 307), “[...] sendo a mente diariamente informada pelos sentidos acerca da alteração dessas ideias simples que observa em coisas externas; e, apercebendo-se de como uma deixa de existir, e deixa de ser, e uma outra, que não existia antes, emerge.”

[68] Enfatiza Locke (1999b, p. 307): “[...] reflectindo, também, sobre o que se passa dentro de si, e observando a mudança constante das suas ideias, por vezes causada pela impressão que os objectos exteriores provocam nos sentidos, e noutras por determinação da própria escolha; e concluindo que, no futuro, a partir da constância do que observa, mudanças similares ocorrerão, do mesmo modo, em coisas semelhantes, levadas a cabo por agentes e caminhos iguais, por um lado, considera uma coisa a possibilidade de alguma das suas ideias simples mudar, e noutra a possibilidade de fazer essa mudança; aparece, assim, a ideia que denominamos de ‘poder’.”

[69] Publicada originalmente em 1764.

[70] Pesquisador visitante no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), São José dos Campos, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2844-3439. E-mail: cristianoccruz@yahoo.com.br.

[71] A teoria crítica de Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia (2013); Tecnologia, democracia e modernidade (2018); Entre a razão e a experiência (2019a); Tecnossistema: a vida social da razão (2019b); Construtivismo crítico: uma filosofia da tecnologia (2022).

[72] Os termos utilizados por Hui são epistemologia e episteme, sendo este último apropriado da reflexão de Foucault (HUI, 2017, p. 335). Contudo, quando defende a necessidade de se desenvolver também uma nova episteme, ele justifica isso, argumentando que esta “[...] vai além [da epistemologia], uma vez que também se refere à questão das formas de vida. Isso significa que será necessário transformar a própria tradição a fim de reapropriar a modernização tecnológica e constituir uma nova episteme. Essas nuances precisam ser destacadas com cautela, em vez de simplesmente procedermos pela subsunção do discurso a categorias claramente opostas e excludentes como direita e esquerda.” (HUI, 2020, p. 47). Como a concepção, enunciação e desenvolvimento de novas “formas de vida”, para além de novas epistemologias, em apoio a, e/ou emergentes de novos mundos (ou cosmologias), está presente igualmente em Santos (como, de resto, também na teoria decolonial), preferiu-se manter tal termo em lugar de “episteme”.

[73] Cf. nota 2.

[74] Disponível em: http://www.3margem.com.br/. Acesso em: 20 jun. 2022.

[75] REPOS – Rede de Engenharia Popular Oswaldo Sevá, criada em 2013 (FRAGA et al., 2020): Disponível em: https://repos.milharal.org/. Acesso em: 10 jan. 2022.

[76] Para mais detalhes sobre isso, ver Cruz (2021c).

[77] Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. Pesquisador do CNPq; atual coordenador do GT de Filosofia da Tecnologia e da Técnica, da ANPOF. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2362-0494. E-mail: jelson.oliveira2012@gmail.com.

[78] Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Filosofia na Universidade Federal do Piauí (PPGFIL/UFPI), Teresina, PI – Brasil. Professor do Curso de Licenciatura em Filosofia no Centro de Educação Aberta e a Distância da Universidade Federal do Piauí (CEAD/UFPI). Membro e pesquisador do GT Filosofia da Tecnologia e da Técnica da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3558-3747. E-mail: mauriciofernandes@ufpi.edu.br.

[79] Universidad de Buenos Aires (UBA) – Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas, Buenos Aires – Argentina. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1727-0547. E-mail: goncernadas@gmail.com.

[80] A modo de aclaración terminológica entre dos conceptos que comúnmente son tomados como sinónimos: la comunidad, noción que data de la Antigüedad (κοινωνία o koinonía, de koinos, esto es, lo que es común a varios) y que alude a una prioridad ontológica del todo por sobre las partes ha sido una noción escamoteada por los pensadores de la Edad Media, la Edad de la Razón y los del Iluminismo y que recién fue “redescubierta” en Alemania por Hegel y el resto de los intelectuales tardo-modernos (cfr. ALVARO, 2014, p. 13-24), quienes contrapusieron la comunidad (Gemeinschaft) como lo auténtico y original a la sociedad (Gesellschaft), es decir, lo inauténtico o lo derivado, refiriendo a las partes que son sumadas numéricamente para alcanzar la totalidad. Sobre esta diferencia entre la Gemeinschaft y la Gesellschaft, cfr. también Alvaro, Laleff Ilieff y Gros (2014-2015) y Schmitt (2014-2015).

[81] Precisamente, el español puede aludir a estos pares de antónimos a partir de la transliteración de “éschatos” (último) y de “skatós” (excremento) a nuestra lengua desde romanizaciones del griego antiguo (en lugar de haberse hispanizados del griego moderno), lo cual se complementa, obviamente, con el posfijo “logos”, que refiere a “estudio” o “examen”. Pequeño juego de palabras que nos permite nuestro idioma, que imbrica el estudio de las doctrinas referentes a la vida de ultratumba con la utilización de tópicos soeces vinculados al acto de descomer.

[82] Sol y ano también son metáforas, de entre las numerosas y recurrentes en la obra de Bataille, que aluden a figuras estructural y geométricamente similares como lo es el ojo, principal órgano a través del cual se adquiere conocimiento, y metáfora central, precisamente, de la novela de Bataille Historia del ojo (2016).

[83] “Homogeneidad significa la conmensurabilidad de los elementos y conciencia de dicha conmensurabilidad.” (BATAILLE, 2008f, p. 138).

[84] Blanchot periodiza al grupo de Contre-Attaque en el medio de una tríada precedida por la búsqueda de una comunidad por parte de Bataille, la cual la encuentra en los surrealistas, y seguida por Acéphale (1999, p. 38-39).

[85] “El término heterogéneo indica que se trata de elementos imposibles de asimilar.” (BATAILLE, 2008f, p. 144).

[86] Profesor Regular Adjunto de Sociología en la Universidad Nacional de Luján (UNLu), Luján – Argentina. Docente de grado y postgrado en las Facultades de Ciencias Sociales y Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires (UBA), Buenos Aires – Argentina. Investigador del Consejo de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) de Argentina. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4199-2478. E-mail: alprestifilippo@gmail.com.

[87] Universidad de Buenos Aires, Instituto de Investigaciones Gino Germani, CONICET. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9058-6580. E-mail: ric.lal.ilie@gmail.com.

[88] Profesor e investigador asociado de la Universidad Científica del Sur, Lima – Perú; profesor investigador de la Universidad Tecnológica del Perú, Lima – Perú. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9059-5401. E-mail: yayalac@cientifica.edu.pe; c24512@utp.edu.pe.

[89] “Dios es, en un sentido, el otro por excelencia [l’autre par excellence], el otro en tanto que otro, lo absolutamente otro [l’absolument autre]” (LÉVINAS, 1968, p. 36; la traducción es nuestra).

[90] Recordemos que el yo puro o trascendental se obtiene como consecuencia de la reducción fenomenológica que pone entre paréntesis la actitud natural, confróntese al respecto Hua III/1, 61-71, 106-107; HUSSERL, 2013, p. 141-151, 190-191. El yo puro resulta estar constituido por “[…] vivencias intencionales que ‘nosotros’ en cada caso hemos ‘ejecutado’” (Hua IV, 97; HUSSERL, 2005, p. 133), cogitaciones allende una corporalidad accesibles en una reflexión fenomenológica (Hua IV, §23), mientras que el sujeto anímico se diferencia de él en tanto resulta accesible a la actitud naturalista (véase al respecto Hua IV, §30, p. 120-124; HUSSERL, 2005, p. 159-164). Ya en este mundo prepredicativo se vislumbra cierta intersubjetividad: “Este mundo prepredicativo e irreflexivo (que Husserl trata en detalle en Formale und transzendentale Logik), al que pertenece el yo, también se vive con otras personas, es decir, intersubjetivamente. Los otros se me aparecen como yo, tal como estoy constituido, y juntos configuramos ‘[…] una realidad espacio-temporal objetiva, como el entorno que existe para todos nosotros’.” (ROMERO CONTRERAS, 2015; traducción nuestra). Por otro lado, ya en Hua IV, 27-29, Husserl distingue entre naturaleza material y naturaleza animada para delimitar el campo de sendas investigaciones. Es en este último ámbito, la naturaleza animada (animalischen Natur), la que constituye propiamente lo anímico (abordable no solo desde una actitud naturalista, sino también desde una actitud personalista) y en donde emerge, como se verá en este artículo, la cuestión de la animalidad.

[91] Sin embargo, la actitud naturalista (contrapuesta a la actitud personalista) no es lo mismo que la “actitud natural” (natürlichen Einstellung). Husserl contrapone esta última a la actitud fenomenológica. Véase al respecto Hua III/1, 60-66; HUSSERL, 2013, p. 149-146 y LUFT, 1998, p. 153-170. Por lo demás, cabe precisar que existe una jerarquía entre la actitud personalista y la naturalista: “[…] la actitud naturalista se subordina a la personalista, y adquiere cierta independencia mediante una abstracción.” (Hua IV, 382; HUSSERL, 2005, p. 229).

[92] Cabe precisar que las traducciones a menudo no diferencian ambos términos alemanes. Verbigracia, la versión castellana de Antonio Zirión de Ideas II no establece tal distinción, traduciendo erradamente tanto Animalien como Tiere por animales: El título del parágrafo 43 “Gegebenheit fremder Animalien” es vertido como “La dación de animales ajenos” (HUSSERL, 2005, p. 203) y “Sodann auch die Identität der Natur für alle Menschen und Tiere.” (Hua IV, 162) es traducido como “Luego también la identidad de naturaleza para todos los hombres y animales.” (HUSSERL, 2005, p. 203).

[93] En tal sentido, un animal como un gato (Katze) tiene, según Husserl, un “[…] cuerpo sensitivo y animado (empfindenden und beseelten Leib)” (Hua IV, 175; HUSSERL, 2005, p. 221), de suerte que no es una simple cosa, sino que “[…] más allá de las contexturas meramente físicas tiene también, persistentemente, contexturas estesiológicas y anímicas (aesthesiologische und seelische).” (Hua IV, 176; HUSSERL, 2005, p. 222).

[94] Hombre y humano no son, en rigor, sinónimos. Los usamos como intercambiables en este texto solo por una cuestión estilística, dejando claro que asumir al hombre como sujeto universal (elidiendo, por tanto, otros géneros y condiciones político-sociales) está lejos de las consideraciones conceptuales del autor del artículo.

[95] El mundo de la vida (Lebenswelt) en Husserl (Hua IV; HUSSERL, 2005) guarda una gran afinidad con la vida fáctica (faktische Leben) y existencial de Heidegger (GA 2; HEIDEGGER, 2012): en ambos no se trata de una conciencia teorética contrapuesta a cosas (Dinge), sino de una persona (Person) o de un Dasein inmerso en una comunidad (Gemeinschaft) o una coexistencia (Mitdasein) y puesto en contacto con objetos de uso (Gebrauchsobjekte) o útiles (Zeuge). Heidegger, consciente de ello, señala en Sein und Zeit: “Aunque decididamente más radical y diáfana, la interpretación fenomenológica de la personalidad tampoco llega hasta la dimensión de la pregunta por el ser del Dasein. A pesar de todas sus diferencias de planteamiento, de procedimiento y de orientación en su concepción del mundo, las interpretaciones de la personalidad en Husserl y Scheler concuerdan en lo negativo. Ya ni siquiera plantean la pregunta acerca de lo que es ‘ser‐persona’.” (GA 2, 47; HEIDEGGER, 2012, p. 68). En esas mismas líneas Heidegger coloca una nota a pie de página donde hace referencia a Ideen 2, todavía inéditas para la época de la publicación de Sein und Zeit, con la intención de desmarcarse de su “finalidad” y “resultados” del análisis husserliano. Sobre el sentido de la correspondencia y afinidad entre Husserl y Heidegger respecto al “mundo de la vida”, véase Thurnher, 2004 y Herrera, 2010.

[96] Dilthey, a quien Husserl le reconoce el mérito de iniciar el estudio del mundo espiritual (Hua IV, 172; HUSSERL, 2005, p. 217), generaliza el uso del término Geisteswissenschaften: “Me adhiero a la terminología de aquellos pensadores que denominan a esta otra mitad del globus intellectualis ‘ciencias del espíritu’. Por un lado, esta designación se ha hecho bastante general y comprensible gracias también en gran parte a la popularidad de la Lógica de John Stuart Mill. Por otro, parece ser la expresión menos inadecuada, si se la compara con las que tenemos a elegir.” (DILTHEY, 2015, p. 42). El término “ciencias del espíritu” fue la traducción de moral sciences (sintagma introducido por Mill) realizada por Schiel en 1863: “[…] la palabra «ciencias del espíritu» se introdujo fundamentalmente con la traducción de la lógica de J. S. Mill.” (GADAMER, 1999, p. 31).

[97] Lotz (2006) sentencia: “Los animales no pueden concebirse, en palabras husserlianas, dentro de la actitud personalista.” (p. 196, traducción nuestra). Ciocan (2019) coincide en ello.

[98] Cabe señalar que en Husserliana-Materialen Band 8, Husserl anota: “El animal [das Tier] no tiene un mundo [hat nicht eine Welt] con un sentido de conocimiento [Erkenntnissinn] y un sentido de propósito [Zwecksinn] como el hombre [wie der Mensch] […]. Lo único que puede significar es que el animal [das Tier] tiene, a decir verdad, un [mundo] similar a nosotros [eine uns ähnliche] […] y, sin embargo, no un mundo como mundo de conocimiento posible [nicht Welt als Welt möglicher Erkenntnis].” (HUSSERL, 2006b, p. 210). Más adelante en este mismo manuscrito Husserl señalará que el mundo de los animales es como el mundo de los niños (Kinder) dado que ambos participan “de forma secundaria” (sekundären Weise) en el mundo humano que es propiamente “adulto” (HUSSERL, 2006b, p. 243).

[99] Para una discusión detallada del animal como caso anormal de la humanidad en Husserl confróntese Di Martino, 2014. Ciocan (2017) señala que esta posición involucra paradojas que no deben ser dejadas de lado, pues la anormalidad interespecífica no es lo mismo que la anormalidad intraespecífica. No obstante, Depraz (1995) y Osswald (2012) consideran que el animal puede tener también una normalidad y una anormalidad, de suerte que la humanidad matiza su carácter normativo respecto a los animales.

[100] Un estudio detallado del desarrollo de la pregunta por el sentido del ser en Heidegger se puede ver en Escudero, 2010.

[101] En sus seminarios previos Heidegger denomina este abordaje con los sintagmas: Urwissenschaft des Lebens (GA 58) y también Hermeneutik der Faktizität (GA 63). Para una contextualización del proyecto de Heidegger a partir de la fenomenología y en confrontación con ella a partir de estos sintagmas, véase Lambert Ortíz, 2008, Escudero, 2010 y Ledesma Albornoz, 2021.

[102] Se trata de una fenomenología hermenéutica porque para Heidegger el comprender (verstehen) es una posibilidad fundamental de la existencia del Dasein y no una actividad subsidiaria, específica y artificial que ocurriera solo en una confrontación con textos a descifrar: “De la investigación misma se desprenderá que el sentido de la descripción fenomenológica en cuanto método es el de la interpretación [Auslegung] […]. La fenomenología del Dasein es hermenéutica, en la significación originaria de la palabra, significación en la que designa el quehacer de la interpretación,” (GA 2, 37; HEIDEGGER, 2012, p. 57). Sobre la fenomenología hermenéutica de Heidegger véase Moran, 2000, Thurnher, 2004 y Grondin, 2018.

[103] Si al Dasein le corresponde existenciales y a los entes que no son Dasein (por ejemplo, los útiles o las subsistencias ahí-presentes) categorías, Heidegger sentencia: “Existenciales y categorías son las dos posibilidades fundamentales de los caracteres de ser.” (GA 2, 45; HEIDEGGER, 2012, p. 66).

[104] Derrida (2006) ha llamado ya la atención cómo el animal se encuentra casi forcluido en Sein und Zeit.

[105] Heidegger agrega: “No es ni una obstinación ni un autoencapsulamiento en la filosofía el que hoy ya no hablemos de vivencias, de vivencias de conciencia ni de conciencia, sino que estamos forzados a otro lenguaje a causa de una transformación de la existencia.” (GA 29/30, p. 297; HEIDEGGER, 2002, p. 253).

[106] Inclusive, se podría a decir que no llega a tematizar cómo el mundo conforma a su vez al animal humano: “En su postura no se explica el proceso por el cual se puede dar la actividad de la ἀλήθεια del mundo en cuanto tal, del ente en cuanto ente, sino que se la hace pasar inmediatamente por la actividad humana formadora del horizonte de sentido. La relación humano-mundo es desconocida en su acción recíproca, con lo que queda oculto cómo es que el humano también llega a ser conformado (Geformtwerden) por el mundo.” (MENDOZA MARTÍNEZ, 2022, p. 756).

[107] Glendinning (1996) y Ciocan (2019) concuerdan en que Heidegger plantea un “abismo” entre el hombre y los animales. Cabe señalar, con todo, que si Heidegger denomina en algún momento al hombre como animal, específicamente como animal tecnificado (technisierten Tier), no lo hace sino para cuestionar su obliteración en la época técnica asumiendo que ser animal no es sino una rebajamiento peyorativo que ya no lo deja ser Dasein (confirmándose así, su mirada despectiva para con el animal y, por supuesto, para con la técnica), véase sobre el concepto de animal tecnificado Pineda, 2019.

[108] Para una crítica no solo al procedimiento circular de Die Grundbegriffe der Metaphysik (GA 29/30), sino también a la implícita jerarquía taxativa entre el hombre y el animal en Heidegger véase Derrida, 2006 y Ayala-Colqui, 2021. Asimismo, la posición de Heidegger con los animales pareciera que se complejiza en sus obras tardías a partir de la apelación de la cuaternidad (das Geviert), por ejemplo, en GA 7. Sin embargo, nuevamente aquí Heidegger establece un corte radical entre humanos y animales, puesto que solo los primeros son mortales y, por lo tanto, pertenecen a la cuaternidad y, además, tienen una relación esenciante con el ser: “Los mortales son los hombres [Die Sterblichen sind die Menschen] […]. Los mortales son los que son los mortales, esenciando en el albergue del ser [wesend im Gebirg des Seins]. Ellos son la relación esenciante con el ser como ser [Sie sind das wesende Verhältnis zum Sein als Sein].” (GA 7, 171; HEIDEGGER, 1994, p. 155). Sobre el rol de lo humano en la cuaternidad, véase al respecto Vallejo Clavijo, 2012 y Ayala-Colqui, 2022.

[109] Aquí se podría plantear la pregunta: ¿la normatividad es ciertamente natural como por ejemplo lo recuerda Canguilhem (1971) o, por el contrario, es construida culturalmente a partir de relaciones de poder como sostiene Foucault (2000)? Una respuesta inclinada al segundo escenario, a partir de un debate con Heidegger, se encuentra en Ayala-Colqui, 2022.

[110] Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. Professor de Filosofia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5895-7604. E-mail: paulo.taddei@gmail.com.

[111] Ayala-Colqui (2023) conclui também que os modelos de fenomenologia de Husserl e de Heidegger, em diferentes graus, seriam marcados por uma perspectiva “ontocêntrica e especista”. Não pretendo discutir essa conclusão, neste comentário, mas entendo ser necessário ponderar o fato de a própria fenomenologia, enquanto projeto, envolver a recondução dos objetos aos seus modos de doação, o que implica, de modo mais ou menos explícito, uma consideração da subjetividade.

[112] Académico por hora FAE Universidad de Santiago, Santiago – Chile. PhD in Critical Theory University of Nottingham. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9602-2201. Email: joaquin.montalva@usach.cl .

[113] I am grateful to the anonymous referees of this journal for their helpful comments and suggestions.

[114] In Foucault’s words: “[…] this structure is constitutive of what is sense and nonsense, or rather of that reciprocity through which the one is bound to the other; it alone can account for the general fact that in our culture there can be no reason without madness.” (FOUCAULT, 2006, p.  XXXII). And, according to Derrida: “It is through this relationship to the other as an other self that meaning reassures itself against madness and nonmeaning.” (DERRIDA, 2005, p. 72).

[115] Foucault writes: “[…] it is, no doubt, a doubly impossible task, as it would require us to reconstitute the dust of this concrete pain, and those insane words that nothing anchors in time; and above all because that pain and those words only exist, and are only apparent to themselves and to others in the act of division that already denounces and masters them.” (FOUCAULT, 2006, p. XXXII).

[116] Foucault writes: “[…] this structure of the experience of madness, which is history through and through, but whose seat is at its margins, where its decisions are made, is the object of this study.” (FOUCAULT, 2006, p. XXXII).

[117] In a text entitled “The Subject and Power”, Foucault advocates for the necessity of criticizing the “conceptual needs” that derive from the process of objectivization that turns human beings into subjects by critically assessing its contexts of production (FOUCAULT, 1983, p. 209).

[118] The concept of transference that Derrida is referring to comes from Freud’s Beyond the Pleasure Principle. There, Freud elaborates a method called transference which is based on encouraging the patient to corroborate the construction of his/her experience by means of his/her own memory. This strategy opens the field to all sorts of resistances that hamper the becoming conscious of the unconscious. Freud writes, “[…] the patient cannot remember the whole of what is repressed in him, and what he cannot remember may be precisely the essential part of it. Thus, he acquires no sense of conviction of the correctness of the construction that has been communicated to him. He is obliged to repeat the repressed material as a contemporary experience instead of, as the physician would prefer to see, remembering it as something belonging to the past. These reproductions, which emerge with such unwished-for exactitude, always have as their subject some portion of infantile sexual life of the Oedipus complex, that is, and its derivatives; and they are invariably acted cut in the sphere of the transference, of the patient’s relation to the physician. When things have reached this stage, it may be said that the earlier neurosis has now been replaced by a fresh, ‘transference neurosis’.” (FREUD, 1961, p. 12).

[119] Foucault declares himself a trustee of a tradition that he calls the “mad geniuses” where he gathers people such as Nerval, Hölderlin, Van Gogh, Nietzsche, Roussel, Artaud and, in some passages, Freud. Foucault calls upon this genealogy to assert that his discourse without recourse is sustained by the experiences of these “mad geniuses”. He states that they are the ones that testify for the continuity of the “murmur of madness” that makes possible to conceive the project of writing the history of madness “in itself” (FOUCAULT, 2006, p. 28, 344 and 511).

[120] David Boothroyd (2005) interpreted the demand of “doing justice to Freud” as a recognition of Freud being hospitable to madness. However, he misses the point that for Derrida madness is intrinsically related to the decision that divides reason and unreason, and therefore from logos. In that regard, it cannot be treated as an “absolute alterity” to which be hospitable to (this implies essentializing madness), and more importantly, it also misses the role that transference and fort/da plays in the text.

[121] Derrida relates the demoniac to writing based on their shared tendency to repetition by asserting that: “[…] the very procedure of the text itself is diabolical. It mimes walking, does not cease walking without advancing, regularly sketching out one step more without gaining an inch of ground.” (DERRIDA, 1987, p. 269).

[122] According to Derrida’s argument in “Cogito and History of Madness”, the fiction of the Cartesian Evil Genius represents the possibility of total madness insofar it is inflicted by something “alien” to the mad one. Therefore, this hypothetical type of madness would escape the subjectivity of the thinking being and disrupt every economy of meaning from beyond the control and responsibilities attributed to the res cogitans (DERRIDA, 2005, p. 63-64).

[123] In The Order of Things Foucault states that anthropology, as an analytic of finitude, was placed at the centre of knowledge after representation (as historical a priori) lost the power to determine by itself, the synthesis between subject and predicate (separation between things and words). In this context, the search for the foundations of knowledge became rooted on men’s finitude, transforming this way the subject into the object of knowledge in return (FOUCAULT, 2002).

[124] Based on this passage Robert Trumbull (2016), in a very interesting and compelling essay, analyses how Freud’s understanding of the power/pleasure duality and its relationship to his drives theory allows to deconstruct Foucault’s understanding of power as the foundational term for a critical analysis of a history of sexuality.

[125] Professor at the Philosophy Department, Pontifical Catholic University of Paraná and FAE Centro Universitário, Curitiba, PR – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3084-5170. Email: leo.junior@pucpr.br.

[126] PhD Student in Philosophy at Pontifical Catholic University of Paraná, Curitiba, PR – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4774-3544. Email: als.stroparo@gmail.com.

[127] Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, MT – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3595-4907. E-mail: bernardo.alonso@ufmt.br.

[128] Este artigo contou com o apoio de recursos do Edital PQG 2017 e CNPq.

[129] Professor Doutor do Curso e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sino (Unisinos), São Leopoldo, RS, e Pesquisador do CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6143-090X. E-mail: rohden@unisinos.br.

[130] Artigo submetido para periódico em Filosofia: ROHDEN, L.; KUSSLER, L. Μετοίκησις enquanto transvaloração existencial: leitura fenomenológico-hermenêutica da morte e imortalidade da alma no Fédon.

[131] Compreendo pelo termo “felicidade” o que Maura Iglésias desenvolveu e apresento, logo abaixo.

[132] O filósofo declara textualmente, logo em seguida: “Eu não afirmo assertivamente que a ética de Platão seja dialética; em vez disso, eu prefiro indagar se, e em que medida, a dialética platônica pode ser considerada uma ética” (tradução nossa).

[133] Sobre esta questão, ver Rohden (2018).

[134] Pressupondo aqui a ambiguidade do termo “idiota”, cuja condição importa naquilo que a especificidade da espécie humana aspira a ser, remeto à clássica obra de Dostoiévsky, O idiota.

[135] O prazer deve ser concebido, assim o compreendemos, não apenas como um estado corporal, senão igualmente como um modo psíquico de o indivíduo se relacionar com o mundo (cf. BOSSI, 2005, p. 317).

[136] Sabemos que a expressão “instintos humanos” é substituída, com a contribuição da psicanálise freudiana, pelo termo específico “pulsões” (Trieb), assinalando-se a complexidade da situação do homo sapiens comparativamente aos animais, estes dotados de instintos (Instinkt). A diferença entre pessoas e animais indica-nos, na verdade, uma descontinuidade instintual que nos direciona rumo às reflexões de Platão, no Filebo: o bem humano não remonta simplesmente aos prazeres, senão seríamos apenas conduzidos pelos instintos, mas também não há uma força alternativa exclusiva responsável pelo direcionamento de uma vida feliz, o conhecimento. Por isso, o conceito de pulsão, em Freud (cf. GARCIA-ROZA, 2009, p. 115-116), tido como o impulso vital de descargas sucessivas de energia, formadas entre o somático e o psíquico, que nos mobiliza aos objetos de satisfação – variados, não pré-definidos e sequer exaurientes –, reedita a mistura platônica como resposta em torno da interrogação sobre a causa da felicidade humana: a descontinuidade de instintos que não se bastam a si mesmos (prazeres), porquanto carecem de algo distintivamente humano (conhecimento) para o seu genuíno regozijo e ulterior reinvestimento.

[137] Sobre essa temática, ver meu livro: Rohden (2010).

[138] Ver meu artigo submetido para periódico: “A práxis hermenêutica enquanto exercício da virtude da prudência”.

[139] Desenvolvi, em parte, a imagem da terceira via ou margem a partir do conto “Terceira Margem do Rio”, de João Guimarães Rosa, no artigo “Tertium non datur? Entre as longas beiras da Terceira Margem” (em avaliação no momento).

[140] Aliás, um dos argumentos decisivos no diálogo consiste no experimento de pensamento, ou seja, um artifício da razão, o qual promove um curto-circuito no hedonismo de Protarco, pela imediata aceitação do papel indispensável do conhecimento, para quem afirma a totalidade do prazer em sua vida (21 b, 2-4). A escolha do hedonista deixa de ser má: ela se torna impossível, porque a vida permeada por prazeres carece da sabedoria para o fito básico do seu mais singelo reconhecimento, na medida em que o prazer, para ser sentido, precisa ser investido pelo pensamento, para ser valorado, precisa das lembranças (memória), para ser discriminado, necessita ser ajuizado, todas operações intelectivas, transcendentes ao âmbito da sensibilidade imediata. Eis a mistura humana, diz-nos Platão, a nos separar dos moluscos: para um ser humano, tal combinação entre conhecimento e prazer importa no bem (SANTAS, 2011, p. 297). Sobre isso, em outro texto, afirmamos que a vida humana não deixa de ser um enigma, pois a alma consiste “[...] na carência de contornos e sem finalidade acabada”, de uma especificidade própria que nos distingue dos seres animais, os quais apenas executam instintos bem demarcados na rota da sobrevivência e da reprodução (ROHDEN, 2020a. p. 8).

[141] E, ainda de acordo com a autora, “[...] é bem concebível que a teoria da purificação desenvolvida por Aristóteles tenha sido influenciada pela ‘discussão sobre a impureza de nossas emoções no Filebo.” (FREDE, 1992, p. 452).

[142] “O sucesso alimenta a ambição, e nossas conquistas recentes estão impelindo o gênero humano a estabelecer objetivos ainda mais ousados. Depois de assegurar níveis sem precedentes de prosperidade, saúde e harmonia, e considerando tanto nossa história pregressa como nossos valores atuais, as próximas metas da humanidade será provavelmente a imortalidade, a felicidade e a divindade [...] Tendo elevado a humanidade acima do nível bestial da luta pela sobrevivência, nosso propósito será fazer dos humanos deuses e transformar o Homo Sapiens em Homo Deus.” (HARARI, 2016, p. 30).

[143] Essa perspectiva foi desenvolvida por Vattimo (1990).

[144] É de se questionar, então, a possibilidade de mensurarmos os prazeres em bons ou ruins, úteis ou nocivos, verdadeiros ou falsos, como atos isolados momentâneos suscetíveis de certa validação estanque, sem levar em conta a vida do próprio sujeito na continuidade histórica da sua existência e em como tais prazeres se integram na correspondente trama – falível e finita – de realização. Nesse sentido, vem-nos em boa hora a expressão “hedonismo sapiencial” para o fito de qualificar a mescla (mistura) dissertada naquele diálogo tardio de Platão (BOSSI, 2005, p. 326).

[145] Custódio de Almeida (2002, p. 217-218) sinaliza com perspicácia a importância dos prazeres no movimento dialético que nos conduz à mistura – o terceiro gênero culminante de dois elementos individualmente insuficientes – como endereçamento do Bem. É importante não perder de vista que não estamos falando de um duelo entre conhecimento e prazer, mas de uma complementaridade bem efetuada, a qual resulta necessariamente impulsionada pela trilha do prazer na esfera humana, na medida em que os prazeres são os únicos ingredientes da mistura que atravessam a fronteira entre o sensível e o inteligível. Noutras palavras, o prazer constitui a causa do movimento do desejo que nos mobiliza com constância, a apontar para um lugar além de si mesmo, o qual, com a contribuição do conhecimento naquela almejada mistura virtuosa, nos remete para o “sempre mais” – a busca permanente – não apenas do corpo, mas da alma humana.

[146] Sobre essa temática, ver Rohden (2020b).

[147] Destaco, aqui, o pertinente comentário do Prof. Dr. Maurício Reis: “A dialética das temporalidades apropriadas na experiência do vivido, no campo intrapsíquico, entre os afetos e as representações, e no laço intersubjetivo pela dinâmica dos imbricamentos relacionais das mais variadas ordens, é uma referência importante para a psicanálise e para a hermenêutica, no sentido de como podemos nos reapropriar do passado no presente rumo a um futuro melhor resolvido, vale dizer, em termos de capacidade de investimento simbólico nisso que chamamos de vida plena ou feliz.”

[148] Note-se bem o argumento de Gadamer acerca do que significa – para cada um de nós, seres humanos – o interesse pela vida justa à luz do Filebo: algo que, para o sujeito, se situa para além do ímpeto vital reinante nos demais seres vivos, a racionalidade ou a sabedoria, cuja distinção não se basta, porém, por ela mesma se não estiver devotada ao constante esclarecimento, através do bem a se perseguir, naquela mistura onde conhecimento e prazer se interpenetram e, tão ou mais importante, na qual se opera sempre e invariavelmente uma decisão acerca de si mesmo, dos outros e da coletividade. Enfatiza o filósofo: “A cegueira do ímpeto vital, o qual sobretudo impera, é a falta de escolha. Mas do outro lado da escolha encontra-se aquilo que, por si só, já está escolhido, por estar posto para escolha: o próprio escolher através do conhecimento contido no aquilo. Isso transforma o ser humano em ser humano, de modo que ele precise indagar acerca do Bem, que ele prefira isso àquilo de acordo com uma decisão consciente, ou seja, que ele tenha de prestar esclarecimento a si mesmo.” (GADAMER, 2009, p. 111). Essa prestação de contas de alguém para consigo mesmo – e, por conseguinte, para com os demais, nisso que já denominamos cuidado hermenêutico de si e dos outros – não deixa de ser um dos maiores tributos da hermenêutica filosófica na reviravolta por ela promovida, diante do alcance do papel da interpretação (dentre outros aspectos, como compreensão pelos efeitos da história e na mediação com a linguagem): o esclarecimento pela interpretação não equivale aqui à revelação enquanto transparência do sujeito pela lente soberana da consciência, contudo, o alcance dessa inevitável e incessante autoevidenciação perpassada pela temporalidade histórica, algo que, na psicanálise, advém pela expressão “onde estava o eu deve advir o isso”, ou seja, a interpretação manifesta, a cada vez, para o sujeito algo originário e reinvestido com as marcas de sua própria verdade. Sobre esse tema das relações entre hermenêutica e psicanálise, ver artigo submetido para periódico: ROHDEN, L; REIS, M. M., Hermenêutica e psicanálise: uma clareira comum denominada interpretação.

[149] Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9744-6601. Email: costa.admar@gmail.com.

[150] “Na medida em que vão se perdendo (apomaraínontai) para mim os prazeres do corpo, nessa mesma crescem (aýxontai) o desejo e o prazer da conversa” - Rep. 328d. Cf. PLATÃO (1980).

[151] Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5146-4388. E-mail; rpaiva@unifesp.br. Esse artigo constitui um desdobramento de pesquisa financiada pela Fapesp processo 2014/08399-2.

[152] A noção de virtual concerne à experiência total da duração em seu processo contínuo de progresso e criação, cuja realidade é a do espírito. Deleuze o precisou: “Por que a diferenciação é uma atualização? É que ela supõe uma unidade, uma totalidade primordial virtual, que se dissocia segundo linhas de diferenciação, mas que, e cada linha, dá ainda testemunho de sua unidade e totalidade subsistentes.” (DELEUZE, 1999, p. 76).

[153] Como elucida Marques Torres, essa distância explicita a diferença entre o ser da matéria e o modo pelo qual a percebemos, afinal, a “[...] contração sendo obra nossa, refere-se a um ato de nossa duração e de nossa memória capaz de contrair numa intuição (um ritmo de duração muito estreito) os momentos múltiplos da duração material, de modo que, contraídos, estes (os ritmos naturais das durações) passam a vibrar de modo diferente.” (TORRES, 2013, p. 78).

[154] Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Feira de Santana, BA – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1175-265X. E-mail: pabloiobr@yahoo.com.br.

[155] Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Paranaíba, MS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5792-7673. E-mail: sinorrio@yahoo.com.br.

[156] Trabalho realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (processo nº 165892/2020-0). Ele retoma parte de minha tese de Doutorado, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP (processo nº 2015/03661-3).

[157] Professor na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pós-doutorando na Universidade de São Paulo (USP). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6844-3663. E-mail: szkontic@gmail.com.

[158] Seguimos, para as obras de Malebranche, as seguintes abreviações: EMR: Entretiens sur la métaphysique et la réligion. RR: Réponse à Régis. RV: De la Recherche de la verité. RVFI: Réponse au livre des vraies et des fausses idées. Todas as citações são seguidas pela paginação da edição de referência: OC: ROBINET, A. (ed.). Oeuvres de Malebranche, 20 v. Paris: Vrin, seguido de volume e página.

[159] Respondendo a Arnauld, que havia visto no argumento da “alma caminhante” um princípio da Visão em Deus, Malebranche afirma: “O que pretendi, quando disse que a alma não ia caminhar no Céu para nele contemplar os astros? Pretendi que era preciso uma ideia para vê-los, e fazer uma reflexão sobre uma verdade da qual aqueles que eu quero combater estão de acordo, mas sobre a qual não fazem frequentemente muita reflexão. Pretendi somente que fosse preciso algo de diferente do Sol para representá-lo a alma.” (RVFI, XII, §VII, OC VI-VII, 95-96). Sobre esse argumento, cf. Pricladnitzky (2016).

[160] Na fórmula precisa de Bardout (1999, p. 104): “Para aparecer ao espírito se objetificando a ele, todo objeto deve se deixar constituir e indicar pela ideia, que se torna por meio disso o único objeto em sentido próprio, imediato e originário do espírito. Somente a ideia pode aparecer e realizar nela o papel da objetificação diante e para o espírito cognoscente.” Cf. também Cardoso (2019, p. 119).

[161] EMR I, §IV, OC XII-XIII, p. 35-36.

[162] EMR I, §V, OC XII-XIII, p. 38.

[163] Por exemplo: “Pode acontecer de que nós vejamos [voyons] esse primeiro sol que está unido intimamente à nossa alma sem que o outro esteja no horizonte, e mesmo sem que ele exista de todo. Do mesmo modo podemos ver [voir] esse primeiro sol maior quando o outro se ergue do que quando ele está muito elevado sobre o horizonte, e embora seja verdade que esse primeiro sol que nós vemos [voyons] imediatamente seja maior quando o outro se ergue, não se segue que este outro que enxergamos [regardons], ou em direção do qual viramos os olhos, seja maior. Pois não é propriamente aquele que se ergue que nós vemos [voyons], ele não é aquele que nós enxergamos [regardons], pois ele dista por muitas milhões de milhas, mas é esse primeiro que é verdadeiramente maior e tal como o vemos.” (RV I, XIV, §II, OC I, p. 159). A respeito desse binômio, cf. Yolton (1984, p. 50).

[164] Malebranche opera uma distinção entre o que ele considera ser uma demonstração da existência dos corpos, a qual pressupõe uma certeza de tipo geométrico e que é, rigorosamente, impossível, e uma prova, que busca um máximo possível de certeza a respeito de sua existência. Embora os sentidos não possam fornecer nenhuma demonstração, eles possuem um papel fundamental na prova da existência dos corpos.

[165] É o caso de Guéroult (1955, p.101 sq); Robinet (1965, p. 218-225); Nadler (1992, p.108), entre outros.

[166] “O que marca sua sabedoria e seu poder não é fazer pequenas coisas por grandes meios. Isso é contra a razão, e indica uma inteligência limitada. Mas, ao contrário, é fazer grandes coisas por meios muito simples e muito fáceis. [...] Pois então, como Deus pode tornar visível aos espíritos todas as coisas ao simplesmente querer que eles vejam o que está ao redor deles mesmos, isto é, o que há nele que se relaciona com essas coisas e que as representa, não parece que ele faça de outro modo.” (RV III, II, VI, OC I, p. 438).

[167] RV III, II, VI, OC I, p. 444.

[168] Ele parafraseia uma passagem da carta de Descartes a Clerselier, de 23 de abril de 1649: “A noção que tenho do infinito está em mim antes daquela do finito, pois do simples fato de que concebo o ser ou aquilo que é sem pensar se ele é finito ou finito, é o ser infinito que concebo. Mas, a fim que eu possa conceber um ser finito, é preciso que eu suprima algo dessa noção geral do ser, a qual consequentemente deve precedê-la.” (DESCARTES, 1996, AT V, p. 356). Cf. também Descartes (2004, p. 41).

[169] Apesar da sua postura radicalmente antiescolástica, é com base em Tomás de Aquino que Malebranche concebe a ideia como participação da ideia geral do infinito. Na questão 15 da Summa Teológica, Tomás de Aquino (2009, p. 354, ST I, q.15, art. 2) escreve: “Ele [Deus] conhece perfeitamente sua essência. Conhece-a, portanto, de todas as maneiras em que é cognoscível. Ora, ela pode ser conhecida não apenas como é em si mesma, mas também enquanto pode ser participada, segundo algum modo de semelhança, pelas criaturas. Cada criatura, porém, tem sua representação própria, segundo a qual de algum modo participa da semelhança da essência divina. Assim, quando Deus conhece sua própria essência como imitável de maneira determinada por tal criatura, Ele a conhece como sendo a razão própria e a ideia dessa criatura, como também das outras. E assim fica evidente que Deus conhece muitas razões próprias de muitas coisas, o que são muitas ideias.” Malebranche cita essa passagem, no prefácio que ele acrescenta aos Entretiens, em 1696.

[170] RV III, II, VII, §I, OC I, p. 448-449.

[171] Cf. Gueroult (1955, v. 1, p. 120-121).

[172] A percepção distinta da cera, que muda de cor, de sabor, de odor, de dureza etc., não pode, segundo Descartes, estar fundada nas qualidades sensíveis, pois permanecemos conhecendo a cera mesmo que elas mudem, nem à imaginação, pois é impossível percorrer com a imaginação a infinidade de figuras possíveis que a cera pode assumir. Assim, escreve: “O que se deve notar é que sua percepção [da cera], ou a ação pela qual ela é percebida, não é um ato de ver, de tocar, de imaginar, e nunca o foi, embora antes o parecesse, mas é uma inspeção da mente, que pode ser imperfeita e confusa, como antes era, ou clara e distinta, como agora, segundo presto menos ou mais atenção às coisas de que se compõe.” (DESCARTES, 2004, p. 31). Sobre a proximidade do exemplo cartesiano do pedaço de cera e o conhecimento dos corpos por ideia em Malebranche, cf. Jolley (1990, p. 88-92).

[173] Nas Métitations chrétiennes et métaphysiques, o Verbo divino, quando questionado sobre a vontade de Deus, responde ao meditativo: “Queres saber por que uma coisa existe devido ao simples fato de que Deus o quer. Me pedes uma ideia clara e distinta desta eficácia infinita, que dá e conserva o ser a todas as coisas. Não tenho presentemente resposta a dar-te que seja capaz de te contentar. Tua pergunta é indiscreta. Me consultas sobre o poder de Deus; consulte-me sobre sua Sabedoria, se queres que eu te satisfaça.” (MC IX, §II, OC X, 96).

[174] Van Lang University, Ho Chi Minh City – Vietnam. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4871-1368. Email: dothithuytrangllct@gmail.com, trang.do@vlu.edu.vn.