Sumário
APRESENTAÇÃO_____________________________________________________ 3
Marcos Antonio Alves________________________________________________ 3
Entrevista___________________________________________________________ 10
A LONGA TRAJETÓRIA DE UM INTELECTUAL BRASILEIRO: ANTONIO PAIM, FILÓSOFO E HISTORIADOR DAS IDEIAS_______________________________ 10
Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves______________________________________ 10
CRISIS DE LOS CUIDADOS Y CRISIS DE LA DEMOCRACIA________________ 31
Camilo Sembler____________________________________________________ 31
EQUILÍBRIO REFLEXIVO E PRUDÊNCIA: UM PROCESSO DE DELIBERAÇÃO MORAL____________________________________________________________ 51
Denis Coitinho_____________________________________________________ 51
REPRESENTAÇÃO, SOBERANIA E GOVERNO EM THOMAS HOBBES________ 80
Francisco Luciano Teixeira Filho______________________________________ 80
COMENTÁRIO A “REPRESENTAÇÃO, SOBERANIA E GOVERNO EM THOMAS HOBBES”__________________________________________________________ 96
Anderson Alves Esteves_____________________________________________ 97
COMENTÁRIO A “REPRESENTAÇÃO, SOBERANIA E GOVERNO EM THOMAS HOBBES”: NOTAS SOBRE ESTADO E GOVERNO EM HOBBES, A PARTIR DA RELAÇÃO NATUREZA-ARTIFÍCIO_____________________________________ 99
Rita Helena Sousa Ferreira Gomes_____________________________________ 99
TRANSLATING CHUANG TZU INTO WORLD LITERATURE: TEXT AND CONTEXT_________________________________________________________ 104
Jiaxin Lin; Xinbing Yu; Song Liu; Mingqiao Luo; Yukun Chen_____________ 104
COMMENT ON “TRANSLATING CHUANG TZU INTO WORLD LITERATURE: TEXT AND CONTEXT”______________________________________________ 124
Yuemeng Ge________________________________________________________ 124
MAQUIAVEL E A ORIGEM DAS COMUNIDADES POLÍTICAS______________ 130
Luís Falcão______________________________________________________ 130
ARISTÓTELES. Politics. Translation by H. Rackham. Cambridge: Harvard University Press, 1932.________________________________________________________ 147
ARISTÓTELES. The Politics of Aristotle. Edited and translated by Ernest Barker. Oxford: Oxford University Press, 1958.__________________________________ 147
ARISTÓTELES. Politica. A cura di Federico Ferri. Milano: Bompiani, 2016.____ 148
Comentário a “Maquiavel e a Origem das Sociedades Políticas”: Maquiavel e o Realismo Político____________________________________________________ 150
Helton Adverse___________________________________________________ 150
TOTALIDADE E FINITUDE: SOBRE A SINGULARIZAÇÃO EM SARTRE______ 155
Marcelo Prates____________________________________________________ 155
COMENTÁRIO A “TOTALIDADE E FINITUDE: SOBRE A SINGULARIZAÇÃO EM SARTRE”: MORTE, VIDA E TOTALIDADE: SARTRE VENCE PELA FINITUDE?__________________________________________________________________ 182
Luciano Donizetti da Silva__________________________________________ 183
ESBOZOS PARA LA CREACIÓN DE UN CONCEPTO DE “PRÁCTICA FILOSÓFICA”_____________________________________________________ 187
Pedro E. Moscoso-Flores____________________________________________ 187
Comentario de “Esbozos para la creación de un concepto de “práctica filosófica””__________________________________________________________________ 203
Patricio Landaeta__________________________________________________ 203
SQUABBLES BETWEEN THE JESUITS AND THE FRANCISCANS: A HISTORICAL REVIEW OF POLICIES OF TWO CHRISTIAN ORDERS IN JAPAN___________ 207
Xizi Chen________________________________________________________ 207
ORIENTATION AND REFLECTION: A RESEARCH ON SUSAN SONTAG’S NEW SENSIBILITY_______________________________________________________ 222
Xingjun Chen_____________________________________________________ 222
TRADUÇÃO_______________________________________________________ 239
“O PENSADOR E O PINTOR: SOBRE MERLEAU-PONTY” - JACQUES TAMINIAUX_______________________________________________________ 239
Tiago Nunes Soares________________________________________________ 239
As ações da Revista, nos últimos anos, podem ser avaliadas por meio da considerável melhora nos rankings conceituados, tais como nos índices Scopus e Redib, ou em classificações como Qualis CAPES, que, em 2022, classificou a Trans/Form/Ação no Estrato A1, voltando ao seleto grupo das melhores revistas brasileiras na área. No Redib, passamos a ocupar a 17ª posição entre as revistas de Filosofia de todo o mundo cadastradas no indexador, figurando no quartil Q2. Também em 2022, pulamos 142 posições no Cite Score do Scopus. Ocupamos, nesse rank, em 2021, a 327ª posição, enquanto, em 2020, ocupávamos a 469ª posição. Em 2021, passamos a ocupar o 54º grupo percentil e, em 2020, estávamos no 27º percentil. O JCR, em 2020, era de 0,1 e, em 2021, passou para 0,4. O SJR, em 2021, era de 0,116 e, em 2020, 0,102. Isso indica que, além do aumento significativo de citações, a Revista também está sendo citada por outras revistas bem avaliadas, aumentando seu fator de impacto.
Diminuímos sobremaneira o tempo de avaliação das submissões e decisão editorial, a qual está em média de três meses. Entendemos ser importante uma avaliação rápida, principalmente em respeito aos autores dos manuscritos. Entretanto, isso nem sempre é possível, dada a dificuldade, muitas vezes, de encontrar pareceristas e de receber os pareceres no tempo solicitado ou mesmo da necessidade de novos pareceres, quando da existência de número igual de pareceres favoráveis ou contrários à aprovação da submissão.
Também reduzimos o tempo entre a aprovação final dos artigos e sua publicação. Esse período, porém, não tem como ser muito menor do que sete meses, dado o processo de correções gramaticais e suas revisões, normalizações, edição, diagramação, publicação no site da FFC, conversão XML e publicação no SciELO, cada um demandando seu próprio tempo, além do limite de publicação em cada fascículo, por conta dos custos com a publicação. Apesar de estarmos buscando maximizar elementos referentes à agilidade no serviço, a Revista prioriza a qualidade da publicação, seja do conteúdo propriamente dito, seja da apresentação do material publicado.
Quanto ao Conselho Consultivo, fizemos alterações significativas. Ampliamos o Conselho com mais integrantes, filósofas e filósofos, da América Latina e demais regiões do Hemisfério Sul, com parcerias institucionais.
Intensificamos a comunicação com a comunidade, através de redes sociais, principalmente Facebook: https://www.facebook.com/RevistaTransFormAcao, Instagram: https://www.instagram.com/revista.transformacao/ e outras redes, como ANPOF, e por meio de notícias enviadas pela Revista em sua própria página. Aumentamos, com isso, significativamente, o número de seguidores nas redes sociais.
Por fim, destacamos o que talvez tenha sido uma das maiores inovações da Revista: a nova modalidade de textos denominada “comentários”. Conforme descrito em sua página, a publicação adota como objetivo a socialização do conhecimento, procurando promover o debate e a interlocução de ideias. Em vista disso, desde 2020, inauguramos uma nova modalidade de textos, a qual consiste em comentários de artigos aprovados no processo avaliativo, consentidos previamente pelos autores destes. Eles são produzidos pelos pareceristas do manuscrito submetido e anexados ao artigo original. Trata-se de uma crítica construtiva, não mais da qualidade do artigo, uma vez que o processo avaliativo já foi ultrapassado.
O comentador pode expor possíveis discordâncias de ideias, comparação de conceitos entre autores, perspectivas ou sistemas filosóficos, diferenças hermenêuticas, metodológicas, epistemológicas. É possível também construir uma ampliação, explicitação ou mesmo a inserção de algum conceito importante para a compreensão da linha argumentativa do artigo comentado, notas explicativas relevantes ou a posição do comentador a respeito da tese exposta. Nesse sentido, procuramos promover um diálogo entre ambos os textos, almejando o aprimoramento e a ampliação do conhecimento. Além de propiciar o debate filosófico, lembra Alves (2021, p. 13), os comentários também são “[...] uma forma de valorizar formalmente o trabalho dos avaliadores do periódico, oferecendo-lhes oportunidade de publicação de suas ideias e reflexões que podem, inclusive, ter tido origem a partir da análise do manuscrito avaliado.”
Estas e outras atividades que pretendemos ir compartilhando, ao longo do ano, nos fazem continuar a missão da Revista, que almeja socializar conhecimento filosófico produzido no Brasil e no exterior. Buscamos, além da manutenção da qualidade e profundidade dos textos, também ampliar a participação de autoras/es de todas as regiões do país e do mundo. É nesse espírito que apresentamos este primeiro fascículo de 2023. Os autores provenientes de instituições brasileiras, neste fascículo, são do Ceará, Goiás, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Já os estrangeiros são oriundos de instituições do Chile, China e Singapura.
Publicamos, em primeiro lugar, a entrevista feita por Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves a Antonio Paim, intitulada “A longa trajetória de um intelectual brasileiro: Antonio Paim, filósofo e historiador das ideias”. Esse texto apresenta uma síntese da trajetória do filósofo e historiador das ideias Antonio Paim, seguida da entrevista realizada com ele. Na entrevista, o filósofo relata seu longo itinerário intelectual, que passou pelo marxismo e pelo kantismo, e sua carreira política, pelo comunismo, na juventude, e pelo liberalismo, na maturidade. Paim conheceu o que é ser dissidência, quando foi membro do Partido Comunista e acabou sendo um preso político, e o que é ser ligado ao establishment, quando foi assessor da presidência do Partido da Frente Liberal. A longa trajetória intelectual de Paim, com suas mudanças e intensidades, se refere à própria História do Brasil republicano, com suas reviravoltas e passagens dramáticas. Sendo um relato inédito, a entrevista ajuda a compreender a cultura intelectual brasileira da segunda metade do século XX e como se articulam os intelectuais com respeito ao poder.
O primeiro artigo, escrito em espanhol, é “Crisis de los cuidados y crisis de la democracia”, de Camilo Sembler. O autor discute o significado político da crise dos cuidados em sua relação com a crise da democracia. Baseado nas éticas do cuidado e da teoria crítica, ele caracteriza, inicialmente, os cuidados como um tipo específico de prática social e política. Em seguida, examina os problemas éticos e políticos resultantes de uma organização social dos cuidados, segundo os princípios de mercado. Em particular, Sembler procura mostrar que tanto a ética do cuidado quanto a teoria do reconhecimento permitem uma crítica ética das consequências da expansão dos mercados, na organização social do cuidado. Ou seja, de ambas as abordagens, pode-se argumentar que os mercados não só geram consequências injustas na área de distribuição de cuidados, como também deterioram o significado de valores éticos e políticos relevantes, incluindo a própria ideia de democracia. À luz desse percurso argumentativo, as considerações finais retomam brevemente a questão de uma possível solução democrática para a crise assistencial.
Em segundo lugar, está “Equilíbrio reflexivo e prudência: um processo de deliberação moral”, escrito por Denis Coitinho e comentado por Lucas M. Dalsotto e Marciano Adilio Spica. Coitinho propõe a inclusão da expertise de um agente prudente no procedimento do equilíbrio reflexivo, adicionando uma disposição para identificar crenças razoáveis que seriam vistas como o ponto de partida do método, o que poderia evitar as críticas de conservadorismo e subjetivismo. Para tanto, ele inicia analisando as características centrais do método e suas principais fraquezas. Após, investiga as características da prudência como uma disposição para identificar os meios adequados para realizar um fim bom. De posse disso, aplica a prudência no procedimento, de forma que ele será executado por um agente que bem delibera, identificando crenças morais razoáveis e, depois, deve-se justificá-las a partir de sua coerência com os princípios éticos e com as crenças factuais de teorias científicas relevantes. Por fim, Denis defende que esse processo deliberativo é consistente com o pluralismo ético e com a democracia, podendo ser tomado como um tipo de conhecimento moral.
“Representação, soberania e governo em Thomas Hobbes” vem em seguida. Escrito por Francisco Luciano Teixeira Filho, é comentado por Anderson Alves Esteves e Rita Helena Sousa Ferreira Gomes. O texto trata do conceito de representação em sua relação com o conceito de soberania, segundo o filósofo Thomas Hobbes. A obra estudada é o Leviatã, de 1651. Segundo o autor, o estudo evidencia que a soberania se funda através do ato jurídico originário, o qual estabelece uma pessoa artificial para representar a todos. Essa coisa artificial é o Estado. A sociedade política, porém, é diferente do seu governo, embora sejam funcionalmente a mesma coisa. O desenvolvimento da questão da representação em Hobbes, feita pelo autor do artigo, é dividida em duas partes: na primeira, ele trata do conceito de representação, em Thomas Hobbes. Em seguida, focaliza o problema do Estado e do Governo, em Hobbes, procurando, ao mesmo tempo, delimitar um e outro e entender como a representação é abordada nos dois casos.
O quarto artigo é “Translating Chuang Tzu into world literature: text and context”, de Jiaxin Lin, Xinbing Yu, Song Liu, Mingqiao Luo e Yukun Chen, comentado por Yuemeng Ge. Conforme os autores, Chuang Tzu, como um cânone tradicional chinês, foi traduzido para o inglês por mais de 100 anos, desde 1881, conquistando com sucesso um nicho no reino da literatura mundial, que se tornou um evento cultural devastador na academia de sinologia ultramarina e literatura mundial. Segundo as estatísticas, o livro foi traduzido em 12 traduções completas, 50 traduções selecionadas e duas adaptações. No processo de metamorfose da “tradução completa – tradução profunda – retradução diversificada”, passou por quatro fases: religiosa, literária, filosófica e reinterpretações diversificadas.
Assim, na perspectiva da visão de Damrosch a respeito da literatura mundial, o artigo resume as características de diferentes estágios, com base em diferentes contextos espaço-temporais. À luz da forma tradutória, dos resultados tradutórios e do modo de leitura tradutória, especifica-se o caminho pelo qual Chuang Tzu entrou no campo da literatura mundial, para apreender o mecanismo operacional de promoção da literatura nacional à literatura mundial, que se dedica ao esclarecimento para o trabalho prático de tradução da introdução da literatura chinesa no exterior. Enquanto isso, revisando a história das traduções inglesas de Chuang Tzu, o artigo resume as deficiências das atuais atividades de tradução e pesquisa, com a tentativa de fornecer sugestões construtivas, bem como apontar a direção para o desenvolvimento futuro de estudos de Chuang Tzu, no exterior.
Em seguida, publicamos “Totalidade e finitude: sobre a singularização em Sartre”, escrito por Marcelo Prates e comentado por Luciano Donizetti da Silva. Prates analisa o problema da totalidade em Sartre, em sua relação com a finitude. Começa pelo problema da solidão ontológica, pelo qual examina o Ser enquanto exterioridade de indiferença e o acontecimento do para-si ou ato ontológico. Postulando esse acontecimento como processo de singularização e a própria vida do indivíduo, o autor mostra como a finitude afere à totalidade, enquanto totalização e singularização. Imagem condensada pelo universal singular, a finitude, então, não é tomada como uma totalidade isolada, mas passa a ser compreendida por sua abertura do humano, na singularização de uma vida, argumenta Prates.
O quinto artigo é “Maquiavel e a origem das comunidades políticas”, de Luís Falcão. Segundo o autor, é possível encontrar em Maquiavel uma expressão significativa do consentimento originário para a explicação da origem das comunidades políticas. Falcão investiga as possíveis recepções desse tema, a partir do pensamento político romano. Com Lucrécio e Cícero, explica o autor, torna-se possível compreender os termos do pacto, quais sejam, o primitivismo no contraste entre homens e bestas, o medo e a segurança comuns como elementos fundantes da comunidade política e a liderança de um homem de destaque. Para isso, lateralmente, o artigo apresenta um debate das premissas aristotélicas da natureza política dos homens, oferecendo exemplos do contexto de Maquiavel, a fim de corroborar a disponibilidade da linguagem do consentimento originário, em acordo com o aristotelismo. Falcão conclui que Maquiavel não possui uma teoria substancial da origem dos agremiados humanos, porque o objeto da política, dentro da maneira pela qual ele a entende, existe apenas mediante a fundação das cidades historicamente determinadas. O emprego, pois, de uma linguagem contratualista em acordo com a aristotélica estava dentro de um contexto retórico de despertar a atenção de seu leitor.
Também em espanhol, apresentamos “Esbozos para la creación de un concepto de ‘práctica filosófica’”, de Pedro E. Moscoso-Flores, comentado por Patricio Landaeta. O presente texto procura introduzir uma questão referente ao lugar da filosofia no cenário contemporâneo, abrindo assim uma questão sobre se ela é capaz de responder às demandas e exigências impostas no presente. Nessa medida, o autor repensa a noção de filosofia, em função de um quadro que resgate suas dimensões prática, material e afetiva, tornando visível o impulso transformador que ela pode ter em relação aos significados usuais associados à produção disciplinar, atrelado à tradicional divisão entre teoria e prática. Com isso, visa a uma abertura para uma dimensão que reconhece o papel implicativo – criativo e interventivo – que a filosofia tem, na produção da realidade.
Outro texto em inglês é “Squabbles between the Jesuits and the Franciscans: a historical review of policies of two Christian orders in Japan”, escrito por Xizi Chen. Ao longo da história do cristianismo no Japão, a tensão e o conflito persistiram entre os jesuítas e os franciscanos, observa Chen. À primeira vista, isso parece ter acontecido por causa de suas diferentes leituras das políticas de Roma e variadas abordagens ao trabalho apostólico. No entanto, após um exame mais atento, verifica-se que a política também desempenhou um papel importante em tal tensão e conflito. Por trás das duas ordens estavam duas potências marítimas rivais – Portugal e Espanha –, cujo senso de sentimento nacional pode ocasionalmente ter superado seus interesses na missão no Japão. Em uma tentativa de manter a paz, Roma emitiu o Patronatus Missionum. Todavia, intensificou o conflito e tornou a situação em um estado de desordem irreparável. Isso acabou causando pesadas perdas para toda a missão. Esse texto resume quatro questões entre os jesuítas e os franciscanos, buscando analisar as relações entre ambos. A primeira delas diz respeito ao comércio; a segunda se refere à separação das paróquias; a terceira, às suas abordagens apostólicas; a quarta trata de suas políticas práticas.
O oitavo texto também está em inglês: “Orientation and reflection: a research on Susan Sontag’s new sensibility”, de Xingjun Chen. Esse artigo usa o método de pesquisa do contexto histórico para situar a “Nova Sensibilidade” de Sontag no contexto histórico em que “o desaparecimento da arte” prevalecia. Chen concebe que a “Nova Sensibilidade” de Sontag é a sensibilidade alinhada com as necessidades daquele tempo, negando “o fim da arte” e afirmando a posição dominante da arte visual. A definição da autora pode ser resumida como uma capacidade de percepção estética das artes. Apela à pura sensibilidade para apreciar as artes visuais e se dedica a mudar a consciência e a sensibilidade das pessoas modernas.
Ao mesmo tempo, comparando “Nova Sensibilidade” com “Camp Sensibility”, proposta por Sontag, e “nova sensibilidade”, preconizada por Marcuse, esse artigo aponta que a principal conotação de “Nova Sensibilidade” é enfatizar a forma, negligenciar conteúdo e suspender a moralidade. Entretanto, a “Nova Sensibilidade”, que superenfatiza a experiência perceptiva e ignora a dimensão moral, tem seus defeitos inerentes, os quais não podem ser ignorados. Dado isso, Chen toma a prática crítica de Riefenstahl de Sontag como exemplo para explicar especificamente os defeitos da “Nova Sensibilidade” e refletir sobre ela. Mais de meio século após a “Nova Crítica” de Sontag, sua orientação e reflexão são propícias a reenfrentar seu significado e valor, sob o pano de fundo de um maior desenvolvimento da ciência e tecnologia e estilos artísticos mais diversificados, na era contemporânea.
Fechando o rol de dez textos deste fascículo, publicamos a tradução de “O pensador e o pintor: sobre Merleau-Ponty”, de autoria de Jacques Taminiaux e traduzido por Tiago Nunes Soares. Conforme o tradutor, a temática do artigo de Taminiaux está explícita no seu título. Trata-se de uma abordagem sobre a relação entre filosofia e pintura, no pensamento de Merleau-Ponty. Ela se desdobra em reflexões sobre seu projeto de superação das dicotomias clássicas sedimentadas na filosofia. O autor aborda o tema a partir de três eixos, todos interligados ou entrecruzados, no interior da filosofia merleau-pontiana: a percepção, o pensamento e a pintura. O artigo é uma oportunidade para entrar em contato com a filosofia de Merleau-Ponty, particularmente em seu diálogo com o mundo da pintura, através do entrelaçamento entre pensamento e percepção.
Assim está composto este primeiro número de 2023. Desejamos, além de um bom ano novo aos nossos parceiros, uma boa e profícua leitura dos textos aqui publicados!
Referência
ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 9-20, 2021.
Recebido: 21/11/2022
Aceito: 04/12/2022
Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves[3]
Resumo: Este texto apresenta uma síntese da trajetória do filósofo e historiador das ideias Antonio Paim, seguida da entrevista realizada com ele. Na entrevista, o filósofo relata seu longo itinerário intelectual, que passou pelo marxismo e pelo kantismo, e sua carreira política, pelo comunismo, na juventude, e pelo liberalismo, na maturidade. Paim conheceu o que é ser dissidência, quando foi membro do Partido Comunista e acabou sendo um preso político, e o que é ser ligado ao establishment, quando foi assessor da presidência do Partido da Frente Liberal. A longa trajetória intelectual de Paim, com suas mudanças e intensidades, se refere à própria História do Brasil republicano, com suas reviravoltas e passagens dramáticas. Sendo um relato inédito, a entrevista ajuda a compreender a cultura intelectual brasileira da segunda metade do século XX e como se articulam os intelectuais em relação ao poder.
Apresentação
Antonio Ferreira Paim nasceu na cidade de Jacobina, interior da Bahia, em 7 de abril de 1927. Pouco tempo depois de nos conceder a entrevista e de completar 94 anos, faleceu, em 30 de abril de 2021. Antonio Paim foi um filósofo e historiador das ideias que se dedicou à história das ideias no Brasil, sendo sua principal obra A história das ideias filosóficas no Brasil, publicada originalmente em 1967 e com sucessivas republicações.[4] O filósofo publicou ainda uma extensa obra dedicada ao “pensamento brasileiro”, à filosofia no Brasil, ao liberalismo, ao socialismo, entre outros. Foi professor da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ), professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro e da Universidade Gama Filho (UGF). Tendo se aposentado da docência no ensino superior, em 1989, foi trabalhar como assessor da presidência do Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM), ao lado de Jorge Bornhausen, um importante quadro que presidiu o partido. Entre os títulos e honrarias, Antonio Paim foi ganhador do Prêmio Instituto Nacional do Livro de Estudos Brasileiros (1968) e do Prêmio Jabuti (1985), tendo sido membro fundador da Academia Brasileira de Filosofia.
A entrevista ocorreu por telefone, em 15 de janeiro de 2021, sendo que o autor falou de sua última residência, na cidade de São Paulo. Esta não é a primeira entrevista concedida por Antonio Paim .[5]
Nosso entrevistado foi autor de mais de seis dezenas de livros, dentre os quais destacamos aqueles voltados para a história das ideias, tais como: Cairu e o liberalismo econômico (1968), Tobias Barreto na cultura brasileira: uma reavaliação (1972, em colaboração com Paulo Mercadante), O estudo do pensamento filosófico brasileiro (1979), A UDF e a ideia de universidade (1981), Oliveira Vianna de corpo inteiro (1991), entre outros. Além desses, enfatizamos aquelas obras que consolidaram Antonio Paim como um dos liberais mais destacados entre os intelectuais brasileiros, tais como: Evolução histórica do liberalismo (1987), O liberalismo contemporâneo (1995), A agenda teórica dos liberais (1997), O liberalismo social: uma visão histórica (1998, em colaboração com o renomado liberal José Guilherme Merquior e Gilberto de Mello Kujawski), A bem-sucedida privatização brasileira (2007), entre outros.
Antonio Paim foi um dos mais longevos membros do Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF). O IBF foi fundado na cidade de São Paulo, em 1949, sendo responsável pela Revista Brasileira de Filosofia (RBF), publicada por cinco décadas, desde 1951. A liderança do IBF cabia ao jurista paulista Miguel Reale (1910-2006). Antonio Paim publicou seu primeiro artigo na RBF, em 1965, sobre Tobias Barreto, e passou a ser um dos mais assíduos autores, com 74 artigos publicados até o ano 2000.[6]
Nos anos 1950, concluiu o curso de filosofia da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, e o doutorado na Universidade Lomonossov de Moscou, Rússia. Antonio Paim fala detalhadamente nesta entrevista sobre a estadia na capital russa. Pela sua atuação junto do PFL, Antonio Paim foi considerado um importante intelectual liberal, mas, antes disso, na juventude fora um militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) da Bahia, de onde despontaram grandes quadros do partido e da esquerda brasileira, como Carlos Marighella e Jacob Gorender. O próprio filósofo aborda, nesta entrevista, sua trajetória no PCB, do qual acabou se desligando após a divulgação do “Relatório Secreto”, o qual revelou os crimes de Stálin, divulgado pelo presidente soviético Nikita Kruschev, durante o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 25 de fevereiro de 1956.
Na entrevista, Antonio Paim diz que desligar-se do PCB foi uma coisa, sair do marxismo foi outra e levou muito mais tempo, somente após anos de estudos da obra de Kant e de sua adesão ao kantismo. O “acerto de contas” do autor com o marxismo viria praticamente meio século depois da saída do PCB, com a publicação do livro Marxismo e descendência, em 2009.
Paulo Mercadante (1923-2013), intelectual com quem nosso autor publicou estudos sobre Tobias Barreto, diz que Antonio Paim buscou uma alternativa equidistante do positivismo e do marxismo, e “[...] voltar à reflexão kantiana, ler os críticos do materialismo dialético, identificar as divergências entre os marxistas, inclusive as antigas entre os clássicos e Feuerbach, entre os teóricos recentes e a social-democracia” (MERCADANTE, 1997, p. 200), além de sublinhar a adesão ao culturalismo, corrente liderada por Reale. Ressata Mercadante:
Seu esforço havia desembocado na corrente culturalista de Miguel Reale, que, por sua vez, abrigara caudaloso rio da vida intelectual, por meio do Instituto Brasileiro de Filosofia e de sua Revista, todos os estuários do Brasil mental. O filósofo paulista alcançara aquela tolerância dos sábios e humanistas e antevia o no social-liberalismo a solução democrática.
A capacidade de mobilização de Antonio Paim, favorecida pelo seu talento generoso, foi posta a serviço da causa liberal. [...] (MERCADANTE, 1997, p. 200).
Mercadante define ainda o liberalismo de Antonio Paim, a partir de uma atitude pragmática, adaptada à realidade brasileira:
A verdade é que não há doutrina liberal genuína. Há permanentes debates em processo de reflexão. A começar por tradições diversas. Em cada nação, as circunstâncias emprestam significado as feições devidas. [...] O estudo dessas vicissitudes, levadas a cabo por pensadores vacinados contra a ideia hegeliana do estado, bem como contra os prejuízos do Saber de Salvação, conduziu Antonio Paim à escolha de visão liberal adequada à realidade brasileira. (MERCADANTE, 1997, p. 201).
Outro intelectual que fala de nosso autor é o português Eduardo Abranches de Soveral (1927-2003), o qual foi cofundador, ao lado de Antonio Paim, nos anos 1990, do Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro (IFLB), sediado em Lisboa. Juntos, Antonio Paim e Soveral organizaram o Doutorado em Pensamento Luso-Brasileiro, que funcionou na UGF. Segundo Soveral (1997, p. 167), após estadia na Rússia, Antonio Paim “[r]egressou ao Brasil, militante e determinado em seu anticomunismo”. Soveral acentua, portanto, o anticomunismo característico da época da Guerra Fria. Sobre esses temas, fala, durante a entrevista, de forma branda e com a serenidade, dos anos vividos e das décadas passadas.
Soveral (1997, p. 167) caracteriza como “político” que “[...] lançou a crédito dos regimes militares uma indispensável e urgente ação modernizadora, ou seja, atribuiu-lhe o mérito de um ‘despotismo iluminado’ ainda necessário, embora retardado já, e fora de época.” Soveral (1997, p. 167) afirma que “[...] a priori rejeita e condena qualquer forma de absolutismo estatal”, o que, se levado ao pé da letra, soaria como uma reafirmação da adesão à Ditadura como algo meditado (não foi a priori). Todavia, essa afirmação faz mais sentido com o fragmento a seguir, no qual Antonio Paim se colocaria equidistante em relação aos “[...] socialismos totalitários de esquerda, e os populismos totalitários de direita.” (SOVERAL, 1997, p. 169).
Se aderiu ou não à ditadura civil-militar, é importante salientar que, anos mais tarde, na apresentação que fez ao livro O retrato[7], de Osvaldo Peralva (1918-1992), que deixou o PCB após o Relatório de Kruschev, Antonio Paim denunciou a perseguição que ele sofreu após o golpe de 1964. Como esse é um aspecto importante não só da trajetória daqueles que deixaram o comunismo, em 1956, na época da chamada “desestalinização”, retratados no livro de Peralva, mas igualmente das nuances do longo itinerário político e intelectual de Antonio Paim, vale a pena a citação:
No livro, Peralva optou por chamar pelos nomes próprios apenas aqueles dirigentes comunistas muito conhecidos. Nos demais casos, ele empregou sempre “nomes de guerra”, como se dizia na gíria comunista. Apesar de O retrato apresentar um documento importantíssimo de crítica ao comunismo, de modo geral, após o Golpe de 64, os militares arrolaram Peralva nos inquéritos sobre o Partido Comunista e o denunciaram por ter se recusado a decodificar aqueles nomes. Esse fato atesta bem a estreiteza de visão do grupo que, com a ditadura militar, se apossou da hegemonia.
O episódio, porém, possui o mérito de evidenciar que teria sido melhor correr o risco da chamada “ditadura sindicalista”, insuflada pelos comunistas e sonhada por João Goulart, do que tentar preservar a democracia por meio de golpes de Estado. (Antonio Paim, 2015, p. 12-13, grifos nossos).
Soveral acrescenta que Antonio Paim também veria a necessidade de “teorizar e praticar uma eficaz pedagogia do liberalismo”: “O momento inicial e indispensável dessa pedagogia consistirá na apologia e na prática de um liberalismo puro e duro, no estilo de Regan e da Senhora Teacher [sic]”[8] (SOVERAL, 1997, p. 169), assinalando assim a posterior adesão do filósofo baiano ao neoliberalismo. Todavia, é importante salientar que, quando nos concedeu a entrevista, Antonio Paim defendeu um programa de renda mínima universal, o qual é uma política mais identificada com a socialdemocracia do que com o liberalismo e, sobretudo, o neoliberalismo. Lá se vão mais de duas décadas desde que Soveral escreveu sobre Antonio Paim e, nesta entrevista, novas nuances de seu pensamento são evidenciadas.
Existem dois aspectos fundamentais na carreira de Antonio Paim: as disputas com as quais se envolveu na PUC do Rio de Janeiro e a fundação do Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro (CDPB).
Em 1979, Antonio Paim vivenciou forte polêmica que ocorreu na PUC do Rio de Janeiro, onde organizou e coordenou o Mestrado em Pensamento Brasileiro. Conforme relata Antonio Paim, no livro de sua autoria, Liberdade acadêmica e opção totalitária: um debate memorável[9], a professora Anna Maria Moog Rodrigues protestou e acabou se desligando da instituição, após um texto da autoria de Miguel Reale[10] ser vetado do programa de estudos, por parte do Chefe de Departamento, Henrique Lima Vaz. A instituição argumentava contra a atuação política de Reale, e alunos protestaram contra ele. Antonio Paim solidarizou-se à professora Rodrigues e ao autor vetado, e se desligou da PUC. O conflito é mencionado por Antonio Paim, nesta entrevista. O fato é que a polêmica se tornou pública e ganhou a imprensa, na época.
Em 1982, foi fundado o Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro (CDPB), sediado na cidade de Salvador, com apoio do governo do Estado da Bahia e de empresas privadas, sendo considerado entidade de “utilidade pública” por duas leis (uma municipal e uma estadual) e por um decreto do Presidente da República, José Sarney.[11] No ato da fundação, Antonio Paim fez doação de sua biblioteca pessoal ao CDPB e foi nomeado seu primeiro presidente.
O CDPB foi responsável pela publicação do Dicionário biobibliográfico de autores brasileiros: filosofia, pensamento político, sociologia, antropologia[12], que é praticamente um catálogo dos autores e obras disponíveis em sua biblioteca. Além do Dicionário, foi publicada a série Bibliografia e Estudos Críticos, dedicada a diversos intelectuais, tais como: Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), Alceu Amoroso Lima (1893-1983), Tobias Barreto (1839-1889), Jackson de Figueiredo (1891-1928), Silvio Romero (1851-1914) e Miguel Reale (1910-2006). Ademais, o CDPB editou uma série de índices das seguintes revistas: Revista Brasileira de Filosofia (1951-2000), Revista Convivium (1962-1987) e A Ordem (1921-1980).
Podemos afirmar que a entrevista não só traz aspectos importantes e inéditos da longa trajetória intelectual de Antonio Paim, que hoje fala de sua vida com a serenidade do tempo passado, mas também os dramas e a complexidade de quem conheceu o establishment de “fora” e de “dentro”, como opositor e parte da estrutura, pois vivenciou a perseguição contra os comunistas, quando foi do PCB e viveu alguns anos na Rússia soviética e, por outro lado, a estrutura de um partido da ordem, quando trabalhou no Instituto Tancredo Neves (PFL), na época da chamada redemocratização. Essas vivências compõem a singularidade da sua trajetória intelectual, e seu testemunho é parte da própria história do Brasil republicano no pós-Segunda Guerra Mundial, no pós-Ditadura e no início do presente século, história essa marcada por tantas reviravoltas e intensidades, assim como o próprio itinerário intelectual de Antonio Paim.
A seguir, as perguntas que foram feitas, durante a entrevista, seguidas da transcrição das respostas.
RG: Como o Professor caracterizaria sua formação intelectual, os principais momentos, que vão dos seus estudos de Marx e na antiga União Soviética, até os estudos de Kant e da corrente culturalista?
AP: Bom, eu era comunista, em consequência, formalmente pelo menos, sendo marxista. Eu ganhei uma bolsa, por conta do comunismo, e fui estudar em Moscou, na Universidade Lomonossov. É uma universidade clássica, do século XVIII. Eu apenas estudei o marxismo. O que aconteceu comigo, que entrei para o Partido Comunista, na altura dos meus vinte anos de idade, é que eu segui a popularidade enorme que a União Soviética ganhou no Brasil com a [vitória na Segunda] Guerra, a resistência em Stalingrado... Então ficou uma coisa popular. E aí, aquilo, no Brasil pelo menos, era o que havia de mais representativo da intelectualidade, fora os católicos. Entrava todo mundo para o Partido Comunista. Candido Portinari era um grande pintor brasileiro, foi para o Partido Comunista. Carlos Drummond de Andrade era um grande, talvez o maior, poeta brasileiro, com o perdão dos outros poetas. Ele entrou para o Partido Comunista. Quer dizer, todo mundo era do Partido Comunista. Naturalmente, não justifica o fato de que eu fosse “Maria vai com as outras”, mas explica, registra pelo menos o que aconteceu. Então, eu fiquei no Partido Comunista durante 10 anos, entre 1945-1956, até o Relatório Kruschev, que foi em 1956. Então, eu sair do Partido Comunista era uma coisa simples. Sair do marxismo não era simples. Realmente, eu fiz um esforço enorme, durante muitos anos. Formalmente, o que eu estudei na Universidade Lomonossov era equivalente a um doutorado. Eu fiquei quatro anos naquilo. E aquilo era um regime duro de seminário, que exigia que você lesse. Basta dizer que eu só consegui terminar o livro, que se chama Marxismo e Descendência, em 2002 [1. ed. 2009; 2. ed. 2019], mais ou menos.
Eu me aposentei da universidade em 1989, mais ou menos. Então, sendo muito bem relacionado com os portugueses, que imigraram para o Brasil, por conta da Revolução dos Cravos [ocorrida em 25 de abril de 1974], eu fiquei muito amigo do Professor Eduardo Soveral[13], que era um intelectual importantíssimo da Europa. Então, quando eu me aposentei no Brasil, eu fiquei como professor visitante da Universidade Nova de Lisboa [NOVA]. Eu ia uma vez por ano, fim do ano, na época do Natal, por exemplo, e ficava lá até antes ou depois do Carnaval. Durante vinte e tantos anos eu fiz isso. E eu aproveitei as circunstâncias para conseguir sair do marxismo. Lá, eu tinha a facilidade da biblioteca fantástica da NOVA e, além disso, eu me aproximei lá de um livreiro, que tinha trabalhado no Brasil, e fui muito amigo. O meu livro chama-se Marxismo e Descendência, eu li os marxistas mais importantes de tudo quanto é país. Durante anos, isso. E eu precisava ter acesso [aos livros]. Eu não ganhava exatamente pouco, era o suficiente para viver, mas não tinha nenhuma forma de ter uma biblioteca moderna, comprando livros. Eu me vali desse português que morou no Brasil e dirigia uma grande livraria. Durante muitos anos, durante os fins de ano, eu conseguia ler e consegui me safar.
Então, eu entrei no Partido Comunista e saí com facilidade. A primeira consequência: me cortaram a bolsa [universitária de estudos] lá na União Soviética. Saí do PC, perdi a bolsa. Então, por coincidência, em 1956, faleceu a senhora que fazia as traduções para a Rádio de Moscou, para o português, e eu fiquei no lugar dela. Me pagavam bem melhor que a bolsa. Eu não era da Rádio propriamente, me davam o que era para traduzir, eu traduzia, durante o tempo que eu fiquei em Moscou, uns quatro anos. Eu consegui sobreviver sem a bolsa.
RG: E como o senhor chega aos estudos de Kant e da corrente culturalista?
AP: Bom, a importância do marxismo é o fato que pertence a um movimento da maior importância da História da Filosofia. O idealismo alemão é uma coisa extraordinária. Naquele tempo, existia a Universidade do Brasil, década de 50. Eu me formei nessa universidade, bacharel em Filosofia. Eu fui incumbido nessa universidade de fazer uma cátedra, uma disciplina, de filosofia brasileira. O primeiro curso de filosofia brasileira fui eu que organizei, lá na universidade.
Na Universidade do Brasil, no Departamento de Filosofia, a gente tinha amizade com um cara que entendia do Kant no Brasil. Era o professor Leandro Ratsbona. Ele era meteorologista, responsável pela meteorologia no Brasil, e era da organização meteorológica internacional. O hobby dele era [estudar] o Kant. Ele e eu éramos dois sujeitos disciplinados. Sabe quantos anos eu estudei o Kant? Dezesseis anos, página por página da Crítica da Razão Pura, com o Ratsbona. Eu ia na casa dele, todo sábado de tarde. Ficava esperando que ele me acenasse da janela. Ali na [Rua] Barata Ribeiro que ele morava, numa esquina de Copacabana.
Eu fui escalado para dar aula no curso de História da Filosofia. Eu dava Kant e Hegel. O marxismo eu estudei na Rússia. Eu era um pouco melhor que os outros, mas, do ponto de vista do Ratsbona, era uma “brincadeira”. Ficamos muito amigos. É um método de estudo que não é factível. Uma pessoa isolada, um curso de você ler página por página. Eu fiz texto de como ler o Kant pela primeira vez, era uma coisa que tinha muita aceitação na universidade.
RG: Como o Professor caracterizaria sua trajetória política: os principais momentos, desde a militância comunista até o pensamento liberal e suas atividades no Instituto Tancredo Neves e na assessoria do Partido da Frente Liberal (PFL)?
AP: Muitas coisas aconteceram por acaso comigo, como a senhora que faleceu e eu a substituí na tradução [na Rádio Moscou]. Não queria dizer que eu fosse tradutor. Foi uma coincidência. Muito da minha trajetória política tem muito disso. Eu era comunista, fui comunista mesmo. Funcionário do Partido Comunista. Dirigente comunista. Perseguido pela polícia, preso. Eu fiquei preso dois anos e dois meses. Condenado a sete [anos]. Então eu me meti até o pescoço no Partido Comunista.
Com a saída [do PC, anos depois], eu me candidatei a uma assessoria. Era o começo da criação das fundações partidárias. Foram os alemães que inventaram isso. E como os alemães fizeram aquele grande estrago na Europa, o Konrad Adenauer, o primeiro presidente[14] não fascista após a derrota do Hitler, inventou um sistema de ter partido político forte, com gente de conhecimento da literatura e tal. Foi o começo das fundações partidárias. Eu trabalhava no mesmo prédio onde funcionava um dos cursos, no antigo prédio onde tinha sido o consulado italiano, com o rompimento das relações com o Eixo [na Segunda Guerra Mundial], ali naquela esquina da [Avenida] Antonio Carlos [, no Centro do Rio de Janeiro]. Eu me aproximei, fiz o primeiro concurso que fizeram para essa instituição que estava sendo criada. Era o batismo de fogo. Coincidência histórica, eu consegui o lugar.
Eu fui assessor do Jorge Bornhausen, que era o presidente do Instituto[15], a Fundação do Partido da Frente Liberal, que era obstinado, um grande dirigente. Ele reunia todos segunda-feira, de noite. O Parlamento funcionava na terça-feira. Na véspera, na segunda-feira, ele reunia um staff dele, e eu às vezes era chamado, quando havia uma questão teórica, transcendentemente, eu botava para estudar o assunto. Por exemplo: representação política. Eu dava uma espécie de conferência sobre como é que Burke criou uma doutrina da representação política, na chamada Carta de Bristol.[16] Depois, o Stuart Mill aderiu a essa teoria de que o representante tinha que ser superior ao representado. Era uma diferença intelectual, de formação intelectual. Era uma doutrina dos primórdios da doutrina [da representação]. Depois, com o desenvolvimento das fundações partidárias, é que se tomou conhecimento da doutrina do Benjamin Constant. Era a melhor definição. A representação política é representação de interesses. Então, os interesses são inconfundíveis. Os interesses religiosos são de um tipo, os interesses pecuniários são de outro. Os interesses do indivíduo são... Quer dizer, dá uma base social, do grupo, de um determinado grupo social. E ficou sendo a melhor doutrina.
O problema do partido político no Brasil não era com o Bornhausen: o Bornhausen não, ele obrigava a ler, a seguir [a doutrina]. Era o tempo do Vilmar Rocha[17] e fizemos um bom trabalho. Vilmar era o presidente [do Instituto Tancredo Neves]. Nós fizemos um curso, em doze volumes que nós imprimimos. Fizemos o curso com bastante sucesso. No PFL de Sergipe, por exemplo, a senhora [Maria do Carmo Alves], que depois virou senadora, sem nenhum proselitismo, aceitava dever pra casa. Tem muito trabalho [nos partidos]. A comissão dá um trabalho danado. Então, eles refugam, habitualmente, qualquer nova tarefa. São todos sobrecarregados. Naquele tempo, essa coisa [funcionava] pela persistência do Bornhausen. E o Vilmar Rocha fez um bom trabalho. Eu acho que o Vilmar tinha feito uma opção liberal. Eu entendia a opção liberal como sendo uma adesão ao governo representativo. Não ter nenhuma fantasia com relação à democracia direta, com a ideia da representação, e aprimorar, quer dizer, se você fez uma opção pela social-democracia, tem que saber o que é a social-democracia. Aqui no Brasil isso virou uma pro forma. Com trinta partidos políticos, você não pode levar a sério uma coisa dessas.
RG: Uma das suas primeiras atividades políticas e públicas, já durante a juventude, foi a sua militância no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Como foi a sua trajetória, as razões da sua entrada e dos conflitos que vieram determinar a sua saída do PCB?
AP: Eu não sei se você tem ideia do que seja o Relatório Kruschev. O Relatório é a responsabilização de todos os crimes cometidos pelo comunismo, prisões arbitrárias, fuzilamentos sem processo. Foi tudo atribuído ao Stalin, tudo foi o Stalin que fez. Aquilo ninguém aguentou. O Partido Comunista acabou em 1956. Acabou mesmo. Quer dizer, o Secretário Geral, no PC, que mandava. O Secretário Geral era o Diógenes Arruda[18], de uma família importantíssima de Pernambuco, a Arruda Câmara. O Arruda passou na China, na volta passou em Moscou. Eu estava lá, morando, e estava esperando que eles dessem um visto para trazer minha mulher. Os russos relutavam tremendamente, não sei por quê. A saída do país era uma dificuldade danada. Não era só comigo não. Eu casei com uma russa e eles não deixavam a mulher sair de lá. Eu fiquei muito tempo lá graças a eles. Então, ninguém aguentou aquilo.
Só para você ter uma ideia, o Agildo Barata, que era um revolucionário de 1935,[19] militar, popular, de uma família de militares, nome de Rua, Barata Ribeiro. O Agildo estava voltando dessa viagem, estava em Moscou, e eu o obriguei [a ler], o Partido Comunista, lá na Rússia, todo mundo leu aquilo. Mas eles resistiam muito à saída, mas não imaginavam aquela repercussão toda do Relatório. Para começar, existiam muitos boatos. Uma ditadura, as notícias circulam por boatos, fofoca. Então, dizia-se que Boleslaw Bierut,[20] que era apresentado como o “bicho” do Stálin, como um “serviçal”, era o presidente da Polônia. Dizem que o Kruschev[21] chamou ele e disse: “– Você não tem outra saída senão meter uma bala na cabeça.” Deu o revólver para ele, que deu o tiro e voltou para a Polônia morto, em um caixão. Não existe documento sobre isso. E aquilo provocou um drama danado na Polônia. Tiraram o Gomulka[22] da cadeia, expulsaram os generais que ocupavam posto militar. O Agildo Barata estava escrevendo um livro, para provar que o Relatório Kruschev era uma invenção da CIA.[23] Quer dizer, aquilo era um absurdo total.
Até hoje não se estabeleceram as razões pelas quais eles resolveram “fuzilar” o Stalin. Stalin era a grande figura, fez a revolução industrial da Rússia, da União Soviética. Ganhou a guerra. Era uma pessoa fora de série. Grande herói. “Pai dos pobres”, como se dizia no Brasil.
RG: Então sua saída do Partido Comunista se deveu...
AP: Foi o Relatório Kruschev. Aí “acabou” o Partido Comunista.
RG: O senhor estudou filosofia na Universidade Lomonossov de Moscou. Como eram os estudos de filosofia na antiga URSS? Qual era o sistema de ensino da filosofia?
AP: A Universidade Lomonossov era uma universidade antiga, do século XVII e tal. Na União Soviética, criaram um braço da universidade ligada à energia, à energia elétrica e a toda forma de energia. Então, havia um grande instituto, que aparecia nos jornais. Uma construção moderna da universidade e tal. A União Soviética apresentava aquela nova organização. E as partes antigas [da universidade], eu, por exemplo, a Faculdade de Filosofia onde eu estudava era junto da Faculdade de Direito e da Faculdade de Medicina, na parte velha de Moscou. Tinha o Kremlin, o Rio Moscou, umas construções, e ali naquela parte velha é que funcionavam as antigas faculdades. Do mesmo jeito, os comunistas não se meteram naquilo não. Aquilo era uma cópia do modelo francês. O modelo francês era das grandes escolas. Eles tinham o fundamental, a liberal art, quer dizer, a cultura geral que todo mundo estudava e, depois, a especialização era feita lá mesmo. Do Direito, da Medicina e da Filosofia. Portanto, a rigor [os comunistas] não mexeram [na universidade]. O ensino do marxismo era igual a qualquer outra universidade. O fato de que eu tenha estudado o Kant com o Ratsbona é uma coisa excepcional, não quer dizer que fosse inacessível. Poucas pessoas recorriam a esse estudo. Do ponto de vista da escolaridade, não havia grande diferença. Era uma cópia do modelo francês, inclusive a língua. Houve uma época em que o Pedro, o Grande[24], obrigou a elite russa a falar francês. Todo mundo falava francês.
RG: Como eram as suas relações intelectuais com o seu irmão, Gilberto Ferreira Antonio Paim (1919-2013), um importante intelectual, e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)? O Professor chegou a estabelecer alguma relação com o ISEB?
AP: Eu tenho uma informação perfunctória sobre o ISEB. O Gilberto era um cara muito importante na Fundação Getúlio Vargas e ele a representava no ISEB. O próprio Roberto Campos[25] pertenceu ao ISEB. Eu nunca me aproximei do ISEB. Eu tinha um professor lá [na Universidade do Brasil], que era o catedrático de História da Filosofia, que era do ISEB. Eu nunca me aproximei dele por essa via e o Gilberto não fazia proselitismo com a família. Quer dizer, nunca fez menção que eu ia [para o ISEB]. Primeiro, que o ISEB era uma elite. Eu tenho a impressão que faltava à elite nacionalista, o que era uma novidade, [uma proposta]. Por exemplo, o Partido Comunista era internacionalista. Mas o movimento capitaneado pelo ISEB era nacionalista. Eles não tinham uma proposta. Eu suponho que eles conseguiram a proposta através do Getúlio Vargas. O Vargas é uma coisa mal estudada, porque o comunismo penetrou muito no Brasil, em certas instituições e fomentou o ódio aos Estados Unidos, sem nenhuma procedência. Quem criou [a usina siderúrgica de] Volta Redonda foram os Estados Unidos. A Comissão Mista Brasil-Estados Unidos[26] é que deu o programa de industrialização para o Brasil. Não se fala no assunto, é como se não tivesse havido o fato. Criou-se a mentalidade que os Estados Unidos eram contra a industrialização brasileira. É mentira. É mentira flagrante. É a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos que deu o programa de modernização, de industrialização que foi aplicado pelos militares.
Havia uma discussão no Brasil sobre o progresso etc. O que os comunistas fizeram foi discutir, para eles o desenvolvimento econômico obedecia uma lei, tinha que começar pelo comunismo primitivo, depois seguia, era substituído pelo escravagismo, pelo feudalismo, depois pela industrialização e, por fim, pelo socialismo, pelo comunismo. Aquilo todos liam, toda essa discussão acabava interessando apenas um grupo muito pequeno de comunistas. E mesmo os caras do Partido Comunista estavam se lixando para essa discussão. Uma minoria no próprio Partido discutia o caráter da revolução brasileira. Os caras do Sul, os castilhistas, os getulistas, quadradamente, sempre entendiam como sendo o problema da industrialização, a revolução que o Brasil precisa é a revolução industrial, e eles criando no segundo governo Vargas. O Vargas foi deposto, depois foi eleito. Nesse governo não se fala. Uma influência nefasta do comunismo, a verdade é que não digo nenhuma novidade.
RG: Como o Professor chegou aos estudos do “Pensamento Brasileiro”, o qual se tornou o objeto principal de pesquisa? Assim como outros destacados intelectuais brasileiros, o seu interesse pelo Brasil está de alguma forma associado a sua estadia no exterior?
AP: Eu era secretário do jornal comunista. Quando eu entrei, era um garoto de 19 anos, e fui ser jornalista da Tribuna Popular.[27] Quando entrei para o Partido Comunista, fui convidado a ser da Tribuna Popular. Eu não era jornalista coisa nenhuma. Fui aprender, eu fiz um estágio na seção internacional do jornal. O jornal era dividido por seções. Seção de esporte, eu andei com o João Saldanha[28] pra cima e pra baixo. João Saldanha era comunista. E eu fiz meu estágio, inclusive morando na casa dele, e levava a sério a formação. Eu, enfim, assumi a secretaria do jornal. O secretário do jornal é aquele que edita o jornal, diz qual vai ser a manchete. [Trabalhava] Até de madrugada, duas horas da madrugada. Se tem alguma discussão no Parlamento, é o secretário que diz se continua ou se não vai [ser publicado]. Enfim, é o “todo poderoso” na hora da edição. E no dia seguinte levava porrada, porque os outros não concordavam. Mas aquilo já passou, já acontecia a mesma coisa no dia seguinte. Eu fui preso quando tentaram fechar o jornal. [Antes disso,] Eles pediam para fechar o jornal trazendo uma ordem judicial. Nesse dia, não trouxeram uma ordem judicial e eu também resolvi não entregar o jornal. Resisti, foi tiro pra lá, tiro pra cá. E eu fui condenado a sete anos, e depois a tive a pena reduzida para dois anos e dois meses.
Os dois meses iniciais da minha prisão foram um martírio enorme. O comandante do presídio era um louco, anticomunista. Eu sobrevivi, porque tinha uma boa saúde. Era pra matar mesmo. Eu vivia na solitária, que era um “apartamento” sem nada, só tinha o aparelho para fazer [necessidades]. [Ficava] nu da cintura para cima e dormia no piso de azulejo. Negócio para matar o cara. Quando passou para a penitenciária, o presidente de lá era um homem civilizado. Os comunistas eram organizados no chamado “coletivo”. Eu era “presidente” do coletivo. Então, eu falava com a chefia do presídio, era comigo que ela se entendia. No primeiro dia, durante a conversa, o diretor do presídio mostrou que era um homem muito civilizado. Ele me aconselhou: “– Se você não botar esse pessoal para trabalhar, seja no que for, você bota para trabalhar, se não vão lhe atucanar na sua vida. Você tem ocupar eles. Eu pago um salário para eles.” Tinha um monte de profissões lá e o sujeito dava o pagamento para a família. E havia mais uma franquia que era você ter relações sexuais com uma pessoa, uma vez por semana. Aquilo era um achado. O diretor do presídio me disse: “– Vou dar uma incumbência a você. Mas você não vai me fazer nenhuma traição. É o seguinte: eu preciso de alguém que me organize a biblioteca, que tenha o poder de comprar livros. Você não vai levar livro comunista [para a biblioteca]. Você assume o compromisso comigo.” Cultura não tem nada que ver com isso. Então, eu trabalhei dois anos como diretor da biblioteca do presídio. Nesse período, eu li, por exemplo, o Silvio Romero todo. E li o Tobias Barreto. O esboço do livro, que, quando saí da cadeia, publiquei, que era A Filosofia da Escola do Recife[29], que era uma escola importante.
Depois disso, me aproximei do professor Miguel Reale. Eu esbarrei no Tobias Barreto com uma coisa que eu não sabia como chamar aquilo. Ele fez uma cisão no positivismo. O positivismo virou uma religião oficial do Brasil, tinha inclusive a igreja positivista. Era oficial, era a igreja do Augusto Comte. O Tobias Barreto rompe com aquilo e cria uma nova frente que eu não sabia como chamar. Chamei de “humanismo” e o Reale chamava de “culturalismo”. Foi um grande achado pra mim. É um mundo que se apreende. Então, eu me aproximei do professor Reale e vi que ele era um espírito superior, tinha uma noção do Brasil muito positiva e conhecia os intelectuais brasileiros. Tinha livros escrito sobre o assunto. E o professor Reale foi nomeado representante de São Paulo no Conselho Federal de Cultura.[30] Vinha uma vez por mês ao Rio de Janeiro, passava uma semana. Então, eu me aproximei muito dele. Era um homem brilhante. Realmente, uma grande figura.
RG: Durante a sua trajetória política e intelectual, o Professor construiu uma estreita parceria e colaboração com Paulo Mercadante (1923-2013), um importante intelectual no campo da história das ideias. Como surgiu essa aproximação e qual a importância dessa parceria com Mercadante, em sua trajetória?
AP: Paulo Mercadante era comunista, era de uma família de intelectuais de Minas Gerais. O pai dele era uma figura importante da política.[31] E até à Constituição [de 1946], [Xenofonte Mercadante] era ligado ao Benedito Valadares[32], que era um interventor da ditadura do Estado Novo. Paulo era um homem muito sensato. O Paulo, sem nenhum exagero, escreveu um livro magnífico, A consciência conservadora no Brasil. Um assunto que ninguém tinha coragem de abordar, de exaltar. Era um intelectual independente, de grande caráter.
RG: O Professor tinha relações com o filósofo Luís Washington Vita (1921-1968), outro importante historiador das ideias no Brasil, que foi secretário do IBF entre 1960 e 1968? Como foram essas relações?
AP: O Vita foi um grande amigo meu. Ele editava a Revista [Brasileira de Filosofia] e ele que me estimulou a escrever a História das ideias filosóficas no Brasil. Eu tinha feito um trabalho, publiquei umas coisas, e não tinha ideia de fazer uma história. E faltava naturalmente alguma coisa sobre o positivismo. E o Vita me obrigou: “– Se você não faz, eu atribuo a você!” – e ficamos muito amigos. O Vita era uma figura extraordinária. Ele era um “irresponsável”. Ele não levava a sério as coisas; por exemplo, ele me mandou um xerox de um diagnóstico e escreveu nas costas uma mensagem, quer dizer, era um debochado, era uma figura extraordinária, bem-humorado, sem formalidade nenhuma. Ao contrário do Reale, que era um homem muito formal. O Vita era uma figura, morreu muito cedo.
O ensino da filosofia brasileira já foi obrigatório. Não conseguimos elaborar um programa [de ensino], acabou naquela briga na PUC, se politizou o assunto. Eu retomei o assunto, espero antes de morrer deixar resolvido, eu fiz uma história da filosofia brasileira, vai ser publicado, se supõe que publicaremos em seguida.[33]
RG: Como o professor vê o pensamento liberal e conservador no Brasil de hoje?
AP: O Brasil de hoje é muito perturbado e há uma proliferação de partidos políticos. No tempo do Tancredo Neves, da Assessoria do Partido da Frente Liberal, não houve meio de a gente conseguir reproduzir algumas exigências mais substanciais sobre a criação de partidos. Virou um negócio... O cara arranja 60 mil assinaturas, e o Tribunal [Superior Eleitoral] dá com a maior facilidade, não tem maiores exigências. Nós não conseguimos mudar esse regulamento. Ultimamente, eles conseguiram introduzir algumas precauções: é preciso que, na eleição, tenha tanto número [mínimo] de votos, parece que reduziria para dez [partidos], não sei quantos. Mas é um absurdo. A representação política, sendo [representação] de interesses, ela tem poucas formações políticas, poucos sistemas. Seria o socialismo, que, com a social-democracia, eles introduziram a economia de mercado e abandonaram a ideia de estatizar a economia, de ter o monopólio generalizado, quer dizer, essa é a social-democracia. A grande invenção, na minha opinião, a intervenção do Estado em favor do mais pobre, a grande invenção é a renda mínima, o programa de renda mínima, o social security. Os Estados Unidos adotaram o uso. É uma coisa extraordinária. O sujeito trabalha num lugar e é explorado, enfim, chega no fim do ano – todo mundo nos Estados Unidos é obrigado a declarar o imposto de renda –, quem não chega a vinte e tantos mil [dólares] por ano, eles complementam a renda. Tanto que é uma pressão muito grande na migração atrás disso. Mas eles zelam pelo cumprimento normal. É uma mudança mesmo no capitalismo, na minha opinião. Social-democracia, de modo que tem a social-democracia hoje, tem o liberal, o liberal-conservador, uns quatro ou cinco sistemas econômicos.
RG: O conflito tradicional entre conservadorismo, liberalismo e marxismo parece ter assumido, hoje, novas formas. As novas pautas culturais e de costumes, como as questões de gênero, significaram um deslocamento das antigas clivagens político-ideológicas. Como o Professor vê esses conflitos de hoje?
AP: Essa coisa de gênero, eu pessoalmente não engoli isso até hoje. Você transformou a mulher numa coisa muito pior, a mulher sempre teve uma posição laudatória, mulher bonita, cultuada, fotografada, desenhada, grandes pintores fizeram o retrato. Não sei se melhorou, não tenho informação. A minha repugna é essa coisa de gênero. Não entendo como uma clivagem. As mulheres sempre foram bem tratadas, essa que é a verdade. O que me parece superficial eu vou dizer: a mulher, no gênero, ela quer substituir o homem. Me parece que não seja esse o caminho. Você não pode acabar com a família. A mulher vai ter sempre um papel destacado na formação das pessoas. É impossível, a criança é absolutamente dependente. Vai ter que encontrar um meio termo aí nesse negócio, de maneira que... Do jeito que as coisas vão, as mulheres vão se ocupar dos assuntos que afetam os homens, e as crianças? Não me satisfaz essa chamada “clivagem” não.
RG: Como o Professor vê a filosofia e o seu ensino no Brasil de hoje? Qual o balanço da sua longa atividade como historiador das ideias?
AP: Eu não sei lhe dizer o ensino de filosofia em algumas universidades, que são universidades respeitáveis, uma Unicamp, uma USP[34], de padrão internacional. Apesar disso, no que diz respeito às ciências sociais, há uma politização excessiva. Na minha formação de professor, a primeira coisa que a gente aprendia era: o professor tinha que começar dizendo qual era a doutrina que ele fazia parte, “sou marxista, sou comunista, sou socialista, e eu procurarei não influir na pauta que eu tenho que defender aqui, então eu vou procurar ensinar não me excluindo, o que eu acho como militante.” Por exemplo, não seria nunca um socialista, social-democrata é possível. Isso é resultado da proibição, uma perseguição absurda. Eu, um menino de 20 anos, ficar dois anos preso por defender uma ideia. Depois, eu fui dirigente comunista, vivia sendo perseguido. Tinha que mudar de nome, vivia escondido, quer dizer, um negócio absurdo.
RG: Como o Professor avalia a atualidade dos estudos sobre o Pensamento Brasileiro? O Professor tem acompanhado os novos estudos do Pensamento Brasileiro, dos autores Ivan Domingues e Paulo Roberto Margutti Pinto?[35] Como o senhor vê esses novos estudos?
AP: Não me interessei mais por acompanhar. Me pareceu, por conta daquela briga na PUC, havia uma polarização em torno do [Henrique] Lima Vaz. Ele assinou aquela carta, negócio dos estudantes. Ele voltou da Europa com uma assistência dos jesuítas junto dos estudantes e encampou aquilo. Aquilo é o único documento, na História do Brasil, que você tem uma opção pelo partido único. É um absurdo aquilo. Então, ele tinha que se retratar, como os outros fizeram. Então, ele se recusou a se retratar. E como se recusou a se retratar, continuou até hoje a favor. Ele já morreu. Então, em torno dessa história, polarizou-se uma coisa desnecessária. Não tinha por que politizar uma questão de que diz respeito ao ensino. Não é esse o caminho. Então, eu não acompanhei, não tenho opinião e estou aqui em torno disso. É uma questão idiota, quer dizer, é uma coisa significativa para minha geração, a adesão ao partido único é uma opção que nem os partidos comunistas faziam mais. E o Partido Comunista era a favor da democracia popular. Era um jeito de o Partido Comunista continuar mandando, mas era mais civilizado, vamos dizer assim, então não tem por quê. Então, não repeti as mesmas coisas, fiz uma declaração a respeito da minha posição. O Vaz é um homem de grande valor, eu examinei a obra dele, na História das ideias filosóficas no Brasil, e me dei por satisfeito.
RG: Eu terminei de fazer as perguntas. Eu fico muito grato ao senhor pela disposição e pela disponibilidade por conceder esta entrevista.
AP: Eu que agradeço, perdoe a minha dispersividade, eu acho que foi satisfatório.
Interview
THE LONG TRAJECTORY OF A BRAZILIAN INTELLECTUAL: ANTONIO PAIM, PHILOSOPHER AND HISTORIAN OF IDEAS
Abstract: We present a synthesis of the trajectory of the philosopher and historian of ideas Antonio Paim, followed by the interview we did to him. In the interview, the philosopher recounts his long intellectual journey, which went through marxism and kantism. His political career went through communism in youth and liberalism in maturity. Paim knew what it is like to be a dissident, when he was a member of the Communist Party and ended up being a political prisoner, and what it is like to be linked to the establishment, when he was an advisor to the presidency of the Liberal Front Party. Paim's long intellectual trajectory, with its changes and intensities, refers to the very history of republican Brazil, with its dramatic twists and turns. Being an unprecedented report, the interview helps to understand the brazilian intellectual culture of the second half of the 20th century and how intellectuals articulate themselves in relation to power.
Referências
CENTRO de Documentação do Pensamento Brasileiro (CDPB). Índice da Revista Brasileira de Filosofia (1951-2000). Salvador: CDPB, 2005.
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Recebido: 22/03/2022
Aprovado: 19/06/2022
CRISIS DE LOS CUIDADOS Y CRISIS DE LA DEMOCRACIA[36]
Resumen: Este artículo discute el significado político de la crisis de los cuidados en su relación con la crisis de la democracia. Desde las éticas del cuidado y la teoría crítica se caracteriza, en primer lugar, a los cuidados como un tipo específico de práctica social y política. En segundo lugar, se examinan los problemas éticos y políticos derivados de una organización social de los cuidados según principios de mercado. Se concluye abordando la pregunta por una solución democrática a la actual crisis de los cuidados.
Palabras clave: Cuidados. Democracia. Crisis. Teoría crítica.
INTRODUCCIÓN
La denominada “crisis de los cuidados” es, sin duda, uno de los fenómenos más importantes del presente. Bajo esta denominación, durante los últimos años se han venido identificando un conjunto de dificultades que enfrentan las sociedades contemporáneas para garantizar la sostenibilidad de distintas prácticas de cuidado cotidiano sobre las cuales descansa, en último término, el bienestar y la reproducción social en general (DOWLING, 2021).
Si bien desde el feminismo hace ya bastante tiempo se venían diagnosticando tanto la desigual distribución como la falta de reconocimiento de las tareas de cuidado (FRASER, 2016; HOCHSCHILD, 2012), ha sido sobre todo en los últimos años que la atención pública se ha desplazado con fuerza hacia el problema de los cuidados:
La crisis del cuidado se ha vuelto particularmente aguda en los últimos cuarenta años, ya que los gobiernos aceptaron el posicionamiento casi omnipresente del capitalismo neoliberal y la búsqueda de la ganancia como el principio organizador de la vida. Esto ha significado priorizar los intereses y flujos de capital financiero, mientras se desmantela despiadadamente los estados de bienestar y los procesos e instituciones democráticas. Como hemos visto, este tipo de lógica de mercado ha dado lugar a políticas de austeridad que han reducido significativamente nuestra capacidad para contener la actual pandemia. (CHATZIDAKIS; HAKIM; LITTLER; ROTTENBERG; SEGAL, 2020, p. 3).
La actual crisis de los cuidados parece así enmarcarse en una crisis más amplia que afecta al valor de igualdad en las sociedades contemporáneas, alcanzando – en último término – al valor mismo de la democracia (BROWN, 2019). En tal sentido, desde distintas perspectivas se ha comenzado a sugerir que la crisis de los cuidados no solo vendría a expresar y reproducir las desigualdades sociales, sino a su vez amenazaría la realización de los valores democráticos: “[…] sin una concepción más pública del cuidado, es imposible mantener una sociedad democrática.” (TRONTO, 2013, p.18).
¿Cómo se relaciona, en efecto, la crisis de los cuidados con la crisis de la democracia? ¿En qué sentido ambas crisis se relacionan con el lugar que han asumido los mercados y su racionalidad como instancias organizativas de la vida social durante las últimas décadas? ¿Cómo entender la idea de una política democrática en el ámbito de los cuidados? Buscando avanzar en la reflexión en torno a estas preguntas, el presente artículo elabora un diálogo entre dos importantes corrientes del pensamiento político y la filosofía social contemporánea: las éticas del cuidado y la teoría crítica de la sociedad, en especial su versión contemporánea elaborada por Axel Honneth.
En efecto, desde el campo de las éticas del cuidado se han abierto paso durante los últimos años distintas reflexiones que – sobre la base de redefinir el significado de valores políticos como la igualdad, la justicia o la autonomía – han formulado sugerentes perspectivas críticas a propósito de los problemas de las democracias contemporáneas (DARAT, 2021). A su vez, la teoría de la justicia elaborada por Axel Honneth en las últimas décadas a partir del concepto hegeliano de “reconocimiento” (Anerkennung), ha contribuido de manera significativa a renovar el programa filosófico de una crítica de las sociedades capitalistas guiada por un interés por la emancipación (ZURN, 2015). A partir de un diálogo entre ambas líneas de pensamiento se busca comprender en lo que sigue, entonces, el significado político de la crisis de los cuidados en su relación con la crisis de la democracia.
Con este propósito, el argumento se desarrolla a continuación de la siguiente manera. En primer lugar, mediante una revisión de algunos supuestos ontológicos y normativos compartidos entre las éticas del cuidado y la teoría del reconocimiento de Axel Honneth, se busca caracterizar a los cuidados como un tipo de práctica social y política relevante para una crítica de las sociedades contemporáneas. En segundo lugar, asumiendo como base normativa aquellos supuestos, se aborda enseguida la pregunta por el posible significado político de la crisis de los cuidados. En especial, se intenta mostrar que tanto las éticas del cuidado como la teoría del reconocimiento permiten sostener una crítica ética de las consecuencias de la expansión de los mercados sobre la organización social de los cuidados. Esto es, desde ambos enfoques se puede argumentar que los mercados no solo generan consecuencias injustas en el ámbito de la distribución de los cuidados, sino a la vez deterioran el significado de valores éticos y políticos relevantes, entre ellos, la idea misma de democracia. A la luz de este recorrido argumentativo, las consideraciones finales retoman brevemente la pregunta por una posible solución democrática a la crisis de los cuidados.
1 CUIDAR COMO PRÁCTICA SOCIAL Y POLÍTICA
Durante largo tiempo, los cuidados permanecieron fuera de las preocupaciones más centrales del pensamiento político y la filosofía social. Su consideración como “naturales”, meramente “afectivos” o restringidos a la esfera privada, contribuyeron históricamente a situar a los cuidados más allá del campo de inquietudes normativas características de la teoría política y la filosofía moral (TRONTO, 1993). Recién con las denominadas “éticas del cuidado” durante los años ochenta, en especial con la pionera obra de Carol Gilligan In a Different Voice (1982), la discusión sobre su significado comenzó a recibir una creciente atención. En la actualidad, por el contrario, la reflexión sobre los cuidados ocupa un destacado lugar en los más importantes debates normativos en torno a problemas de justicia y democracia, así como también en las agendas relacionadas con la formulación de políticas en variados ámbitos de la sociedad (ESQUIVEL, 2015; NODDINGS, 2013; ENGSTER, 2007).
En estos recientes debates, sin embargo, se advierten muy variadas aproximaciones a su descripción en tanto práctica específica. O como sostiene Anca Gheaus (2009, p. 64), el concepto de cuidado, tal como “[…] se emplea en la literatura sobre ética feminista del cuidado, se entiende mejor como un grupo de conceptos con una fuerte semblanza de familia.” No obstante, un terreno compartido parece encontrarse al menos en un conjunto de premisas ontológicas y normativas que permiten ubicar a los cuidados en tanto un tipo específico de práctica social y política. Son estas premisas, como se intentará mostrar a continuación, las que justifican a su vez la posibilidad de un diálogo con la versión contemporánea de la teoría crítica elaborada por Axel Honneth.
En primer lugar, una premisa ontológica relevante de las éticas del cuidado consiste en su crítica del individualismo (GROENHOUT, 2004). A diferencia del modelo de un individuo radicalmente independiente, autónomo y dueño de sí mismo que identifican en el núcleo de las concepciones filosóficas liberales, las éticas del cuidado buscan asumir como punto de partida el “[…] carácter relacional (relatedness) de los seres humanos.” (HELD, 2006, 30). Se trata así de subrayar la existencia de una interdependencia básica entre los individuos, pues tanto su desarrollo primario como su conservación resultarían estrictamente dependientes de una serie de prácticas de cuidado. Los cuidados no son vistos, por tanto, simplemente como acciones unidireccionales de satisfacción de necesidades, tal como tienden quizás a aparecer a primera vista, sino más bien como un entramado de prácticas sociales recíprocas que hacen posible, en último término, la reproducción de la vida individual y colectiva: “Los individuos son proveedores y receptores de cuidado todo el tiempo, aunque las capacidades y necesidades de cada persona cambian a lo largo de la vida.” (TRONTO, 2013, p. 30).
No es difícil encontrar una premisa ontológica semejante, al menos en su orientación general, en la base de la teoría de la justicia de Honneth. Según su lectura, la filosofía de Hegel marca precisamente una ruptura en la historia del pensamiento político moderno en la medida que instala a una dimensión ética de la intersubjetividad social – a saber, a las relaciones de reconocimiento recíproco que constituyen a la “eticidad” (Sittlichkeit) – como condición de posibilidad de la existencia de los individuos y la afirmación de su autonomía (HONNETH, 2018). Desde aquí, amparado además en los recursos conceptuales de la psicología social de Mead, extrae entonces aquel punto de vista sistemático según el cual “[…] el sujeto humano le debe su identidad a la experiencia de un reconocimiento intersubjetivo.” (HONNETH, 2012, p. 114). En la base de la teoría crítica de Honneth se encuentra así, de manera coincidente con la orientación normativa de las éticas del cuidado, una visión según la cual la dependencia con respecto a otros (en este caso entendida como la necesidad de una positiva afirmación de la propia identidad o “reconocimiento”) no representa únicamente una etapa situada en las fases primarias de la socialización, sino más bien un hecho permanente inscrito en el núcleo moral de la vida en sociedad.
Precisamente en virtud de este punto de partida intersubjetivo, tanto las éticas del cuidado como la reflexión de Honneth pueden ser leídas como empresas teóricas situadas dentro del marco más generales de esfuerzos contemporáneos que buscan extraer las consecuencias éticas y políticas de nuestra mutua dependencia y vulnerabilidad (MENA, 2021; MACKENZIE; ROGERS; DODDS, 2014). Para las éticas del cuidado se trata, conocidamente, de resaltar que aun cuando “[…] las imágenes típicas del cuidado son aquellas en que adultos sanos cuidan a niños, ancianos y enfermos, también sucede que todos los adultos sanos reciben cuidados de otros y de ellos mismos todos los días”, razón por la cual es necesario reconocer a fin de cuentas que, en su conjunto, “[…] los humanos somos frágiles y vulnerables.” (TRONTO, 2013, p. 30).
Por su parte, también en el núcleo normativo de la teoría de la justicia de Honneth se encuentra el problema de la vulnerabilidad (PETHERBRIDGE, 2021). En este caso, la necesaria dependencia de relaciones intersubjetivas de reconocimiento para garantizar la propia identidad y autonomía conlleva, a su vez, la permanente posibilidad de padecer distintas experiencias de privación o negación de dicho reconocimiento (ANDERSON Y HONNETH, 2005). Estas últimas representan, conocidamente, aquello que Honneth ha propuesto interpretar como experiencias morales de “menosprecio” (Mißachtung), esto es, fenómenos de injusticia que son vividos como experiencias de “humillación” o “falta de respeto” (HONNETH, 2003, p. 140) a raíz de la vulneración injustificada de una expectativa legítima de reconocimiento social.
Esta consideración ontológica acerca del significado de la vulnerabilidad humana tiene a su vez consecuencias, tanto en las éticas del cuidado como en la reflexión de Honneth, en el tipo de demandas morales que consideran debe atender una teoría de la justicia. En efecto, mientras en sus inicios los debates en las éticas del cuidado giraron más bien en torno a una contraposición normativa entre “cuidado” y justicia”, hoy parece existir un amplio consenso en considerar a los cuidados como prácticas sociales que “[…] en sí mismas ya incorporan variados valores, a menudo no reconocidos” (HELD, 2006, p. 37), los cuales pueden ser asumidos como puntos morales de referencia al momento de examinar las más diversas preguntas en ámbitos tales como justicia o democracia.
De esta manera, a pesar de diferencias en sus usos más específicos, las éticas del cuidado contienen en general en su “núcleo normativo” la idea que “[…] las relaciones de dependencia generan deberes” (COLLINS, 2015, p. 2) en el campo de la justicia. En especial, se trata de destacar la existencia de demandas morales derivadas de las necesidades de otros (sobre todo de quienes no pueden satisfacerlas por su propia cuenta), las cuales no pueden ser comprendidas a cabalidad en su carácter de obligación de justicia si asumimos únicamente el punto de vista más restringido del necesario respeto equitativo de derechos y libertades entre individuos “mutuamente desinteresados”[38] que caracteriza a las teorías liberales de justicia (SLOTE, 2015).
La teoría de Honneth, por su parte, se caracteriza de manera significativa también por buscar ampliar el foco de preocupación de las teorías liberales de la justicia. En su caso, esta apertura asume al menos dos expresiones relevantes. Por una parte, Honneth (2003) cuestiona que dichas teorías, al poner el acento en el problema de la “distribución”, con frecuencia pasan por alto los contenidos morales (expectativas de reconocimiento) que necesariamente conlleva toda experiencia de injusticia, incluidas aquellas que tienen lugar en el terreno de la distribución económica. Y, en segundo lugar, de manera coincidente con el cuestionamiento recién descrito desde las éticas del cuidado, Honneth (2012) argumenta que las teorías liberales tienden a privilegiar además la dimensión jurídica de la justicia, pasando entonces igualmente por alto aquellas experiencias de injusticia que se suscitan en relación con otros principios normativos de reconocimiento, por ejemplo, el “amor”.
Considerando estas premisas ontológicas y normativas comunes, es posible apreciar finalmente – tanto en las éticas del cuidado como en la teoría del reconocimiento – una redefinición del significado de aquellos valores políticos que están en el centro de la noción de democracia, esto es, las ideas de libertad e igualdad. A juicio de Virginia Held (1993), por ejemplo, las prácticas de cuidado vienen justamente a desmentir los presupuestos más básicos de una concepción puramente “negativa” de la libertad, esto es, la imagen según la cual la propia libertad consiste ante todo en disponer de un espacio protegido frente a las intromisiones de otros. Pues ya en las prácticas cotidianas de cuidado infantil, argumenta, se expresarían formas de ejercicio de poder e interferencia que, en lugar de una injustificada intromisión, buscan más bien promover o “empoderar” la libertad de otro (HELD, 1993, p. 209).
Un punto de vista similar puede encontrarse también en otras exponentes de la ética del cuidado, por ejemplo, en Joan Tronto. Según su consideración, si asumimos que las relaciones de cuidado representan un rasgo permanente de la vida humana, es necesario disolver la oposición entre “libertad” y “dependencia”: “Incluso si pudiésemos estar libres de todas las formas de dependencia, eso no sería una vida libre, sino una vida desprovista de sentido. La dependencia marca la condición humana desde el nacimiento hasta la muerte.” (TRONTO, 2013, 94). Por último, también se ha sostenido que sería precisamente aquella idea “negativa” de libertad la que se encontraría en la base de una rígida separación entre las esferas pública y privada que actúa impidiendo, a fin de cuentas, una adecuada comprensión del carácter social de los cuidados (NODDINGS, 2002).
De manera coincidente, también Honneth ha buscado ampliar la comprensión del valor de la libertad para una teoría de la justicia. Más allá de la clásica dicotomía entre libertad “negativa” y “positiva” propuesta por Isaiah Berlin (2002), Honneth (2020) identifica en la “cultura normativa” de las sociedades modernas también un tercer modelo de libertad, que propone entender como “libertad social” en la medida que correspondería a una afirmación de la autonomía individual solo posible de alcanzar a través de relaciones recíprocas de reconocimiento. Se trataría, en suma, de una experiencia específica de libertad en la cual los vínculos éticos con otros no representan un límite o potencial amenaza, sino – muy por el contrario – su condición misma de posibilidad.[39]
Finalmente, tanto las éticas del cuidado como la teoría del reconocimiento suponen a su vez una redefinición del valor político de la igualdad. Desde el punto de vista de la ética del cuidado, un significado básico de la igualdad radica en el hecho de ser igualmente necesitados de cuidados: “[…] somos iguales como ciudadanos democráticos en tanto receptores de cuidados […] la dependencia de otros para ayudar a cumplir con las necesidades de cuidado se convierte en la base de la igualdad.” (TRONTO, 2013, p. 29). Si bien dichas necesidades pueden ser descritas de distintas maneras y resultan ciertamente diferenciadas según las condiciones de cada individuo, en general las éticas del cuidado sostienen que su satisfacción igualitaria también exige respetar el igual valor moral que corresponde como tales a los individuos. Por el contrario, si no se considera esta dimensión básica de la igualdad, existiría siempre el riesgo que los cuidados sean “percibidos como irrespetuosos y rechazados por las mismas personas a quienes se pretende ayudar”, de tal manera que “[…] para que una acción sea cuidadora (caring) al menos debe cumplir con estándares de decencia social.” (ENGSTER, 2015, p. 27).
Desde la teoría del reconocimiento, por su parte, el significado de la igualdad es redefinido también acorde con la ampliación normativa del concepto de justicia antes descrita. Honneth (2003) considera así que el significado y validez del principio de justicia que encarna la idea moral de “igualdad de trato” debe extenderse más allá de la esfera jurídica, incluyendo también los principios de reconocimiento del “amor” y la “solidaridad” que serían igualmente constitutivos de las sociedades modernas. En relación con cada uno de estos principios de reconocimiento, el valor de la igualdad asume, entonces, un contenido normativo distinto. Si en la esfera del “derecho” se trata de una igualdad de estatus político (ciudadanía), en el caso de las relaciones reguladas por el principio del “amor” corresponde a la posibilidad de ser reconocido como un sujeto con necesidades afectivas y corporales, mientras que en el ámbito de la “solidaridad”, el valor de la igualdad se expresaría finalmente en la posibilidad de disfrutar de una “valoración social” de las propias capacidades a propósito de la contribución que se realiza a la comunidad en el marco de la división del trabajo (HONNETH, 1997, p. 148). En definitiva, una sociedad democrática debiese atender el conjunto de expectativas morales de igualdad que se organizan en torno a los distintos principios de reconocimiento.
Son estas premisas ontológicas y normativas de las éticas del cuidado y la teoría del reconocimiento, en suma, las que pueden contribuir – como se argumentará a continuación – a comprender el significado político de la crisis de los cuidados a propósito de su relación con la crisis de las democracias contemporáneas.
2 LOS PROBLEMAS DEL MERCADO
de un lado, quienes pueden comprar servicios de cuidado para sí y sus cercanos en el mercado, y del otro, quienes – sobre todo en virtud de factores como la clase, el género o la etnicidad – se ven más bien forzados a cuidar a otros en labores con baja remuneración y escasa valoración social (GLENN, 2010).
Ya desde aquí es posible sugerir un primer sentido en que la crisis de los cuidados se vincula con la crisis de la democracia. En efecto, si la idea democrática se define (en general) por un principio político de igualdad, no es difícil identificar en el núcleo de la crisis de los cuidados precisamente una manifestación de la crisis del valor de igualdad en las sociedades contemporáneas. Esta crisis de la igualdad, leída desde los cuidados, supone no solo la existencia de dificultades estructurales para satisfacer las necesidades de quienes son especialmente vulnerables, sino que incumbe en último término – acorde con el carácter general y recíproco de las prácticas de cuidado antes descrito – al conjunto de la sociedad:
Las prácticas entendidas más convencionalmente como cuidados, como son la crianza y los cuidados de salud, […] no pueden llevarse a cabo correctamente a menos que tanto los cuidadores como los que reciben cuidados – de hecho, todos nosotros – seamos apoyados. Esto solo puede suceder si el cuidado, como capacidad y práctica, se cultiva, se comparte y es dotado de recursos sobre una base igualitaria. (CHATZIDAKIS et al., 2020, p. 6).
Ahora bien, tanto las éticas del cuidado como la teoría del reconocimiento de Honneth, permiten avanzar en la comprensión del significado político de la crisis de los cuidados más allá del problema de su distribución igualitaria. En efecto, desde ambas perspectivas es posible abordar una forma de interrogarse acerca del lugar de los mercados que – siguiendo una denominación propuesta por Rahel Jaeggi (2013) – podemos entender como un tipo de crítica “ética”. Siguiendo este tipo de crítica, la pregunta por el mercado como institución debe ser abordada no solo a la luz de sus resultados distributivos, sino asumiendo una perspectiva ética que indaga más bien en el tipo de prácticas y valores que se promueven a través de su funcionamiento. En el caso de los cuidados, como se intentará mostrar a continuación, tanto las éticas del cuidado como la teoría de Honneth permiten sostener una crítica ética de las consecuencias del mercado sobre su organización social.
Este tipo de crítica es posibilitada, en primer lugar, por una interpretación del mercado como un mecanismo de coordinación y distribución económica que, en ningún caso, puede ser interpretado como neutral en términos morales o valorativos. Por el contrario, tal como han venido subrayando otras lecturas contemporáneas (SANDEL, 2012; SATZ, 2010), se trataría de examinar los supuestos morales que conlleva la institución del mercado aparentemente basado solo en las decisiones racionales de individuos autónomos. “El neoliberalismo – precisa en tal sentido Tronto (2013, p. 38) – no es solo una descripción de la vida económica, sino también un sistema ético”. De igual manera, también Honneth (2011, p. 382) ha buscado articular una lectura del orden económico que se basa en lo que denomina como un “economicismo moral” enfocado precisamente en examinar los “fundamentos morales” del mercado.
Desde la ética de los cuidados, este tipo de consideración moral acerca del mercado es vista como especialmente relevante a la luz de los límites – ya antes aludidos – que tendría el individualismo liberal para dar cuenta del significado social y ético de las prácticas de cuidado. Held (2006), por ejemplo, argumenta que dicha tradición tiende a evaluar el carácter justo de la institución del mercado exclusivamente desde un punto de vista individual, esto es, considerando ya sea el grado de satisfacción de preferencias personales o el respeto equitativo de derechos individuales. No obstante, más allá de los límites de estas lecturas utilitaristas o kantianas, se encontraría la pregunta ética por el tipo de prácticas que promueven los mercados:
En prácticas como las relacionadas con la educación, el cuidado infantil, la atención de la salud, la cultura y la protección del medio ambiente, las normas del mercado limitadas solo por los derechos no deben prevalecer, incluso si el mercado es justo y eficiente, pues los mercados no pueden expresar y promover muchos valores importantes para estas prácticas, tales como la preocupación por el cuidado mutuamente compartido. (HELD, 2006, p. 120).
De manera bastante coincidente, también Honneth identifica la necesidad de una lectura moral del mercado a propósito de los límites de su interpretación desde el liberalismo. Por una parte, se trata de la ya mencionada dificultad que tendrían las teorías liberales de la justicia, enfocadas en el problema de la distribución, para dar cuenta del contenido moral de aquellas experiencias de injusticia o menosprecio que acontecen también en el campo de la economía (HONNETH, 2003). Y, además, del hecho de que si bien el funcionamiento económico a primera vista descansa únicamente en la satisfacción de intereses individuales, también requiere reposar sobre la base moral de relaciones de reconocimiento recíproco: “[…] los actores económicos deben haberse reconocido como miembros de una comunidad cooperativa antes de otorgarse mutuamente el derecho de maximizar su provecho en el mercado.” (HONNETH, 2011, p. 349).[40]
Es esta interpretación moral la que permite sugerir dos críticas principales que se pueden extraer desde las éticas del cuidado y la teoría del reconocimiento respecto a las consecuencias de los mercados sobre la organización social de los cuidados. En primer lugar, desde ambos enfoques es posible fundamentar un punto de vista crítico según el cual los mercados y su racionalidad desvirtúan el sentido ético de los cuidados. Y, en segundo lugar, sobre la base de esta crítica es posible fundamentar a su vez la tesis que los mercados generan consecuencias perversas no solo en el ámbito de la distribución, sino además socavan aspectos claves de una idea democrática. A partir de una elaboración de ambas críticas, en suma, quisiera caracterizar enseguida el posible significado político de la crisis de los cuidados en su relación con la crisis de la democracia.
Con respecto a la primera crítica, las consecuencias de una organización de los cuidados siguiendo una racionalidad de mercado pueden ser interpretadas, desde ambos enfoques, como una deformación estructuralmente inducida de su significado ético. Esta crítica se asocia con una identificación tanto de los valores como de las formas de individualidad y libertad que resultan promovidas mediante la expansión de la lógica propia del mercado.
En este ámbito, es necesario advertir que esta pregunta por las consecuencias éticas de los mercados no debe confundirse con el problema sobre si el trabajo de cuidados debe o no ser remunerado. Por ejemplo, Tronto (2013, p. 115) advierte en tal sentido que fijar un “valor de mercado” para las tareas de cuidado puede ser relevante incluso para hacer visible “[…] cuán extensivo y central es para la vida humana”, sin embargo – agrega – “[…] pensar en el cuidado solo en términos de mercado también produce algunas distorsiones serias en cómo pensamos sobre las responsabilidades del cuidado en la sociedad en su conjunto.” El problema ético de la mercantilización de los cuidados no se deriva de manera directa, en suma, del uso del dinero como medio de retribución, sino que guarda relación más bien con el tipo de prioridades de valor que genera el mercado, una vez que es asumido como el principal mecanismo de distribución u organización de una práctica social, en este caso, de los cuidados: “[…] ganar tanto como sea posible de la manera más eficiente posible.” (HELD, 2006, p. 110).[41]
Esta reorientación valorativa asociada al mercado supone, a su vez, que las instituciones y relaciones sociales regidas por sus principios tiendan a ser evaluadas de manera privilegiada desde el punto de vista de la maximización de beneficios o utilidades individuales. Los mercados, por tanto, resultan ciegos o, incluso más, distorsionan el significado ético de aquellas relaciones que se organizan a partir de la búsqueda recíproca de una satisfacción del interés personal, tal como son las prácticas de cuidado (NODDINGS, 2002). Cabe considerar aquí, a modo de ilustración, los significados particulares que reciben las dimensiones del tiempo y la reciprocidad en el marco de las relaciones de cuidado.
En relación con la primera dimensión, se ha destacado que los cuidados son un tipo de práctica social donde el tiempo posee una particular relevancia (FOLBRE; BITTMAN, 2004). En efecto, si el acto de cuidar supone siempre un importante grado de apertura y receptividad a las necesidades de otros, el tiempo que se tiene a disposición adquiere aquí un profundo significado. No solo se trata de que la ejecución de las tareas de cuidado conlleva necesariamente tiempo, sino ya del hecho más elemental de que cuidar a alguien supone, la mayoría de las veces, una disposición a pasar tiempo juntos (TRONTO, 2017). Este tipo de significado sobre el valor del tiempo resulta, sin embargo, más bien extraño desde el punto de vista de los mercados y su búsqueda de la maximización de la eficiencia.
Por otra parte, las prácticas de cuidado que acontecen, por ejemplo, entre padres e hijos, o en las relaciones de amistad, parecen suponer una forma y grado de reciprocidad que también resulta extraño al tipo de racionalidad instrumental que permea a los mercados. Concebir estas relaciones como relaciones basadas en la “negociación” entre individuos que se orientan primariamente por su propio interés, no solo supone con seguridad una descripción equívoca de su realidad, sino además un empobrecimiento ético en la medida que la relación misma resulta “[…] deprivada de la valoración de ambos por su propio bien y por el bien de la relación de cuidado entre ellos.” (HELD, 2006, p. 64).[42]
Precisamente, este tipo de empobrecimiento ético o deformación estructural de una práctica social basada en la reciprocidad es aquello que, desde la teoría del reconocimiento, puede ser entendido con el concepto de “patología social”. En efecto, según Honneth (2011), es posible distinguir entre dos tipos de situaciones sociales anómalas. En primer lugar, un “desarrollo fallido” (Fehlentwicklung) tendría lugar cuando una institución o práctica social no logra cumplir a cabalidad con la realización de los principios normativos que orientan y legitiman su funcionamiento. Un ejemplo, explica Honneth (2011), podría encontrarse en el modo en que las desigualdades sociales bloquean la realización del principio de igualdad que subyace a la idea de “espacio público-democrático”. Mientras que, en segundo lugar, una “patología social” constituiría – a su juicio – el resultado de la intromisión de un principio organizativo sobre una esfera o ámbito ajeno a su validez original, lo cual contribuye a distorsionar o deformar el significado de las prácticas que tienen lugar de manera típica en dicha esfera.
A modo de ilustración de tales desarrollos patológicos, Honneth (2011, p. 157) se detiene sobre todo en aquellos fenómenos actuales que identifica como expresión de una “extralimitación de la libertad jurídica” sobre distintos contextos sociales, esto es, aquello que ya Habermas (1981, p. 544) había descrito en términos de “juridificación” (Verrechtlichung). Se trata en este caso de patologías que surgen como consecuencia de la tendencia a reducir el significado ético de relaciones basadas en principios de reciprocidad (por ejemplo, en la familia), al punto de vista exclusivo de una afirmación de derechos individuales:
La subordinación de los procesos del mundo de la vida al medio del derecho lleva a la coerción de prescindir de las experiencias concretas de los participantes, de permitir que sus necesidades solo valgan en la medida que se ajusten al esquema de intereses de tipificación general y, con ello, de disociar en general los contextos de vida comunicativos. (HONNETH, 2011, p. 163).[43]
Interpretadas desde este ángulo, las consecuencias nocivas de una organización de los cuidados bajo principios de mercado pueden ser interpretadas entonces no solo en un plano distributivo (reparto desigual de las tareas y cargas asociadas), sino además en términos de una distorsión o empobrecimiento ético. De hecho, otros dos aspectos que Honneth (2011) identifica como resultados nocivos propios de desarrollos patológicos, pueden servir aquí para clarificar dicha distorsión: sus consecuencias sobre la autocomprensión de los actores y el significado que atribuyen a su propia libertad. En efecto, destaca Honneth (2011, p. 164), una “juridificación” patológica de relaciones sociales impulsa a reducir la comprensión de sí y de otros individuos a “una suma de pretensiones jurídicas” y, con ello, a identificar el ejercicio de la libertad, de manera preferente, con una defensa de la autonomía privada en forma de reclamaciones de derechos.
A propósito de la mercantilización de los cuidados, también se han identificado, precisamente, este tipo de consecuencias patológicas. Tronto (2017, p. 29), por ejemplo, argumenta que la solución neoliberal para organizar los cuidados, en tanto privilegia a los mercados y, por ende, al modelo de individuos racionales plenamente dueños de sus elecciones, no solo excluye a quienes no corresponden plenamente a tal idea de “autodominio” (self-mastering), sino que distorsiona en general la comprensión de sí que tienen los individuos: “[…] los humanos se consideran el tipo de criaturas que encajan dentro de un mundo impulsado por el mercado, y las prácticas neoliberales moldean a las personas para que se adapten a esta imagen.” De esta manera, finalmente, es el significado de la propia libertad lo que resulta reducido a la idea una “elección” considerada como libre únicamente en la medida que se encuentre desprovista de toda dependencia respecto a otros (TRONTO, 2013).
Este último aspecto permite arribar finalmente al segundo componente de la crítica ética antes aludido, esto es, el hecho que la organización de los cuidados según principios de mercado socavaría también aspectos centrales de una idea democrática. Nuevamente, un diálogo entre las éticas del cuidado y la teoría del reconocimiento puede ser útil aquí para comprender el significado de la crisis de los cuidados en su relación con la crisis de la democracia.
En primer lugar, la idea de libertad entendida únicamente como libertad de elección personal conduce a reducir la responsabilidad por los cuidados a un problema exclusivamente privado: cada uno debe velar por la satisfacción de sus necesidades y las de sus más cercanos. Es esta “familiarización” de los cuidados un aspecto central en su crisis contemporánea, pues las capacidades materiales y soportes sociales de cada familia dependen – a fin de cuentas – de su posición en el mercado, lo cual desencadena un espiral de reproducción de desigualdades. Como consecuencia de ello, sin embargo, es posible sugerir que el valor de la igualdad resulta dañado no solo en su dimensión distributiva. De igual manera, la responsabilización personal sobre los cuidados tiene una consecuencia lesiva sobre el tipo de igualdad política que supone la democracia.
En efecto, el supuesto de un sujeto radicalmente autónomo e independiente se expresa aquí en la “[…] imagen liberal del ciudadano individual” (HELD, 2006, p. 81), la cual provee un punto de referencia privilegiado para evaluar las instituciones políticas y sociales en relación con las posibilidades de expresar intereses o derechos individuales. Con ello, es la necesaria reciprocidad y dependencia que suponen prácticas tales como los cuidados – y también la idea misma de democracia –, lo que resulta menoscabado en su significado político. Por el contrario, como argumenta Tronto (2013, p. 31), “[…] una ética democrática feminista del cuidado tiene que ser capaz de explicar cómo los individuos pueden equilibrar la autonomía y la dependencia en sus vidas.”
En un sentido similar, es posible traer a consideración la idea de Honneth (2011, p. 119) según la cual la democracia, como forma de organización política, no puede ser reducida simplemente a la existencia de determinadas instituciones, derechos o reglas compartidas, sino que a la vez supone un “nosotros” manifiesto en disposiciones, valores y rutinas cotidianas expresivas de la cooperación social – esto es, una “eticidad democrática”. La idea democrática, en otras palabras, no representa solo una forma de legitimar a la autoridad política a partir de procedimientos formales, sino más bien encarna – siguiendo a John Dewey – una “forma reflexiva de la cooperación social” orientada a articular una voluntad común (HONNETH, 2000, p. 286).
Siguiendo este razonamiento, es posible afirmar entonces que la deformación ética que inducen los mercados sobre la dependencia y la reciprocidad actúa inhibiendo las posibilidades de cooperación y, por esa vía, restringiendo en último término también el significado político de la democracia. En las democracias contemporáneas, sostiene Tronto (2013, p. 93) en un sentido algo similar, predominan “[…] los lenguajes de la economía, los intereses y los derechos”, pero las “[…] personas en sociedades democráticas también necesitan hablar políticamente de necesidades, cuidados y sus temores respecto a sus incapacidades para cuidar bien.” En otras palabras, el mercado como mecanismo privilegiado de coordinación tiende a inhibir el desarrollo de los “valores del disfrute compartido, la responsabilidad social o el cuidado colectivo”, expresivos de formas cooperativas de organización, pues se trata de “[…] valores que no pueden registrarse en cálculos de maximización de las preferencias individuales.” (HELD, 2006, p. 118). Los mercados generan así efectos nocivos sobre un principio de igualdad no solo en sus aspectos distributivos, sino ya en la medida en que distorsionan o socavan aspectos elementales de las posibilidades de reciprocidad o cooperación social que son la base de la idea democrática. Este es, también a juicio de Tronto (2017, p. 37), el principal efecto “ideológico” de los mercados sobre la vida social y política.
Finalmente, también desde Honneth es posible argumentar acerca de los efectos destructivos que los mercados carentes de sólidas regulaciones generan sobre la cooperación social. De acuerdo con su interpretación, los mercados solo pueden contar con una base de legitimidad democrática en la medida que se garantiza la existencia tanto de una “igualdad de oportunidades” como de “procedimientos discursivos de coordinación de intereses” (HONNETH, 2011, p. 58). Mientras el primer mecanismo viene a resguardar un componente de igualdad distributiva en los mercados, el segundo es clave para comprender su legitimidad democrática, pues solo a través de tales mecanismos discursivos los individuos se encontrarían en condiciones de “[…] superar sus estrategias de acción puramente orientadas al beneficio” y reconocerse como integrantes de una comunidad ética de cooperación (HONNETH, 2011, p. 349).
Las políticas neoliberales, sin embargo, al instalar la idea de un mercado desregulado como núcleo de la distribución de bienes, habrían socavado esta base de legitimidad democrática e impulsado, por el contrario, una imagen “desocializada” acerca de la economía: el mercado “[…] no es visto como una institución social para la cual juntos tenemos responsabilidad en tanto miembros de una comunidad de cooperación, sino como un lugar de competencia por la optimización de un beneficio por el que cada uno es responsable.” (HONNETH, 2011, p. 467). En definitiva, también desde la teoría del reconocimiento resulta posible sostener que la expansión de los mercados tiende a socavar las relaciones de reciprocidad social y, con ello, amenaza los principios políticos que dan sustento a la democracia.
CONCLUSIONES
La crisis de los cuidados, tal como se ha hecho evidente sobre todo en tiempos recientes, constituye uno de los fenómenos más cruciales de las sociedades contemporáneas. Como en otros ámbitos, las raíces de su acelerado desarrollo durante las últimas décadas parecen remontarse a una serie de procesos de desestructuración y pérdida de soportes sociales característicos de la fase neoliberal de las sociedades capitalistas. Las serias dificultades que enfrentan hoy estas sociedades para llevar a cabo de manera sostenible e igualitaria las distintas prácticas asociadas con el cuidado cotidiano – desde la crianza doméstica hasta los servicios de educación o salud – expresan así, en último término, una crisis más amplia del bienestar y la reproducción social (FRASER, 2016).
La profundidad del significado de esta crisis sobre el valor de la igualdad se expande, como se ha intentado mostrar, más allá de las graves dificultades y perjuicios que se derivan de una distribución inequitativa de las tareas y cargas asociadas con el cuidado. Las reflexiones de las éticas del cuidado y la teoría del reconocimiento permiten sostener, en efecto, que las consecuencias de la expansión de los mercados sobre la organización social de los cuidados también remiten a un deterioro sistemático de valores éticos y políticos – reciprocidad, igualdad, cooperación – que hacen posible una sociedad democrática.[44] Ante esto, cabe volver brevemente por último a la pregunta: ¿cómo entender una posible política democrática en el ámbito de los cuidados?
Siguiendo también algunos argumentos de las éticas del cuidado y la teoría del reconocimiento, se podría sostener que el horizonte de una solución democrática a la crisis de los cuidados guarda relación con la necesidad de avanzar en políticas de redistribución de recursos materiales y, al mismo tiempo, en políticas de profundización de la participación democrática. Esto es, una comprensión genuinamente democrática del problema de los cuidados debiese tener en su núcleo no solo el propósito de favorecer pautas más igualitarias en la satisfacción de necesidades, sino además buscar garantizar mecanismos y condiciones que faciliten una participación lo más amplia posible en la definición cooperativa de dichas necesidades, sus mecanismos legítimos de satisfacción y agentes responsables. Esto en la medida que, junto con un “derecho a recibir cuidados”, un “cuidado democrático” (democratic caring) – como ha destacado Tronto (2013, p. 154) – también supondría que “todos tienen derecho a participar en el proceso público” de asignación de las responsabilidades sobre el cuidado. En un sentido bastante similar, desde la comprensión de la democracia en tanto forma reflexiva de la cooperación social elaborada por Honneth (2000), las políticas democráticas de cuidado podrían ser entendidas como una de las formas en que los individuos definen a través de procesos cooperativos aquellas necesidades de cuidado cuya satisfacción es luego asumida como una responsabilidad colectiva.
Esta manera de entender un principio democrático en las políticas de cuidado no supone, en ningún caso, desplazar la relevancia de sus aspectos materiales o redistributivos. Por el contrario, tal como sugirió alguna vez Young (1990), también en el ámbito de los cuidados la relación entre justicia social y democracia parece exigir pensar en una doble dirección: si las políticas de satisfacción de necesidades son ciertamente más democráticas en la medida que promueven una mayor participación en la toma de decisiones, asegurar el carácter genuinamente inclusivo, igualitario y sostenible de dicha participación supone – al mismo tiempo – garantizar ciertos prerrequisitos materiales (por ejemplo, disponer del tiempo necesario).
En cualquiera de estas direcciones, sin embargo, el problema de una solución democrática de la crisis de los cuidados parece exigir desplazar la centralidad atribuida a los mercados durante las últimas décadas. La razón para ello, como se ha buscado argumentar aquí, radica no solo en sus efectos perversos sobre la igualdad de recursos, sino además en sus efectos políticos que desplazan la cooperación igualitaria en tanto núcleo ético de la democracia.
CRISIS OF CARE AND CRISIS OF DEMOCRACY
Abstract: The article discusses the political significance of the care crisis in its relation to the crisis of democracy. Firstly, based on the ethics of care and critical theory, care is characterized as a type of social and political practice. Then, it is examined the ethical and political problems which derive from a social organization of care according to market principles. Finally, the article addresses the question for a democratic solution to the current care crisis.
Keywords: Care. Democracy. Crisis. Critical Theory.
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Recibido: 01/02/2022
Aceptado: 06/07/2022
Resumo: O objetivo central deste artigo é propor a inclusão da expertise de um agente prudente no procedimento do equilíbrio reflexivo, adicionando uma disposição para identificar crenças razoáveis que seriam vistas como o ponto de partida do método, o que poderia evitar as críticas de conservadorismo e subjetivismo. Para tanto, inicia-se pela análise das características centrais do método e suas principais fraquezas. Após, investigam-se as características da prudência como uma disposição para identificar os meios adequados para realizar um fim bom. De posse disso, aplica-se a prudência no procedimento, de forma que ele será executado por um agente que bem delibera, identificando crenças morais razoáveis e, depois, deve-se justificá-las com base em sua coerência com os princípios éticos e com as crenças factuais de teorias científicas relevantes. Por fim, defende-se que esse processo deliberativo é consistente com o pluralismo ético e com a democracia, podendo ser tomado como um tipo de conhecimento moral.
Palavras-chave: Equilíbrio reflexivo. Prudência. Deliberação moral. Conhecimento moral.
INTRODUÇÃO
O equilíbrio reflexivo (ER), assim como proposto por John Rawls, em sua teoria da justiça (RAWLS, 1971, p. 17-22, 46-53; 2001, p. 29-32), se tornou o procedimento por excelência tanto na ética normativa como na ética aplicada como na filosofia social e política, exercendo influência até na área do direito, pensando na relevância da teoria do direito como integridade de Dworkin, porque sugeriu deixar de lado as questões controversas sobre o significado e a verdade dos conceitos e juízos morais, bem como sobre a existência de propriedades éticas, identificando a objetividade moral de forma inferencial. O ponto básico do método é defender que a justificação moral não dependerá de um fundamento último, mas, sim, da coerência entre as crenças morais, os princípios éticos e as crenças científicas que são relevantes para um certo tema, sendo o ponto final de um processo deliberativo no qual refletimos sobre e revisamos nossas crenças, como afirmado por DePaul: “O melhor que podemos fazer é refletir sobre as coisas e confiar nas conclusões a que chegamos.” (DePAUL, 2006, p. 618).[46]
O ER, assim, parece comportar um modelo normativo não absolutista, pois é o fim de um processo deliberativo em que se pesam razões e se escolhe um certo curso de ação, sem a referência a padrões morais absolutos, tais como fatos morais, os quais seriam o fundamento correspondentista dos princípios éticos, servindo para a justificação de uma avaliação moral em uma situação de incerteza. É um procedimento em que se testa a correção de uma crença ou de um conjunto de crenças morais, por sua confiança inicial, tornando-as juízos ponderados, e pela coerência com um ou alguns princípios éticos e, ainda, com certos fatos confirmados por teorias científicas (ER amplo - ERA). É uma maneira eficiente de conectar os valores aos fatos, defendendo que se pode ter objetividade nas decisões éticas em razão da consistência interna e não pela verdade. Por exemplo, seria possível justificar a crença moral de que “a comunidade LGBTQIA+ deve ter o direito de constituir uma família”, a partir de sua coerência com os princípios éticos que tomam a discriminação de gênero como errada e a tolerância como correta, bem como por sua coerência com o texto constitucional pátrio, o qual assegura a igualdade de todos perante a lei e condena toda forma de discriminação, assim como com as descrições científicas sobre a orientação sexual feitas pela medicina e psicologia.
Mas, a despeito de sua grande influência, muitos questionam sua eficácia. A crítica central ao ER sempre ressaltou o fato de que o resultado a que se chega depende exclusivamente do ponto de partida, a saber, os juízos ponderados. Autores como Brandt, Hare, Lyons e Singer, por exemplo, argumentaram, logo após a publicação de A Theory of Justice, que, se não existirem razões independentes para se confiar no ponto de partida, não se deve esperar muito do resultado além da coerência interna. Esse seria o problema da credibilidade inicial das crenças morais. Como as crenças seriam selecionadas apenas por serem confiáveis, essa confiança poderia revelar certos preconceitos ou vieses, o que implicaria conservadorismo. Também, como as pessoas podem chegar a sistemas coerentes de crenças bastante diversos, muitos filósofos viram nisso um convite ao subjetivismo (BRANDT, 1979, HARE, 1973, LYONS, 1975; SINGER, 1974).[47]
A partir do exposto, penso que seria relevante investigar em que medida se poderia resolver essa fraqueza epistemológica do método, com a inclusão de uma epistemologia das virtudes, tendo por foco a razão prática ou prudência. A ideia geral é poder contar com a disposição e a habilidade do agente prudente para identificar os meios mais adequados para realizar um fim bom, isto é, para bem deliberar, o que pode significar chegar a crenças morais razoáveis. Assim, haveria um ganho em poder contar com a expertise de um agente prudente no ER, de forma que nossas crenças morais iniciais se tornariam mais razoáveis e a qualidade de nossa reflexão ética se sofisticaria. Isso aportaria uma habilidade-disposição em identificar crenças razoáveis, as quais seriam tomadas como ponto de partida do método do ER, o que poderia evitar a crítica-padrão sobre a falta de credibilidade inicial das crenças e o risco de relativismo.
Para tal fim, inicio examinando as características centrais do ER e suas falhas principais, tendo por foco a recente crítica de Thomas e McGrath (2010), os quais defendem que, mesmo impecavelmente executado, o método pode levar o agente a assegurar crenças não razoáveis, o que implicaria a conclusão de inadequação do ER. Posteriormente, abordo as características da prudência como uma disposição para bem deliberar, sendo uma virtude epistêmica que estará conectada com certas virtudes morais. O próximo passo será o de aplicar as características da prudência no ER, de maneira que o procedimento será executado por um agente com sabedoria prática, que pode identificar as crenças razoáveis. De posse dessas crenças, o processo de justificação se dará pela coerência delas tanto com os princípios éticos como com as crenças factuais. Penso que isso poderá, inclusive, representar um ganho para a própria ética das virtudes, que não tem um procedimento da justificação da decisão do prudente, a qual é sempre tomada como o critério normativo da virtude. Por fim, sustento que um ER prudente é consistente com o pluralismo ético e com a democracia, podendo ser tomado como um tipo de conhecimento moral.
1 EQUILÍBRIO REFLEXIVO E SUAS FRAQUEZAS
Embora o ER tenha sido apresentado nas seções 4 e 9 de A Theory of Justice, de 1971, Rawls esclarece melhor o método no artigo de 1975, “The Independence of Moral Theory”. Nesse texto, ele defende uma tese da inversão metodológica, argumentando que o avanço em filosofia moral independe do estudo sobre o significado dos conceitos morais, a existência de propriedades morais, a verdade dos juízos morais e a questão da identidade pessoal. A ideia geral é colocar entre parênteses o problema das verdades morais objetivas e investigar as concepções morais substantivas que se defenderia em uma situação definida. Assim, a proposta é encontrar: (i) um esquema de princípios que seja coerente com (ii) os juízos ponderados e (iii) as convicções gerais em equilíbrio reflexivo. Por exemplo, os princípios de justiça de igual liberdade, igualdade equitativa de oportunidades e o princípio da diferença, postulados na posição original sob o véu da ignorância, seriam coerentes com as convicções morais de repúdio à escravidão e intolerância religiosa e com as ideias de sociedade cooperativa e pessoas morais, contidas em certas teorias sociológicas e psicológicas. Dessa forma, os princípios se justificariam por sua coerência com um sistema coerente de crenças (RAWLS, 1975, p. 21).
A ideia geral preconizada foi confrontar os juízos morais particulares, os princípios éticos gerais e certos fatos, modificando-os quando da existência de alguma incompatibilidade entre eles, até que se tenha alcançado um padrão normativo consistente. Esse é um processo indefinido, pois sempre novas crenças podem entrar no sistema coerente, forçando a revisão de uma ou mais crenças. Assim, o ER é um exemplo de um modelo em filosofia moral cuja característica central é a sua atitude revisionista, uma vez que nenhuma crença moral está imune à revisão e qualquer crença pode ser descartada, se ela for incoerente com novas informações ou com um novo sistema de crenças coerentes, o que demonstra um profundo afastamento do dogmatismo e absolutismo, ao defender a ideia de um agente moral como alguém que deve estar disposto a revisar suas crenças e considerar seriamente o ponto de vista dos outros. Importante notar que isso parece mais adequado a um projeto que buscou identificar uma concepção de justiça para ordenar a estrutura básica em uma sociedade democrática e pluralista (RAWLS, 1971, p. 11-17).
Em que pese a grande aceitação e o amplo uso do método, tanto na filosofia moral como na filosofia social e política, até hoje, muitas críticas apontam, sobretudo, para a fraqueza epistemológica do ER, já que não se poderá contar com verdades morais objetivas independentes. Uma crítica recorrente é a respeito da credibilidade inicial das crenças, questionando que o ER não faz mais do que revisar ou reorganizar posicionamentos já aceitos em uma sociedade, o que poderia conduzir ao conservadorismo. Uma outra crítica muito importante tem por alvo o caráter construtivista do método, considerando que, se os pontos de partida de duas ou mais pessoas forem diferentes, elas chegariam a equilíbrios diferentes e, por conseguinte, como avaliar qual dos equilíbrios seria o mais adequado? Isso não recairia em subjetivismo, visto que não haveria nada além da coerência interna das próprias crenças dos agentes? Todavia, vejamos essas críticas em maior detalhe.
Iniciemos com o problema da credibilidade inicial das crenças morais. O ponto de partida do ER são os juízos ponderados (considered judgments), os quais seriam aquelas crenças em que temos grande confiança e às quais chegamos sem distorções, como a que afirma que “a escravidão é errada”, sendo crenças com razoabilidade intrínseca (RAWLS, 2001, p. 29-30). Contudo, o que torna as crenças morais ponderadas razoáveis? Apenas possuir confiança nas crenças pode não ser suficiente para que as mesmas sejam razoáveis. Pode ser o caso em que o agente tem segurança na crença, mas chega a ela através de um viés cognitivo, como tribalismo, confirmação ou, mesmo, disponibilidade. Isso poderia significar conservadorismo ético, de forma que se identificaria uma ou algumas crenças morais como ponderadas, apenas por elas fazerem parte do repertório do próprio grupo. Veja-se o exemplo de se tomar a poligamia como errada, por ter-se sido formado em alguma religião cristã e por se viver no Ocidente, onde a prática da poligamia é, inclusive, crime em vários países, a exemplo do Brasil. Assim, a confiança na crença de que a poligamia é errada poderia ser apenas um tipo de preconceito, sendo não somente o que os membros do meu grupo tomam como certo, como também o que confirma o meu próprio ponto de vista e o que está disponível em nossa cultura. Como frisado por Singer, um juízo ponderado seria apenas um juízo moral particular feito intuitivamente e que pode estar baseado em sistemas religiosos rejeitados, preconceitos e autointeresse (SINGER, 1974, p. 516).
A segunda crítica mais usual que se faz ao método é o perigo de subjetivismo. O problema aqui é que não haveria um único ER considerando diferentes indivíduos, uma vez que, em função de diferentes convicções ponderadas como ponto de partida, se pode chegar a diferentes sistemas coerentes. Isso seria o mesmo que concluir que o método não oportunizaria nenhum conhecimento moral, porque conhecimento parece requerer verdades morais. Chegar a um conjunto de crenças (morais e não morais) e princípios morais coerentes não implicaria a verdade e, assim, se poderia estar justificado em acreditar em uma crença falsa ou mesmo em uma teoria falsa. Singer, por exemplo, identifica esse perigo de relativismo sobre a moralidade, assinalando: “Se eu vivo em uma sociedade, e aceito um conjunto de juízos morais ponderados, enquanto você vive em outra sociedade e defende um conjunto diferente, teorias morais muito diferentes poderiam ser ‘válidas’ para cada um de nós.” (SINGER, 1974, p. 494).
O problema ganha dramaticidade, porque mesmo pessoas de uma mesma sociedade podem chegar a sistemas coerentes de crenças muito díspares. Imagine-se alguém que é vegano (A) e outro que come carne regularmente (B), de forma que A pensa que “comer carne é errado” e B tem a convicção de que “comer carne é certo”. Imagine-se, adicionalmente, que A pensa que devemos respeitar todos os animais, humanos e não humanos, pois ambos são sencientes, isto é, sentem dor e prazer, de maneira que seria errado ser cruel com eles. Também, imagine-se que A pondera sobre os problemas ambientais advindos da criação de animais. Por outro lado, imagine-se que B pensa que há uma distinção importante entre seres humanos e animais não humanos, em razão da capacidade reflexiva dos primeiros, de forma que seria errada a crueldade com os animais, mas se poderia criá-los e abatê-los “humanizadamente”. Adicionalmente, B pondera que a proteína animal é importante para a saúde, que não há nenhuma lei que proíba a criação e o consumo de carne e que não existe nenhuma proibição religiosa, só de algum tipo específico de carne para certas religiões, como a proibição da carne de porco para judeus e muçulmanos.
Veja-se que ambos chegariam a sistemas coerentes de crenças, mas afirmando crenças morais antitéticas. Ambos estariam justificados em sua crença moral pela coerência interna do sistema de crenças, mas isso parece insuficiente para sabermos se, de fato, o consumo de carne é certo ou errado. Ademais, seria possível questionar se esse tipo de justificação não implicaria circularidade viciosa, mesmo considerando um amplo sistema coerente de crenças, uma vez que a crença moral seria justificada apenas por sua consistência com certos princípios éticos e certos fatos. Entretanto, isso não seria arbitrário?[48]
Recentemente, Kelly e McGrath (2010) introduziram uma especificidade na crítica geral de fraqueza epistemológica, argumentando que, mesmo que impecavelmente executado, o método poderia levar o agente a assegurar crenças não razoáveis, o que conduziria a chegar a conclusões inadequadas (2010, p. 326). O argumento é apresentado da seguinte maneira:
(1) Se o ER fosse o melhor método de justificação, as crenças a que se chegaria com uma execução impecável não poderiam ser as do tipo não razoáveis;
(2) Mesmo executando impecavelmente o método, alguém pode, de fato, chegar a crenças não razoáveis;
(3) Logo, o ER não é o melhor método (KELLY; McGRATH, 2010, p. 326-327).
O ponto central da crítica enfatiza que um agente pode aplicar o procedimento de forma impecável e, mesmo assim, terminar afirmando crenças não razoáveis, e isso em razão da justificação das crenças se dar apenas por sua consistência com um conjunto mais amplo de crenças (KELLY; McGRATH, 2010, p. 346-354). Importante ressaltar que essa crítica sempre foi recorrente, no debate. Não é à toa que muitos pensadores sustentam que o ER deveria abandonar o coerentismo e abraçar um fundacionismo moderado, sobretudo algum tipo de intuicionismo, tomando os juízos ponderados como verdadeiros e, assim, o resultado obtido poderia ser tomado como conhecimento moral (EBERTZ, 1993, p. 202-214).
Creio que uma maneira de enfrentar esse problema e responder às principais críticas que foram endereçadas ao ER seja incluir a virtude da prudência no método, de sorte que o agente prudente possa identificar crenças razoáveis, consideradas como ponto de partida do procedimento. O ganho dessa proposta, penso, será compreender o fim desse processo deliberativo como conhecimento moral, tomando o conhecimento não como crença verdadeira e justificada, mas como expressão de certas virtudes do agente. Contudo, para tal, precisamos antes investigar o que seja a prudência e de que forma uma ética/epistemologia das virtudes pode auxiliar-nos nessa tarefa.
2 A VIRTUDE DA PRUDÊNCIA
A prudência é uma virtude intelectual, e isso significa que ela é uma disposição para identificar os meios mais adequados para realizar um fim bom ou, dito de maneira mais precisa, ela é uma disposição-habilidade para determinar o que auxiliará na realização de um fim bom. Tem relação com a deliberação ou pode ser vista como a capacidade para deliberar bem, pois ela é uma habilidade calculativa de pesar razões e decidir o melhor curso de ação, com base nessa ponderação. Ela é uma virtude, porque é uma disposição de caráter ou um traço de caráter, o qual se adquire em um processo de habituação, isto é, de exercícios constantes, que é desejável, porque entendemos que a sua posse garantirá ou auxiliará na conquista de uma vida bem-sucedida. É intelectual ou epistêmica, porque possibilita, em primeiro lugar, a identificação de um fim bom, ou a distinção entre um fim justo e outro injusto e, mais especificamente, porque ela é uma operação mental de avaliação dos meios.[49]
É oportuno reconhecer que a prudência só é uma virtude quando a serviço de um fim estimável, pois, de outro modo, seria apenas uma habilidade de bem calcular, mesmo quando o fim é errado, assim como esse fim só é completamente virtuoso quando servido por meios adequados, porque, de outra maneira, seria apenas bons sentimentos ou boa intenção. Ela leva em conta as consequências da ação e não os princípios éticos como absolutos. Toma em consideração o bom senso e o que é comum à humanidade. Por exemplo, um agente prudente identificaria que é melhor mentir a alguém que persegue um inocente injustamente do que falar a verdade. Obviamente, ele saberia que, em situações comuns, se deve falar a verdade, ou que é desejável ser honesto, porque a honra parece exigir a honestidade e a honra é importante para o sucesso.
Entretanto, ele também saberia que é seu dever proteger as pessoas inocentes, sobretudo em circunstâncias de injustiça, como seria o caso das pessoas que foram perseguidas pelo regime nazista na Segunda Guerra Mundial. Assim, um agente prudente, após pesar essas razões, decidiria pelo melhor curso de ação, isto é, pelo curso de ação benevolente e justa, sendo a correta decisão nessa circunstância específica. Se falar a verdade implicará a morte de um inocente, injustamente perseguido, essa decisão não poderia ser considerada prudente. Poderia ser tomada como uma ação honesta, porém, não como virtude, já que essa decisão seria tomada à revelia da justiça, da benevolência e até mesmo da coragem. O prudente tem a capacidade de ver corretamente o que deve ser feito no caso concreto.[50]
É conveniente lembrar que a prudência é uma das quatro virtudes cardeais, tanto da Antiguidade como da Idade Média. Aristóteles, por exemplo, refletiu sobre a prudência (phronesis) no Livro VI da Ethica Nicomachean , considerando-a uma disposição que permite deliberar corretamente sobre o que é bom ou mau para o homem, não sobre o bem em si, mas sobre o bem no mundo tal como é, não de forma geral, contudo, em uma determinada situação específica, e agir a partir dessa boa deliberação. Em suas palavras: “A phronesis deve, pois, ser uma capacidade verdadeira e raciocinada de agir com respeito aos bens humanos” (1999, VI, 5, 1140b 20-21), “[...] pois dizemos que essa é acima de tudo a obra do homem dotado de sabedoria prática: deliberar bem.” (1999, VI, 7, 1141b 8-10). Todavia, o que de fato é deliberar? Grosso modo, deliberação é uma ponderação sobre as razões envolvidas em uma questão difícil que o agente precisa decidir. Será boa, quando o fim for alcançado, que é igual a uma ação boa; será má, quando não.
Para o nosso propósito de querer contar com a expertise do prudente para identificar as crenças razoáveis, visando a sanar a debilidade epistemológica do ER, penso que é importante refletir sobre a própria natureza da prudência. Especialmente a partir de uma perspectiva aristotélica e não socrático/platônica, a prudência é tomada como um saber prático e não como uma ciência. Lembremos que, para Aristóteles, a ética está no registro do conhecimento prático e não do conhecimento teórico, significando que só poderá operar com verdades aproximadas e em esboço, visto que a ética trata de questões sobre o justo e o bom que estão envolvidas pela incerteza e diversidade (1999, I, 3, 1094b 15-25). Nessa dimensão, o que é relevante é ver a prudência como uma capacidade de identificar as circunstâncias relevantes no caso. Não se trata de descobrir premissas verdadeiras, mas de escolher entre valores relevantes, decidindo o melhor curso de ação. Assim, pode ser mais bem compreendida como um “saber como” e não como um “saber que”. Nessa perspectiva, é necessário levar em conta a experiência do agente e a sua atenção às circunstâncias particulares, pois só se delibera quando se tem escolha, isto é, quando nenhuma demonstração é possível ou suficiente.
Também é relevante para nosso propósito central entender de que forma as diversas virtudes estão conectadas em uma ação prudente, pois isso será fundamental na identificação das crenças razoáveis. De maneira esquemática, a prudência, que é uma virtude intelectual, é tomada como condição de possibilidade das virtudes morais, tal como a justiça, a benevolência, a coragem, entre outras, porque, sem ela, não se saberia o que é propriamente o justo, o benevolente, o corajoso, em uma situação particular, apenas se saberia que é desejável ser justo, benevolente e corajoso. Tomás de Aquino, por exemplo, bem mostrou que, das quatro virtudes cardeais, a prudência é a que deveria reger as outras três, a saber, a temperança, a coragem e a justiça. Sem a prudência, elas não saberiam o que nem como se deve fazer, implicando que seriam virtudes cegas ou indeterminadas.
Na ausência dessa capacidade deliberativa, o justo amaria a justiça sem saber como realizá-la, o corajoso não saberia o que fazer de sua coragem, do mesmo modo que o temperante não saberia como alcançar a moderação. Especificamente, eles não saberiam o que constituiria a mediedade. Por outro lado, a prudência sem as virtudes morais seria vazia ou não seria mais que uma habilidade de bem calcular, podendo chegar a um resultado vicioso, como seria o caso, na atualidade, de se defender um sistema totalitário/ditatorial para alcançar a prosperidade de uma nação. Sem a justiça e a benevolência, para ilustrar, o agente identificaria, erradamente, a ditadura como o meio mais adequado para a prosperidade, desconsiderando o quanto injusto seria retirar a liberdade das pessoas, bem como o quanto seria maleficente censurá-las, prendê-las e mesmo torturá-las. O prudente deve demonstrar uma certa unidade das virtudes.[51]
Tendo clara essa unidade das virtudes que é fundamental para a prudência, devemos, ainda, chamar atenção que o cálculo deliberativo pode ser compreendido como um silogismo prático, no qual a premissa maior é representada por princípios éticos gerais ou universais e a premissa menor é identificada com o caso particular, o que conduz a uma conclusão, que exigirá uma ação correspondente. A deliberação moral, por conseguinte, que é própria do prudente, tratará especificamente de identificar a premissa menor no silogismo prático. Deixem-me exemplificar a questão. Considerando que o prudente sabe que a coragem é um meio adequado para ele ser bem-sucedido (Premissa maior), o passo seguinte é identificar se um tal ato específico é um ato de coragem (Premissa menor), o que segue o conhecimento de que esse ato específico será um meio para o sucesso (Conclusão), o que exigirá uma ação corajosa. Poderia ser o caso de saber que mentir a um agente que persegue injustamente alguém inocente é um ato corajoso. Note-se que essa é uma deliberação sensível ao contexto, uma vez que o raciocínio prático implica que qualquer apreciação adequada dos atos de coragem requer juízos ponderados com base nas experiências de um agente maduro, o que exige um vasto conhecimento do mundo, de nós mesmos e de nossas obrigações com os outros, de sorte que a decisão deliberada sempre terá que levar em conta as consequências das ações. Saber que mentir para salvar a vida de alguém inocente, injustamente perseguido, é um ato de coragem é o saber próprio do agente prudente, saber esse que conecta as virtudes da prudência com as da coragem, justiça e benevolência.[52]
No entanto, um problema com esse tipo de deliberação moral é que ele não conta com um processo de justificação. O que o agente prudente toma como correto, isto é, o melhor curso de ação, é tomado como critério normativo suficiente para caracterizar a ação virtuosa. A limitação é que isso não é checado e, como o próprio Aristóteles alertava, o prudente pode errar em sua deliberação, em algum momento. Assim, parece desejável usar um procedimento para justificar as crenças morais/ações escolhidas pelo agente prudente. Penso que o método do ER seria apropriado para tal fim, em razão de sua característica falibilista, a qual parece bastante similar ao aspecto não absoluto do raciocínio prático. Se, para além da própria prudência e sua conexão com as virtudes morais relevantes em cada caso, pudermos contar, também, com a coerência como critério normativo, acredito que seria um ganho metodológico, pois conectaríamos o conhecimento do prudente com um processo de justificação de crenças, que contará com a coerência da decisão com certos princípios morais e com certos fatos descritos pelas mais diversas ciências.
3 EQUILÍBRIO REFLEXIVO PRUDENTE
Na seção anterior, vimos as características da virtude da prudência como um raciocínio moral deliberativo, mas faltou abordar em que medida uma ética/epistemologia das virtudes pode auxiliar-nos no aperfeiçoamento do método do ER – e isso é imperativo para melhor compreender os ganhos específicos que tenho em mente. Creio que uma epistemologia das virtudes nos auxilia, porque explica o conhecimento em termos de obtenção de crença verdadeira devido ao caráter virtuoso do agente, e não como crença verdadeira justificada, de maneira que ela seria um crédito desse agente, porque o sucesso cognitivo é atribuído, ao menos parcialmente, à sua capacidade e exercício cognitivo. Como uma das críticas que se faz ao ER é que ele não conta com a verdade, mas apenas com a coerência para a justificação, pensar no conhecimento como o exercício de certas virtudes que possibilita um contato cognitivo do agente com a realidade pode ser de grande valia, para melhor compreender a complexidade epistemológica. Tratarei dessa questão na última seção, apontando que um ER executado pelo prudente pode ser visto como conhecimento moral, tomando o conhecimento como crença razoável justificada em ERA. Neste ponto, nossa tarefa é apresentar detalhadamente como funciona o ER com o acréscimo da prudência, o que eu chamarei de ER prudente (ERP).
De forma geral, o ERP contará com a expertise do agente com sabedoria prática para bem deliberar, isto é, para deliberar adequadamente sobre os meios necessários para alcançar um fim bom, o que pode ser visto como chegar a crenças razoáveis. É imperioso notar que isso será importante para responder à crítica de Kelly e McGrath (2010), que sustentam que, mesmo sendo impecavelmente executado, o método pode levar o agente a assegurar crenças não razoáveis, o que conduziria a uma conclusão inadequada. Após o estabelecimento das crenças razoáveis pelo prudente, o próximo passo será justificar tais crenças por sua consistência com os princípios éticos fornecidos pelas principais teorias morais aceitas no debate contemporâneo e por sua coerência com certas crenças factuais afirmadas por teorias científicas aceitas pelos pares e relevantes, no caso investigado.
Mas, por que a boa deliberação do prudente poderia contar como a obtenção de crenças razoáveis? Em primeiro lugar, porque o resultado a que o prudente chega não pode ser tomado como crenças verdadeiras, já que a exatidão da ética está circunscrita às circunstâncias práticas que envolvem diversidade e incerteza; entretanto, esse resultado obtido é objetivo, porque está associado a uma ciência, mesmo que prática. Em segundo lugar, porque a deliberação do prudente, que é a escolha do melhor curso de ação que conecta várias virtudes, pode ser interpretada como crenças que os agentes razoáveis aprovariam, pois a razoabilidade é uma condição de possibilidade da própria convivência harmônica entre as pessoas, sendo uma disposição do agente em abrir mão de seus desejos individuais e prestar atenção nos interesses dos outros. Em outros termos, o razoável é um certo equilíbrio entre as razões do próprio agente e as dos outros, sendo aquilo que não é excessivo. Inclusive, a razoabilidade pode ser entendida como uma verdade prática, como aquilo que pessoas razoáveis identificam como adequado.[53]
Tendo em vista, portanto, que a decisão de um agente prudente não poderia ser considerada não razoável, uma vez que a determinação da mediania é sua característica básica, o curso de ação escolhido por ele será tomado aqui como equivalente a chegar a crenças razoáveis. De posse disso, o segundo passo do ERP é justificar essas crenças por sua coerência com um conjunto de princípios morais fornecidos pelas principais teorias éticas aceitas no debate contemporâneo, como o utilitarismo, o deontologismo e a ética das virtudes. Esse passo será essencial para se checar se a decisão do prudente seria aprovada ou recusada pelos princípios assegurados por essas teorias ou pela maioria delas. Aqui a ideia é que, se uma crença razoável ou que se pensa razoável for condenada pelos princípios dessas teorias morais, ela deve ser revisada, lembrando-se que a deliberação moral do prudente pode errar o alvo. Como terceiro passo, o agente deve considerar se essas crenças razoáveis são coerentes com certas crenças factuais asseguradas pelas teorias científicas relevantes para avaliar o caso em questão. Esse último passo metodológico é fundamental para garantir que as decisões éticas estejam em contato com o mundo, formando um sistema mais amplo de crenças. Similarmente ao passo anterior, havendo inconsistência, o agente deveria rever sua crença inicial.
Deixem-me exemplificar o ERP, retomando o dilema sobre se seria correto ou não mentir para salvar a vida de alguém inocente que é injustamente perseguido, tendo em conta um caso similar ao do nazismo na Segunda Guerra Mundial. Creio que, assim, os três passos metodológicos ficarão mais claros.
Como vimos antes, o ponto de partida é a obtenção das crenças razoáveis pelo prudente. A partir de uma boa deliberação, o prudente concluiria que seria correto mentir para salvar a vida de uma pessoa inocente que está sendo perseguida injustamente. Pensemos na situação na qual um judeu está sendo perseguido por um agente nazista e que o prudente saiba onde ele está escondido. Em razão de uma pergunta sobre o paradeiro do fugitivo, o dilema moral seria entre falar a verdade ou mentir para salvar a vida da pessoa em questão. Considerando a situação de extrema injustiça, caracterizada pela perseguição arbitrária aos judeus e o genocídio, o agente prudente deveria se conectar emocionalmente ao que está sofrendo a injustiça e, num ato de coragem, mentir para salvar a sua vida. Dessa forma, concluiria que, mesmo havendo uma obrigação de se falar a verdade, geralmente, esse caso exige que se minta em prol da justiça e da benevolência. Essa seria uma crença razoável, porque o nazismo é intolerável para cidadãos que defendem a igualdade das pessoas e vivem em sociedades democráticas.
O próximo passo é justificar essa crença razoável por sua coerência com um sistema coerente de crenças, que é formado por princípios éticos e crenças científicas. Iniciemos com os princípios éticos. Vamos considerar três princípios morais formulados pelas três principais teorias éticas que são aceitas no debate contemporâneo, a saber, o princípio da maximização do bem-estar (utilitarismo), o princípio da universalizabilidade e não instrumentalizacão (deontologismo) e o princípio do agente virtuoso (ética das virtudes), e ver se a crença que exige a mentira seria aprovada ou não por esses princípios.
No modelo utilitarista (de atos), a ação correta é a que maximiza o bem-estar dos envolvidos ou a sua felicidade. Claramente, ele apela para as melhores consequências do ato, para os melhores resultados, não tomando nenhum princípio moral como absoluto. Nesse caso em tela, falar a verdade implicaria a morte de alguém inocente perseguido por um regime injusto. Por outro lado, mentir possibilitaria que essa pessoa inocente fosse salva. Pesando os resultados de se falar a verdade e os resultados de se mentir, certamente a ação correta exigira a mentira. Obviamente, seria possível imaginar consequências indesejadas, como a do nazista descobrir a mentira e punir o agente por isso, o que poderia contribuir para alguém ponderar que o correto seria falar a verdade. Todavia, tendo em vista apenas os resultados mais prováveis, a mentira estaria justificada.
Já no modelo deontológico (kantiano), a ação correta é a que seria aprovada por uma regra a qual se deseja que seja universalizada e que não instrumentaliza ninguém, isto é, que não toma as pessoas apenas como meios. Seguindo a formulação do imperativo categórico (primeiro e segundo), seria errado mentir em qualquer circunstância, porque não se desejaria que a regra que aprova a mentira fosse universalizada. Assim, segundo uma interpretação ortodoxa da ética kantiana, a ação correta seria falar a verdade, não importando as consequências. Mas, se adotarmos uma interpretação menos ortodoxa do método, poderíamos concluir que seria correto mentir, observando que desejaríamos que a regra que aprova a mentira para salvar a vida de inocentes injustamente perseguidos seja universal. Adicionalmente, poderia se apelar para a terceira formulação do imperativo categórico, ponderando que mentir seria correto, porque se tomaria o agente injustamente perseguido como um fim em si mesmo e não como um meio.
Porém, a despeito da controvérsia de como se interpretar o kantismo, pode-se valer de um outro modelo deontológico que claramente aprovaria a mentira, a saber, o contratualismo. Para essa teoria ética, a ação correta é a que é aprovada por um princípio que não pode ser razoavelmente rejeitado. Assim, o princípio em tela que diria que não se deve mentir, exceto para salvar a vida de pessoas inocentes perseguidas injustamente, seria justificado, porque não seria possível rejeitá-lo razoavelmente, pois não seria aceitável o princípio que defendesse a veracidade em contraposição à vida de alguém inocente.[54]
Por fim, na ética das virtudes, a ação correta é a que seria realizada por um agente virtuoso, sendo um agente virtuoso o que delibera sobre os meios adequados para um fim bom. Como já vimos na deliberação de um agente prudente, a decisão adequada seria pela mentira, tendo por foco a benevolência e a justiça da situação específica.[55]
Pelo exposto, a crença razoável, que é um juízo ponderado, de que se deve mentir para salvar a vida de uma pessoa inocente injustamente perseguida seria aprovada pelas três teorias morais, ou considerando o modelo kantiano ortodoxo, ela seria aprovada pela maioria das teorias morais, o que pode ser tomado como uma justificação da deliberação moral do prudente. O último passo, por conseguinte, é ver se essa crença razoável seria coerente com certos juízos factuais assegurados por certas teorias científicas relevantes, no caso. Por exemplo, em função do conhecimento da ciência da história, da ciência política, da antropologia, da sociologia e das ciências jurídicas, seria possível saber da injustiça dos governos ditatoriais e genocidas, bem como se poderia reconhecer o valor da democracia e do estado democrático de direito, para assegurar a prosperidade das nações. Com isso, a crença razoável em tela seria claramente consistente com essas crenças factuais, o que poderia servir como uma justificação pela proximidade ao mundo.
Veja-se que esse método parece relevante, porque ele nos oportuniza um procedimento para justificar as crenças morais que estamos tomando como razoáveis. Imagine-se a situação de considerar que um agente prudente poderia defender uma crença “razoável” de que “a ditadura seria um meio adequado para se alcançar a prosperidade da nação”. Aplicando-se o método de ERP, essa crença “razoável” não seria justificada, porque ela seria claramente incoerente com os princípios éticos da maximização do bem-estar, da universalizabilidade e não instrumentalização e, inclusive, com o princípio do agente virtuoso e, também, porque seria inconsistente com diversas descrições científicas. A história mostra que sistemas totalitários trazem instabilidade para as nações e não prosperidade, bem como as ciências sociais evidenciam claramente o valor da democracia. Entretanto, um agente prudente poderia agir à revelia das principais teorias éticas e desconhecer os principais fatos históricos e as mais relevantes contribuições da ciência? Penso que não.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De posse de um melhor entendimento da metodologia do ERP, a qual conecta a expertise do agente prudente com um procedimento de justificação das crenças por sua coerência interna, podemos agora considerar em que medida o seu resultado pode ser tomado como conhecimento moral. Mas, antes, é importante refletir sobre o problema do conhecimento e esclarecer o que entendemos por epistemologia das virtudes.
Tradicionalmente, já a partir do Teeteto de Platão, o conhecimento é tomado como crença verdadeira justificada, isso significando que, para alguém ter conhecimento de uma coisa, essa coisa deve ser verdadeira, a pessoa deve acreditar que tal coisa é verdadeira e a crença deve ser justificada, pois poderia ser o caso de se chegar a uma crença verdadeira por sorte. Assim, ilustrando, para se ter conhecimento de que há uma ovelha no campo, a ovelha deve de fato estar no campo, o agente deve acreditar que a ovelha esteja no campo e o agente deve justificar essa crença, a partir de sua percepção visual. O problema com essa concepção tripartida do conhecimento, como já bem apontado por Gettier (1963), é que um sujeito pode ter uma crença bem justificada, mas que resulta verdadeira apenas por sorte.
Consideremos um caso de tipo Gettier. Um sujeito profere uma crença de que há uma ovelha no campo, com base em sua percepção visual. De fato, a crença é verdadeira, pois há uma ovelha no campo, contudo, ela está fora do campo visual do agente, sendo que o objeto avistado por ele era um cachorro parecido com uma ovelha. Embora o agente tenha uma crença verdadeira de que “há uma ovelha no campo” e esteja justificado adequadamente, por uma evidência perceptual, este não é um caso de conhecimento, porque a verdade da crença se dá por fatores aleatórios ao processo cognitivo do sujeito.
Levando-se em conta o problema dessa concepção tradicional de conhecimento, inclusive ponderando sobre o problema específico do conhecimento moral, já que conceitos de correção, bem e justiça, para exemplificar, não existiriam no mundo como objetos naturais, pelo menos não da mesma forma que existiria a ovelha no campo, parece bastante frutífera a abordagem da epistemologia das virtudes, uma vez que, para ela, o conhecimento é definido em termos do exercício de virtudes intelectuais do agente. Como frisado por Sosa, a epistemologia das virtudes é a concepção “[...] de que o conhecimento é a crença cujo sucesso é ‘creditável’ ao sujeito que crê.” (SOSA, 2011, p. 86).
A tese central da epistemologia das virtudes é que um agente possui conhecimento, quando ele tem uma crença verdadeira que foi formada com sucesso através das suas próprias habilidades cognitivas ou virtudes intelectuais, tais como percepção, memória e visão, em uma perspectiva confiabilista, ou tais como honestidade, coragem e humildade, em um modelo responsabilista (ROBERTS; WOOD, 2009, p. 6-9). O ponto central é considerar que, quando a performance cognitiva é malsucedida, não atribuímos conhecimento ao sujeito, o que revela que o foco central não está na análise das crenças, mas nas virtudes e performances dos agentes. Como corretamente entendido por Zagzebski, o conhecimento coloca o sujeito em contato cognitivo com a realidade e o faz de tal maneira que pode ser caracterizado como bom, desejável ou mesmo importante. Em suas palavras: “O conhecimento é um estado de contato cognitivo com a realidade a que se chega por atos de virtudes intelectuais.” (ZAGZEBSKI, 1996, p. 270).
Com isso em mente, o ERP pode ser visto certamente como um tipo de conhecimento moral, pois ele é o fim de um processo deliberativo no qual se pesam razões e se escolhe o melhor curso de ação, sem o auxílio de padrões morais absolutos, tais como fatos morais, que seriam o fundamento correspondentista dos princípios éticos, servindo para a justificação de um julgamento moral em uma situação de incerteza. Desse modo, sua objetividade é assegurada tanto pela prudência do agente como pela coerência interna das crenças. Ele pode contar com a capacidade de bem deliberar do prudente para especificar as crenças razoáveis, o que inclui uma maior precisão no método, pois vai além da confiança inicial do agente e das condições adequadas para se chegar a um juízo ponderado, porque a boa deliberação é um ato de pesar razões e escolher o que seria o melhor curso de ação, sendo a identificação dos meios mais adequados para realizar um fim bom. Como a prudência é uma habilidade cognitiva de acertar o alvo que se pode creditar ao agente, não seria possível executar o ERP e chegar a crenças não razoáveis, pois a prudência se caracteriza pelo encontro da mediania, a qual ainda é testada por sua coerência tanto com os princípios éticos como com as crenças científicas.
Assim, a conclusão do ERP parece equivalente a afirmar uma crença razoável em ERA, o que possivelmente evite os problemas epistemológicos de conservadorismo e subjetivismo, porque a credibilidade inicial das crenças se dará pela capacidade epistêmica do prudente em determinar a mediania e porque a crença razoável é testada, para além da coerência, por sua proximidade ao mundo. Além disso, esse método se mostra bastante consistente com o pluralismo ético e com a democracia, sendo um tipo de antídoto ao dogmatismo que é tão perigoso à diversidade, em razão de o procedimento estar sempre aberto à revisão das crenças, a partir quer da sua coerência interna, quer de sua conexão com o próprio mundo, assim como pela disposição do agente em acertar o alvo e reconhecer os limites da razão. Esse modelo deliberativo compreende a importância de se engajar no debate com os outros sobre as diversas questões morais e tenta entender os problemas éticos, em função de uma perspectiva plural.
Obviamente, o ERP tem limitações, pois ele não seria suficiente para resolver os casos complexos, no âmbito privado da moralidade, como o de querer saber sobre a correção ou erro de se “comer carne”, assim como na questão disputada entre A e B. Aqui a tolerância parece exigir que se aceite os vários sistemas coerentes de crenças afirmados pelos agentes, que são variáveis em razão dos diferentes inputs que são legítimos, em uma democracia. Mas, para determinar o certo e o errado, no âmbito público da moralidade, o procedimento parece relevante na identificação da objetividade, uma vez que inclui no modelo deliberativo do prudente um procedimento de justificação de crenças, com base na coerência interna, o que nos conduz a uma perspectiva claramente intersubjetiva.
A razão para tal é que, no âmbito público da moralidade, se pode partir de uma mesma cultura pública e referências normativas comuns – as quais podem ser identificadas no conteúdo constitucional e em decisões judiciais, por exemplo – para a avaliação de certos problemas, como seria o caso de se querer determinar a justa distribuição dos bens em uma sociedade ou para justificar a punição de forma adequada, ou mesmo para especificar os direitos das minorias, como o da comunidade LGBTQIA+. Logo, ter uma crença razoável justificada em ERA, que tanto expressa certas virtudes do agente como revela uma dimensão interpessoal, parece apontar para uma rota mais promissora do que as alternativas absolutistas e dogmáticas que tomam a verdade, mesmo no domínio moral, como independente da própria natureza humana e social.
Reflective Equilibrium and Prudence: A Process of Moral Deliberation
Abstract: The main aim of this paper is to propose the inclusion of the expertise of a prudent agent in the reflective equilibrium procedure, adding a disposition to identify reasonable beliefs that would be seen as the starting point of the method, which could avoid the criticism of conservatism and subjectivism. To do so, I will begin by analyzing the central characteristics of the method and its main faults. Afterwards, I will investigate the characteristics of prudence as a disposition to identify the adequate means to achieve a good end. With this in mind, I will apply prudence to the procedure, so that it will be carried out by an agent who deliberates well, identifying reasonable moral beliefs and, then, we must justify them based on their consistency with ethical principles and with the factual beliefs of relevant scientific theories. Finally, I will argue that this deliberative process is consistent with ethical pluralism and democracy, and can be taken as a kind of moral knowledge.
Keywords: Reflective equilibrium. Wisdom. Moral deliberation. Moral knowledge.
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Recebido: 19/01/2022
Aceito: 08/07/2022
Comentário a “Equilíbrio Reflexivo e Prudência: um processo de deliberação moral”
Lucas M. Dalsotto[56]
Referência do artigo comentado: Coitinho, Denis. Equilíbrio reflexivo e prudência: um processo de deliberação moral. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 59 - 80, 2023.
Aos leitores familiarizados com os recentes trabalhos do professor Denis Coitinho não será difícil notar que sua intenção, com o artigo ora analisado, é dar um passo adiante na construção de uma teoria moral híbrida. A tese de fundo de sua proposta, já apresentada em Virtudes & Contratos: por uma teoria mista (COITINHO, 2016) e Virtudes & Contrato II: normatividade e agência moral (COITINHO, 2021), é de que a moralidade não é uma questão de tudo ou nada, como alguns teóricos parecem supor, mas um fenômeno complexo, cuja explicação exige a integração de diferentes critérios normativos. Especificamente em “Equilíbrio Reflexivo e Prudência: um processo de deliberação moral”, Coitinho (2023, p. 59) busca defender que “[...] a inclusão da expertise de um agente prudente no procedimento do equilíbrio reflexivo” (ER)[57] é capaz de responder a certas críticas dirigidas contra o método e o torna, ao mesmo tempo, compatível com as ideias de pluralismo ético e democracia. De forma geral, seu propósito é unir uma teoria coerentista da justificação epistêmica com uma epistemologia das virtudes. Todavia, antes de submeter a tese do professor Denis à análise, gostaria de reconhecer que ela faz o debate a respeito do tema avançar, especialmente por explorar relações pouco consideradas até agora pela literatura especializada. Se há uma tentativa em nosso país de fazer uma filosofia autoral e genuína, esse texto, certamente, é um exemplo disso.
Com a publicação de A Theory of Justice, de John Rawls (1971), ER acabou atraindo o interesse de muitos teóricos (e.g., DANIELS, 1979; SCANLON, 2003; DWORKIN, 2011), por lhes possibilitar a defesa de um tipo de objetividade moral sem os comprometer com a existência de padrões morais absolutos. A força explanatória de ER reside propriamente em sua capacidade de lançar luz sobre aspectos de nossa fenomenologia moral, que realistas e expressivistas têm sérias dificuldades de esclarecer. Enquanto os primeiros sofrem para lidar com questões metafísicas e epistêmicas, os últimos não estão em melhor posição para tratar de questões semânticas e normativas. Contudo, isso não quer dizer que ER não seja objeto de crítica. Se, de uma parte, a atitude falibilista-revisionista do método é um trunfo para teorias como a de Rawls, de outro, ela ameaça o sucesso delas por sua suposta fraqueza epistemológica. Aqui, Coitinho (2023) tem em mente duas objeções bastante recorrentes. A primeira é que ER poderia conduzir a uma espécie de conservadorismo, ao justificar e sistematizar crenças já tidas por uma comunidade (COPP, 1985); e a segunda é que ele poderia gerar sistemas de crenças coerentes muito distintos[58], o que seria consistente com o subjetivismo (SINGER, 1974).
A fim de contornar essas críticas, Coitinho (2023) espera mostrar que, com o acréscimo da prudência, ER garantiria ao agente um conjunto de crenças razoáveis. O procedimento metodológico teria mais ou menos a seguinte estrutura: se a disposição para bem deliberar do prudente, que é uma virtude epistêmica, possui uma conexão com algumas virtudes morais (e.g., benevolência, justiça e coragem), então, ele não poderia chegar a um sistema de crenças não razoáveis, se assim procedesse. Mas isso não é tudo. Após, o agente buscaria justificar, de modo coerente, suas crenças com o conjunto de princípios morais fornecidos pelas principais teorias éticas do debate contemporâneo[59], revisando tais crenças, se necessário. Por fim, o prudente ainda avaliaria se elas são coerentes com o conjunto de crenças factuais geradas pelas teorias científicas. Segundo Coitinho (2023), essa forma de equilíbrio reflexivo prudencial (ERP) seria suficiente para “[...] sanar a debilidade epistemológica do ER”.
Já frisei que essa me parece ser uma forma muito engenhosa de lidar com as alegadas dificuldades de ER, pois trilha um caminho ainda não explorado pelos teóricos interessados no tema. Entretanto, acredito que há ao menos duas questões que o professor Denis precisará considerar, em trabalhos futuros. Em parte, acho que o sucesso de sua empreitada dependerá de uma resposta adequada a elas.
A primeira diz respeito ao processo de justificação das crenças razoáveis do prudente com o conjunto de princípios morais do consequencialismo, do deontologismo e da ética das virtudes. Ao tratar disso, Coitinho (2023, p. 71) alega que, nesse estágio, é preciso “[...] checar se a decisão do prudente seria aprovada ou recusada pelos princípios assegurados por essas teorias ou pela maioria delas.” Se entendi corretamente a afirmação, seria necessário avaliar como as três teorias responderiam ao caso em tela. A justificação adequada de uma crença razoável dependeria de ela estar de acordo com todas ou ao menos duas das respostas oferecidas por essas teorias morais. Por exemplo, uma crença razoável que afirmasse x seria justificada apenas se estivesse de acordo com o critério de correção das três teorias conjuntamente, ou, então, da ética das virtudes e do deontologismo, ou do deontologismo e do consequencialismo, ou ainda do consequencialismo e da ética das virtudes.
Todavia, entendo haver um problema nessa descrição, pois o critério de correção da ética das virtudes é constitutivo do processo de deliberação do prudente. Se a prudência está conectada a certas virtudes morais, por conseguinte, a crença razoável resultante do processo de deliberação deverá, no mais das vezes, estar de acordo com o critério de correção da ética das virtudes. Como Coitinho (2023) acertadamente nota, o prudente não é apenas alguém que toma os meios necessários para a consecução de um dado fim (seja ele qual for), mas sim de um fim bom e estimável, cuja determinação depende das virtudes morais envolvidas (e.g., benevolência, justiça e coragem).
Se isso faz sentido, chegar a uma crença razoável em ERP já implica que ela seja compatível com o critério de correção da ética das virtudes. O que restará determinar é se ela também está em conformidade com o critério de correção, tanto do consequencialismo quanto do deontologismo, ou com apenas de um deles. Acredito que a força do argumento de Coitinho (2023) está exatamente em dar maior robustez à situação inicial em ER, de modo a garantir que o agente alcance crenças morais razoáveis. Nesse caso, as crenças às quais se chegaria em ERP não seriam um conjunto de crenças já tidas pela comunidade, nem levariam a sistemas de crenças coerentes muito diversos. De qualquer modo, meu ponto é apenas que o critério de correção da teoria das virtudes parece estar presente desde o início no procedimento metodológico de ERP.
A segunda questão que me parece ser preciso ter em vista é se a tentativa de conciliar diferentes teorias morais não pode pôr em risco a ideia de pluralismo ético. A proposta do professor Denis é claramente compatível com uma perspectiva liberal, e a introdução de uma epistemologia e de uma ética das virtudes em ER acresce um elemento perfeccionista nela. Em geral, são poucos os teóricos (e.g., RAZ, 1986) que assumem o ônus de mostrar ser possível defender uma teoria que tenha traços liberais e perfeccionistas, sem com isso negar princípios fundamentais de ambas as visões (e.g., neutralidade).[60] Contudo, do fato de que essa seja uma ideia altamente questionável não se segue que seja falsa. Apenas exige que se ofereçam argumentos em sua defesa. Por isso, creio que essa seja uma tarefa ainda a ser realizada pelo professor Denis, no desenvolvimento de uma teoria moral mista.
Penso haver dois caminhos a se seguir: um, que busca disputar teoricamente o significado dos termos “liberalismo” e “perfeccionismo”, com o propósito de evidenciar que não há uma incompatibilidade fundamental entre eles; e outro, que busca apresentar uma teoria liberal-perfeccionista mínima. Apesar de o primeiro caminho ser interessante[61], acho que o segundo pode render melhores frutos. Digo isso, porque o tipo de teoria defendida por Joseph Raz (1986) visa a lidar com a mesma questão que o professor Denis está lidando: como compatibilizar liberalismo e perfeccionismo, sem negar o pluralismo ético. Ao reconhecer o fato do pluralismo e a incomensurabilidade dos valores, Raz estabelece uma exigência mínima para estados liberais: estimular o desenvolvimento da autonomia dos agentes. Sem isso, a existência do pluralismo ético e o compromisso liberal com o valor da autonomia estariam fortemente ameaçados. Em algum sentido, esse também me parece ser um dos objetivos da teoria que o professor Denis está desenvolvendo, e Raz poderia ser um bom companheiro de viagem.
Por fim, gostaria apenas de admitir que essas duas questões que apresentei precisariam ser mais bem detalhadas e desenvolvidas. Porém, se elas forem de algum modo úteis para o fortalecimento e o aprimoramento dos argumentos apresentados por Coitinho (2023), este breve comentário já terá cumprido seu papel.
Referências
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COITINHO, Denis. Virtudes & Contratos II: normatividade e agência moral. São Paulo: Loyola, 2022.
Coitinho, Denis. Equilíbrio reflexivo e prudência: um processo de deliberação moral. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 59 - 80, 2023.
COPP, David. Considered Judgments and Justification: Conservatism in Moral Theory. In: COPP, D.; ZIMMERMAN, M. (ed.) Morality, Reason, and Truth. Totowa, NJ: Rowman and Allenheld, 1985. p. 141-169.
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SCANLON, Thomas. What We Owe to Each Other. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1998.
SINGER, Peter. Sidgwick and Reflective Equilibrium. Monist, v. 58, n. 3, p. 490-517, 1974.
Recebido: 10/09/2022
Aceito: 21/09/2022
Comentário a “Equilíbrio reflexivo e prudência: um processo de deliberação moral”
Referência do artigo comentado: Coitinho, Denis. Equilíbrio reflexivo e prudência: um processo de deliberação moral. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 59 – 80, 2023.
Marciano Adilio Spica[62]
Como bem destaca Coitinho (2023), o equilíbrio reflexivo é, sem dúvida, um procedimento importante da ética normativa e da ética prática, apesar de ser alvo constante de importantes críticas, que buscam mostrar a inadequação de tal procedimento. Coitinho, em seu texto, está claramente disposto a levar a sério algumas críticas a tal procedimento proposto por Rawls, mas não apenas para defender tal procedimento nos mesmos moldes propostos por esse filósofo: ele quer aprimorar tal procedimento, de uma forma que fuja das críticas comumente endereçadas a ele. Tal aprimoramento se daria através da inclusão de uma epistemologia das virtudes focada na ideia de prudência. Para o autor do artigo, incluir a prudência como uma virtude de bem deliberar sofisticaria tanto a ideia de equilíbrio reflexivo quanto a própria ética de virtudes. No primeiro caso, livraria a ideia rawlsiana de fraquezas epistemológicas que levariam ao subjetivismo, ao conservadorismo moral e ao perigo de se chegar a crenças não razoáveis, utilizando-se o equilíbrio reflexivo. No segundo caso, ofereceria à ética de virtudes um método de justificação ao agente moral prudente.
O artigo de Coitinho (2023) é rico em problemáticas que poderiam ser discutidas e isso, por si só, revela a relevância dele. Mas, devido ao espaço que possuo, gostaria de me focar em apenas um ponto que me chamou a atenção. A saber, a conclusão do autor de que um equilíbrio reflexivo prudente (ERP) evitaria, entre outros, problemas de conservadorismo e subjetivismo, ideia deixada bem clara na conclusão do artigo. Mais especificamente, estou interessado em apontar um possível questionamento ao fato de que a deliberação prudente evitaria conservadorismo moral em tomadas de decisões, se adicionada ao ER. Para fazer isso, começo me valendo da discussão feita por Julian F. Müller (2019), em seu livro Political Pluralism, Disagreement and Justice: the Case for Polycentric Democracy. Antes de seguir adiante, quero chamar a atenção para o fato de que meu objetivo aqui não é mostrar que as ideias de Coitinho não são frutíferas ou são totalmente equivocadas: quero apenas apresentar um possível contraponto, a fim de fomentar discussões futuras nesse sentido.
No capítulo 7 do livro acima citado, intitulado “Deliberation and the Gains of Diversity”, Müller busca demonstrar os limites de algumas ideias filosóficas que defendem que um processo deliberativo, aos moldes aristotélicos, não apenas acomoda a diversidade, como faz bom uso dela. Ao fazer isso, o autor ressalta que processos de deliberação, em especial os de tipo aristotélico, tendem a ter um viés conservador.
Resumidamente, Müller defende que o viés conservador da deliberação vem do fato de que algumas descobertas empíricas, especialmente da psicologia, mostram que, em processos de deliberação, sujeitos tendem a enfatizar o que já é reconhecido como válido, às custas de novidades que poderiam também ser relevantes. É nesse sentido, por exemplo, que soluções inovadoras, as quais, de início, teriam “[...] pouco apoio internamente a um grupo de deliberação não seriam escolhidas ou mesmo consideradas seriamente.” (MÜLLER, 2019, 106). Além disso, essas mesmas descobertas evidenciariam que pessoas frequentemente se sentem intimidadas em serem uma voz dissidente, num grupo de deliberação, com medo de perderem seu status dentro do grupo. Diante disso e de outros fatores, que não nos interessam propriamente aqui, ele afirma:
Eu posso estabelecer que a deliberação não parece ser particularmente bem-sucedida em lidar com novidade ou soluções inovadoras. Isto, por sua vez, lança dúvida sobre a tese que uma abordagem deliberativa é especialmente bem sucedida para capacitar a sociedade a tirar ganhos da diversidade. (Müller, 2019, p. 107)
Como eu já frisei, não quero propriamente defender Müller, mas tocar em alguns pontos que, possivelmente, afetariam em alguma medida a argumentação de Coitinho, já que este defende a prudência como uma disposição adquirida para bem deliberar. Nesse sentido, gostaria de tocar em dois pontos do artigo de Coitinho que me parecem não resolver o problema do conservadorismo.
O primeiro ponto refere-se ao próprio conceito de prudência, a qual Coitinho caracteriza como uma “disposição-habilidade” ou capacidade de deliberar bem, própria de uma razão calculativa e que tende a se focar nos fins e não em princípios morais. Ou seja, ela seria uma disposição que nos ajudaria a resolver casos concretos da moralidade, situações difíceis nas quais temos de decidir o que fazer. Essa decisão seria focada nos fins da ação e não em princípios ou verdades morais. Basicamente, a prudência parece ser, portanto, a capacidade de escolher os melhores fins para uma ação de um sujeito, que, em termos do artigo proposto, seria chegar a crenças razoáveis sobre uma questão moral específica. A pergunta que fica é: que fins seriam esses ou quais são esses melhores fins? Em sentido aristotélico, seriam aqueles que homens prudentes escolheriam, isto é, uma espécie de seguimento de uma tradição de decisão moral. Para Coitinho, parece ser aquilo que é “comum à humanidade”. Em certa medida, pois, o prudente é aquele que decide o que é melhor a se fazer para se atingir certos fins, baseado, em certa medida, em um conjunto de dados da experiência do próprio indivíduo, um agente maduro, nas palavras do autor.
Todavia, a questão central, que poderia dar razão à tese de Müller de que processos deliberativos em sentido aristotélico levam a conservadorismo, é que não há garantia alguma de que a decisão pelo melhor a se fazer, no caso específico atual, seja o mesmo melhor a se fazer de experiências passadas. Basicamente, a justificação da ação do agente prudente seria a de que, como a experiência dele e de pessoas como ele foi de sucesso, nas vezes anteriores, essa vez também será. O que acontece aqui é uma espécie de conservadorismo advindo do hábito do agente maduro, o qual tenderá a se fechar para novidades, em termos de decisões morais. Essas novidades poderiam, em algumas circunstâncias, ser decisões melhores do que aquelas tomadas anteriormente.
Mas, obviamente, Coitinho poderia rapidamente responder a essa observação, argumentando que o ER pode, como ele mesmo propõe no artigo, ser tomado como um método de justificação do agente prudente, sendo a coerência um critério normativo importante para a justificação da tomada de decisão, o que evitaria, em alguma medida, o problema exposto acima. A grande questão é que parece que métodos de justificação de manutenção de crenças pelo viés coerentista tendem, em muitas situações, a levar também a conservadorismo epistêmico. Basicamente, a coerência parece exigir que não se aceitem crenças que coloquem em dúvida um conjunto grande de crenças de meu sistema-mundo de crenças. Em certa medida, a coerência pede que tenhamos cautela ao adotar novas crenças e que “[...] nós deveríamos escolher, entre aquelas alternativas que estão disponíveis para nós, aquela que está mais próxima de nossa convicção original.” (Stenmark, 2021, p. 153). Ou, como Müller explica, a nossa própria psicologia age escolhendo crenças que estão mais próximas ao conjunto de crenças que possuímos.
Coitinho novamente teria uma saída internamente a seu artigo, asseverando que, para evitar isso, é que ele afirma que a crenças geradas pelo prudente, de forma coerente, teriam ainda de passar pela prova de estar de acordo com as principais teorias éticas e científicas existentes sobre o tema. Não vou entrar no mérito aqui de quão custoso cognitivamente isso seria, já que exigiria um grau elevadíssimo de conhecimento de filosofia moral e praticamente excluiria boa parte da humanidade da discussão sobre o que é moralmente melhor para ela. Porém, gostaria de chamar a atenção, para finalizar, para a tese de Joshua Greene (2013), segundo a qual boa parte das teorias morais existentes são elas mesmas manifestações da nossa psicologia moral, ou seja, respostas tribais a nossos dilemas morais.
Se ele estiver certo, novamente, caímos em conservadorismo moral, porque adequaremos nossas crenças geradas por ERP a teorias morais elas mesmas tribais e que tendem a proteger crenças morais de um determinado grupo (tribo) moral. Não tenho espaço para aprofundar os efeitos da tese de Greene sobre a proposta de Coitinho, todavia, ela me parece apresentar um contraponto importante à tese geral do artigo, assim como às ideias de Müller. Apresentar respostas a elas, sem dúvida, tornaria a tese de Coitinho ainda mais relevante.
Referências
Coitinho, Denis. Equilíbrio reflexivo e prudência: um processo de deliberação moral. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 59 - 80, 2023.
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Stenmanrk, M. Como relacionar ciência e religião: um modelo multidimensional. Trad. Marciano Adilio Spica. São Paulo: Reflexão/ABFR, 2021.
Recebido: 08/09/2022
Aceito: 12/09/2022
Francisco Luciano Teixeira Filho[63]
Resumo: O texto trata do conceito de representação em sua relação com o conceito de soberania, em Thomas Hobbes (1588-1679). A obra estudada é o Leviatã, de 1651. O estudo apresenta que a soberania se funda através do ato jurídico originário, o qual estabelece uma pessoa artificial para representar a todos. Essa coisa artificial é o Estado. A sociedade política, porém, é diferente do seu governo, embora sejam funcionalmente a mesma coisa.
Palavras-chave: Representação. Soberania. Governo. Hobbes.
INTRODUÇÃO
John Stuart Mill (1806-1873) discorre sobre o clássico problema da melhor forma de governo, em suas Considerations on Representative Government (1861), optando pela democracia representativa (MILL, 2001, 2018). Também Paine (1737-1809), um dos pais da democracia americana, afirma, como principal distinção das formas de governo novas e das formas velhas, o fato de os novos modelos políticos serem totalmente representativos, daí superiores aos antigos (PAINE, 2005), na esteira de Constant (2007, p. 595s). Esses autores do chamado segundo liberalismo (estendido), que precisam lidar com os resultados civilizacionais da Revolução Francesa (ESTEVES, 2019, p.759ss), partem desse paradigma democrático-representativo, numa perspectiva quase de uma “religiosidade-secular” (MANENT, 2018, p. 149ss).
É fato que, de meados do século XIX até os dias atuais, se consolidou a concepção de democracia representativa como ganho alcançado e intransigível da civilização, ao menos nos países ocidentais. Com efeito, ninguém está muito disposto a renunciar à democracia, tal como chegou até o século XXI, exceto em discursos absolutamente deslocados e estranhos, embora não tão completamente destoantes ao crivo de uma camada significativa da opinião pública.
Todavia, uma reflexão filosófica sobre o termo democracia representativa leva a um arrepio. Não propriamente quanto ao conceito de democracia, que poderia ser interpretado como a experiência do πολιτού (político, literalmente, ou, numa tradução latina, república), na administração da cidade, ao modo que Heródoto e Tucídides aludem, ou como Platão e Aristóteles a pensaram, de forma não tão entusiasmada.[64] O incômodo vem com a qualidade que se dá a essa democracia, ou seja, o fato de ser representativa. Esse termo, que aparenta deslocamento dentro da clássica tradição grega, é o exclusivo objeto deste texto.
Pela circunstância de se ter testemunhas textuais bem mais antigas do termo democracia do que de democracia representativa, é notório, por isso, que a ideia de representação, no sentido da expressão “democracia representativa”, aparece bem depois do objeto qualificado. Portanto, o elemento a ser rastreado é a representação, no sentido político que recebe no termo acima. Nessa busca, em uma rápida olhada no dicionário de Raphael Bluteau (1728), o vocábulo representação tinha, ainda, maior relevância como terminologia teatral ou, até mesmo, pictórica e, apenas de forma muito derivada e secundária, aparecia no sentido do termo “representação jurídica”. Em inglês, segundo Pitkin (2006, p. 25s), um dos primeiros registros do conceito de representação aparece somente no quartil final do século XVI, com Thomas Smith (1906, p. XXXVI), na obra De Republica Anglorum, onde se lê algo como “[...] todo inglês deverá estar ‘comprometido’ - isto é, compreendido - a estar presente no parlamento, por ele mesmo ou seu representante.”[65]
É notável, no fragmento acima, que a ideia de representação apresentada por Smith é, ainda, alternativa à agência política direta. Essa cena mudará em meados do século seguinte, com a publicação da magnum opus de Thomas Hobbes (PITKIN, 1985, 2006). O Leviatã “[...] faz a primeira discussão sistemática e importante sobre representação”, que “desempenha um papel central na principal obra política de Hobbes.” (PITKIN, 1985, p. 15). Pitkin chega, então, à conclusão de que o tipo de representação defendida por Hobbes é “formalista”, a qual se define como uma representação “[...] que tem lugar no princípio, antes de que comece a verdadeira representação.” (PITKIN, 1985, p. 42). Nessa situação, resguardado o limite do que foi autorizado, “[...] a representação é uma espécie de 'caixa preta' conformada pela outorga inicial de autoridade, mediante a qual o representante pode fazer o que lhe agrada.” (PITKIN, 1985, p. 42).
Encontra-se, nesse momento, a inflexão que se buscava. Se a palavra democracia parece óbvia, depois de Hobbes, deve-se compreender o que é democracia representativa. Não se busca, aqui, uma definição completa da terminologia, mas apenas a qualificadora da democracia. Isso, evidentemente, porque não é Hobbes um autor da democracia representativa, como Mill, Constant ou Paine, mas, sem dúvida, é ele que cunha o conceito de representação, na sua forma genérica, o qual será, mais tarde, paradigma para os autores da democracia moderna, embora reformulado. Apesar de Hobbes registrar a possibilidade do sistema de governo democrático, sua concepção de representação ainda não se compatibiliza com as exigências liberais surgidas no pós-Independência dos Estados Unidos da América e nos anos seguintes aos da Revolução Francesa. Mesmo assim, vale rever Hobbes, pois é seu empreendimento teórico sobre o Estado Moderno que garante a persistência da prática representativa como a única alternativa para a atividade política hodierna.
Nesse sentido, o objetivo do presente texto é entender o conceito de representação dentro do ato jurídico originário do pacto social, no Leviatã (1651), de Thomas Hobbes (1588-1679). Esse objetivo, porém, parece ser inalcançável, se se desconsiderar duas questões: quem representa? Quem é representado? Essas perguntas aludem à fórmula tradicional da representação: X representa Y.
Uma resposta rápida é inequívoca, para quem já teve a oportunidade de ler o Leviatã: o soberano representa a Multidão, daí, então, algo que pode ser chamado de Povo, Nação ou Estado. Mas outras questões aparecem: quem é esse soberano? Que tipo de entidade é essa? A resposta também é evidente: o soberano fala e age na pessoa do soberano, ou seja, do indivíduo ou assembleia soberana. O leitor atento, todavia, perguntará: não aparece, aí, uma tautologia? Por que a segunda resposta separa “o soberano” da “pessoa do soberano”? Nisso consiste o ponto nodal da questão da representação, em Hobbes.
A seguir, o leitor encontra o desenvolvimento dessa questão, dividida em duas partes: na primeira, tratar-se-á do conceito de representação, em Thomas Hobbes. Em seguida, buscar-se-á o problema do Estado e do Governo, em Hobbes, procurando, ao mesmo tempo, delimitar um e outro e entender como a representação é abordada nos dois casos.
1 REPRESENTAÇÃO EM THOMAS HOBBES
Qualquer leitor minimamente atento de Hobbes compreende que o autor concebe seu empreendimento teórico como uma primeira ciência civil, em distinção (mas não em oposição) à ciência natural (SKINNER, 2002, p. 73). Na verdade, o método das ciências naturais deveria ser empregado na ciência civil, contudo, os objetos de que tratam as duas ciências são distintos, supôs Hobbes.
Limongi (2009, p. 35ss) localiza essa passagem da área da Filosofia, que é ciência da natureza, para aquela área filosófica, discernível como ciência civil, ainda naquele locus antigo da ciência das paixões. Na verdade, a autora é muito mais arguta: para “[...] tal teoria é reservado um dos lugares mais nobres do sistema: o dos princípios da ciência política.” (LIMONGI, 2009, p. 35).
Ora, uma ciência é a compreensão dos corpos e dos seus movimentos. Nesse sentido, a ciência civil de Hobbes deve ser, como tal, uma ciência desses mesmos elementos. Mas, enquanto Galileu, no seu tempo, já havia estabelecido os princípios elementares dos movimentos dos corpos físicos, a agência que Hobbes celebra é exatamente a de demonstrar as leis dos movimentos dos corpos animados e racionais, como causa fundamental da ciência da política.
O corpo específico do qual a ciência civil deve dar conta é diferente daqueles observados pelos outros ramos das ciências, que são corpos naturais, animados ou inanimados. Por essa razão, segundo Hobbes (2009, p. 143), “[...] da física deve-se passar à moral”, ou seja, aos corpos específicos, dotados de paixões, causas dos seus movimentos.
A teia das relações dos seres apaixonados, em Hobbes, é bastante conhecida: a guerra de todos contra todos é o resultado imediato dos movimentos dos homens movidos pelo império da autopreservação, no estado de natureza. Mas também é óbvio, para Hobbes, que as paixões, nome dado ao movimento específico do homem, são mediadas pela imaginação, cálculos de interesse, acordos, contratos, pactos etc. É dessa compreensão que se pode partir do objeto fundamental de Hobbes, em sua ciência das paixões, para a sua ciência civil, no sentido pleno.
São os movimentos de desejo ou de aversão que levam o homem à guerra, porém, também à pactuação da paz. É do ímpeto egoísta que o homem cria entes artificiais, como o Estado, para o resguardar daquilo que ele mais teme: a morte. Pelo que foi dito, os corpos da ciência civil são, para Hobbes (2011, p.45), corpos artificiais ou convencionais. Todavia, o fundamento desses entes, ademais, estranhos à natureza, é a própria natureza apaixonado do homem – seu movimento.
Os corpos artificiais, dos quais a ciência civil de Hobbes quer dar conta, são aqueles corpos formados a partir de um consenso ao redor de um interesse de dois ou mais homens (ou uma multidão). Pode-se dizer que se funda um corpo artificial, por exemplo, quando um indivíduo qualquer constitui e autoriza, em comum acordo, um advogado; ou quando uma multidão de indivíduos, em consenso, pactua um soberano para a governar.
A tese básica de Hobbes é que a soberania se funda num estado de representação de uma multidão de pessoas por uma única pessoa (ou uma assembleia de pessoas), que não faz parte daquela multidão instituinte, mas que dela tem a autoridade. Em outras palavras, soberano é aquele que tem autorização de representar a totalidade dos pactuantes de um dado Estado (Common-Wealth é empregado como sinônimo de State, Leviathan e Civitas, em Hobbes).
Ora, para compreender o que Hobbes quer dizer com isso, é preciso entender o que ele concebe por pessoa. Para isso, o Capítulo XVI de o Leviatã é central: “[...] pessoa é aquele cujas palavras ou ações são consideradas ou como suas próprias ou como representantes das palavras e ações de outro homem.” (HOBBES, 2011, p. 241). Em outros termos, pessoa é aquele ente ao qual se pode predicar o atributo de atuar conforme seu próprio discernimento, seja em seu próprio interesse, seja no de terceiros.
O que se vê apresentar, diante dos olhos, é a inaugural teoria da representação, cujas raízes são profundas, entretanto, cujo primeiro fruto se verifica em Hobbes (PITKIN, 1985, 2006; SKINNER, 1995, 1999, 2007), em língua inglesa. Assim, pessoa, pelo que se pode notar, é aquele que age por si mesmo, sendo aquilo que Hobbes chamou de pessoa natural, ou que age em representação de um outro, sendo designado como pessoa fictícia ou artificial (HOBBES, 2011, p. 241). A diferença essencial entre os dois tipos de pessoas é que, no primeiro caso, aquele que é ator é, também, autor de suas ações. No segundo caso, com as pessoas artificiais, pode-se dizer simplesmente que o representante é ator, mas não o autor da ação.
Trata-se, pelo que se pode perceber, de um ato jurídico de autorização. A pessoa natural, a qual institui um representante, transfere para outra pessoa, de forma limitada ou ilimitada, a autoridade de agir em seu nome, tornando o representante seu agente. Na verdade, a autoria permanece na posse daquele que expressou sua vontade no ato jurídico de transferência de poderes, mas a ação mudou de pessoa. Não é errado afirmar, pelo que foi dito, que o ato de instituir um representante é o ato de conceder autoridade a alguém, a fim de fazer ou dizer algo em nome de um autor. Fica definido, portanto, que um ato de uma pessoa natural é o que estabelece uma pessoa artificial, que passa a ter autoridade de ação, no limite expresso no ato inaugural.
Correndo-se o risco de ser deveras repetitivo, vale enfatizar: isso que está descrito é um ato jurídico em que uma dada pessoa natural estabelece uma pessoa artificial, que passa, do ato jurídico inaugural em diante, a representar os atos da pessoa natural representada. Um exemplo banal, talvez já demasiadamente desnecessário: se um dado indivíduo estabelece juridicamente um representante, a fim de que este compre dois quilos de arroz no mercado, aquele que representa é uma pessoa artificial que agirá, conforme determinação limitada, em uma troca comercial cuja autoria permanece na posse daquele indivíduo que instituiu a representação jurídica.
Ora, o exemplo acima é de uma representação limitada, que instaura os contornos daquilo que o ator pode fazer em nome do autor. Todavia, é possível pensar uma enormidade de variações e limites para a ação do representante. Tudo depende, portanto, do grau de autorização de ação dado pelo ato jurídico (PITKIN, 1985, p. 18ss, 2006, p. 28ss). A questão que se levanta, porém, é que algo é sempre pressuposto, em cada pacto ou contrato de representação: quem autoriza o faz de boa-fé e não descumprirá o acordo firmado com o autorizado e, claro, que o autorizado não exercerá os poderes que lhe foram cedidos para o bem próprio, mas para servir ao interesse do autor da ação.
O dado concreto, ao qual o leitor já atentou é: o pactuante está em obrigação de cumprir cada pacto firmado e contrato assinado, em uma sociedade civil ordenada e com garantias civis e penais para a quebra dos acordos. Se é assim, das duas, uma: ou o civilismo é uma dádiva da natureza humana e, já na infância, o homem é um cidadão pela causa da própria natureza; ou, em algum dado momento, um ato jurídico, anterior a qualquer ato jurídico, deu garantias aos atos derivados. Evidentemente, Hobbes, como um contratualista, apoia-se na segunda narrativa.
Pense-se em um estado de guerra de todos contra todos, condição natural do homem, segundo Hobbes. Imagine-se, por conseguinte, que a razão calculativa desse homem verifica que suas únicas saídas para o terror do parabelo fossem: pôr a vida em risco, sem qualquer garantia de vantagens duradouras, ou renunciar parcialmente a seus direitos de natureza, constituindo uma sociedade de contratos, cujo poder e monopólio da violência seriam exercidos por uma entidade que governaria a todos e a todos protegeria. O cálculo, para o contratualista, não é difícil: melhor viver e gozar dos produtos do trabalho, do que morrer sem qualquer garantia. Está dada a força movente para o estabelecimento do Estado.
A fundação do Estado é o que se chama de ato jurídico originário. Sua pactuação não tem jurisprudência ou garantias anteriores, mas cria, na sua promulgação, todas as garantias e condições, não só para o cumprimento do pacto social, mas de qualquer pacto ou contrato que virão a ser formalizados. O pacto social cria uma representação soberana, como ator e vontade de todos os autores, ou seja, dos membros pactuantes do Estado, no ato jurídico originário. Dito de forma diferente, a constituição de um Estado é um ato jurídico originário (porque pressuposto em todo ato jurídico) no qual uma multidão pactua entre si a transferência de toda a autoridade soberana a um homem ou assembleia de homens, que se torna(m) representante(s) dessa multidão.
Deve-se perguntar, todavia, por qual razão um indivíduo ou uma multidão de indivíduos renunciaria à parte ou à totalidade de seus poderes, em prol de um terceiro. Sobre os motivos ou finalidades do homem, quando institui tal representação, Hobbes (2011, p. 251) afirma:
[...] a causa final, o objetivo e o desígnio dos homens (que naturalmente amam a liberdade e o domínio sobre os outros) ao introduzirem esta restrição a si mesmos (pelo qual os vemos viver em Estados) é a previsão da sua própria conservação, bem como a de uma vida mais tranquila.
Resta evidente que o ato jurídico originário é algo que deriva de uma decisão livre, capaz de dar conta de um problema concreto de insegurança, cujo estado de natureza precário não tem condição de resolver. A ausência de condições jurídicas e a violência difusa que o estado de guerra impulsiona movimentam o homem, amante de si mesmo, à lei da razão que lhe exige a paz, logo, movimentam-no ao ato jurídico originário (pacto social). No entanto, como “[...] os pactos, sem a espada, não passam de palavras, destituídos de qualquer força capaz de dar segurança ao homem” (HOBBES, 2011, p. 251), precisa-se entender quem é o eleito, no ato jurídico originário, para que se possa criar as condições de “terror” para que o pacto seja funcional e duradouro.
Pode-se ler, na segunda parte do Leviatã, que o Estado é o poder comum que reduz a pluralidade das vontades a uma só vontade. Isso equivale, segundo Hobbes (2011, p. 255), a “[...] nomear um homem ou uma assembleia para representar-lhes a pessoa. Além disso, cada qual deverá dar sua autorização e reconhecer-se autor de qualquer ato que provenha de seu representante.” É notório, portanto, quem elege, por que elege e quem é eleito, com a incumbência de afiançar a o pacto social.
Segundo Hobbes, o ato jurídico originário é a ação na qual cada indivíduo renuncia a seu direito sobre todas as coisas e, por conseguinte, seu potencial de poder, virtualmente ilimitado, em nome de um representante que o garanta a vida e o usufruto de sua propriedade privada, possível somente diante dessa renúncia. Esse representante, que age em nome de todos, é inimputável[66] por seus atos perante cada um dos representados, por suas ações e palavras, uma vez que cada indivíduo, a quem ele representa, é autor de todos os seus atos.
Para Hobbes (2011, p. 205), esse pacto é uma cessão de direitos, tendo em vista um bem futuro. No caso, o direito renunciado é aquele, de ordem natural, sobre todas as coisas; o ganho aferido é a proteção civil da vida e da propriedade, fruto do trabalho. Nesse diapasão, a renúncia ao direito natural sobre todas as coisas e, portanto, à liberdade virtualmente ilimitado do estado de natureza, é retribuída por uma estável e segura proteção contra o mal absoluto da morte e a garantia dos atos jurídicos, fundamentais para os negócios na sociedade civil. É, mais que isso, uma garantia da propriedade privada.
Esse pacto social originário, cuja repercussão é de longuíssimo prazo, não figura em papel ou palavras proferidas, contudo, é percebido somente por sua repercussão no próprio comportamento social dos pactuantes. A terminologia hobbesiana chama esse tipo de ato jurídico de “termos por inferência” (HOBBES, 2011, p. 207), pois deles se têm como aparentes somente as consequências das palavras, do silêncio, das ações ou da inação. A legalidade do pacto social, por consequência, é um direito inferido, não sendo possível romper com ele, sem que se cometa um crime contra o soberano. O fato de se estar em paz, sob a autoridade soberana de um Estado, já obriga a todos os homens ao contrato, cujo signo mínimo é o próprio status.
Três coisas ainda precisam ser ditas sobre a constituição dessa representação. A primeira delas é que o ato jurídico originário, como se pode notar, é pressuposto de todos os atos jurídicos posteriores, pois, no estado pré-civil, não se pode falar de propriedade privada, pactos ou mesmo de justiça, uma vez que cada um desses está sempre em risco, diante do estado de guerra. Nesse sentido, atos jurídicos posteriores são o caso, porque há um ato originário que estabelece a possibilidade da justiça, ou seja, “[...] a constante vontade de dar a cada um o que é seu.” (HOBBES, 2011, p. 219).
O segundo elemento restante dessa análise é que, para Hobbes, o pacto não é fixado entre os indivíduos e o soberano, mas apenas entre os indivíduos, ou melhor, entre a multidão de indivíduos. O soberano não está submetido ao pacto social, uma vez que ele é seu próprio garantidor. Se o soberano se submete às mesmas leis que os cidadãos, sua condição de balizar o pacto e sustentá-lo fica prejudicada. Nesse sentido, como aquele que institui as leis, o soberano está acima delas. Do contrário, seria impossível, para ele, modificar as leis sem cometer um crime.
Por fim, o terceiro esclarecimento que desfecha essa leitura do texto é que não se pode compreender o soberano como um mal, em Hobbes. Na realidade, a fundação pactuada da soberania é um bem pelo qual cada indivíduo se mantém protegido da guerra de todos contra todos e, além disso, galga o poder permitido pela lei civil. Ora, é translúcida a concepção de pacto: a renúncia de direitos, mediante a expectativa de um bem futuro. Se Hobbes tivesse em mente a tirania, qual bem seria esperado pelos pactuantes? Não ser morto por um igual, mas por uma pessoa artificial constituída como expressão da vontade da própria vítima? Isso seria, sem dúvida, uma contradição com a lei da natureza, a qual exige, de todos, a autopreservação.
Dessa forma, deve-se compreender que os atos do soberano têm uma finalidade específica: a sua própria autopreservação. Todavia, a autopreservação da soberania significa a preservação da paz entre os indivíduos do Estado. Assim, compreende-se que “[...] do direito à vida se define o ofício do soberano – cuja racionalidade está em fornecer os melhores meios para um fim, viver, que precede a socialização” (RIBEIRO, 2004, p.117) estabelecida pelo pacto.
É notório, pelo que se disse, que o Leviatã, como adverte Renato Janine Ribeiro (2004, p. 119), emprega um discurso do medo, que conduz as paixões para o pacto social, mas “[...] é esta, apenas, a linguagem exotérica, até moralista”, pois, de fato, “há outro discurso, cifrado, esotérico, para que o soberano conheça o seu ofício: que só é dever face a Deus, mas que se pode rastrear a partir do ‘direito à vida’.”
De fato, é preciso compreender o código retórico que permeia a obra, a fim de não perder o seu discurso sub-reptício e o verdadeiro conteúdo do estabelecimento de uma representação. Eu dou anuência, como pactuante originário, a um representante, pois eu mesmo me reconheço incapaz de alcançar o bem que desejo. O soberano representante, pelo contrário, é visto como aquele que tem autoridade para realizar o bem que eu mesmo sou incapaz de garantir.
Notoriamente, Hobbes está preocupado com a fragilidade do estado de paz, o que o leva a uma retórica do medo. No entanto, sua visível aspiração é um estado de paz, de prosperidade e de riqueza individual. Portanto, também há a retórica da esperança, em Hobbes. Essa condição é alcançada pela efetivação daquilo que ele chama de Common-Wealth, cuja tradução poderia ser de bem comum. É nessa chave que se deve ler o Capítulo XXX do Leviatã, sobre o encargo (office) do representante soberano: “[...] a consecução da segurança do povo, à qual ele está obrigado pela lei da natureza, e a prestar contas disso a Deus, autor dessa lei.” Disso, Hobbes prossegue: “[...] não se limita aqui o significado da palavra segurança a uma simples preservação; tem-se em vista também todos os outros confortos da vida que cada um possa adquirir para si próprio, sem perigo ou dano para o Estado.” (HOBBES, 2011, p. 471).
2 SOBERANIA E GOVERNO EM HOBBES
Para Hobbes, como se mostrou, soberano é o que representa a todos, como se fosse uma só pessoa. Soberania se funda quando se institui o Estado, ou seja, “[...] quando certa multidão concorda e pactua, cada integrante com os demais, que, não importa a qual homem ou assembleia seja concedido pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles.” (HOBBES, 2011, p. 259). Disso se concebe que “[...] dessa instituição de um Estado (Common-Wealth) derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem é conferido o poder soberano pelo consentimento do povo reunido.” Ou seja, o Estado é a pessoa artificial criada pelo pacto social e “[...] quem se acha investido de tal pessoa é chamado soberano, de quem se diz que possui poder soberano.” (HOBBES, 2011, p. 257).
Afinados os ouvidos, é possível escutar, aqui, que não é em condição própria que se diz que um monarca ou uma assembleia qualquer são soberanos. Diz-se isso em função do Estado, ou melhor, do corpo político, de onde derivam os poderes daquele soberano. Isso quer dizer que a instituição é soberana e o monarca ou assembleia, por derivação, se tornam soberanos, porque se togam da soberania do poder comum e da vontade de todos. Nesse sentido, parece correta, ao menos parcialmente, a afirmação de Skinner (2002, p. 177), de que “[...] a essência da teoria do poder público de Hobbes é, portanto, que a pessoa (person) identificável como o verdadeiro ‘sujeito’ da soberania em qualquer estado legal deve ser a pessoa do próprio Estado.”
Aqui se apresenta uma certa duplicidade de uso do termo pessoa, à qual é necessário conferir uma especial atenção. No Capítulo XXVI de o Leviatã, Hobbes (2011, p. 381) dá um breve esclarecimento do que ele está pensando nessa relação entre Estado e Soberano: “[...] o Estado não é pessoa (is no person), e só tem capacidade de fazer algo por intermédio de seu representante”, este sim, uma pessoa que representa o Estado. Por representar o Estado, esse homem artificial pode ser chamado de soberano, posto que ele assume o governo de todos, em condição estatal.
Ora, o reconhecido intérprete, citado acima, afirma que o Estado é a pessoa[67] da soberania, mas poucas linhas abaixo, lê-se o próprio Hobbes afirmar que o Estado não é uma pessoa. O leitor já deve ter percebido que paira uma nuvem nebulosa sobre esse assunto. Hobbes, muitas vezes, fala em “homem artificial”, ao modo da imagem cristã da Igreja, segundo a qual Cristo é a cabeça e o povo, o seu corpo.[68] Mas também faz afirmações lacônicas, como: “[...] nisso consiste a essência do Estado, cuja definição é: uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, por meio de pactos recíprocos entre seus integrantes, se fez ela própria autora.” (HOBBES, 2011, p. 257, grifo nosso).
De fato, não é facilitado o ofício do intérprete, nesse caso. Mas desfiar esse novelo não é impossível. Embora Hobbes não seja, em todo caso, um autor hermético, o seu inglês, nesse caso, não foi tão evidente quanto poderia ser.
Avance-se aos poucos, a fim de atinar para alguns pontos de luz. O Estado, enquanto coisa artificial, é um ente convencional, cuja vontade precisa ser personificada. O soberano, portanto, assume, como representante do Estado, a sua função como governante. Nota-se que aqui vale a máxima da representação de coisas inanimadas, segundo o Cap. XVI de o Leviatã (HOBBES, 2011, p. 243). A alma do Estado é a soberania, contudo, se não há quem represente a soberania do Estado, o que sobraria? Disso se segue que, da mesma forma que uma Universidade, para Hobbes, precisa que seus membros efetivos escolham um reitor, também se escolhe um soberano para se exercer a soberania do Estado, no ato jurídico originário (única vez em que há a necessidade de se ouvir a multidão sobre o seu governante; se a constituição do Estado prevê que haverá outro pleito sobre o soberano, isso se dá por vontade de um soberano anterior, que fez valer essa sua vontade como lei positiva).
Nesse sentido é que é necessário, para o exercício da soberania, um indivíduo ou assembleia de indivíduos que possam dar voz ao poder do Estado, pois esse ente artificial não se comunica por meios próprios. Mas, na mesma perspectiva, não se pode enclausurar o poder público nos indivíduos que se revestem da soberania, pois, nesse caso, esse poder estaria reduzido a uma pessoa natural, a qual não representa ninguém. O corpo fundado no pacto social é um corpo artificial, convencional, todavia, com poder e autorização incomensuravelmente maiores que qualquer individual natural, com a pretensão de ser eterno – “[...] an Artificiall Eternity of life.” (HOBBES, 2011, p. 284). Não é, portanto, na escala do indivíduo que se fala de Estado, porém, na proporção das multidões que se reúnem, em consenso sobre um interesse. Essa multidão, agora Povo, é, quando unida por um governo, um Leviatã, soberano, no sentido primeiro.
Para que a paz seja duradoura (ou ao menos passe essa ideia), portanto, é preciso que o Estado seja, ele mesmo, duradouro, não subsumível a uma vida humana. Nesse sentido, a instituição estatal é, em Hobbes, a verdadeira soberania, no sentido estrito. O governante, por outro lado, é aquele que se investe da soberania, de forma precária, e pode variar, no lugar e no tempo, enquanto o corpo artificial do Estado permanece intocado em seu poder e autoridade, posto que a multidão, enquanto mantidas as regras de transição de governo, será sempre soberana. Ou seja, governo é aquele que detém a soberania de forma precária; Estado soberano é a reunião de uma multidão e seu governo.
O frontispício do volume original de o Leviathan é exemplar, no sentido de demonstrar o que Hobbes quer dizer com o corpo artificial, fundado no pacto social. O monstro estatal é concebido como um homem de proporções gigantescas, com coroa e cetro, cujo corpo é formado por uma multidão, que, na mirada do seu conjunto, aparenta lorica squamata[69] recobrindo o Leviatã. Trata-se, assim, de uma entidade ficcional, no sentido próprio da ciência civil de Hobbes, com toda a autoridade e o poder para eternizar o estado de paz decorrente do estado civil. Essa entidade artificial, desse modo, instituída em um ato jurídico originário (não expresso, mas inferido), excede as limitações de um mero corpo natural, podendo agir para se eternizar diante dos perigos internos e externos.
Isso posto, é necessário distinguir soberania estatal, de um lado, e governante soberano, por outro. O que está em jogo é a relação entre Estado e governo. Soberano, no sentido pleno, é o Estado, corpo artificial que transcende seus próprios governantes, cujo governo é acidental. O governante é, também, soberano, mas num sentido derivativo, visto que assume a cabeça do homem artificial (Estado) e o personaliza, falando e agindo por ele. O soberano é o que é por estar investido do governo do Estado, este sim, soberano no sentido próprio. Os dois estão vinculados por representação. O Estado é a justaposição entre governante e todos os pactuantes sociais, com plena autorização destes. O governante, por sua vez, possui o ofício de representar o Estado, mas não é o Estado; ele pode ser chefe do Estado, mas nunca pode ser confundido com o próprio Estado, que é a justaposição do governo e o Povo.
Essa disjunção aparece no tratado do Leviatã, de Hobbes (2011, p. 271), transitando entre a ideia de soberania do corpo político e do monarca ou da assembleia. Na verdade, é exatamente aí que se enxerga a real diferença entre governo e Estado: ao se referir ao absurdo da comparação entre o poder soberano e o poder do povo todo reunido, Hobbes adverte que se trata de uma comparação inútil, uma vez que a pessoa investida da soberania é, exatamente, um com o povo, não importando se essa pessoa artificial está vinculada a um monarca ou a uma assembleia.
A interpretação hermenêutica defendida aqui, por conseguinte, é que a pessoa a quem Hobbes (2011, p. 257) se refere, em certas citações, como “[...] uma pessoa de cujos atos uma grande multidão” ou “[...] é uma unidade real de todos eles em uma única e mesma pessoa”, enfim, não são ao Estado, mas ao governo do Estado. O Estado é exatamente o corpo político íntegro, formado por um Povo (agora não mais uma multidão) que deixou seu estado de natureza e se colocou a serviço do soberano. Exatamente por isso, linhas depois, Hobbes novamente adverte: “[...] quem está investido de tal pessoa é chamado SOBERANO, de quem se diz que possui poder soberano; todos os demais são seus SÚDITOS.” (HOBBES, 2011, p. 257).
Não se achou, nas linhas citadas acima, qualquer referência a uma pessoa diversa da definição de pessoa que o próprio Hobbes apresenta, no Cap. XVI da obra, já tão longamente citada. Pessoa é sempre uma pessoa natural que age ou fala por si ou por alguém. Nos dois casos, são pessoas naturais que atuam, mas, no caso da representação, a pessoa se torna artificial, porque a autoria de sua ação pertence a uma outra. Nada mais autoriza, assim, a supor que um ente inanimado tenha personalidade, exceto quando representado por alguém que governa.
Dessa maneira, o Estado é um corpo constituído e unificado sob a cabeça de um governo que se toga da soberania. Por isso, soberano é o Povo formado somente a partir da submissão da multidão, pelo ato jurídico originário, ao seu monarca ou assembleia. Repito: a multidão não é soberana, um príncipe sem povo não é soberano, mas apenas a multidão pactuada sob o governo é o amálgama soberano. Essa imagem é repetida, de forma explícita, na definição hobbesiana de Igreja, instância de representação para quem a ciência política moderna deve muito, conforme já foi aventado. Veja-se: “[...] defino IGREJA como uma companhia de homens que professam a religião cristã, unidos na pessoa de um soberano, por cuja ordem devem reunir-se e sem cuja autorização não devem se reunir.” (HOBBES, 2011, p. 641).
Note-se, nessa questão particular da Igreja, o funcionamento da ideia hobbesiana de modo mais claro: a Igreja é a reunião sob o báculo do soberano. Ela só é Igreja, porque está sob esse domínio soberano, do contrário, não seria. Trazendo água para o moinho, pode-se dizer o mesmo sobre o Estado: ele só existe sob o cetro de um soberano, mas aqui entra o fator de complicação: toda autoridade que o soberano venha a ter recebe do Estado, enquanto amálgama. O que esclarece é: não havendo esse soberano, a multidão estará dispersa e não haverá Estado nenhum. O contrário, porém, é válido: havendo pacto, há a instituição do governo soberano, o qual é soberano exatamente porque representa e governa o Povo reunido.
É notável, portanto, que a forma do Estado – se monárquico, aristocrático ou democrático – não interfere na sua materialidade: o poder absoluto autorizado por todo o povo reunido. Esse poder é indivisível e intrasferível, embora, no aspecto central do que se está denominando governo, em última instância, haja uma multiplicidade de parlamentares, agentes, ministros e magistrados. Todos, no entanto, representam a pessoa única do soberano: o Estado.
Vale destacar, ainda em termos de argumentação, que a convicção maior dessa separação entre Estado e governo aparece na discussão desenvolvida no Leviatã sobre a vontade de todos e a vontade do soberano. Hobbes salienta o modo como a vontade do soberano se faz coincidir com a vontade de todos. Entretanto, por que seria necessária tal argumentação, se não houvesse uma separação entre um e outro? O essencial é que o soberano, ou seja, um ou vários indivíduos envolvidos pela estola do Estado, é designado como representante de interesses gerais, coletivos: o bem comum. Quando se fala de Estado Absoluto, em Hobbes, tende-se a ver uma justificativa indiscriminada da tirania, mas o que há, de fato, é um discurso para a eternização da paz, pelo Estado que, por ser soberano, é absoluto, isto é, autoridade maior em seu próprio território.
Ao monarca, figura provável da tirania, em narrativas comuns sobre o tema, Hobbes adverte, com profundo respeito, contudo, com um certo tom ordinário: “[...] the office of the soveraign...” The office, a missão, o cargo, enfim, não parece ser tanto algo a se dizer daquele dotado do Imperium, do direito medieval e romano, mas de alguém que recebeu autoridade para um dever. Assim, Hobbes acrescenta que aquele que tem o cargo do soberano recebe, por confiança e não em definitivo, “o poder da soberania” (HOBBES, 2011, p. 471). Nada está dito sobre o uso indiscriminado desse poder, mas a vinculação é explícita: a segurança do povo e tudo o que está incluído nisso, como se afirmou na seção anterior.
Essa questão é explicitada na teoria da representação trazida por Hobbes (2011, p. 243), no Leviatã, e desenvolvida por Pitkin (1985, p. 20). A relação entre Estado e Governo é posta, segundo a hipótese apresentada nesse trabalho, na forma de uma representação de um objeto inanimado. Ou seja, há uma terceira pessoa, a qual expressa a vontade do ente inanimado, capaz de constituir uma representação para este. Em outros termos, há alguém que fala pelo Estado, a fim de constituir seu governo, ou melhor, o representante do próprio Estado.
Num primeiro momento, a multidão, que institui o Estado, também define, por sua absoluta liberdade, sua forma de governo (HOBBES, 2011, p. 275). Todavia, após instituída essa soberania, o único com direito de designar a constituição do governo é o próprio Estado que, através do seu representante – o governo –, determinará a forma legal da sucessão, sem a qual o Estado acaba com a morte do soberano (HOBBES, 2011, p. 287). Se governo e Estado não fossem essencialmente diferentes, apesar de funcionarem unidos, não seria possível pensar a paz social, em longo prazo. Todo o esforço de autopreservação estaria vinculado à frágil vida de um monarca ou à efêmera estabilidade de uma assembleia.
Por isso, para Hobbes (2011, p. 277), o modelo do governo, que caracteriza a forma do Estado, se radica numa “conveniência ou aptidão para gerar a paz”, não no poder, uma vez que a soberania estatal é a mesma, em qualquer que seja a forma de governo e quem quer que seja o soberano. O poder comum, por conseguinte, que constitui o conceito hobbesiano de soberania, independe, como é perceptível no seu texto, de quem assume a soberania. As diferentes formas de governo são, tão somente, a expressão apropriada de se estabelecer a paz social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este pequeno esforço buscou demonstrar o essencial de uma relação de representação, no que tange ao Governo e ao Estado. Tal esboço parece lançar luz sobre o termo estrangeiro identificável na fraseologia liberal mais recente: “Democracia representativa”.
O que se quer dizer, quando se fala em representante, em uma democracia? Parece algo que está em profundo antagonismo com a prática política que o termo democracia quer expressar. Se democracia é o exercício político do povo reunido, a interpolação de representantes não separa o povo da política? Além disso, a criação de um corpo político soberano, acima e além do povo, não tornaria a democracia uma impossibilidade? A separação entre estado soberano e governo é suficiente para reumanizar o lócus político?
Evidentemente, não é interesse, aqui, resolver todas essas questões. Busca-se, simplesmente, lançar luz sobre um problema que, em outros autores, é bem resolvido, mas em Hobbes, não tanto.
Acredita-se que a teoria da representação de Hobbes não funciona em linha reta, entre poder constituinte e líder. Há um efeito de prisma, no qual o Estado espalha sua soberania, de forma precária, sobre o soberano. Soberano, no sentido primeiro, é o Estado, figura da comunidade política, e o governante só se torna soberano de maneira secundária, por exercer o governo da comunidade política. E, mesmo assim, tendo uma finalidade bem delimitada: o bem-estar de todos.
Não. Hobbes não é um democrata ou um autor que pregue a soberania do povo. Longe disso. Hobbes é o autor que mais cabalmente pensou a forma com que esse Estado precário, no meio de guerras civis e revoltas, poderia se sustentar. A fórmula: um Estado absoluto, um governo racional, ciente de que governa um Povo.
REPRESENTATION, SOVEREIGNTY AND GOVERNMENT IN THOMAS HOBBES
Abstract: The text deals with the concept of representation in its relation to the concept and sovereignty, in Thomas Hobbes (1588-1679). The work studied is Leviathan, of 1651. The research presents that sovereignty is founded through the original legal act, which establishes an artificial person to represent everyone. This artificial thing is the State. The political society, however, is different from its government, although they are functionally the same.
Keywords: Representation. Sovereignty. Government. Hobbes.
REFERÊNCIAS
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ESTEVES, Anderson Alves. Divisão do trabalho e apologia da ordem em Thomas Hobbes e Norbert Elias. Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 33, n. 68, 2019.
HOBBES, Thomas. Leviatã. (Bilíngue) Trad. Ruy Ribeiro França. Belo Horizonte: Tessituras, 2011.
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Recebido: 12/02/2022
Aceito: 18/07/2022
Referência do artigo comentado: Teixeira Filho, Francisco Luciano. Representação, soberania e governo em Thomas Hobbes. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 93 - 110, 2023.
Teixeira Filho (2023) busca explorar a representação contemplada no ato jurídico originário do pacto social: à medida que o soberano estatuído representa a multidão estatuinte, o primeiro atua em nome da segunda; aquele, ator, esta, autora e, assim, o que se transfere, em tal representação, é a ação, não a autoria. Na multidão, os indivíduos livres e dispostos com sua razão computadora agiram por si mesmos e, a fim de garantirem suas próprias vidas, resolveram a demanda por segurança, ao edificarem o Estado mediante um contrato e, com ele, as representação e soberania.
Alguns dos apanágios da sociedade moderna, consciente e inconscientemente, estão assim contemplados no artigo em pauta e são questões candentes para o pensamento político: representação, soberania, formas de governo não foram objetos importantes apenas para a Inglaterra do século XVII, mas discutidos e (re)pensados hodiernamente, à luz de velhos e novos problemas. A porta que o trabalho de Francisco Luciano Teixeira Filho abre, portanto, permite explorar mais características da sociedade moderna, já antecipadas pelo Autor de o Leviatã, as quais contribuem para nos entendermos, uma vez que o material filosófico expõe nossos traços, ao mesmo tempo que procura transformá-los.
O documento analisado pela Autoria do artigo é o Leviatã. Nele, algumas metáforas permitem a percepção de características denotativas da Modernidade, dentre elas, 1) a própria figura do monstro bíblico com força para derrotar os interesses e apetites particulares, em nome de um bem comum que importa para representantes e representados, na luta para que o império do gládio individual não resulte na restauração da guerra de todos contra todos; 2) o mercado da honra, recurso que expõe as pessoas, comparando seus diferentes graus de poder, riqueza, honra e conhecimento, de forma análoga à valorização que se dá às mercadorias – demarca-se, assim, a penetração dos valores e das leis do mercado na racionalidade, a qual avalia as possibilidades de indivíduos que se opõem e que, ao mesmo tempo, constroem um contrato e instituem uma soberania capaz de regular o bom andamento de uma sociedade competitiva (!) e que metamorfoseia a luta de todos contra todos em um conflito regulado/pacificado, a empreender o processo civilizador que desloca a violência para a latência (ESTEVES, 2019, p. 774).
Há mais metáforas na obra hobbesiana, que, aditivas ao argumento da Autoria do artigo, ratificam a posição nele defendida. Algumas delas estão em Do cidadão: 1) a metáfora do relógio (HOBBES, 1992, p. 15) expressa o modelo matemático de se pensar e o raciocínio hipotético-dedutivo (também presentes em o Leviatã), os quais, ao mobilizar o esprit de géometrie e seguindo rigorosamente o entrelaçamento dos anéis lógicos, por corolários, partem da premissa (indivíduo) e alcançam a conclusão (sociedade edificada pelo contrato social) – além do sucesso dos saberes matemáticos a serem incrementados na administração da sociedade burguesa, o “individualismo possessivo” (MACPHERSON, 2005, p. 14) e o “atomismo político” (TAYLOR, 2011, p. 114) estão contemplados nessa metáfora, como os comentadores citados registraram, com expressões a resumirem a questão; 2) a metáfora do cogumelo (HOBBES, 1992, p. 158) expõe o nascimento de homens suficientemente maduros e livres para decidirem um contrato entre si e, assim, em lugar do que, posteriormente, a Sociologia pesquisará como “processo de socialização”, o recurso literário hobbesiano investe, uma vez mais, no voluntarismo individual e na razão a operar, enquanto computação, como traços do século XVII que foram cifrados por Hobbes como caracteres da natureza humana; 3) a metáfora do vaso de água (HOBBES, 1992, p. 171-172) indica que a liberdade absoluta é aquela na qual, caso o vaso seja quebrado, se enseja movimentação desmedida e se permite que a água escoe e, por outro lado, se a água está preservada dentro de um recipiente, mesmo não se movimentando totalmente, ela ainda tem alguma liberdade e equivale à liberdade civil – é um erro tanto a movimentação ilimitada como a ausência de movimento, a estagnar e corromper o líquido, uma vez que uma possibilitaria o retorno ao estado de natureza e outra subtrairia a esperança dos súditos em conquistar as benesses possíveis da vida em sociedade, amalgamando, assim, a liberdade à proteção, à obediência e ao consentimento de um contrato que erigiu o Leviatã.
As metáforas aqui tratadas atestam a edificação da sociedade burguesa e, a despeito de a obra hobbesiana não ter sido completamente filiada à classe social ascendente, dos tempos do filósofo, apresentam-se, no seu interior, alguns dos componentes que, até hoje, estão na edificação social e política do Ocidente Moderno – representação, soberania, governo, alcances e circunscrições à liberdade, bem comum, mercado, individualismo, apreço pelo conhecimento quantitativo são alguns dos objetos para os quais a pesquisa filosófica ainda tem muito por revelar.
REFERÊNCIAS
ESTEVES, A. A. Divisão do trabalho e apologia da ordem em Thomas Hobbes e Norbert Elias. Educação e Filosofia, Uberlândia: UFU, v. 33, n. 68, p. 747-782, maio/ago. 2019.
HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de J. P. Monteiro e M. B. N. da Silva. São Paulo: Abril, 1974.
HOBBES, T. Do cidadão. Tradução de R. J. Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
MACPHERSON, C. B. La teoria política del individualismo posesivo: de Hobbes a Locke. Tradução de J.-R. Capella. Madrid: Trotta, 2005.
TAYLOR, C. As fontes do self: a construção da identidade moderna. 3. ed. Tradução de A. U. Sobral e D. A. Azevedo. São Paulo: Loyola, 2011.
Teixeira Filho, F. L. Representação, soberania e governo em Thomas Hobbes. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 93 - 110, 2023.
Recebido: 10/09/2022
Aceito: 20/09/2022
Rita Helena Sousa Ferreira Gomes[71]
Referência do artigo comentado: Teixeira Filho, Francisco Luciano. Representação, soberania e governo em Thomas Hobbes. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 93 – 110, 2023.
Partindo da problematização de democracia representativa, Teixeira Filho (2023) nos conduz ao conceito inovador de representação, em Hobbes, oferecendo-nos uma chave interpretativa para o tema da soberania. Especialmente, o artigo instiga a pensar nos meandros que aproximam e distanciam Estado e governo, colocando-nos diante de aspectos importantes para uma análise bem medida da política de Thomas Hobbes.
Em Hobbes, os tópicos políticos devem ser sopesados como componentes de uma teia maior, com diversos pontos de entrada. Acredito que esta seja uma das razões para, ao final da leitura do texto de Teixeira Filho (2023), termos tanto “respostas” quanto incontáveis possibilidades de novas questões. Isso atesta a seriedade do trabalho escrito por Teixeira Filho, ao passo que nos põe frente à difícil pergunta: que fio puxar agora?
Neste comentário, desejo sublinhar como a discussão da conexão e diferença entre Estado e governo, trazida por Teixeira Filho (2023), pode ser articulada com o problema da relação entre natural e artificial, presente em vários pontos da produção hobbesiana. Destarte, proponho retomar alguns pontos tocados no artigo, sob uma perspectiva diversa, mas suplementar, com o intuito de potencializar os debates que o perpassam.
O problema natureza-artifício demarca um incontornável pano de fundo para uma boa compreensão das obras políticas hobbesianas. Opto por chamar “pano de fundo”, haja vista que, a despeito de sua importância, Hobbes não a tematiza conceitualmente, de forma direta. Todavia, não são poucos os momentos em que, como leitoras/es, nos deparamos com exemplos, noções e argumentos os quais exigem que consideremos a convergência ou a divergência entre natureza e artifício. Nessa toada, a analogia da Introdução do Leviatã é emblemática: “Do mesmo modo que tantas outras coisas, a natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada pela arte dos homens também nisto: que lhe é possível fazer um animal artificial.” (HOBBES, 1974, p. 9).
Ao iniciar sua obra de maturidade, traçando paralelos entre natureza e artifício, Hobbes reitera o carácter inédito de sua ciência política, evidenciando sua separação da clássica ideia aristotélica de que os humanos são naturalmente sociais. Não há espaço, aqui, para destrinchar como a novidade hobbesiana nutre e é nutrida pelo contexto da nascente Modernidade. Meu foco se limita a grifar como, ao contestar a naturalidade da esfera política, Hobbes abre terreno para a emergência de interrogações originais.
Ao assumir a não naturalidade da vida política, Hobbes é obrigado a avaliar mais complexamente a relação natureza-artifício. Se, sob determinado prisma, natureza e artifício são opostos, por outro, são complementares. Assim, a complexificação dessa relação impõe, a leitoras/es de Hobbes, uma atenção constante para entender como essa discussão se oculta em aspectos basilares de sua filosofia.
Sob essa ótica, observemos a transição do estado natural ao civil, notando como a hipótese do estado de natureza vai muito além de um mero ponto que antecede o sistema político. Se, no cenário natural, o que existe são indivíduos atomizados e, prioritariamente, interessados na realização de seus desejos, a formação do Estado requer a criação de um âmbito de coletividade que ultrapassa arranjos grupais transitórios e desorganizados (ou parcamente organizados). Contudo, dada a configuração da natureza humana, como isso é possível?
Para resolver esse imbróglio, o qual parece opor radicalmente indivíduos e coletividade, Hobbes precisa encontrar na natureza recursos que sirvam de pilares para sua própria superação. Um dos recursos mais marcantes é, sem dúvidas, a lei natural. Com a lei de natureza, o filósofo de Malmesbury desenha uma ponte capaz de unir o interesse individual e as limitações inerentes à vida coletiva. Pela lei natural, articulam-se coerentemente paixões, razão – posto que “Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral estabelecido pela razão” (HOBBES, 1974, p. 82) – e capacidade de avaliação das condições concretas. Desta feita, a sociedade política resulta, em seu aspecto mais arcaico, de indivíduos que, através do bom uso da razão, reconhecem que seu desejo mais básico é partilhado por outros indivíduos. Trata-se, portanto, de algo individual que, eventualmente, se mostra comum.
O problema, contudo, persiste: na experiência natural concreta, o comum inexiste. De fato, o que existem são pessoas naturais portadoras de liberdade total e virtual igualdade de faculdades, logo, potencialmente perigosas umas para as outras. A descoberta do campo comum, por si, não basta: é necessário dar-lhe materialidade.
Porém, como materializar uma comunidade? Por natureza, o máximo que se pode atingir é uma aglomeração de indivíduos a um deslize do caos completo, uma multidão. É preciso, pois, recorrer a alguma estratégia artificial que garanta a invenção de algo novo: o povo. Simplificadamente, podemos afirmar que o povo é a multidão unificada por um representante[72] que carrega, simultaneamente, a autorização para agir e decidir em nome de cada indivíduo. Estado e povo são, assim, duas faces de uma mesma moeda. Enquanto o Estado materializa o comum, permitindo que ele perdure no tempo e no espaço, o povo se desdobra dele, na mesma medida em que o sustenta pela contínua e efetiva manutenção da autorização outrora prometida por cada indivíduo, no momento do pacto.
Por isso, a preocupação hobbesiana em frisar a unicidade da vontade do Soberano não é banal. Acima de tudo, a vontade una do Estado estende na realidade temporal e espacial o ponto comum que vincula o desejo de cada indivíduo ao dos demais. Isso significa que a vontade do Soberano se estrutura exatamente naquilo que animou sua criação, a saber, a busca pela paz e pelas benesses derivadas dela. Nesse sentido, o Estado é uma ficção que, como tal, é eminentemente diversa e irredutível à pura natureza. Mas é, ainda, uma ficção urdida em sintonia com demandas advindas da natureza humana que se mostram irrealizáveis em um campo meramente natural.
Usando essas lentes, podemos corroborar, sob novo ângulo, a diferenciação entre Estado e governo feita por Teixeira Filho (2022). O Estado é artifício, haja vista que o mundo humano comum não pode advir imediatamente da natureza. Isso posto, qualquer tentativa de identificar o Estado com o simplesmente natural redunda em sua negação. O natural, porém, adentra o Estado por uma questão prática: todo e qualquer membro da sociedade civil é portador da natureza humana, inclusive aquele que assume seu controle.
Essa constatação tem, de imediato, dois efeitos. De um lado, a dimensão insuperável da natureza humana presente em cada cidadão atualiza, diuturnamente, a ameaça de retorno ao estado natural[73] e justifica o enorme poderio do Estado. De outro, aponta para uma configuração do governo como uma sobreposição de artifício e natureza, uma vez que a pessoa (ou, no caso de uma assembleia, as pessoas) que assume(m) o cargo soberano não pode(m) se apartar de sua condição natural. Essa sobreposição abre espaço para eventuais confusões entre a pessoa que exerce o ofício e o aparato estatal propriamente dito.
Cabendo ao Estado o domínio total das decisões, interpretações e conduções relativas ao mundo comum, essa ambiguidade tende a se ampliar. Ou seja, não estando o soberano em exercício submetido a qualquer constituição ou limites legalmente aplicáveis, suas percepções pessoais podem guiar os rumos civis. Apesar de não ser objeto de preocupação primeira, tal questão não escapou da análise hobbesiana. Os inúmeros alertas, disseminados nas suas obras, sobre a função do Estado ser o bem-estar do povo e os perigos reais de não a cumprir me parecem prova disso.
Referências
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SOUKI, N. Behemoth contra Leviatã: guerra civil na filosofia de Thomas Hobbes. São Paulo: Loyola, 2008.
Teixeira Filho, Francisco Luciano. Representação, soberania e governo em Thomas Hobbes. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 93 - 110, 2022.
Recebido: 08/09/2022
Aceito: 13/09/2022
Abstract: Chuang Tzu (《庄子》), as a traditional Chinese canon, has been translated into English for more than 100 years since 1881, successfully carving a niche in the realm of world literature, which has become an earth-shattering cultural event in the academia of overseas sinology and world literature. According to statistics, the book has been translated into 12 full translations, 50 selected translations, and two adaptations. The metamorphosis process of “full translation – deep translation – diversified retranslation”, has passed through four stages, namely religious, literary, philosophical, and diversified reinterpretation phases. Thus, from the perspective of Damrosch’s view of world literature, this paper summarizes the characteristics of different stages based on different spatial-temporal contexts. In the light of translation form, translational outcomes, and translation mode of reading, the path in which Chuang Tzu entered into the field of world literature is specified for the operational mechanism of promoting national literature to world literature, which is dedicated to the enlightenment for practical translation work of introducing Chinese literature abroad. Meanwhile, by reviewing the history of English translations of Chuang Tzu, this paper sums up the deficiencies of current translation activities and research activities, with an attempt to provide constructive suggestions as well as to point out the direction for the future development of overseas studies of Chuang Tzu.
Keywords: Chuang Tzu. World literature. Translation history. Translation studies.
INTRODUCTION
Chuang Tzu, a prestigious philosopher, ideologist, and man of letters in ancient China, is the co-initiator of Daoism with Lao Tzu. With Lao Tzu and Chuang Tzu’ as the core, Daoism is one of the four prevalent studies in the Pre-Qin Period along with Confucianism, Mohism, and Legalism. Chuang Tzu’s thoughts and works have mainly been encapsulated in the book Chuang Tzu, which is also named Nan Hua Jing (《南华经》). As one of the four mainstream schools in the Pre-Qin Period along with Confucianism, Mohism, and Legalism, Daoism, jointly founded by Lao Tzu and Chuang Tzu, takes their philosophy as the core, in which, Chuang Tzu is the prestigious philosopher, ideologist, and literate in ancient China, with his thoughts and works mainly encapsulated in the book Chuang Tzu, also named Nan Hua Jing. As one of the literary classics of Chinese culture, Chuang Tzu with its unique and distinctive status engraved in the history of Chinese and foreign literature has “[…] added a whole new dimension to Chinese thought and created a whole new fantasy world for Chinese literature.”(BURTON, 2002, p. 31). In the history of translation and study for more than one century, the continuous crossing over language barriers, the gradual dissolving of East-West cultural barricades, and the deep integration into world literary trends have made the book Chuang Tzu world-renowned. The author successfully established numerous literary mirror images of the exotic lands, recounting the philosophical wisdom and literary charm of the ancient East. Throughout its history, “[…] translating Chuang Tzu into English is a process of both translation and study” (HUANG, 2009, p. 51), which strongly manifests that the translation and study of the book are inextricably linked. It is shown statistically that there are 64 translation achievements concerning Chuang Tzu in the English-speaking world, including 12 full translations, 50 selected translations, and two adaptations, which have gone through four stages, namely, religious reinterpretation, literary reinterpretation, philosophical reinterpretation, and diversified reinterpretation.
The systematic review of the history of translation and study of Chung Tzu in the English-speaking world pushes this study to summarize the characteristics of different stages for this book to be translated into world literature about to text, paratext, and context, to grasp the current situation and problems of overseas studies on Chuang Tzu. Based on retrospection and reflection, previous shortcomings are pointed out to better guide the formation of world literature. Dealing with comparisons among works of literature from different nations, comparative literature could be applied to research pertinent to production, dissemination, and acceptance transcending the borders of culture, language, and territory. Since the global circulation of the Chinese canon is engaged in intercommunication among nations of different traditional conventions, it is undoubtedly viable to employ world literature theory in the dissemination area of English translation of Chuang Tzu.
1 World Literature: A Translational Perspective
What is world literature? In 1827, the term “Weltliteratur” was coined by German scholar Goethe when mentioning his conception of world literature during the conversation with the poetic Johann Peter Eckermann, which is not the first time to propose this term, but Goethe did specify its definition, stating that the epoch of world literature is at hand, and everyone must strive to hasten its approach. With Goethe’s idea coming from the massive reading of literature from other countries outside Europe, including China, which reminded him of the Eurocentrism prevalent at that time, he was deeply convinced that all the literary works from different nations are equal and inter-influenced. Hence, the transnational world literature characterized by cosmopolitanism means that attention should be paid to every country in the world instead of concentrating on Europe. In a word, world literature is a literary communication featuring cross-language, cross-nation, and cross-country.
Goethe’s concept was further explained by Karl Marx (2007, p. 32) and Frederick Engels in Manifesto of the Communist Party. They believed that
[a]s in material, so also in intellectual production. The intellectual creations of individual nations become common property. National one-sidedness and narrow-mindedness become more and more impossible, and from the numerous national and local pieces of literature there arises a world literature.
The circulation of the world capital is bound to promote the rise of world literature, forecasting the inevitability of formation of the world literature. Here, it is easy to see that economic development can bring about cultural dissemination, and the spread of international translations.
Translation plays a crucial role in the global circulation and canonization of the literature. Without translation, literature could never insinuate its way to overseas readers. “For a translation comes later than the original, and since the important works of world literature never find their chosen translators at the time of their origin, their translation marks their stage of continued life.” (WALTER, 2000, p. 102). That literature with the failure of being translated would be marginalized or become dead, while those translated would gain their continued life or even afterlife.
The importance of translation has been emphasized by several modern scholars, such as David Damrosch, Pascale Casanova, Franco Moretti, etc. Damrosch with an innovative perception of world literature holds that world literature is “[…] an elliptical refraction of national literature; the writing with gains in translation; a reading mode rather than a set canon of texts; and a form of detached engagement with worlds beyond our place and time.” (JAMES, 1962, p. 64). From the perspective of circulation, translation, and reading mode, Damrosch regards world literature as dynamic, cross-language, and transcendent. With the ability to break the shackles of language and step into other countries to make a difference, world literature.The evaluation of the impact of a literary work should attach importance to the number of translations, the inclusion of literary anthology, literary criticism, and textbook prescription. The fact that a book is translated does not necessarily mean that it would become world literature. Thus, it all comes down to the quality of translation, especially concerning translation tactics, translation outcomes, and translation deciphering mode, while the above three dimensions are strongly affected by the context in which the translation takes place. “World literature is not an object, but a problem that asks for a new critical method.” (FRANCO, 2000, p. 54). Therefore, the exploration of the history of the English translation of Chuang Tzu drives this paper to specify the connection among translation, context, and world circulation by summarizing the characteristics of different stages, to reveal the mechanism of national classics in China to gradually become global canon. Chinese canon translation is inextricably connected with research in the realm of overseas sinology, comparative literature, and translation studies. In light of the integration of translation and research in pertinent realms, it can be seen that essential translations could also be found in academic monographs, which means we cannot afford to neglect monographs while burrowing into the English translation of Chuang Tzu.
2 Chuang Tzu’s Route to World Literature
“World literature cannot be conceptualized apart from translation.” (LAWRENCE, 2013, p. 281). The canonization of the Chinese classic Chuang Tzu is inextricably connected to translations and studies of the book. Roughly speaking, the path of Chuang Tzu to global canon has gone through four phases, namely religious reinterpretation, literary reinterpretation, philosophical reinterpretation, and diversified reinterpretation, each one of which has a lot to do with the social context. A glimpse of the features and incentives of different phases would be generally displayed.
2.1 Religious Reinterpretation (1881-1932)
When mentioning the ancient communication history among China and other exotic lands, it could date back to the initial stage when the Silk Road originally came into existence. To be more specific, it was the time when the Han Dynasty and the Roman Empire stumbled upon their incipient encounter which was largely conducive to the establishment of the contact avenue between the East and the West. With the enhancement of the comprehensive strengths of Ancient Rome, the empire decided to assign Christian missionaries of catholic churches from Europe to other countries, especially to the Far East, so that more foreign disciples could be successfully preached into firm believers of Christianity as well as of the miraculous marvels graced by the omnipotent God. Anticipating expanding the impact of the Gospel of God, Matteo Ricci summoned a panoply of missionaries to China who were committed to generating a more comprehensive understanding of Chinese culture using translating Chinese canonical texts to eventually fulfill their missionary duties. Before the 19th century, the strategy of “Integrating Confucianism” adopted by Western missionaries prioritized the translation of Confucian classics. In terms of Taoist classics, only Tao Te Ching was translated into English (LAWRENCE, 2013, p. 71).
As it is stated by D’ Haen, “[…]my insistence on the relation between world literature and geopolitics is because I truly believe that they are the two sides of the same coin” (YU, 2012, p. 148), indicating the strong impact of political environment on translation activities. After the Opium Wars in the 19th century, more missionaries set foot on the land of China to implement mental colonization, making the missionary task more and more urgent. Thus, the occurrence of “the Spread of Oriental Literature to the West” brought about the explosive expansion of English translation of Chinese texts from the Confucian classics to other classics including Confucian classics, historical records, philosophical writings, and miscellaneous works.
From 1881 to 1932, the westerners' attention to Chuang Tzu’s book promoted the translation of this one, including three full translations and one selected translation. In 1881, as the first Frederic Henry Balfour’s attempt to fully translate Chuang Tzu into English, the Divine Classic of Nan-Hua: Being the Works of Chuang Tsze, Taoist Philosopher was published in Shanghai and Hongkong, whose translation quality is not very high with plenty of mistakes due to Balfour’s merchant identity and lack of language knowledge. In 1889, based on Balfour’s translation, Herbert Allen Giles published his interpretation, Chuang Tzu: Mystic, Moralistic, and Social Reformer, which was republished in 1926 and changed its name into Chuangtzu, Taoist Philosopher and Chinese Mystic, with an attempt to cater to English readers by interpreting Chuang Tzu with Christian concepts in fluent language. In 1891, being included in the work Texts of Taoism which belonged to a sinology book series, The Sacred Books of the East compiled by Max Miller, James Legge’s full translation entitled The Writings of Kwang Zou was brimming with paratexts like a preface, annotations, and index under the principle of fidelity, to burrow into Chuang Tzu’s profound thoughts. In 1906, Linoel Giles published the selected translation Musings of Chinese Mystic: Selections from the Philosophy of Chuang Tzu in the book series The Wisdom of the East.
In this stage, Chuang Tzu’s book initially drew the attention of the West, “[…] the chief object of the translator or translators is to show that the Mysteries of the Most Holy Trinity and the Incarnate God were anciently known to the Chinese nation.” (THEO, 2016, p. 7). With the majority of translations as full translations, all the translators were from Europe with a Catholic background, for example, Balfour was a Christian merchant, Legge was a missionary of the London Missionary Society, and Giles and Lionel as diplomats were from a Christian family. In an attempt to trace the evidence of the Gospel of God gracing China before and confirm the universality of Christianity, the translators reconstructed overseas Chuang Tzu with Christian concepts such as Leviathan and Heaven to replace “鲲” and “天”, reasoning that they spared no effort to prove the God’s traces to China in advance so that the universality of Christianity could be sufficiently demonstrated. They were also encouraged to use literary translation to present a more thorough picture of Chinese culture due to missionary motives. Unfortunately, misinterpretations and misconceptions could be conspicuously and ineluctably spotted in their renditions, because those translators were scant in professional knowledge in terms of sinology and the Chinese language. To sum up, what incentivized the religious interpretation phase of Chuang Tzu were political considerations and religious purposes, out of which translators had no alternative but to employ reader-friendly tactics to consummate the English journey of the book. The Westerners managed to embrace Chuang Tzu’s book thanks to the simple nature of the initial renditions carving out the path for the global dissemination of Chuang Tzu and simultaneously laying down foundations for pertinent research and translations conducted by posterities.
2.2 Literary Reinterpretation (1933-1980)
During the period from the 1930s to the 1980s, the two world wars pushed the transference of economic, political, and cultural centers from Britain to America. World literature as “[…] a dynamic institution has developed in response to the changing historical conditions as well as the mutually competitive agents, visions, and values.” (JAMES, 1962, p. 53). So unlike in the religious reinterpretation stage, translators in the literary reinterpretation stage were mostly from America. Due to “[…] focus on the salvation and freedom of the individual, with little or no concern for the social orders” (ZHANG, 2018, p. 1), related to Chuang Tzu, with the end of World War Two, westerners with their disappointment at industrialization and capitalism anticipated the culture from the East, especially Chuang Tzu’s thoughts advocating liberation and naturalism, which can be acted as a remedy for social mentality to fill the vacancy of social belief.
In 1933, the translation of The Inner Chapters, namely Chuang Tzu, a new selected translation with an exposition of Kuo Hsiang’s philosophy, was published in Shanghai by the Chinese scholar FENG You-lan, which was then republished in 1964, 1989, 2012, and 2015 under the name A Taoist Classic: Chuang-Tzu. This translation elaborated the philosophical reflection on Chuang Tzu with a dialectical comment on former annotations. In 1939, the Three Ways of Thought in Ancient China, launched by Arthur Waley, incorporated reviews, comments, and selected translations with appropriate analysis. In 1942, Lin Yu-tang published his translation of Chuangtse, Mystic, and Humorist in the book The Wisdom of China and India, containing chapters in concise and precise language with prose form (RUSSEL, 1979, p. 11). In the same year, Hughes Ernest inlaid his selected translation of The Inner Chapters, which is entitled Chuang Chou, the Poet of Freedom, into the first chapter of the book Chinese Philosophy in Classical Times.
After entering the 1960s, with the consecutive success of many translations, the successful triggering of westerners’ reading and studying interests by the studies on Chuang Tzu led to the reoccurrence of full translations with an emphasis on literary representation and acceptance effects. In 1960, the book Sources of Chinese Tradition, edited by William Theodore De Bary and others, included a four chapter selected translation that demonstrated the essence of Taoism and demonstrated the significance of Chuang Tzu in the history of Chinese literature. In 1963, Chan Wing-tsit translated some selected chapters in the book A Source Book in Chinese Philosophy along with his comments. In the same year, The Sayings of Chuang Chou, the first full translation in the 20th century published by James Roland Ware, was targeted at academic scholars rather than, with abstruse vocabulary and no annotations. Publishing a selected translation and a full translation respectively named Chuang Tzu: Basic Writings and The Complete Works of Chuang Tzu in 1964 and 1968, Burton Watson with solid language skills and sinology experience strived to retain original cultural images, metaphoric features, and writing patterns with abundant paratexts, thereby successfully realizing function diversification of loyalty, readability, and academic authority. In 1965, a selected translation The Way of Chuang Tzu, launched by Thomas Merton, prioritized literary performance by recomposing a collection of parables. In 1974, a selected translation of Chuang Tzu: Inner Chapters, jointly published by Feng Gia-fu and Jian Ying, was republished in 1997 and 2000, which innovatively interpreted the core of Chuang Tzu by merging with the Hippie Spirits, thus making this version popular and republished for multiple times.
In the second phase, the literary essence of Chuang Tzu was prioritized by western translators who have just laid their eyes on the book. Different renditions emerge in large numbers with most of them conducted by professional scholars specializing in sinology, world literature, and philosophy instead of merely missionaries in the religious reinterpretation phase. Those translators have successfully generated translations of high quality with the assistance of sufficient referential materials as well as proficient language skills. In the meanwhile, Chinese voices were introduced into the translation realm when Chinese scholars attempted to convey their English interpretation to the world. The combination of study and translation, which is the dominant paradigm in American sinological academia, cannot be overlooked when it comes to the major characteristics at this stage. Pertinent studies were conducted based on textual translation so that the renditions could be given full play in terms of the incorporation of multidimensional values. Considering that most Westerners would presumably be estranged from the book, most renditions shouldered the accountability to better disseminate the Chinese classics and oriental culture, eventually assuaging the agony of war-tormented people. To skim it in a broader picture, most translations were selected ones concentrating on representative chapters with well-known expressions that were intentionally contrived for English readers’ reading customs and aesthetic expectations. The literary features of the original text were reserved to the most extent in plain languages concerning the lexical, syntactical, and paragraphic levels. Thus, the literariness and readability of the translated texts were both taken into account. Unfortunately, this translation strategy restricted the translation and research to literal interpretation and circumscribed angles, which concealed the true essence of the book under the darkness.
2.3 Philosophical Reinterpretation (1981-1999)
“As already noted, literature itself is the outcome of cultural practice, and in terms of world literature, it is endowed with a particular historical density.” (DJELAL, 2004, p. 3). When it enters the 1980s, prosperity and maturity graced the translation and research relevant to Chuang Tzu in the West. Most translators and scholars strived to excavate the philosophical kernel of the book from a philosophical perspective. With the thriving migration wave, a great many Chinese immigrant compatriots carried invaluable substantial materials and intangible culture into the land of America, gravely facilitating pertinent studies and translations of philosophical features. What’s more, politically speaking, the USA Government attempted to manipulate the discourse power in Asia by inserting strategic deployment in the East, which engenders the demand to learn more about China. Consequently, many translational projects and research proposals about Chinese canons were subsidized by official funding, realizing three full translations, 13 selected translations, and two adaptations in this period.
In 1981, a selected translation of Chuang-tzu: The Seven Inner Chapters and Other Writings from the Book Chuang-tzu, published by A.C. Graham, was taken in The Hackett Classics series and renamed to Chuang-Tzu: The Inner Chapters in 2007, in which the order of all chapters and paragraphs was rearranged, with some contents omitted, thus retaining about four-fifths of the book. Meanwhile, aiming at professional readers instead of general ones, Graham’s translation systematically expounded the core thoughts of Chuang Tzu based on documentary reviewing, which has an important impact on the study of Taoist thinking, Chinese philosophy, and overseas sinology.
Graham's successful translation launched a research norm of translation and elucidation, which is common in international studies of sinology. This paradigm is responsible for the translation and study of later times. In 1982, Wu Kuang-ming delved into his partial translation from the perspective of Existential Phenomenology in his monograph Chuang-tzu: World Philosopher at Play. In the next year, Hongkong resident Chad Han-sen analyzed Chuang Tzu based on linguistic philosophy and logistics in his monograph Language and Logic in Ancient China. In 1989, Robert E. Allison conducted a partial translation under the scope of hermeneutics in Chuang-Tzu for Spiritual Transformation: An Analysis of the Inner Chapter. Simultaneously, Graham discussed his reconsiderations of Chuang Tzu’s dialectical thinking and analytical capability in his other monograph Disputers of the Tao: Philosophical Argument in Ancient China. In 1990, Wu Kuang-ming concentrated on the first three chapters and conducted a contrastive analysis between Chinese and Western philosophies in The Butterfly as Companion: Meditations on the First Three Chapters of the Chuang Tzu, which demonstrated the philosophical disparities of countries with different cultural conventions.
As monographs kept turning up, there were still some scholars carrying on the mission to spread Chuang Tzu and producing several popular translations. In 1992, Chen Han-sen issued another monograph A Daoist Theory of Chinese Thought: A Philosophical Interpretation, which burrowed into Chuang Tzu’s skepticism and emphasized the significance of the book in the history of Chinese philosophy development. Meanwhile, Derek Bryce conversed with Leon Wieger’s (1931) French-selected translation of Les Pères du Systéme Taoist into the English version Chuang-Tzu Nan-Hua-Ch’en Ching, or The Treatise of the Transcendent Master from Nan-Hua. In addition, Brian Bruya cooperated with Taiwan caricaturist Cai Zhi-Zhong to publish a cartoon adaptation Zhuangzi Speaks: The Music of Nature, and they worked together in 1997 to issue another adaptation The Dao of Zhuangzi: The Harmony of Nature.
In 1993, Thomas Cleary translated seven chapters in which the different stories, parables, and anecdotes in The Essential Tao were restructured with simple and accurate vocabulary. In 1994, Victor H. Mair published a full translation of Wandering on the Way: Early Taoist Tales and Parables of Chuang Tzu, that was reissued in 1998, where the emphasis on faithfulness, literariness, and popularity pushed Mair to deeply restore the style and stylistic format of Chuang Tzu, reconstruct a translation with poetic language, and arrange the preface, introduction, appendix, and other paratexts, to help readers understand the book.
With its exquisite cover and supporting paratexts, Martin Palmer's 1996 comprehensive translation of The Book of Chuang Tzu on Penguin Books sped up the global adoption of Chuang Tzu. Meanwhile, Stephen Owen selectively translated two chapters in An Anthology of Chinese Literature: Beginnings to 1911. In addition, Alex Page converted the German-selected translation of Martin Buber (2017, p. 1) in the monograph Chinese Tales: Zhuangzi, Sayings and Parables; Chinese Ghost and Love Stories. In 1997, David Hinton’s selected translation of Chuang Tzu: The Inner Chapters, which was included in his monograph The Four Chinese Classics: Tao Te Ching, Analects, Chuang Tzu, Mencius in 2013, successfully juxtaposed literal translation and absence of annotations by simple native expressions, tight literary coherence, and prudent philosophical criticism. At the same time, WANG Rong-Pei and REN Xiu-Hua published a full translation of Zhuangzi: Chinese-English, which was included in the Library of Chinese Classics in 1999. The phenomenal English proficiency made two Chinese scholars successfully carry out their rigorous academic pursuit of high-quality translation. In 1998, 22 chapters in The Essential Chuang Tzu were cooperatively translated by Sam Hamil and J. P. Seaton, with the humorousness and concision manifested by its clear language, detailed introduction, and convenient keyword list.
In this stage, relying on profound academic literacy, those specialized translators gradually converted the old research paradigm into a new one characterized by a combination of academic elucidation and selected translation. At that time, the book was studied concerning “(1) selected areas of Taoist thought and practice, (2) Taoist history, and (3) the exploration of primary source materials for the study of Taoism.” (FRANCISCUS, 1995, p. 322). The objective to get the hang of Chinese culture from the core made the philosophical value of Chuang Tzu naturally the priority. In those translations and monographs, translation and elaboration were juxtaposed or, sometimes, the latter one even occupied a longer length than the former one. The change of the main target in this period from popularization to specialized research pushed the translators to pay great attention to the academic rigorousness during their translation. Thus, they would prudently consider the translation of every word based on obvious verification and bibliographic confirmation. Moreover, Chuang Tzu was studied using different themes, plots, and characters. In addition, some scholars who continued to shoulder the task of promotion launched a small number of popular translations. The philosophical deciphering method was dominant at this stage, and various means from different fields were applied to translations to provide English mass readers with concise and easily understandable translations, such as comic adaptations. Some translators from different countries even collaborated across nations. Chuang Tzu’s philosophy was burrowed into interdisciplinary approaches by scholars from other disciplines. In 1983, Victor H. Mair issued an article compilation Experimental Essays on Chuang-Tzu incorporating several articles composed by scholars specializing in psychology, game theory, and other interdisciplinary angles. In 1996, P. J. Ivanhoe and Paul Kjellberg collectively published a paper compilation Essays on Skepticism, Relativism, and Ethics in the Zhuangzi. In addition, in 1998, Roger T. finished another collection wandering at Ease in the Zhuangzi. Philosophical analysis of the book was launched from diversified angles in those essay collections. When overseas sinology got acquainted with paper compilations, it was manifested that discipline-awareness had already shed its light on the academia and relevant studies about Chuang Tzu had become mature. But the research emphasis at this stage could not break free from philosophical constraints, thereby neglecting other aspects of value concerning the book as well as its reinterpretation.
2.4 Diversified Reinterpretation (2000-now)
After entering the 21st century, the continuously improving national comprehensive strength has promoted China to implement the policy of “Chinese Culture Going Global” by keeping spreading Chinese culture to the world, which has caused the unprecedented rise of the interest of other contries in Chinese culture as well as the continuous increase of their attention to sinology and Chinese. The book Chuang Tzu as one of the world literature is enjoying. (GAYATRI, 2003, p. 94). Therefore, receiving constant attention, Chuang Tzu as a vital carrier of Chinese culture has four full translations and 28 selected translations.
In 2000, Yang Ru-zhou’s publishment of the selected translation Chuang-Zue Lan Hou Cheng Translated/Commented in Chinese/English Spoken Languages was completed by using daily expressions and colloquial vocabularies. Meanwhile, as a psychological therapist rather than a sinologist or professional translator, Gerald Schoenewolf launched his monograph The Way: According to Lao Tzu, Chuang Tzu, and Seng Tsan comprising 37 stories, to probe into the psychological healing effects on modern mental diseases. In 2001, Bryan William and Van Norden co-edited Readings in Classical Chinese Philosophy whose fifth chapter was Paul Kjellberg’s selected translation. In 2003, Patrick Edwin Moran issued a selected translation of Zhuangzi. What’s more, Harold David Roth commented on Graham’s version from the aspects of translation methods, literary criticism, and philosophical analysis in his finished monograph A Companion to Angus C. Graham's Chuang Tzu: The Inner Chapters. In addition, Richard John Lynn from Canada launched a selected translation Zhuangzi: A New Translation of the Daoist Classic as Interpreted by Gua Xiang (Translations from the Asian Classics).
The translation and study of the book have changed their emphasis from literal translation to philosophical reinterpretation with the incorporation of research perspectives from various fields in light of the previous translation paradigm. In 2004, Hans-Georg Moller studied the literary performance and spiritual kernel of Chuang Tzu in Daoism Explained – From the Dream of the Butterfly to the Fishnet Allegory while Steve Coutinho probed into the impeccable translation tactics for optimal representation of the intelligence and humor of the original book. Concurrently, Coutinho conducted a discussion on the ambiguity of the work under the realm of hermeneutics, semiotics, and philosophy together with the selected translations of the two beginning chapters.
At the moment, multimedia is utilized for translation as the translational mode and paradigm are becoming more and more diversified. In 2006, Nina Correa disclosed her electronic version of translation on an online forum Dao-Is-Open and Fabrizio Pregadio innovatively applied the Alchemist perspective to the investigation of Chuang Tzu in Great Clarity: Daoism and Alchemy in Early Medieval China to elucidate the primitive alchemy convention of China. Moreover, Wang Qin and Qiang Fang-Zhen cooperated to render the book in Zhuang Zi Says while Christopher Tricker from Australia issued a selected translation named Village Philosopher: The Stories of Zhuangzi.
In 2007, Wu Chung published a selected translation of The Wisdom of Zhuang Zi on Daoism to deeply inspect philosophy and humanism. In 2008, Great Wall Bookstore publishing house issued Quotations from Zhuangzi in Wang Rong-pet’s translation, and meanwhile, Fabrizio Pregadio published a monograph The Encyclopedia of Taoism to demonstrate the panorama of Taoism about historical development, leading figures, and essential masterpieces according to the integration of the commonality of Taoist texts through the selected translation of some representative chapters. In 2009, Brook Ziporyn issued a monograph Zhuangzi: The Essential Writings with Selections from Traditional Commentaries, in which the different versions of many ancient Chinese scholars’ annotations, such as GUO Xiang, Wang Fu-Zhi, Cehng Xuan-Ying, Shi De, were analyzed using their respective translation, discussion, and comment.
In 2010, Solala Towler’s translation of seven chapters in The Inner Chapters: The Classic Taoist Text is attached with many pictures taken in Towler’s Daoist ascetic journey, thus creating a sense of Daoist vibe by combining the translator’s own experience, to help readers better understand the spiritual core of Chuang Tzu. In 2011, Livia Kohn published a monograph Chuang-tzu: The Tao of Perfect Happiness – Selections Annotated & Explained to conduct concise selected translation and analysis on the sense of value concerning the world, physical body, mentality, and self-transformation. In 2012, Roy Melvyn launched a translation collection The Four Taoist Classics – Daodejing, Huahujing, Zhuangzi, and Liezi with an emphasis on the Taoist views on life, society, the natural world, and humanity.
In 2014, Wang Yi-Zhen and Wang Guo-Zhen issued The Wisdom of China: Zhuangzi-Enjoyment of Life in an Untroubled State in the Chinese Wisdom book series, where the man Chuang Tzu’s life, purpose, and spirits were introduced with vivid parable translation. Meanwhile, Livia Kohn issued another monograph Zhuangzi: Text and Context, where the Taoist thoughts on individual philosophy, moral ethics, social value, ecologism, cosmology, and other themes were further illustrated with accurate selected translation. In 2015, the e-book The Tao of Happiness: Stories from Chuang Tzu for Your Spiritual Journey issued by Derek Lin has the effect of mental enlightenment through its selected parables translated in an easily understandable way.
In 2016, A. Charles Muller issued the paper Zhuangzi online including the translations of two chapters and appropriate annotations. Then, Hyun Hochsmann, Yang Guo-Rong, and Daniel Kolak jointly issued Zhuangzi in the Longman Library of Primary Sources in Philosophy book series. In 2017, Nik Marcel and Leon Wieger worked together to publish a French-English selected translation, and Cai Zhong-yuan published a new full translation New Paraphrase of Chuang Tzu catering to English reader’s reading habits. In addition, Hans-Georg Moller and Paul J. D’Ambrosio published a monograph Genuine Pretending: On the Philosophy of the Zhuangzi, in which, with the analysis of some core concepts, the translations were also reinvented, such as translating “真人” to Zhenuine Pretender.
In 2018, Haun Saussy issued a selected translation as Citation: Zhuangzi Inside Out under the guidance of dynamic principle, and Michael Nylan published a monograph The Chinese Pleasure Book with the translations of three chapters from a historiographic perspective. In 2019, a new full translation of Sir Lush in China launched by Zhao Yan-Chun served as a textbook for English major students, in an attempt to produce an authoritative translation out of pedagogic purpose. Moreover, part of Lin Yu-tang’s translation of Tao Te Ching and Chuang Tzu is selected by Michael Xu to be compiled into Taoist Classic Complete Works: Tao Te Ching, Chuang Tzu.
In addition to translation and academic monographs, essay collections and history reviews are also two major outcomes of overseas sinology concerning Chuang Tzu. For example, in 2003, Scott Cook scrutinized copious literature and collated pertinent studies in his review hiding the World in the World: Uneven Discourses on the Zhuangzi with an expectation to specify the developing route of research and translation. In 2014, Livia Kohn translated Wang Bo’s (2004) monograph Philosophy of Zhuangzi into English and renamed it Zhuangzi: Thinking through the Inner Chapters. In the next year 2015, Kohn integrated 13 essays composed from innovative perspectives, such as neuroscience, pedagogy, and sociology, into the paper collection New Visions of the Zhuangzi. Concurrently, Roger T. Ames and Takahiro Nakajima included the latest academic outcomes conducted under the perspectives of formal logic, alternative epistemology, and transcendental mysticism, in their jointly-compiled essay collection Zhuangzi and the Happy Fish.
At this point, the proliferation of translations and monographs, as well as the growth of translation organizations in Canada, Australia, and other English-speaking nations, all demonstrated how deeply the influence of Chuang Tzu had permeated the English-speaking World. The continuously expanded depth in the translation and study of Chuang Tzu made the study achievements not only include the outcomes from the inheritance of predecessors but also develop innovations, mixed with some new translations. The translation and study show the transparent polarization, that is, extremely popular and extremely academic. On the one hand, some scholars continuing on the mission of popularization used concise, plain, and natural language to introduce the translations that general readers can accept. On the other hand, more translational work has done its bit to satisfy the public’s inquisitiveness about Chinese culture and Taoist thinking. Such translations trying to eschew obscure expressions restructured Chuang Tzu into popular literature absolutely without any academic traits. As for issue media, diversification is also an obvious feature. While publishing paper-based books, numerous scholars also issued electronic versions to further facilitate the accessibility of reading and study, who can skillfully make use of modern technology to create online forums dedicated to deliberation over Chuang Tzu, so that the general public could have the opportunity to express their viewpoints.
On the other hand, based on selected translations, scholars from different realms tentatively study the book from multiple perspectives, such as hermeneutics, semiotics, logic, and so on. Deciphering methods are reinvented to explore different values in different fields. While this is going on, more and more Chinese scholars are continuing to share their perspectives with the world, with some of them already catching the scholars’ interest from other countries. The re-publishment overseas of some Chinese monographs already translated into English indicates that the voices from Chinese academia have been echoed in the global sinology circle. Chinese and foreign scholars have gradually begun to communicate and cooperate, thus forming a mode of interaction between the East and the West.
3 Chuang Tzu’s Canonization Through Translation
In 1881, the book Chuang Tzu as “[…] optimal
exposition of Taoist thinking” (CREEL, 1956, p. 139) of China,
successfully found its way to the English-speaking world, thereby transforming
world literature. The process of “Tentative Translation – Deep Translation –
Repeated Translation” can show that translation is massively responsible for
the canonization of Chuang Tzu about refraction way, translation outcomes,
and reading mode which are all closely connected with the specific context.
First and foremost, the elliptical refraction indicating the duality of world literature is affected by the host culture and source culture simultaneously. “Even a single work of world literature is the locus of a negotiation between two different cultures.” (DAMROSCH, 2003, 283). The translated text with more or less different from the original would not be directedly and completely implanted overseas. The refraction that the traces of both host country and source country are bound to be found in every piece of world literature is always in dynamic change instead of being static. The specific characteristics of different Spatio-temporal contexts push the translations in different stages to show different traits. In the religious reinterpretation stage, the purpose of colonization brought about the active translation of Chuang Tzu into the English-speaking world, with the impacts from the receiving culture showing apparent dominance, thereby the translations adaptation to context drove Chuang Tzu to manage to catch westerner’s eyes and make a difference in overseas sinology. As in the literary reinterpretation stage, mental demands were still predominant, resulting in many faithful, authentic, and easy-to-understand translations. When it comes to the philosophical stage, the need of China for pushing its culture to the globe and the pressing demand of America for forming in-depth insight into Chinese culture, both led to the dramatic increase in translation outcomes and the prevalence of rigorous monographs. In the last stage, besides the impacts from social context, the translation and study of Chuang Tzu were even affected by modern technology. The translation of national literature is significantly influenced by both the host and receiving cultures. It can be fairly concluded by using various methodologies from other domains to this book for a new interpretation. Context-specific trails can be easily found in the translations from different contexts, especially the additions or omissions in terms of theme, plot, and characters. “We can say that the works circulating into world literature continue to bear the marks of their national origin, and yet these traces are increasingly diffused and become ever more sharply refracted as the work travels farther from home.” (DAMROSCH, 2003, p. 283).
Secondly, since “[…] world literature is the writing with gains from translation”. (DAMROSCH, 2003, p. 281), translation as the only possible way for national literature to become world literature plays a vital role in spreading the literature across languages, nations, countries, culture, ideology, and even time and space. The acceptance must be taken into account to determine whether a work can become world literature. The change in the number of translations of Chuang Tzu from 4, 11, 18 to 32 indicates that it has achieved maturity and received strong attention from westerners. Besides the translation and study of Chuang Tzu from the perspective of theology, literature, philosophy, and multi-disciplines, there are still some translations, such as Watson’s translation, which has been included in the UNESCO Collection of Representative Works, Chinese Series, as well as some famous literature anthology, including The Norton Anthology of World Literature (2012, 2015), The Bedford Anthology of World Literature, Classical Chinese Literature: An Anthology of Translation(2002) etc. (MARIANO, 2010, p. 336). Numerous book reviews and literary criticisms are written concerning different translations. Sinology academia also burrows deep into the book. All the achievements in these dimensions suggest that the achievement of Chuang Tzu to become world literature shall thank the consecutive English translations.
Several factors and constituents account for the global acknowledgment of Tzu, namely the number of translations and republications, the inclusion of literature anthology, and opinions from literary critics at home and abroad, all of which account for the justification of the world literature status of Chuang Tzu. In the literary reinterpretation phase and philosophical reinterpretation one, similar to these two phases, it can be revealed that the former attaches importance to the literary manifestations of the original text while the latter emphasizes the reinterpretation of kernel spirits. There is still a salient disparity between the two.
Last but not least, the detached engagement mode of reading is also critical. “Read intelligently, while an excellent translation can be seen as an expansive transformation of the original, a concrete manifestation of cultural exchange and a new stage of a work moving from its initial home towards the world.” On the one hand, needs to be prioritized. Readers, on the other hand, always interpret translated texts in light of their own experiences as well as the unique perspectives shaped by the receiving culture. The mode of reading determines the way that the national literature metamorphoses into world literature. For instance, in the philosophical reinterpretation stage, with the wrestling of American society with mental treatment, as well as the occurrence of the Counterculture Movement, Green Movement, and other social campaigns, the liberation and naturalism of Chuang Tzu resonated with the individualism of America, value tradition of freedom and the deep ecologism, thereby the translations of Chuang Tzu were accepted actively by the Western readers.
When carrying on the triangulation between our presentation and the enormous variety of other cultures around. The works of world literature will be so fully enshrined within their cultural context as we do when reading those works within their traditions. A certain distance from the local tradition can help us to appreciate the literary work that reaches out and is away from its point of origin. (ZHU, 2019, p. 170).
Only when translators pay attention to the mode of reading can they effectively facilitate the accessibility of the national literature to world literature.
CONCLUSION
Successful as Chuang Tzu obtains in the English-speaking world, there are still some problems to attend to and better solidify its world literature status. Firstly, translation and study have already stepped into a bottleneck period. The existence of numerous excellent translations pushes translators and scholars to shift their attention from pure translation to “selected translation + elucidation”, with the urgent need to carry on full translation under the guidance of different principles, especially some innovative reinventions, while the gradual polarization of being extremely popular and extremely academic promotes the requirement for the production of more hybrids juxtaposing popularity and rigorousness. What’s more, there is a lack of meta-study on Chuang Tzu. As the world literature triggers multitudinous outcomes, the book shall be regarded as an independent branch under overseas sinology, which is reasonable. Thus as a branch, it is necessary to propose a unique methodology suitable for relevant translation and study. In addition, on the whole, with westerners mainly holding the power of reinterpretation, Chinese scholars’ natural advantages to render and decipher the book are neglected or overshadowed in the realm of sinology. Therefore, it is recommended that the Chinese voice should be delivered to the world and Chinese theory should be applied to the process of translation and study.
After more than a century of translation and study, the “form and focus in translation” of Chuang Tzu. (ZHU, 2019, p. 173). The group of translators, the mode of translation, and the carrier of translation have all shifted from simplification to diversification. And the research team, research paradigm, research awareness, and research approaches have also altered from fragmentation to systematization, contributing to abundant translations and monographs. In the future, diversification and systematization would continue, making more popular translations as well as specialized monographs. The status of Chuang Tzu in sinology would be further reinforced, forming a more concrete standing in the realm of world literature. As a systematic approach to translating and studying Chuang Tzu has developed, the field of reinterpretation will inevitably expand as more and more translators and academics make meaningful and creative efforts.
At present, “[…] the translation and circulation of literature today are historically unprecedented once we consider how quickly books enter various national markets in small or large size or even across several continents.” (REBECCA, 2015, p. 46). The mechanism behind the formation of world literature has become the limelight, yet meanwhile, a conundrum to academia. The path of Chuang Tzu to world literature fundamentally shows that the role of translation should be given its due share. In terms of choice of translation. (WANG, 2016, p. 380). Thus, translators and scholars should turn their eyes to both host culture and source culture, striking a balance between the original intention and target readers’ anticipation. Based on this perception, the multiple possibilities of reinterpreting should be prioritized for consideration to get close to the true essence of the book. In the process of translation and study. (BAI, 2014, p. 79). More complete translations that are authoritative, accurate, faithful, reliable, and simple to accept are urged given the current situation. As world literature is the elliptical refraction of two cultures. The appropriateness of Western theories and methods cannot be exaggerated, thus it is necessary to further introduce Chinese theories to achieve an equilibrium between the two cultures. Lastly, a deep dialogue among China and other English-speaking countries should be held to promote overseas studies on Chuang Tzu, thereby creating windows of opportunities for the rest of the world to have a deeper understanding of Taoist wisdom.
TRADUZINDO CHUANG TZU PARA A LITERATURA MUNDIAL: TEXTO E CONTEXTO
Resumo: Chuang Tzu (《庄子》), como um cânone tradicional chinês, foi traduzido para o inglês por mais de 100 anos, desde 1881, conquistando com sucesso um nicho no reino da literatura mundial, que se tornou um evento cultural devastador na academia de sinologia ultramarina e literatura mundial. Segundo as estatísticas, o livro foi traduzido em 12 traduções completas, 50 traduções selecionadas e duas adaptações. No processo de metamorfose da “tradução completa – tradução profunda – retradução diversificada”, passou por quatro fases, nomeadamente fases religiosas, literárias, filosóficas e reinterpretações diversificadas. Assim, na perspectiva da visão de Damrosch a respeito da literatura mundial, o artigo resume as características de diferentes estágios, com base em diferentes contextos espaço-temporais. À luz da forma tradutória, dos resultados tradutórios e do modo de leitura tradutória, especifica-se o caminho pelo qual Chuang Tzu entrou no campo da literatura mundial, para apreender o mecanismo operacional de promoção da literatura nacional à literatura mundial, que se dedica ao esclarecimento para o trabalho prático de tradução da introdução da literatura chinesa no exterior. Enquanto isso, revisando a história das traduções inglesas de Chuang Tzu, o artigo resume as deficiências das atuais atividades de tradução e pesquisa, com a tentativa de fornecer sugestões construtivas, bem como apontar a direção para o desenvolvimento futuro de estudos de Chuang Tzu no exterior.
Palavras-chave: Chuang Tzu. Literatura mundial. História da tradução. Estudos de tradução.
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Received: 01/06/2022
Accept: 09/08/2022
Commented Article: Lin, Jiaxin; Yu, Xinbing; Liu, Song; Luo, Mingqiao; Chou, Younkon. Translating Chuang Tzu into world literature: text and context. Trans/Form/Ação: Unesp journal of philosophy, v. 46, n. 1, p. 121- 142, 2023.
Bias is difficult to overcome when translating from Eastern languages into Western ones. The main consequence is a loss of conceptual coherence from the original, but the parables continue to pique Westerners' interest in philosophy. We experience the thrill of being completely immersed in another philosophical tradition with comparable antiquity and richness. Even though they may disagree with their philosophical conclusion, readers inside and outside China consistently have the suspicion that the Zhuangzi's appealing style is filled with philosophical genius. The interpretive malleability of Zhuangzi's dialogues, which invites or even demands that we participate in the author’s philosophical thought, may, in fact, be a large part of the work's attraction from a philosophical standpoint.
This attraction is mostly attributable to the caliber and intricacy of his episodes, which each revealed a certain philosophical area and concluded with a thought-provoking query, much like Nietzsche or the Later Wittgenstein. Zhuangzi clearly enjoys studying contradictions, especially linguistic ones of the kind that appeal to analytical Western intellectuals. Each interaction presents or exhibits bits of knowledge with open-textured conclusions. Each represents a different, natural way of existence that may be difficult to access. The sometimes ambiguous conclusion “the answer is X” leaves interpreters debating how X may be an answer – or what X is (for example, “free and easy wandering,” “walking two roads,” “goblet words,” “clarity,” and so forth) – hundreds of years later, like Fermat. Each one seems to fit itself easily into a variety of conundrums that intellectuals in both traditions are familiar with. One speculates that we discover the correct interpretation by escaping from some philosophical cauldron like Wittgenstein's fly. The right philosophy is also the right way to understand Zhuangzi.
Zhuangzi’s ancient religious narratives identified him as Laozi's student. Laozi is regarded as the creator of a mystical religion that worships an unidentified enigmatic entity, and the translations of his name prefer to portray him as Laozi's disciple. Metaphysical monism, epistemic intuitionism (sometimes expressly anti-rationalist), political anarchy, and a hazy form of moral absolutism – follow The Dào – were all acceptable philosophical approaches. The majority of contemporary popular and religious interpretations continue along this interpretative path, positioning Zhuangzi as Laozi's “follower” and presenting Laozi as the foundation of “Daoist mystical philosophy” or “Lao-Zhuang” thought.
A century after Zhuangzi's death, the narrative of his religious philosophy began (4th century BC). Following the classical era, there was the superstitious Qin dynasty (221-206 BC), which shut down philosophical schools, destroyed books, and suppressed ideas. The “Dark Age” of Chinese philosophy began as a result. Following was the more traditional Confucian Han Dynasty (206 BC – 220 AD). The Han emperor's hereditary Grand Historians, Sima Tan and Sima Qian (a father-son pair), penned an official history of the legendary Yellow Emperor (about the third millennium BC) to the Han over the course of two decades (109-91 BC). The division of intellectuals into the three thought schools of Daoist, Legalist, and School of Names first appears in this narrative. Graham hypothesizes that the Outer Chapters may have been the source of the notion that Zhuangzi and Laozi were related. There, in a series of discussions, Zhuangzi's pupils mocked Confucius by using his legendary master, Lao Dan or Laozi.
In the Qin, Huang-Lao’s religion had developed itself, which revered the Yellow Emperor and Laozi as deities. The Huang-Lao masters taught the father and son historians. The myth of Zhuangzi as a disciple and interpreter of a semi-divine Laozi was well established by the time of Han’s fall. The editing of Laozi’s received edition (Wang Bi 226-249) and afterward Zhuangzi’s one marked the beginning of the Neo-Daoist revival in the post-Han period (Guo Xiang d. 312 see above). Daoism and Buddhism, in the eyes of the public, became intertwined as a result of Neo-Daoist debating techniques and concepts that influenced the interaction of Buddhist and Chinese philosophy (especially with Chinese Chan Buddhism). Throughout the period when Buddhism dominated the Chinese intellectual world, a Daoist “religion,” which borrowed models of religious organizations from Buddhism (monasteries, monks, and nuns), impacted discourse about Daoism (achieved gradually during the Six Dynasties period 220–589 and extending through the Tang 618–907). From the Middle Ages on, Neo-Confucians regarded Buddhism and Daoism as being fundamentally identical religions.
The Zhuangzi's modern text theory has grown as a result of two recent discoveries: the reconstruction of the Later Dialectical Works of Mohist, and the reconstruction of Daode Jing text by archaeologists. Their dual influence on how we perceive Zhuangzi is covered in the part that follows.
Chinese intellectuals adopted the European notion of philosophy, with its implicit separation from religion, as a result of events that took place in China during the end of the 19th and beginning of the 20th centuries. The basis of this distinction was thought to be logic, which is the theory of proof or argument. They began dividing their own writings into those supported mostly by credulity and tradition from those that seemed most like reasoning, deduction, and logic. They started to separate the philosophical components of their old thoughts from their more superstitious and religious ones. Reconstruction of the Mohist Canon by Sun Yirang (1848–1908) in 1897 offered solid proof that analytically motivated and rigorous reasoning had developed in Classical China. Intellectuals of the 19th century like Yan Fu (1854–1921) and Liang Qichao were inspired by this example (1873–1929). The ancient schools that were more directly tied to the logical paradigms of Western philosophy and Mohist analytics began to receive more attention. Hu Shih (1891–1962) carried on this legacy by reorienting and refocusing Chinese philosophy away from the Confucian scholasticism that had predominated since the decline of Buddhism. Hu Shih was a key figure in this movement.
The interpretation of the Zhuangzi and the Xunzi in the west has lately started to be influenced by the reformation of early 20th-century logic, which was partly motivated by Angus Graham, who saw that these ancient writings showed mastery of the technical terminology of Mohist linguistic theory.
Zhuangzi has gained philosophical acclaim in recent years thanks to Graham's 1969 essay “[Zhuangzi Essay]'s on Seeing Things as Equal” (Graham 1969, predating his work on Mohism). Graham quips that whoever created that conceptually dense passage is the person we would want to think of as Zhuangzi in response to Wang Fuzhi's hypothesis that Shen Dao, not Zhuangzi, had written the beloved chapter. Graham suggested comparing the seemingly at odds ideas of the text to a contemplative thinker’s “inner conversation”, who develops a viewpoint, weighs it, and then rejects it. Graham also remarked on the author's intense interest in, apparent fluency in, and complex challenges resulting from Classical Chinese ideas of language, which he was only beginning to explore.
The ancient Chinese story of a pupil named Zhuangzi, who followed a semi-divine Laozi in worshipping The Mystical Dao, was in direct opposition to Graham's outlook. Graham joked that Zhuangzi was unaware that he was a Daoist. Later, Graham asserted that internal evidence indicated Zhuangzi had never read the Laozi (The Dào Dé Jing) and most likely believed Lao Dan to be a Confucian. The contrast between Graham's textual arguments and the conventional historian's portrayal of Zhuangzi as a religious, mystical Daoist adherent of the semi-divine Laozi, worshipping “The Dào,” to a greater or lesser extent, underlies most interpretation disagreements.
Archeological finds of various Laozi’s manuscripts served to tangentially corroborate Graham's textual assertions. Together, the early 1970s and 1990s finds suggested that the Laozi’s text emerged very late in history – perhaps a few years after Zhuangzi had died and possibly concurrent with the writing of a series of dialogues between Laozi and Confucius in the “Outer Chapters” part. Graham hypothesized that Zhuangzi's pupils may have opted for the fabled Lao Dan (Confucius' instructor) rhetorically to give them the right to lecture and make fun of the renowned master while they were crafting the cycle of Laozi-Confucius conversations.
The possibility of speculation regarding Zhuangzi's relationship to the relativist, linguistic theorist Hui Shi, who is typically seen as belonging to the School of Names, arises when we reject Zhuangzi’s conventional identification as Laozi’s follower. Christoph Harbesmeier conjectured that he might have been Zhuangzi's mentor, instructor, or classmate. If he had been a teacher, he eventually grew to view his pupil as an equal or even superior being. He is portrayed by Zhuangzi as having an important part in the development of Zhuangzi's philosophical abilities as an intimate philosophical interlocutor and ultimately as a foil for honing his analysis. Hui Shi's ten theses, which are among the writings that focus on “many names,” distinguish him as a relativist answer to Mohist realism on the relationship between names and “things,” with a particular emphasis on comparative and indexical words.
Accordingly, we might interpret Zhuangzi's relativism as an alternative, possibly more reflectively nuanced, indexical relativism about judgments and about choices of paths (dàos) of appropriate usage of names, words, and concepts as markers for our behavior. This explains both Zhuangzi's relativist line of thought and his appreciation of sound Mohist and realist responses to Hui Shi's relativist line of thought. Graham's philosophical view is developed and expanded upon in this article, which places more emphasis on this relationship to Hui Shi than to Laozi.
The majority of interpretive historical and theological literature sits between the conventional, pious, mystical Daoist religious interpretation and the closest intellectual neighbors to that wiew. What follows shouldn't be seen as ecumenical, given the philosophical context of this piece.
This description enables us to understand Zhuangzi's style of argument, which avoids the common Western sentence-based analogies of laws, rules, and principles with standards of compliance, belief, or propositional desire. Zhuangzi would have the basis for a differentiation between a cause and a reason if he used the Western vocabulary and the related practical logical statement of belief-desire explanation, which he doesn’t appear to do in his discussion of independence. A path can be inferred through choices, interpretations, etc., and behavior can be guided by internal feedback through our skill at “reading” other paths.
Zhuangzi would not argue that issue using a normative assumption or principle as a starting point. Our walking behavior has a causal and normative relationship to the internal and external pathways. Similar to this, a stronger sentential focus would refer to the result as an action rather than a protracted pattern of walking or the following behavior. Instead of, as would fit in this metaphorical space, playing a role in a play or part in a symphony, a sentence would describe the action or the intent – more like the conclusion of a practical syllogism.
Zhuangzi employed the road metaphor to comprehend language, but, once more, not with a sentential focus. Zhuangzi constructs language in dào form as opposed to sentential form while creating dàos. Ancient Chinese thinking centred on names as metaphorical waypoints, such as “walk past the tree, turn right, and then down to the lake.” Names become significant as markers along physical buildings. The designations of social positions and statuses were given more weight in Confucian social versions than those of natural categories. They adopted the broad anti-naming stances that Later Mohists demonstrated to be self-condemning due to primitivist resistance to Social Daos.
This vast topic is summed up beautifully by the writers. It takes scholarly sublimity and intellectual prowess to even just attempt to do this rather complex subject. The World of Literature is just awakening to absorb and appreciate the beauty and greatness of Chuang Tzu’s eternal works. The wisdom of the “Sun of Chuang Tzu”, which is portrayed thru his works, is destined to shine even brighter. This is my comments to Lin, Yu, Liu, Luo and Chou (2023).
References
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Lin, Jiaxin; Yu, Xinbing; Liu, Song; Luo, Mingqiao; Chou, Younkon. Translating Chuang Tzu into world literature: text and context. Trans/Form/Ação: Unesp journal of philosophy, v. 46, n. 1, p. 121- 142, 2023.
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ZI, Z. Herbert A. Giles. London: Allen & Unwin, 1981.
Received: 06/09/2022
Approved: 08/09/2022
Resumo: É possível encontrar em Maquiavel uma expressão significativa do consentimento originário para a explicação da origem das comunidades políticas. Investigam-se, assim, as possíveis recepções desse tema, a partir do pensamento político romano. Com Lucrécio e Cícero, torna-se possível compreender os termos do pacto, qual sejam, o primitivismo no contraste entre homens e bestas, o medo e a segurança comuns como elementos fundantes da comunidade política e a liderança de um homem de destaque. Para isso, lateralmente, debatem-se as premissas aristotélicas da natureza política dos homens e apresentam-se exemplos do contexto de Maquiavel, a fim de corroborar a disponibilidade da linguagem do consentimento originário em acordo com o aristotelismo. O artigo conclui que Maquiavel não possui uma teoria substancial da origem dos agremiados humanos, porque o objeto da política, dentro da maneira pela qual ele a entende, existe apenas mediante a fundação das cidades historicamente determinadas. Logo, o emprego de uma linguagem contratualista, em acordo com a aristotélica, estava dentro de um contexto retórico de despertar a atenção de seu leitor.
Palavras-chave: Maquiavel. Origem da Comunidade Política. Consentimento Originário. Medo. Aristotelismo.
INTRODUÇÃO
Os esforços de evidenciar a presença do pensamento político e histórico de Roma antiga na reflexão maquiaveliana sempre encontraram destaques nas interpretações do florentino. Já há algumas décadas, a ênfase dos termos ciceronianos, particularmente em relação à virtude, é empregada sobretudo no intuito de mostrar as linhas de continuidade com o humanismo. Em anos mais recentes, diversos estudos têm realçado o epicurismo de Lucrécio, no quadro teórico do pensamento do florentino. De fato, o impacto do De Rerum Natura, redescoberto em meados do Quattrocento, abriu caminho para uma filosofia natural, cujo fundamento se distanciava do cristianismo, em particular, e de qualquer forma transcendente ou metafísica da condição humana, em geral. A confirmação biográfica de que Maquiavel conhecia bem o texto acentua as interpretações aproximativas. A despeito de todo esse esforço, alguns termos centrais de Lucrécio e Cícero mais propriamente políticos ainda não foram devidamente tratados, particularmente sobre a origem dos agremiados humanos.[82]
A explicação que seria amplamente retomada, a partir do século XVII, sob a insígnia do contrato social, está presente, de certo modo, no pensamento desses romanos, e não era exatamente estranha a tantos autores da Antiguidade em relação ao tema da fundação das cidades. Os humanos se organizariam em sociedade, com base em um consentimento original, a fim de superar uma condição anterior e fundar a Civitas. O consentimento originário[83] parte da noção basilar de que há dois momentos hipotéticos, metafóricos ou históricos, nos quais os homens vivem e diferem, quando da emergência das comunidades políticas, de tal maneira que haja um operador artificial, a fim de se chegar aos agremiados humanos observáveis em qualquer tempo histórico (GOUGH, 1957, p. 2-3). Pode-se encontrar tal esquemática em Lucrécio, Cícero e, em menor medida, Salústio.[84]
Essa perspectiva pode ser reforçada, na medida em que se compreende o sistema contratualista moderno, particularmente a partir de Hobbes, como uma unidade entre direito natural, contrato e soberania, cujas respectivas origens são profundamente diversas. Durante o século XVII, essa síntese se opôs simultaneamente ao direito divino medieval e ao naturalismo antigo, o que é bastante diferente de afirmar que as ideias do consentimento originário não estavam disponíveis antes desse período. Ainda em inícios do século XVI, afirma Terrel (2001, p. 61-62), mesmo Aristóteles (Retórica, 1376 b) era lido à luz do consentimento originário: “[...] somos conduzidos a interpretar as frequentes referências medievais a um contrato por perceber a existência dos governos ou das cidades como sinais de decomposição do naturalismo aristotélico.” (TEREL, 2001, p. 63). Coloca-se em evidência, como retomaremos na sequência da argumentação, que a contrariedade entre o naturalismo aristotélico e o contratualismo ocorreria apenas em meados do século XVII (TUCK, 1979, p. 32-57).
Maquiavel jamais é sistemático quanto à explicação da origem das comunidades humanas, e há casos nos quais a aproximação com a afirmação aristotélica da natureza política dos homens é evidente (cf. LUCCHESE, 2015, p. 48). Contudo, algumas passagens-chave de sua obra tendem a corroborar a interpretação de uma explicação via consentimento originário. Diante desse cenário, o presente artigo visa a perscrutar a hipótese de que Maquiavel refletiu e se posicionou sobre o consentimento originário para a fundação das comunidades políticas, particularmente em diálogo com autores romanos, mas o fez, como concluiremos, de um ponto de vista retórico e não teórico.
1 QUANDO OS HOMENS VIVIAM COMO BESTAS
Logo depois de anunciar as três formas clássicas de governo, no segundo capítulo do primeiro livro dos Discorsi, Maquiavel afirma que as variações dos governos originais ocorrem ao acaso – distanciando-se, portanto, da versão naturalística de Políbio (ION, 2006, p. 98 n. 2; LUCCHESE, 2015, p. 33; SASSO, 1993, v. 1, p. 66). Porém, antes de esmiuçar as causas que fazem girar cada forma em outra, e assim diferir cada governo da fundação da cidade, Maquiavel insere uma explicação lógica e talvez historicamente anterior à existência dos governos: “[...] no princípio do mundo, os habitantes, que eram escassos, viveram durante algum tempo dispersos à semelhança das bestas.”[85] (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 2, 14). A condição bestial à qual os seres humanos estavam submetidos remete, certamente, a um modo de conceber a origem das comunidades de maneira radicalmente distinta da naturalidade política do animal humano de viés aristotélico (cf. BROWN, 2015, p. 109; MANSFIELD, 1996, p. 117).
Não é necessário que se cogite qualquer antecipação teórica ou filosófica das doutrinas contratualistas típicas dos séculos XVII e XVIII, para aceitar a confrontação com a afirmação aristotélica de que um homem que vive só é um deus ou uma besta (ARISTÓTELES, Política, 1253a) e, se o homem for um deus ou uma besta, por definição, não é um homem. A confrontação da racionalidade humana que enseja a teoria do consentimento originário em adequação ao naturalismo aristotélico estava, certamente, disponível a Maquiavel e era, desde Tomás de Aquino até a virada do século XVI, lugar-comum dos debates sobre as origens dos agremiados humanos (cf. LIMA, 2019, p. 28; TUCK, 1979, p. 17-31), conforme veremos com exemplos à frente.
Todavia, o que de fato nos interessa na passagem é a cogitação de que houve época – histórica, hipotética ou metafórica – em que os homens se comportavam e viviam como bestas e, como tais, não se organizavam sob quaisquer formas civis ou de governo. Dentro do quadro de referências às quais se acredita que o florentino teve acesso, algumas chamam a atenção.[86] Em anos recentes, os estudos maquiavelianos têm centrado atenção na presença de Lucrécio, em sua obra (BROWN, 2015; LUCCHESE, 2015; RAHE, 2006; VATTER, 2014; ZUCKERT, 2017). Parece, de fato, bastante convincente que uma filosofia naturalista, sem divindades e estranha a qualquer transcendência ou metafísica, se encaixe com precisão no realismo de Maquiavel (BACCELLI, 2017; LUCCHESE, 2015, p. 26; PEDULLÀ, 2011, p. 94). Muitas controvérsias em torno do tema têm surgido, porém, aqui não é nosso objetivo debatermos os pormenores da querela. Precisamos apenas reconhecer que, sabendo do acesso que Maquiavel teve ao texto, há passagens muito semelhantes e devemos, a partir dessa constatação, confrontar a hipótese de que Maquiavel reconhecia a robustez teórica ao consentimento originário.
A descrição lucreciana do surgimento e desenvolvimento da vida, ao chegar ao Homem, concebe-o fisicamente diferente do homem que conhecemos: são mais fortes, maiores, mais robustos e mais resistentes: “[...] levavam eles [os homens] uma vida errante à maneira das bestas [more ferarum].” (LUCRÉCIO, De Rerum Natura, V, 932). Textualmente, a frase de Maquiavel é quase uma tradução da de Lucrécio. Contudo, o florentino não acompanha o poeta na sequência da narrativa, a qual afirma que naquela situação bestial não havia trabalho nem esforço, pois a natureza provia as necessidades mais básicas de subsistência.[87] É verdade que – do mesmo modo que ocorre com relação ao seu suposto aristotelismo, muitas vezes aceito acriticamente pelos estudiosos – essa passagem em Maquiavel é demasiadamente curta para que se extraia substantiva teoria. Sobre isso, argumentaremos na sequência, mas devemos adiantar que há um motivo para a brevidade da exposição. Cabe destacar, porém, que a descrição de Lucrécio se assemelha bastante ao que futuramente ficaria conhecido como estado de natureza: não há lei, não há costumes, não há arte ou técnica de nenhuma espécie, entretanto, há medo (LUCRÉCIO, 1924, V, 955-980; cf. SASSO, 1993, v. 1, p. 482).
Igualmente conhecido na Renascença italiana, embora a comprovação do acesso de Maquiavel ao texto não seja clara, é o Da Invenção, de Cícero (cf. PEDULLÀ, 2011, p. 302 n. 1; TUCK, 1979, p. 33). Já nas primeiras frases, escreve o orador romano: “Houve um tempo em que os homens vagavam amplamente nos campos como bestas [bestiarum modo] e sobreviviam de alimentos selvagens.” (CÍCERO, De Inventione, I, 2).
Nessa situação, não havia leis, religião, deveres sociais, casamentos legítimos nem educação das crianças. Algo bastante assemelhado escreve o mesmo autor, em Do Orador: “[...] que outra força teria podido reunir em um só lugar os homens dispersos [...] aqui e ali ou conduzi-los de uma existência selvagem e agreste a este viver humano e civil a instituir leis, tribunais, direitos, uma vez formada a comunidade civil?” (CÍCERO, De Oratore, I, 8, 33). E, logo, na sequência: “Quem poderia concordar com você que o gênero humano, inicialmente disperso nos montes e nas florestas [...]” (CÍCERO, De Oratore, I, 9, 35).
Salústio evoca o mesmo tropo, ao descrever os habitantes da África. “Não eram governados nem por costumes nem por lei, nem eram eles submetidos a qualquer comando de quem quer que seja; errantes e dispersos, tinham sua morada onde quer que a noite chegasse.” (SALÚSTIO, Bellum Iugurthinum, XVIII, 2).
Por um lado, é verdade que não há aqui uma descrição sobre as origens dos agremiados humanos em geral, nem mesmo uma preocupação teórica. Por outro, a menção é importante, porque corrobora as demais e certamente se trata de um autor com o qual Maquiavel lida respeitosamente (cf. ADVERSE, 2007). O que nos interessa, na passagem, é a dispersão de habitantes de uma região geograficamente inabitada em um determinado período e que, assim, viviam sem leis, costume nem autoridade, “[...] à maneira das bestas [ferina]” (SALÚSTIO, Bellum Iugurthinum, XVIII, 1).
Parece claro que esses textos, bem difundidos no Renascimento italiano, tiveram algum impacto em Maquiavel. A noção basilar de que o começo da humanidade não pode ser a mera projeção do presente para o passado é, de certo modo, encontrada no pensamento dele. A dispersão de homens, os quais viviam como bestas, se opõe de modo evidente à congregação das “pequenas partes” (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 1, 4) em comunidades e à autossuficiência das cidades – e aqui é necessário nos determos um pouco sobre os possíveis termos de seu aristotelismo.
2 AS PEQUENAS PARTES OU VILAS[88]
Já nas frases iniciais dos Discorsi, Maquiavel afirma que, após relatar a fundação de uma cidade feita por um nativo ou estrangeiro, que seu objeto se debruça na fundação por nativos. “O primeiro caso ocorre quando os habitantes, dispersos em muitas e pequenas partes, não viviam seguros.”[89] (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 1, 4). Uma cidade é fundada a partir de um grupo de pessoas que vivia em muitos pequenos grupos, seja de maneira coletiva, seja espontaneamente, seja por um único fundador. Há, entretanto, uma clara contraposição entre a cidade e os pequenos grupos, os quais certamente seriam partes integrantes daquela. Esses dois agremiados são, na verdade, etapas distintas de um mesmo todo, realizado no segundo, isto é, a cidade.
Trata-se, claramente, do fenômeno do sinecismo (cf. RINALDI, 2010, p. 419 n. 12). Aristóteles (Política, 1252b) anunciou essa agregação humana como sendo o elemento intermediário entre a família e a cidade, isto é, a vila ou clã (kômê): “[...] se as primeiras comunidades [koinonia] existem por natureza, cada cidade [polis] existe por natureza.” Segundo o estagirita, esse agremiado se entende como não sendo nem mera exigência quotidiana, como a família, nem autossuficiente, como o que caracteriza a cidade.
Apesar de a passagem ser muito breve, em Maquiavel, outras passagens e as ausências de explicações ratificam a noção de que aqui o que ele entende por “pequenas partes” é muito similar à vila aristotélica: não é uma família (da qual Maquiavel não trata), nem uma cidade (pois ele acabara de anunciar a origem da cidade e não poderia ser a origem da cidade a própria cidade dita por outro nome). Logo, o mais razoável parece ser aceitar que o conceito aristotélico é o que se enquadra melhor.
Com relação ao próprio texto de Maquiavel, encontramos características fundamentais na cidade que não existem nas “pequenas partes”. Em todas as cidades, existem dois humores, daqueles que querem dominar e daqueles que querem não ser dominados (por exemplo, em Discorsi, I, 37, e em Il Principe, IX); em todas as cidades, existe a diferença de mando, quer dizer, uma relação de verticalidade entre os homens (cf. MACHIAVELLI, Del modo di tratare i popoli della Valdichiana ribellati; 1997, v. 1, p. 22; MACHIAVELLI, Istorie Fiorentine, V, 6; MANSFIELD, 1996, p. 76 e 112). Nenhuma dessas duas características é encontrada nas “pequenas partes”. Porém, a evidência mais robusta de que as “pequenas partes” não são cidades é que elas precisam de algo para se defender, pois não vivem seguras:
[...] não podendo cada um por si resistir ao ímpeto de quem os assaltasse (pelo lugar e pelo pequeno número), e não tendo tempo de unirem-se para sua defesa ao ver o inimigo; quando isso ocorre, lhes convém abandonar muitos desses lugares e assim tornarem-se presas fáceis dos inimigos.[90] (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 1, 4).
Dito de outro modo, elas não cabem em si mesmas, são presas fáceis de qualquer inimigo que seja, supõe-se, uma cidade já constituída.
A partir do momento em que o inimigo invade o lugar de habitação dessas “pequenas partes” ou as encontra vagantes, algumas se dispersam – fragmentando ainda mais o pequeno agremiado –, outras se tornam dominadas pelo invasor. As que fogem vagam errantes até que, eventualmente, encontrem outras partes pequenas e, quando novamente invadidas, a fuga recomeça (LEFORT, 1972, p. 467). Trata-se, afinal, de um processo migratório sem começo nem fim, no qual o desmonte de uma vida dispersa reinicia a migração das partes que conseguiram fugir.
Não há evidências textuais aqui de que houve alguma forma de vida anterior às pequenas partes, uma vez que uma se origina da outra. Há, na verdade, uma análise precisa de quando e como essas “pequenas partes” deixam de ser assim: a fundação da cidade: “[...] começaram entre eles, sem qualquer príncipe em particular que lhes ordenasse, a viver sob aquelas leis que lhes pareciam mais aptas a mantê-los.”[91] (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 1, 6). Nesse sentido, a fundação é a marca fundamental de Maquiavel. para que se possa avaliar os desdobramentos da cidade como um todo e, nesse caso, a ordenação original é feita sem qualquer liderança. Alternativamente, as cidades fundadas por forasteiros são aquelas cujas “pequenas partes” (uma ou muitas) encontram, em seu caminho vagante, um fundador. A fundação da cidade encerra a migração e impõe forma à matéria (cf. MACHIAVELLI, Discursus Florentinarum Rerum, 1997, v. 1, p. 737; LUCCHESE, 2015, p. 28; MANSFIELD, 1996, p. 64).
Portanto, convém perceber que, em ambos os casos, na fundação coletiva por nativos (exemplo de Veneza) ou na individual por forasteiros (exemplo de Israel), trata-se de dois momentos distintos da existência humana: a vida dispersa em pequenas partes e a vida agrupada em cidades. As cidades têm governos, humores, educação, religião, diferença de público e privado e, sobretudo, defesa militar e segurança (cf. MACHIAVELLI, Discorsi, I, 23; MACHIAVELLI, Giribizi d’ordinanza; 1997, v. 1, p. 709). Isso tudo, porém, faz dela autônoma em relação às outras cidades. A raiz aristotélica desse processo é evidente, embora Maquiavel não precise afirmar a natureza política do homem, mas com diferenças importantes.
Logo, seria tentador buscar a solução para esse impasse, entre uma natureza humana política e perene no tempo (cf. LEFORT, 1972, p. 463) e outra bestial e dispersa metamorfoseada pelo consentimento originário, através de um mecanismo demográfico.[92] Os homens, quando raros e dispersos, viveriam à maneira das bestas. Multiplicando-se as gerações e havendo engrandecimento populacional, eles se reuniriam em agremiados para segurança comum e, assim, estabeleceriam um governo (MANSFIELD, 1996, p. 71). É evidente que esse esforço interpretativo só pode ser feito, porque o autor não oferece detalhes nem escritos suficientes para que se constate tal interpretação, todavia, pelo mesmo motivo, também não é possível descartá-lo.
3 MULTIPLICANDO A GERAÇÃO
A superação da condição bestial da vida humana estava, de certo modo, presente no texto de Lucrécio. “Os reis começaram a fundar cidades [urbis] e a levantar fortalezas para sua própria defesa e refúgio, e eles distribuíam animais e campos a bel-prazer entre os indivíduos, segundo a beleza, a força e o intelecto; porque a beleza tinha grande prestígio e a força era tida com muita honra.” (LUCRÉCIO, De Rerum Natura, V, 1105-1110).[93] Apesar de estar aqui descrito o tema da fundação, o qual comentaremos na sequência, é preciso enfatizar que a distribuição das atividades humanas segue a correspondência da força e da inteligência. Em Maquiavel, a força e a coragem também são elementos que conduzem à organização social: “[...] depois, multiplicando a geração, se reuniram, e para poder melhor se defenderem, começaram a respeitar aquele que entre eles fosse mais forte e corajoso e fizeram-no como chefe e o obedeciam.”[94] (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 2, 14; cf. McCORMICK, 2011, p. 25). O fato de os homens “se reunirem”, para poder melhor se defender, indica um movimento de contraposição à situação anteriormente descrita da vida bestial. Ou seja, os homens superam a condição de bestas, quando se reúnem sob o comando do mais forte e corajoso. A rigidez da separação entre essas duas situações caracteriza a teoria do consentimento originário.[95]
Perceba-se que a ordem lógica ou temporal da criação do comando é inversa da de Lucrécio. Para o poeta romano, o rei cria a comunidade para sua própria defesa, ao distribuir as funções de acordo com a força, a beleza e a inteligência de cada um; conforme Maquiavel, os homens criam o comandante (capo), por este ter mais força e coragem para a defesa deles próprios.[96] Embora o sentido da criação e, portanto, o agente central na formação das comunidades, seja oposto, o fato é que os termos basilares são praticamente os mesmos: rei e comandante, força/inteligência/beleza e força/coragem, defesa do rei e defesa dos homens.[97]
De fato, é possível encontrar passagens em Maquiavel que ratificam fortemente a prospectiva do consentimento originário, particularmente em sua poesia. Em Dell’Ingratitudine (171-176; MACHAVELLI, 1997, v. 3, p. 42), escreve o secretário:
Porque, quando um Estado muda,/duvide que te tenhas feito príncipe tu não lhes tiras o que lhes foi dado/ e não reconheça, pois, nem fé nem pacto/porque é mais potente o medo/que eles têm de ti, do que a obrigação de contrato.[98]
É surpreendente que todos esses termos – o medo, o pacto, a obrigação, o contrato – estejam articulados em torno da explicação da emergência de um governo. Além de corroborar que Maquiavel estava familiarizado com a linguagem do consentimento originário, o trecho sobrepõe o medo à obrigação, característica recorrente, no mais das vezes, no contratualismo moderno. É verdade que se deve ter bastante cautela, quando se trata de confrontar seus textos propriamente políticos com suas poesias, por isso, seus versos ratificam a interpretação de um uso retórico do começo dos Discorsi, mas, evidentemente, não sustenta em si mesmo uma teoria da origem dos agremiados humanos filosoficamente orientada. E, com eles, segundo veremos a seguir, encontramos não apenas o momento do pacto, mas aquele que lhe é anterior.
4. NATUREZA HUMANA E TEMPO HISTÓRICO
Em Dell’Ambizione, Maquiavel descreve algo como uma “idade de ouro” (VIVANTI, 1997, v. 3, p. 760, n. 4) ou um “estado de natureza” avant la lettre. Glosando o Antigo Testamento, mas com a atenção de defender a vida política (DIONISOTTI, 1980, p. 70), desde a criação dos elementos até o Homem, Maquiavel afirma que, depois de expulso do paraíso, Adão legou às gerações seguintes uma situação constrangedora aos humanos. Deus concedeu
[...] à natureza humana pouca amizade,/para privar-nos de paz e pôr-nos em guerra/para tomar-nos toda calma e todo bem,/mandou duas fúrias a habitar a terra [ambição e avareza].[99] (MACHIAVELLI, Dell’Ambizione, 27-31; 1997, v. 3, p. 44).
É importante ter claro que, entre os elementos que não mudam, está a natureza humana: “Nesse mundo, como o homem nasceu,/nasce ainda[100] (MACHIAVELLI, Dell’Ambizione, 13-14; 1997, v. 3, p. 43), o que comprova a constância da natureza e a variação de suas condições de existência (cf. MORFINO, 2015, p. 147; VIVANTI, 1997, v. 3, p. 759 n. 6). Em outro texto, ainda ressalta: “[...] o mundo sempre foi de tal modo habitado pelos homens que sempre tiveram as mesmas paixões.”[101] (MACHIAVELLI, Del modo di trattare i popoli della Valdichiana ribellati; 1997, v. 1, p. 24).
Ora, se a natureza humana não muda no tempo (MACHIAVELLI, Discorsi, proemio), parece pouco cabível sustentar que “[...] viveram durante algum tempo dispersos à semelhança das bestas” (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 2, 14), a não ser que as paixões, embora sejam as mesmas, tenham uma dinâmica que quantitativamente as difere entre os homens, no tempo – “[...] mudando os homens, facilmente se transformam de bons em maus”[102] (MACHIAVELLI, Del modo di trattare i popoli della Valdichiana ribellati; 1997, v. 1, p. 24; cf. MACHIAVELLI, Il Principe, 23, 3; MACHIAVELLI, Dell’arte della guerra, 1; 1997, v. 1, p. 538) – e, assim, os rumos das organizações humanas: “[...] não só variam o governo e o príncipe, mas as leis, os costumes o modo de viver, a religião, a língua, as roupas, os nomes.”[103] (MACHIAVELLI, Istorie fiorentine, I, 5; 1997, v. 3, p. 318; cf. DOTTI, 1979, p. 90; SASSO, 1993, v. 2, p. 127). Certamente, a eternidade do mundo e do homem é um preceito aristotélico aqui respeitado.[104]
Há outras passagens maquiavelianas que igualmente se referem a uma situação poética da humanidade. Inspirado em Ovídio, escreve o florentino: “[...] digo como os antigos poetas que afirmam que aqueles homens que existiam na primeira idade eram tão bons que os deuses não se envergonhavam de descer do céu e viverem juntos com os que habitavam a Terra.”[105] (MACHIAVELLI, Allocuzione ad un magistrato; 1997, v. 1, p. 713). Poeticamente, houve época em que os homens eram bons, mas, progressivamente, substituindo a virtude pelo vício, começaram a precisar de leis que contivessem o avanço da maldade.
O poema Dell’Ambizione sofre uma inflexão, ao apresentar as condições da vida humana: “[...] nos primeiros tempos/um peito ambicioso, um peito avaro,/quando os homens viviam nus e destrutíveis/ por qualquer fortuna, e quando ainda não existiam/ocorrências de riquezas e pobrezas.”[106] (MACHIAVELLI, Dell’Ambizione, 50-54; 1997, v. 3, p. 44).
Essa descrição contraria diretamente o enredo de Lucrécio na afirmação de que, em tempos remotos, os homens eram física e mentalmente diferentes do que são hoje, apesar de a inveja e a ambição estarem presentes no poeta romano (LUCRÉCIO, De Rerum Natura, V, 1126 e 1136). Para Maquiavel, o que muda são as relações e quantidades entre os apetites, as paixões, os quais emergem à medida que aumentam em número e se relacionam cada vez mais, gerando uma “vontade infinita”[107] e uma “vontade ambiciosa”[108] (MACHIAVELLI, Dell’Ambizione, 41 e 58; 1997, v. 3, p. 44), e, com isso, fez-se a primeira morte violenta/no mundo, e a primeira erva sanguinosa![109] (MACHIAVELLI, Dell’Ambizione, 59; 1997, v. 3, p. 44).
Segue-se, então, a descrição da disseminação da maldade e se conclui o passo: “Do que nasce que um desce e o outro sobe;/o que depende, sem lei ou pacto,/da variação de cada Estado mortal.[110] (MACHIAVELLI, Dell’Ambizione, 64-66; 1997, v. 3, p. 44; cf. MACHIAVELLI, Discorsi, I, 6).[111]
Se nos permitirmos uma breve reflexão anacrônica, não seria difícil interpretar a passagem como uma resposta ao contratualismo típico do século XVII. As variações dos postos de comando e obediência entre os homens dependem do stato, aqui entendido como posição de destaque, pela coragem e força – se seguirmos a passagem dos Discorsi – e não das leis ou do pacto. Sem a força, as leis não passam de palavras e qualquer pacto é inútil, quando confrontado pelo medo (BROWN, 2015, p. 112). Mas o interessante é menos a crítica ao teor consensual da origem dos governos e mais o reconhecimento de que essa doutrina era conhecida por Maquiavel e presente em seu contexto (GOUGH, 1957, p. 44-48). É digno de nota que quase todas as referências diretas e indiretas com relação à “idade de ouro”, ao “estado de natureza” ou ao “primitivismo” lucreciano são feitas a partir de poetas antigos e, principalmente, em forma de poemas (cf. BROWN, 2015, p. 105), o que talvez não seja surpreendente, se considerarmos que Lucrécio escrevia em versos (cf. MANSFIELD, 1996, p. 59). Antes de desautorizar a seriedade da teoria, os escritos poéticos forçam uma interpretação, no mínimo, mais cautelosa do que se pode fazer com as raras passagens dos Discorsi também aludidas aqui.
Para Maquiavel, a reunião humana, oriunda do desejo comum de segurança, estabelece o governo do mais forte e corajoso. Um exercício de reflexão poderia levar o leitor a crer em certa proximidade dessa síntese maquiaveliana com o contratualismo moderno e, mais especificamente, hobbesiano, pelo medo, ou lockiano, pelo fato de o governante ser parte do pacto fundador e assumir o comando pela escolha do povo, uma vez que o mais forte e corajoso já vivia entre todos eles (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 2, 14). De todo modo, esse exercício anacrônico apenas confirma a precariedade de se sustentar uma interpretação assim, devido à escassez de material textual.[112] Todavia, não é preciso incorrer em nenhuma “mitologia da prolepse” (SKINNER, 2002a, p. 73) da teoria seiscentista do contrato, para se perceber que a linguagem da função governamental pela segurança comum e o estabelecimento do governante pelo consentimento estavam presentes em seu contexto. Assim, precisamos observar, com alguns exemplos de destaque, como essa linguagem do consentimento originário lhe estava disponível mais imediatamente e ter claro que a contradição para com o aristotelismo ainda não havia sido estabelecida.
5 O CONSENTIMENTO ORIGINÁRIO NO CONTEXTO
O florentino Aurelio Lippo Brandolini, num tradicional tratado principesco, provavelmente de 1490, afirma que o príncipe teve início de seu governo pelo “consentimento comum” [communi consenso], pois os seres humanos são racionais (BRANDOLINI, 2009, p. 3; Proemium, 2), sendo o melhor dos homens escolhido para tal cargo (BRANDOLINI, 2009, p. 61; I, 48). Além disso, há diversas passagens nas quais Brandolini (2009, p. 125; II, 33) alude aos “direitos da sociedade humana” e ao “direito das nações” sustentados na “[...] utilidade comum [communem utilitatem], pelo consentimento tácito de todos os povos.” (BRANDOLINI, 2009, p. 127; II, 34). Mais interessante ainda é que essa linguagem contratualista está embutida em teorias fracamente aristotélicas: os interesses comuns se congregam primeiramente em uma casa (domus) onde vive a família (familia), muitas famílias formam uma vizinhança (via) e muitas vizinhanças formam uma cidade (civitas), concluindo que o governo da cidade é de natureza distinta do governo da família (BRANDOLINI, 2009, p. 174; III, 16-17).
Lauro Quirini, veneziano do Quattrocento, em seu De Repubblica (1449), ao contrário do principesco Brandolini, sustenta um republicanismo aristocrático caracteristicamente humanista, baseado “[...] em grande medida na Política de Aristóteles.” (MARTINS, 2017, p. 59). No entanto, na prospectiva tratadística, o autor necessita justificar a origem das sociedades: “[...] os homens antigamente vagavam [vagarentur] como bestas [ferarum] nas florestas, sem lei [lege], sem costume [more], vivendo de ervas e frutas de muitos lugares [...] como animais ferozes, reuniram-se em unidade [unum reduxit] para a utilidade [utilitas].” (QUIRINI, 1954, p. 126; I, 7-8). Por causa do vício humano, tornou-se necessária a criação de encargos e responsabilidades para alguns, pois a vida isolada é incompleta (QUIRINI, 1954, p. 126; I, 10-11).
Portanto, a comunidade política não é, como quer Aristóteles, um ente natural, mas consequência da utilidade individual que se une à coletiva.[113] Marcada, em abstrato, a origem da sociedade, Quirini explica mais detalhadamente como isso ocorre: a utilidade tem início com o encontro do homem com a mulher, “[...] ao constituir uma casa [domum constituit], surge então a vila [villa] e as vilas em uma grande cidade são constituídas, de tal maneira que emerge a primeira sociedade natural [societas naturalis].” (QUIRINI, 1954, p. 127; I, 25-30). A despeito de possíveis críticas sobre a aporia das duas versões acerca da origem da sociedade, Quirini não observa qualquer contradição em seu republicanismo aristotélico e o preceito de um “estado de natureza”, com a formação da sociedade pela utilidade e não pela natureza teleológica do lógos (cf. MARTINS, 2013, p. 75-77).[114]
Uma análise plausível que buscasse unir essas duas teorias, certamente, deveria deixar de lado todas as controvérsias que se seguiram na filosofia política após Maquiavel e jogar luz sobre alguns termos de conciliação, os quais mais refletem posições de antigos, como Cícero e Lucrécio, e mais contemporâneos, como Quirini e Brandolini, do que de posteriores, como Hobbes e Locke (cf. BIGNOTTO, 1991, p. 166). Se for bem observado, um dos pontos mais candentes de sustentação das hipóteses aristotélica e contratualista em Maquiavel reside na já mencionada passagem:
Nascem tais variações de governos ao acaso entre os homens: porque no princípio do mundo os habitantes, que eram escassos, viveram durante algum tempo dispersos à semelhança das bestas. Depois, multiplicando a geração, se reuniram, e para poder melhor se defenderem, começaram a respeitar aquele que entre eles fosse mais forte e corajoso e fizeram-no como chefe e o obedeciam. (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 2, 14).
Encontram-se aqui os termos que melhor caracterizam os fundamentos contratualistas: o princípio do mundo (observe-se que, para Aristóteles, o mundo não teve princípio, mas é eterno), habitantes raros, dispersos e que viviam como bestas, união para a defesa comum; e os aristotélicos: engrandecimento demográfico gerando uma cidade.
Não parece nada fortuito notar que os conceitos são mobilizados na mesma passagem, em clara conotação de sequenciamento lógico-explicativo, no qual o aumento demográfico reside entre o princípio do mundo e a defesa comum. É tentador afirmar, como indicamos, a partir desse sequenciamento, que Maquiavel une aristotelismo com consentimento originário, substituindo, no primeiro, a operação lógica da decomposição em partes por uma orientação temporal e demográfica[115], e, no segundo, as leis da natureza ou a potência da retórica pelo desejo de segurança. Essa solução, apesar de analiticamente plausível, pela inconclusão do texto e ausência de referências autorais e conceituais, é muito difícil de ser sustentada, em toda sua profundidade. Como vimos, para Brandolini e Quirini, não há qualquer contradição nesses termos. Mas não é implausível que Maquiavel, admitindo-se que era informado de ambas as tradições, buscasse apresentá-las em conjunto, a fim de definir seu próprio objeto de análise. Tensionar essas evidências ao limite significaria forçar um Maquiavel mais atento aos termos filosóficos e metafísicos da origem humana e de seus agregados do que ele se propõe fazer. Se era ou não um pensador filosófico dessa estirpe é tema de debate no qual não nos aventuraremos, mas, certamente, ele não se colocava assim (MACHIAVELLI, Discorsi, II, 5; cf. BAUSI, 2005, p. 164; DIONISOTTI, 1980, p. 255; DOTTI, 1979, p. 86; SASSO, 1993, v. 1, p. 439; VATTER, 2013, p. 2).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A tarefa à qual Maquiavel se impõe, diferentemente, diz respeito àquilo que ocorre após a fundação das cidades ou, de modo mais claro, aos “novos modos e ordenações”. A posição dele diante de Savonarola ilustra bem esse argumento (cf. MACHIAVELLI, Discorsi, I, 56). Se, segundo Maquiavel, o frade falava ou não com Deus, ele não sabe – “Não quero julgar se era verdade ou não [...] mas digo com certeza que muitos acreditavam nele”[116] (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 11, 25) -, o que importa é que as pessoas que o ouviam acreditavam nisso (cf. SAVONAROLA, 1898, p. 85 e 263). A abdicação de se julgar a veracidade do “fato” remete, em si mesma, ao que ele identifica como a dimensão eminentemente política das ações humanas: a versão pública é mais importante do que o acontecimento em si, a aparência, mais do que a essência (LEFORT, 1972, p. 508; PEDULLÀ, 2011, p. 104).
Em outra passagem dos Discorsi, Maquiavel retorna o frade para tratar das profecias. Afirma Maquiavel que Savonarola previu a chegada de Carlos VIII a Florença, e soma esse evento a outros da antiguidade, referentes aos sinais e previsões de grandes acontecimentos. “A razão dessa crença deve ser discutida e interpretada pelo homem que tenha informações das coisas naturais e sobrenaturais: o que nós não temos.”[117] (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 56, 8). O fato, o acontecimento e a essência, digamos com ele, constituem problema para os filósofos (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 56, 9). Esse paradigma realista do secretário florentino repercute em sua indiferença com relação à veracidade da origem dos agremiados humanos (McCORMICK, 2011, p. 22). A cidade é constatada por ele como uma existência histórica, de tal maneira que, para os novos modos e ordenações, é algo absolutamente inócua a explicação pelo consentimento originário ou pela teleologia (cf. LUCCHESE, 2015, p. 36), do mesmo modo que não importa a veracidade das falas e profecias do frade dominicano. Nesse sentido, o realismo maquiaveliano auxilia no entendimento de que somente é possível se debruçar sobre a política, na medida em os humanos estejam unidos sob a forma de cidade.
Portanto, à luz do entendimento da política como uma atividade exclusivamente humana, historicamente determinada e sem qualquer interferência transcendente nela (cf. ION, 2006, p. 99)[118], a própria resposta à pergunta sobre a origem das sociedades requer investigações que transpassam a própria política. De acordo com Maquiavel, enfim, não importa a origem dos agremiados humanos, se natural, como Aristóteles, se artificial, como Cícero, em alguma medida, e Lucrécio. Importa o momento da fundação da cidade em toda sua peculiaridade histórica e seus desdobramentos (cf. LUCCHESE, 2015, p. 3).
Nessa perspectiva, torna-se bastante coerente que Maquiavel apenas constate a existência de cidades e investigue os diversos “modos” de fundação e as “ordens” que se seguiram, afinal, é disso que trata a política. E, portanto, nem a cidade nem a política existem fora do tempo histórico. O que, enfim, faz Maquiavel, nesse movimento, é definir as formas pelas quais a política pode ser investigada, ao restringi-la às condições históricas e, com isso, ele exclui a investigação a respeito da origem antes da fundação da cidade (cf. ZUCKERT, 2017, p. 121). Isso não quer dizer que o consentimento originário seja irrelevante ou que, por ser basicamente uma peça retórica, seja menos importante. Aliás, é justamente porque era tido como tema central, naquele contexto, e pelo respeito que Maquiavel lhe confere, que ele mostra toda sua relevância como um artifício retórico.
Mas a questão central ainda permanece, com uma ligeira alteração: afinal, se não é objeto da política a explicação da origem dos agremiados humanos, por que ele faz referência a ambas as tradições? Recentemente, tem-se argumentado (BAUSI, 2005, p. 190-191), com muita perspicácia, que o emprego de Políbio no segundo capítulo do livro um dos Discorsi, malgrado a importância teórica, tinha ainda uma função retórica, qual seja, a de cativar o leitor familiarizado com o historiador, para que, na sequência, apresentasse seu argumento propriamente. O caso em tela é análogo a esse. Escrevendo para um público acostumado com a tratadística antiga, na qual o sequenciamento dos temas era vastamente conhecido e esperado, não se poderia construir nenhuma reflexão teórica que se calasse sobre a origem dos agremiados humanos. A “estratégia de sedução do leitor” (BIGNOTTO, 1991, p. 78) para com os temas do humanismo se segue nas citações indiretas de Políbio e pode, inclusive, ser estendida à suposta contradição entre aristotelismo e consentimento originário, nas citações igualmente indiretas de Aristóteles, Lucrécio e Cícero.
Na verdade, Maquiavel, ao indicar ambos os caminhos, deslegitima-os, não por seu conteúdo filosófico, mas por sua irrelevância para a política. De fato, uma vez conquistado o leitor familiarizado com essas autoridades da antiguidade, o florentino passa para seu objeto efetivo, a fundação das cidades (MANSFIELD, 1996, p. 63). Antes disso, qualquer especulação sobre os agremiados humanos é inócua, qualquer explicação é plausível ou nenhuma delas lhe atende, pois a política somente existe porquanto haja cidade em circunstâncias historicamente determináveis. Nesse sentido, o que faz Maquiavel, ao indicar e negar implicitamente aristotelismo e consentimento originário, é definir o objeto sobre o qual a política repousa: a cidade. Desse ponto em diante, seguramente, pode-se desenvolver uma teoria efetivamente política a respeito do momento da fundação e suas consequências.
MACHIAVELLI AND THE ORIGIN OF THE POLITICAL COMMUNITIES
Abstract: It is possible to find in Machiavelli an expression of the original consent to explain the origin of the political communities. This paper investigates this hypothesis in the approach of the roman political thought. With Lucretius and Cicero, it is clear the terms of the pact, covenant, consensus, and the primitivism of the difference between man and beasts, the fear and the common safety to founder the political community under the leadership of one man. The paper also debates the Aristotelian premises of the political nature of man and explores some examples of the Machiavellian time, that aims to confirms the existence of the language of the Aristotelianism within the original consent. It concludes that Machiavelli does not have a substantial theory to explain the origins of the political community, because politics and its study requires the research of the cities in the historical mean. This contractual language in accordance with that Aristotelian is used as a rhetoric strategy in the beginning of the Discourses.
Keywords: Machiavelli. Origin of Political Community. Original Consent. Fear. Aristotelianism.
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Recebido: 17/08/2022
Aprovado: 18/10/2022
Referência do artigo comentado: Falcão, Luís. Maquiavel e a Origem das Sociedades Políticas. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 1, p. 149 - 170, 2023.
Falcão (2023) apresenta argumentos bastante convincentes a favor da seguinte tese: não há nenhuma teoria acerca das origens da sociedade em Maquiavel. De minha parte, estou inteiramente de acordo. Isso não significa, como nosso autor bem demonstra, que a questão sobre as origens esteja ausente dos textos do florentino. Desde os escritos de chancelaria até os Discorsi sopra la prima Deca di Tito Livio, passando por sua produção literária, o começo das cidades é tema recorrente sob sua pena. O ponto principal da argumentação de Luís Falcão consiste em compreender o sentido dessas passagens, resistindo à tentação de transformar Maquiavel em um contratualista avant la lettre ou torná-lo, nesse quesito, um mero continuador dos antigos (seja na versão aristotélica. seja na versão lucreciana).
Nenhuma das duas opções de leitura se mostra consistente, para Falcão, porque deixam escapar o essencial, a saber: Maquiavel é um pensador da cidade, da política sempre já dada em uma circunstância histórica determinada. A estratégia de situar Maquiavel em uma espécie de naturalismo político ou, ao contrário, empurrá-lo para a tradição contratualista, se revela incapaz de apreender a especificidade de seu realismo político – termo este, ao que parece, entendido no artigo (sem que lhe seja dada uma definição precisa), no sentido de um enquadramento metodológico que visa a compreender a “[...] verdade efetiva das coisas” (Maquiavel, 2017, p. 183), ou seja, a política como o campo da ação humana no tempo. Nas páginas que se seguem, meu objetivo será discutir certos aspectos desse realismo político que parece comandar a argumentação de Luís Falcão, sem que seja tematizado. Assim, não pretendo fazer um comentário do artigo, mas refletir a partir dele.
A principal hipótese do autor, no que diz respeito à discussão sobre a origem das cidades, é a de que o tema em Maquiavel cumpre sobretudo uma função retórica. Desse modo, essa questão não adquire verdadeiro status teórico. Trata-se de um estratagema que objetiva produzir no leitor a sensação de familiaridade, uma vez que está atendido um tópico clássico da tratadística política. Na perspectiva de Luís Falcão, Maquiavel está cumprindo uma exigência, quase pagando uma dívida, sem o que não é possível expressar seu verdadeiro pensamento sobre a matéria em pauta. De meu ponto de vista, isso está correto, mas não inteiramente, porque essa identificação das considerações sobre o momento anterior à fundação das cidades como uma mera estratégia retórica corre o risco de fazer perder de vista que elas cumprem também uma função teórica. Afinal de contas, se essas considerações almejam adequar a obra à linguagem dos grandes tratados, elas estão também a serviço da exposição das ideias de Maquiavel. Por isso, cabe questionar se elas são realmente desprovidas de interesse conceitual, como Falcão deixa entender.
Não estou dizendo que elas permitem inscrever Maquiavel em alguma tradição política ou que elas expressem suas convicções teóricas, contudo, que, sem elas, o florentino não poderia avançar a apresentação de suas próprias teses nem fazer o leitor perceber sua radical originalidade.
Não é este, contudo, o ponto de maior relevância. Como já indiquei, um dos grandes méritos do artigo é apontar os limites das interpretações que buscam no pensamento maquiaveliano elementos pré-políticos ou extrapolíticos para se compreender a vida da cidade. De um lado, o florentino é um pensador que rompe com a tradição clássica, pois esta não pode abrir mão de pressupostos metafísicos, éticos ou ontológicos, para compreender a política. De outro lado, Maquiavel passa ao largo da tradição do direito natural, reformulada no âmbito da escolástica e refundada no começo da modernidade. Ambas as tradições, malgrado suas diferenças, veem utilidade no conceito de estado de natureza e, assim, são mais ou menos compatíveis com a noção de pacto. Ora, acolhendo essa noção, define-se o lugar da linguagem e da história no pensamento político. Gostaria de esclarecer esse ponto, porque ele é importante para se entender o realismo maquiaveliano.
De um modo geral, a linguagem, seja entre os clássicos, seja na perspectiva contratualista, é vista como o meio imprescindível para a construção do espaço político, o que pode ser entendido de, ao menos, duas maneiras: por meio da linguagem, é possível estabelecer laços entre os seres humanos, os quais podem compartilhar suas concepções acerca do bom, do útil e do justo; através da linguagem, é possível persuadir, visando à legitimação da dominação e inscrevendo as relações de poder em um campo distinto da violência. Essa dupla dimensão da linguagem também está presente na filosofia política moderna, que verá no pacto político o ato linguístico privilegiado, fundante, no qual é possível reconhecer essas duas dimensões acrescentadas de uma terceira, a saber, aquela propriamente jurídica.
Ora, em Maquiavel, nós nos encontramos em um terreno muito diferente. Embora ele esteja longe de desconhecer a função persuasiva da linguagem (basta recordar o capítulo XVIII de O príncipe ou do capítulo 3 do livro I dos Discorsi), não encontramos em seu texto nem a noção ciceroniana de consensu juris, nem a concepção moderna de consentimento. Mais precisamente, essas noções parecem obliterar o fato de que o espaço político e o poder têm sua origem e sua dinâmica atreladas ao conflito. Seria possível dizer, com Claude Lefort, que o discurso político que privilegia o consenso, o consentimento e a obediência opera no registro da ideologia, porque apaga as condições de sua enunciação (Lefort, 1978). Em contraste, o discurso maquiaveliano coloca no centro da vida política a irremediável divisão.
É claro que a linguagem pode comportar diversos usos, na política, incluindo a produção do consenso, todavia, Maquiavel não hesita em enfatizar seu uso combativo (por exemplo, na instituição da acusação, descrita no capítulo 8 do livro I dos Discorsi), isto é, como ela se torna um elemento-chave nas disputas políticas. Assim, o discurso maquiaveliano sobre a política indica outro caminho, aquele que conduz à verdade efetiva, o qual tem em seu núcleo o fato irredutível da fratura civil e este é, a meu ver, o primeiro aspecto do realismo maquiaveliano: colocar a superação da divisão civil como um horizonte alcançável significa fazer concessão à “imaginação das coisas”.
Convém agora tratar brevemente do problema da história. A linguagem do pacto e do estado de natureza veicula, a esse respeito, uma concepção que cumpre igualmente uma função ideológica (sempre compreendendo esse termo em uma acepção lefortiana, isto é, a dissimulação das condições de enunciação do discurso político). Com efeito, a pressuposição de um estado pré-político, no qual os seres humanos seriam vítimas de sua própria selvageria, coloca o advento da sociedade política e do poder instituído sob uma luz enganadora, envolto em uma grande ambiguidade.
Nessa perspectiva, postula-se que o momento da fundação do corpo político, embora signifique uma ruptura com o momento anterior, mantém com ele uma forte continuidade, porque o estado de natureza lhe serve de fundamento. Se tomarmos a tese polibiana, por exemplo, segundo a qual os homens se reúnem para se protegerem, desponta uma ideia de necessidade que dilui na natureza as motivações humanas para agir. Em Políbio, o ciclo em que ocorrem as mudanças de regime é presidido por essa concepção de necessidade, a qual termina por reduzir as motivações humanas como causa apenas coadjuvante no rumo dos acontecimentos políticos.
Mas, se formos ao outro extremo do espectro examinado por Luís Falcão, em seu artigo, quer dizer, o contratualismo moderno, vemos que a história é elidida (ao menos na maior partes dos autores comumente inscritos nessa tradição) em um estado de natureza atemporal. Somente é possível falar de história após a realização do pacto e instituição da sociedade política. Se a história vem depois, faz-se tábula rasa das condições de possibilidade que tornaram necessária a instituição do poder. O pacto, fazendo as vezes do momento de fundação do corpo político, resolve o problema de sua continuidade, fazendo apelo à dimensão jurídica, tomando como marco fundamental a manifestação da vontade de conciliação. Ora, para Maquiavel, como muito bem demonstra Luís Falcão, o processo de fundação jamais se encerra no tempo: ele sempre é reposto, porque as circunstâncias que lhe deram origem estão sempre presentes. A história, em Maquiavel, não antecede a política nem a sucede. Ela é o horizonte intransponível no qual se desenrolam as ações humanas.
Por isso, a fundação de um corpo político é uma fratura no tempo, um momento de abertura em que o destino humano está indefinido, um momento que não pode ser deduzido do passado, nem determinar o que ocorrerá na sequência. Em outras palavras, ainda seguindo Lefort, a fratura no tempo explicita que a ação humana é marcada pela contingência e pela indeterminação. E novamente nos deparamos com a verdade efetiva das coisas, pois e um de seus aspectos mais notáveis é a presença da consciência da transformação. Como gostava de dizer Maquiavel, “[...] o tempo tudo varre” (MAQUIAVEL, 2017, p. 105). Lição de realismo que aguça nossa percepção do tempo, tornando-nos sensíveis ao fato de que ninguém domina o curso da história, assim como ninguém tem uma visão da totalidade.
A política para Maquiavel, lembra-nos Luís Falcão, em seu belo texto, começa com a cidade e seu sentido apenas nela pode ser decifrado.
Referências
Falcão, Luís. Maquiavel e a Origem das Sociedades Políticas. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 1, p. 149 - 170, 2023.
LEFORT, Claude. Les formes de l’histoire. Paris: Gallimard, 1978.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Edição Bilíngue. Trad. de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Editora 34, 2017.
Recebido: 28/10/2023
Aceito: 04/11/2023
Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar o problema da totalidade em Sartre, em sua relação com a finitude. Inicia-se pelo problema da solidão ontológica, pelo qual analisamos o Ser enquanto exterioridade de indiferença e o acontecimento do para-si ou ato ontológico. Postulando esse acontecimento como processo de singularização e a própria vida do indivíduo, mostra-se como a finitude afere à totalidade, enquanto totalização e singularização. Imagem condensada pelo universal singular, a finitude, então, não é tomada como uma totalidade isolada, mas passa a ser compreendida por sua abertura do humano, na singularização de uma vida.
Palavras-chave: Ontologia. Fenomenologia. Finitude. Totalidade. Singularidade.
A obra O ser e o nada é o grande marco da ontologia de Sartre. Por isso, qualquer crítica ao seu pensamento necessariamente a perpassa. E se se pensa uma continuidade ou mesmo uma descontinuidade em seu pensamento, é sempre com referência a ela que se procuram os liames que permitem tal investida. Na querela dessas questões, encontramos a fragmentação das consciências, seja pela ideia de que a consciência constitui uma “[...] uma totalidade sintética e individual inteiramente isolada das outras totalidades do mesmo tipo” (SARTRE, 1994a, p. 48), seja pela impossibilidade de tomar um ponto de vista sobre a totalidade das consciências (SARTRE, 2007a, p. 341), isto é, vê-las pelo lado de fora. Isso renderia a Sartre a conjuntura filosófica de um “individualismo anarquista”, como, por exemplo, o quer Mészáros (2012, p. 193), ou simplesmente de um individualismo, como o quer Renaut (1993, p. 232).
Nesse caso, pela ênfase, quer à ontologia, quer à História, o Ser como aventura individual[121] demarcaria o indivíduo por uma solidão ontológica, na qual o isolamento não se daria mediante apenas uma impossibilidade de relação com o outro pelo conflito das consciências, na tomada objetivante de uma para com a outra, mas devido ao próprio estatuto ontológico do Ser. Com efeito, duas consequências interpretativas podem se seguir disso: em primeiro lugar, a consciência é absoluta e o Outro, um ser-outro cujo ser mesmo me escapa, o que complica a ideia de mundo como mediação e o codifica como horizonte de separação ontológica e não apenas ôntica, em que a unidade denota uma multiplicidade negativa, na qual os outros são incompossíveis; ou, em segundo lugar, o enraizamento comum do qual eu sou um particular, tal qual o Outro, e o mundo aparece com um estatuto transcendente próprio que se estende ao outro, nesse caso, mediador da separação ôntica, cuja multiplicidade se opera no seio da unidade ontológica, dando a essa multiplicidade o caráter derivado de uma estrutura secundária e também negativa, já que não é motivo de síntese, senão de negatividade.
Ora, tal ambiguidade não aponta apenas à questão do para-outro, mas ao ser-todo, forma tomada por essa solidão ontológica, devendo ser a ela, portanto, que precisamos dirigir nossa interrogação. Trata-se, assim, não apenas da questão de fato, que é a existência – e sabe-se que Sartre toma a fenomenologia como uma ciência dos fatos e a consciência como fato absoluto –, porém, de uma interrogação crítica, isto é, as condições de direito em que essa tomada do ser o determina, na sua solidão ontológica. Assim, talvez, por essa via se consiga maior arrojo a tal problema. Desse modo, nosso trabalho tem por objetivo analisar a questão da solidão ontológica, a partir da relação entre totalidade e finitude, dada a unidade e a totalidade da consciência, em sua irredutibilidade. Nossa hipótese é que, ao analisar a relação entre totalidade e finitude, somos conduzidos à radicalidade, pela qual a finitude é assumida no pensamento de Sartre, levando-nos, por conseguinte, à própria ideia de inconsciente como finitude interiorizada. Com isso, veremos que a finitude não implica a solidão ontológica, mas a própria condição de abertura, por sua singularização.
Sartre, em O Ser e o Nada, anuncia como seu propósito uma teoria geral do ser (SARTRE, 2007a, p. 33 e 470), na qual o em-si e o para-si são compreendidos como duas modalidades do Ser (SARTRE, 2007a, p. 669). Esses modos, segundo os quais o ser se manifesta enquanto causa sui, determinam a sua compreensão como quase-totalidade na esfera de uma imanência de si a si que é o indivíduo. Ante isso, o mundo não passava do resultado da tensão dessas modalidades, não possuindo, então, um estatuto próprio, pois era o resultado da nadificação, modo de ser do indivíduo como ser-no-mundo e o modo pelo qual há coisas. Fazendo do para-si um fluxo e não uma substância, todo processo de existência era visto não como uma totalidade, mas como uma totalização, e o mundo aparecia à consciência enquanto revelação-revelada (SARTRE, 2007a, p. 29).
Ora, se o para-si não é uno, entretanto, unificação (SARTRE, 1983, p. 162) (isto é, não se fecha numa substancialidade, está sempre se escapando e se unifica por seu próprio fluxo) e totalização, de forma que o mundo é o resultado e reflexo dessa mesma totalização, logo, é preciso asserir que o mundo não é nem hipóstase da consciência, tal como o múltiplo processado do uno, nem uma esfera unitária independente, uma espécie de outro ser, numericamente uno, mas sem relação alguma para além de si, que é o caso do em-si. Isso faz com que o mundo seja resultado da condição ontológica da existência. Daí toda a ênfase que decorrerá à ideia de situação e de que o sujeito é sua situação (SARTRE, 2007a, 595). O que o para-si unifica (ao mesmo tempo que unifica a si) é a exterioridade de indiferença da contingência, para a qual tal dispersão é uma realidade amorfa, de sorte que o para-si, como negação, opera nessa negação interna (negação de si) a afirmação do ser: “[...] na quase-totalidade do Ser, a afirmação ocorre (arrive) no Em-si: a única aventura do Em-si é ser afirmado” (SARTRE, 2007a, p. 253), sendo, então, o mundo enquanto fenômeno o resultado dessa afirmação.
Com efeito, “[...] o desvelar do em-si é originariamente o desvelar da identidade de indiferença.” (SARTRE, 2007a, p. 232). Todavia, se o Ser é contingência e sua indiferença está para além de toda individuação, esta se torna afirmação positiva sem denotar um ser absolutamente outro, senão como diferença; em outras palavras, devemos, para manter a tessitura dos princípios, o ser e o nada, aferir que o desvelar do para-si só pode ser o da identidade de diferença, não a separação entre sujeito e mundo, mas a condensação unitária deles na finitude singular de um indivíduo. Dessa maneira, não haveria a necessidade de compreender o ser como totalidade, uma vez que a falta dessa totalidade não conduz ao absurdo e irracional, pois a totalidade se torna categoria intangível e limitativa, no entanto, não apreensiva por si, enquanto condição de apreensão do próprio Ser.[122]
Assim, o ser-todo enquanto finitude afere ao indivíduo como ocorrência no ser, e esta não enquanto emergência de uma totalidade vinda de outra, mas a um processo, movimento, um fluxo, o qual se condensa como finitude, afirmando, concomitantemente, o mundo como condição de seu escoamento. E, dada a exterioridade da existência, já que pela consciência tudo se encontra fora e tudo é lançado para fora (SARTRE, 2005, p. 57), a finitude não é senão uma maneira de ser, um modo como o mundo ocorre; não sendo possível, portanto, a tomada desse mundo numa universalidade, senão por essa singularidade ou, ainda, a tomada de alguma transcendência que não seja na própria esfera de imanência; é o caso do para-si como “distância mínima”, “hiato”, “transcendência na imanência” (SARTRE, 2007a, p. 27, 69), “presença a si”, (SARTRE, 2007a, 113), “imanência de si a si” (SARTRE, 2007a, p. 23); eis o solo a partir do qual se dará todo o esplendor para a figura do universal-singular em sua filosofia, sobretudo nos textos a partir da Crítica.
Não obstante, dado o caráter da relação sintética, o Ser é apreendido em sua totalidade, porém, mais precisamente como quase-totalidade, na qual o em-si e o para-si são pensados como esboços dessa totalidade, ainda que ela seja irrealizável, mas que seja real como idealidade ou valor, o em-si-para-si. Em todo caso, a totalidade não pertence ao Ser, seja pela indiferença primeira do Ser, seja porque ela é pensada apenas a partir do para-si e da cisão. É o que reclama Barbaras (2002, p. 18), quando pensa a questão da falta como desejo e infere que Sartre “[...] situa a totalidade ao lado do acontecimento antes que do Ser”, o que, para ser coerente com sua teoria do desejo, dever-se-ia “[...] inverter essas premissas metafísicas situando a totalidade do lado do ser e a cisão do lado do acontecimento absoluto.” A totalidade, como pertencente ao para-si, enquanto esboço de fundamento absoluto, ratificaria ainda mais a separação entre em-si e para-si e a impossibilidade de se apreender a totalidade, senão como quase-totalidade, como fantasma da totalidade irrealizável ou Deus:
Tudo se passa como se o mundo, o homem e o homem-no-mundo não chegassem a realizar mais do que um Deus faltado. Tudo se passa, portanto, como se o em-si e o para-si se apresentassem em estado de desintegração em relação a uma síntese ideal. Não que a integração jamais tenha tido lugar algum dia, mas precisamente o contrário, ela é sempre indicada e sempre impossível. É o perpétuo fracasso que explica a indissolubilidade do em-si no para-si e, ao mesmo tempo, sua relativa independência. Igualmente, quando é rompida a unidade das funções cerebrais, produzem-se fenômenos que apresentam uma autonomia relativa e, ao mesmo tempo, só podem manifestar-se sobre fundo de desagregação de uma totalidade. (SARTRE, 2007a, p. 671).
Nesse ponto, já estamos à mercê da hipótese da metafísica, a qual, apontada na nota 2 deste trabalho, não ultrapassa o nível hipotético. Ora, é justamente a falta dessa totalidade que faz da realidade-humana não mais um momento do Espírito, mas um lapso do ser, seu “[...] esforço abortado para alcançar a dignidade de causa-de-si.” (SARTRE, 2007a, p. 671). Entretanto, se a totalidade não pertence ao Ser, de modo que o fenômeno enquanto totalidade homem-no-mundo não altera a realidade do ser, a diferença requerida pelo para-si, como ser que é possibilização e historialização, não é uma diferença que corresponda a uma alteração a essa indiferença do ser, de sorte que o acontecimento não é uma processão do ser (pois, na esfera da imanência, tudo se resolve e resulta como humano e sem mais), mas a condição resultante das relações estabelecidas por seus modos, isto é, enquanto conjuração própria da finitude. Por isso –e, adiantamos, contra Barbaras –, é ao acontecimento que se dá a irrupção da totalidade e mesmo, como veremos, da unidade e da multiplicidade.
Se o acontecimento do ser é a irrupção da totalidade, haveria, então, se se segue a lógica de Barbaras, uma incongruência entre totalidade ontológica e totalidade fenomênica, de forma que só a totalidade fenomênica é que seria propriamente totalidade, porque se assenta na relação sintética homem-no-mundo.[123] Isso exigiria, segundo Barbaras (2002, p. 13), que essa ontologia ausente da totalidade no Ser reclamasse “[...] uma outra ontologia, ou uma outra metafísica”, que situasse a totalidade no Ser. As conclusões, portanto, são negativas: “[...] ora, faltando ao Ser, a totalidade não pode ser, e não podendo ser, ela não pode ser verdadeiramente constitutiva do para-si.” (BARBARAS, 2002, p. 18). Nesse caso, a totalidade do fenômeno fica às expensas da consciência, e justamente por isso só chega a ser quase-totalidade, ocasionando sua crítica à fenomenologia de Sartre e sobre a sua ideia de fenômeno enquanto desejo de ser. Assim, ao invés de procurar uma totalidade anterior da qual o fenômeno se manifesta e se constitui, é o próprio fenômeno que deveria ser tomado na sua irredutibilidade. Vemos que é por não tomar a própria finitude que Barbaras é levado a reclamar essa totalidade ausente e hipoteticamente constitutiva.
Nas conclusões de O Ser e o Nada, Sartre afirma que, para que um existente seja considerado uma totalidade, “[...] é preciso que a diversidade de suas estruturas seja mantida em uma síntese unitária de tal forma que cada uma delas, encarada à parte, não passe de um abstrato.” (SARTRE, 2007a, p. 670). Mas essa totalidade, embora denote a condição ontológica da realidade, em nada responde sobre o porquê da existência, pois, para Sartre, “[...] não faz diferença para a ontologia considerar o para-si articulado com o em-si como uma dualidade seccionada ou como um ser desintegrado” (SARTRE, 2007a, p. 672), sendo, portanto, a categoria da totalidade, caso pertencesse ao ser, uma dimensão metafísica, mas não ontológica nem fenomenológica; todavia, metafísica, de tal forma que nada nos diz sobre a totalidade singular do fenômeno, senão que ela é tal qual é, dada a inferência direta da contingência do Ser e disso a impossibilidade de aprender qualquer processo genético fenomenologicamente, bem como a impossibilidade de ultrapassar a esfera do fenômeno, isto é, a possibilidade de legitimar o discurso metafísico (BORNHEIM, 2003, p. 145).
ANesse sentido, a questão da totalidade reenvia ao ser-contingente, o ser à contingência (enquanto exterioridade de indiferença) e esta ao fenômeno enquanto totalidade nadificada na condição finita, ocorrência imanente como reordenamento dessa exterioridade, em um sentido possível do ser, que, na concretude fáctica ou na sua exigência pela fenomenologia, alude à diferença singular do mundo como situação, isto é, sua finitude, ou à aventura mesma como fenômeno. Dessa forma, o fenômeno é o sentido do Ser, e só aqui, em seu sentido, o Ser se faz total, mas essa totalidade agora já escapa ao próprio ser-todo pela abertura mesma de que ela necessita. Essa abertura não é outra senão a singularização pela finitude e seu condensamento na situação singular. Vejamos melhor essa proposição.
Ora, sabemos que não há uma correlação absoluta entre as duas modalidades, pois o ser é independente da fenomenização que ocorre sobre ele, donde se seguia, em O ser e o nada, que o para-si sem o em-si era abstrato, mas não o em-si. Isso demarcava não somente que eles não correspondem a uma totalidade, mas que a totalização do para-si nada deve ao em-si como seu constituinte, senão pelo fato de se afirmar como diferença sobre sua indiferença, ou seja, se singularizar como nadificação do ser individual. Novamente o jogo dos princípios[124] transfenomenais se torna insuficiente e só pode resultar num abstracionismo que não encontra razão de ser no fenômeno, totalidade-(destotalizada) concreta e diferenciada, cuja dimensão denota esses princípios, não como gêneros supremos (SARTRE, 2007a, p. 667) ou transcendentais (dada a esfera da imanência do ser), contudo, modalidades cuja forma denega a generalidade à mercê da finitude mesma.
Com efeito, o que se nadifica não é o ser em geral, mas o em-si singular e individual (SARTRE, 2007a, p. 666, grifos nossos), pois a contingência é inapreensível enquanto fenômeno, assim como essa indiferença do ser que ela exige, porquanto, se dando na facticidade, esse ser só pode se dar singularmente, de forma que tal apreensão do Ser na sua suposta totalidade indiferente só a sentimos em raros fenômenos de quase-indiferença, como o tédio. Quase, porque o fenômeno tédio é fenômeno, isto é, consciência de, portanto, não é a indiferença do ser que se faz presente, mas o fenômeno mesmo quase-desnudo da sua diferença por uma posição de nulidade ou abstração de sua situação. Assim, negativamente, o quase da quase-totalidade, que é o fenômeno, denota a impossibilidade da totalidade, mas positivamente ela demarca a negação imanente ao ser que, na sua determinação, é condição da sua afirmação, ou seja, da diferença sobre a indiferença, antes mesmo de se pensar a totalidade ou de uma totalidade para além da imanência.
É por isso que, tomando o fenômeno na sua forma positiva, sua condição ontológica alude não a uma correlação hipostasiada como em-si-para-si, senão a esta enquanto singularidade, dada a finitude radical do ser do fenômeno. Nesse caso, se se pensa ainda que hipoteticamente o ser como contingência, já que essa contingência nunca é dada absolutamente como fenômeno, pois o fenômeno de Ser apela à prova ontológica, não é à totalidade, ao uno e ao múltiplo que os princípios denotam, e que remetia à solidão ontológica, mas à diferença e à indiferença do ser, no jogo da existência, isto é, à finitude singularizada na aventura individual. O quase da totalidade não é senão esse lastro irrevogável de nada pelo qual o ser se nadifica e que se afirma sobre o ser como diferença – do fundo negro da exterioridade de indiferença o ser se faz como fenômeno por sua finitude. Assim, não seria por uma falta da totalidade que o acontecimento ontológico perde sua dimensão no fenômeno, entretanto, justamente, e afirmando a ordem das razões da filosofia de Sartre, é o acontecimento que sobrepuja a totalidade pela nadificação enquanto totalização do há enraizado na própria finitude do acontecimento singular.
Nesse caso, a totalidade é condizente ao fenômeno, mas isso deveria supor que, se o acontecimento opera essa totalidade, a qual não é a dimensão própria do ser, nem do ser-todo, ela então não passa do resultado da nadificação do ser como limite finito e negativo dessa mesma totalidade: “[...] é justamente por isso que a totalidade nada acrescenta ao ser, pois não passa do resultado da aparição do nada como limite do ser.” (SARTRE, 2007a, p. 217). Em outras palavras, o fenômeno é ao mesmo tempo limite do acontecimento e esfera própria do acontecimento, em sua imanência. Novamente é a finitude do acontecimento que afere sua totalidade e não a totalidade que afere a finitude, como o universal ao particular. É também por isso que insistimos na força da ideia do singular como singularização e a dimensão limitativa da totalidade fenomênica apenas como momento atual do movimento do processo.
Assim, se Barbaras (2005, p. 136) aferiu que, por partir, não da fenomenalidade, mas de sua reconstituição mediante uma relação de ser, a fenomenologia de Sartre deveria ser considerada uma “fenomenologia sem fenômenos”, é preciso reconduzir o discurso ao acontecimento do fenômeno como finitude e garantir que uma fenomenologia condizente, não à generalidade hipostasiada do ser, porém, à vida concreta, deve revelar o acontecimento como este acontecimento, ou seja, não uma singularidade abstrata, mas o fenômeno enquanto singularidade concreta indicada no indivíduo como polo da aventura do ser; nesse caso, trata-se, sim, de uma fenomenologia que expressaria fenômenos, contudo, cujo fenômeno por excelência é uma vida, “aventura individual” (SARTRE, 2007a, p. 664).
Por isso, a ambiguidade da ontologia sartriana se deve à radicalidade com a qual essa ontologia quer operar. No fundo, a fenomenologia não se radica em ontologia, senão enquanto esta é condição própria de explicitação da finitude, mas, nesse caso, ela já não pode ser somente uma ontologia do Ser-todo ou do sentido geral do Ser. Daí que nos encontremos na encruzilhada difícil entre descrição empírica e hipótese metafísica. Poderíamos argumentar, é claro, que não se trata de um caminho ou outro, como o quer Thana Souza (2012, p. 160), ao enfatizar que não se trata mais do infinito-finito, mas do “infinito no finito”, seguindo a alusão de Sartre, na Introdução de O ser e o nada, ou mesmo dizer, como Jeanson (1947, p. 158, 254), que é uma ontologia direcionada à prática e sem nenhuma relação à metafisica ou ao ser. Assumindo essas duas perspectivas, acrescentaríamos que, se há uma fenomenologia em Sartre, essa fenomenologia é a do indivíduo singular, concreto, datado: uma ontologia da finitude, para seguir à esteira de Bornheim (1998, p. 14). Dimensão ontológica que se envereda constantemente com a hipótese metafísica, por seu limite fenomenológico; fenomenologia que privilegia o acontecimento como vida concreta e singular; finitude que expressa todo o ser em seu movimento de emergência; tal ontologia da finitude é o coração da filosofia sartriana.
Esboçadas as condições de direito, as condições de emergência do fenômeno em sua tessitura própria, o que nos permitiria aferir ainda dessa solidão ontológica? É-nos ainda exigido assombrarmo-nos perante essa ideia e a de ser-todo que ela carrega?
O acontecimento, ou para-si no em-si enquanto singularidade, não é o resultado de um jogo entre Ser e Nada transcendentes entre si, mas uma ocorrência imanente no Ser, esse ato ontológico, no qual o ser se cinde e aparece como situação concreta e totalizada na ordem do fenômeno (o nada como verme no coração do Ser, para lembrar a imagem presente em O ser e o nada). Com isso, já apontamos – e agora reiteramos – a totalidade, mas também outras categorias, que são ali determinadas segundo a lógica da negatividade enquanto determinação. É o caso da multiplicidade e mesmo da unidade do para-si como unificação, pois, sendo um fluxo, escorre no mundo, mas permanece na sua unidade transcendental enquanto mesma consciência. Essa condição de escorrer para fora de si, sendo a mesma, leva à imbricação entre transcendência e facticidade.[125] De fato, seja a totalidade, seja a multiplicidade, elas são sempre remetidas a sua tessitura singular. Por isso, elas não aparecem como gêneros supremos do ser, todavia, como determinações que exigem sua singularidade:
Pois a totalidade só pode vir ao ser pelo para-si. Uma totalidade, com efeito, supõe uma relação interna de ser entre os termos de uma quase-multiplicidade, da mesma forma que uma multiplicidade supõe, para ser esta multiplicidade, uma relação interna totalizadora entre seus elementos; é neste sentido que a própria adição é um ato sintético. A totalidade só pode vir aos seres por um ser que tem de ser, na presença a eles, sua própria totalidade. É precisamente o caso do para-si, totalidade destotalizada que se temporaliza num inacabamento perpétuo. É o para-si na sua presença ao ser que faz com que haja todo o ser. Com efeito, entendemos bem que este ser determinado só pode ser definido como isto sobre um fundo de presença de todo o ser. (SARTRE, 2007a, p. 216, grifos nossos).
Nesse caso, aparecendo sempre sob o fundo, mas como um nada determinado, essa negatividade se qualifica tanto como um nada geral quanto como essa negação particular, como privação singular deste ser, deste em-si individual (SARTRE, 2007a, p. 666). Isso quer dizer que, ao realizar a pura solidão do conhecido (SARTRE, 2007a, p. 215), embora ainda assombrada pela dualidade do sujeito-objeto, alude-se a um modo específico de como essa totalidade conjura a multiplicidade dos termos que a singularizam, para a qual não pode entrar um novo elemento (porque não é dado, mas constituído na liberdade e na contingência do fora) sem que este se torne totalizado por mim, isto é, que ele advenha ao sentido do Ser por minha singularização. Dessa forma, faço o todo como situação, mas por este todo ser abertura pela abertura que sou (hiato, fissura, negatividade), sempre entra nele o escoamento fáctico dessa mesma exterioridade; quer dizer, torna o mundo fáctico sempre contingente, mesmo quando o para-si o amarra com sua paixão.
Eis, pois, a fragilidade do todo do fenômeno e da existência e a ideia mesma de esforço de fundamentação: dois movimentos divergentes (nadificação e contingência, esta última pela fugacidade da exterioridade), no âmago da totalidade do fenômeno, o qual, nesse caso, é tomado como totalidade apenas pelo limite do horizonte fenomênico atual. Em outras palavras, a totalidade e a multiplicidade são unificadas no meu projeto sempre aberto e pronto a desmoronar e a se reerguer ante o real: tal é o peso da paixão e da contingência da existência e, ao mesmo tempo, sua mais doce e angustiante leveza.
Ora, em O Ser e o Nada, Sartre sempre constrói a imagem do fenômeno análoga à imagem das teorias da Gestalt, na qual o isto ganha seus contornos, mediante o fundo, visto que o fundo é condição de evidência de um isto qualquer, pois, pela fórmula geral, todo nada é negação do ser. Isso se adapta à totalidade, de forma que encobre a multiplicidade que o fenômeno implica, além de dispensar a condição de ser que não só é temporalidade, mas é temporalizado pelo desdobramento mesmo de uma vida. De fato, o fator da multiplicidade deveria trazer uma nova perspectiva ao fenômeno que Sartre não explora, devido à correspondência do fenômeno com a forma da Gestalt e a exterioridade da contingência, em sua opacidade, tal como ele mesmo irá requerer, posteriormente, na Crítica, dada a complexidade do mundo circundante e sua positividade. O fato é que, tratando o fenômeno dessa maneira, o fundo aparece como “totalidade indiferenciada” (SARTRE, 2007a, p. 44) à margem da minha atenção que destaca determinado isto e faz da própria relação entre o isto e o todo “uma relação de exterioridade” (SARTRE, 2007a, p. 219), cuja consequência é a impossibilidade da singularização, de modo que o real seja apreendido como tensão e impossibilidade do fundamento.
As relações de exterioridade são compreendidas por Sartre tal qual a indiferença do ser, de sorte que a relação de exterioridade seria uma quase-relação, cuja dimensão vem pela infinitude suposta pela totalidade fundo do fenômeno. Essa infinitude como horizonte de transcendência na imanência demarca, na negatividade da transcendência, essa indiferença enquanto exterioridade, cuja multiplicidade é suposta, mas não associada ao ser-todo, pois só se torna tangível pela nadificação do fenômeno na quase-totalidade. Aqui, a tensão da negatividade dá todo o contorno da totalidade aberta e da dimensão múltipla que a compõe, porque a relação é sobreposta a essa exterioridade de indiferença, a qual permanece como fundo infinito e opaco.[126] Assim, entre o para-si como totalização e a exterioridade de indiferença enquanto relação, que é o mundo fático, a relação é de singularização.
Por isso, não é que Sartre não considere a multiplicidade, entretanto, ele apenas a subjuga à totalização[127], a qual, tendo em vista esse fator de multiplicidade pela relação entre totalização e exterioridade, não deve ser tomada como uma totalização metafisica enquanto guinada ao fundamento, ou sua impossibilidade, mas como singularização ontológica. Tal multiplicidade, que permite a variação do campo prático e, com isso, a da própria consciência, em sua síntese no fenômeno, faz do horizonte fenomenológico não um isto sobre um fundo, porém, um conjunto complexo de relações que se complexificam, na medida em que se unificam sob uma vida. Tal movimento só pode se dar como singularização e finição na aventura individual da liberdade, haja vista que
[o] em-si não é diverso, ele não é multiplicidade e para que ele receba a multiplicidade como característica de seu ser-no-meio-do-mundo é preciso o surgimento de um ser que seja presença simultaneamente a cada em-si isolado em sua identidade. É pela realidade-humana que a multiplicidade vem ao mundo, é a quase-multiplicidade no seio do ser-para-si que faz que o número se desvele no mundo. Mas qual é o sentido dessas dimensões múltiplas ou quase-múltiplas do para-si? São as diferentes relações com seu próprio ser. Quando se é o que se é, pura e simplesmente, não há mais que uma só maneira de ser o seu próprio ser. Mas, a partir do momento em que não se é mais o próprio ser, surgem simultaneamente diferentes maneiras de sê-lo não o sendo. (SARTRE, 2007a, p. 172, grifos nossos).
Em outras palavras, não há singularização sem complexificação, e esta sem ao menos relações múltiplas. Sem essa dimensão, a facticidade apareceria como um bloco de identidade na sua indiferença. Do mesmo modo, o para-si não é só relação, mas um sistema de relações pela condição de ser um “sistema de negações internas” (SARTRE, 2007a, p. 222). Por isso, nunca se trata do Em-si, mas de um em-si individual, cuja totalidade não é um bloco de identidade do fenômeno, mas a própria totalização do para-si.[128] Mas como exige ser um nada qualificado, essas miríades de nadificações entram na trama unificante do para-si como seu ser, isto é, enquanto sua finitude é singularização. Por isso mesmo, não há o todo do ser, nem o todo da contingência.
Em consequência, reconhece-se que a totalidade do fenômeno não aparece como indiferenciada (até porque o aparecer já é diferenciação), visto que já se dá como mundo, e o mundo fenomênico e fáctico “parece sempre prestes a abrir-se como uma caixa para deixar aparecer um ou vários ‘istos’ que já eram – no âmago da indiferenciação do fundo – aquilo que são agora como forma diferenciada.” (SARTRE, 2007a, p. 219). Facticamente, os istos e, sobretudo, o prático-inerte mantêm uma continuidade para além da indiferenciação do ser, enquanto facticidade deste mundo histórico.[129] É por isso que o mundo extrapola os limites da totalidade do para-si, embora só possa aparecer a esta nadificação individual que sou, entrando na trama de meu próprio escoamento intencional, porque, tal como elaborado em O Ser e o Nada, ou um isto é relacionado atualmente por um para-si, ou ele se perde na exterioridade de indiferença da facticidade, a qual não é simplesmente uma desconstrução do espaço[130] empírico, mas uma condição ontológica que constitui o fenômeno enquanto tal.
Ora, o mundo assim considerado não é um plano espacial, mas um plano situacional. De fato, o para-si define-se na sua trama por sua situação enquanto síntese entre a transcendência e facticidade que ele é. Assim, contra o monismo do fenômeno como imagem da Gestalt, como um isto sobressaltado por um fundo, o qual Sartre denota indiferenciado, tanto com relação a si quanto com relação ao isto que se sobressalta, é preciso aferir que o fenômeno é, se se quer manter sua realidade concreta, uma situação. A situação, com efeito, jamais é um fundo indiferenciado, mas é justamente a consolidação dessa singularidade vivida pelo indivíduo como mundo, de modo que não há singularidade senão constituída na conjuntura de uma situação: “Assim, o surgimento da liberdade é cristalização de um fim através de algo dado, e descoberta de algo dado à luz de um fim; essas duas estruturas são simultaneamente inseparáveis.” (SARTRE, 2007a, p. 553, grifo nosso).
Na situação, é estabelecido um “[...] sistema de relações entre ‘os’ em-sis, ou seja, entre o plenum de ser que então se revela como mundo e o ser que ela tem de ser no meio desse plenum, o qual se revela como um ser, como um isto que ela tem de ser.” (SARTRE, 2007a, p. 532). Há esse plenum, essa totalidade, porque não há como apreender algo sem inseri-lo na própria trama da unificação da situação: “[...] isso porque, escolhendo um fim, escolho ter relações com esses existentes e o fato de que esses existentes tenham relações entre si: escolho o fato de entrarem em combinação de modo a anunciar a mim aquilo que sou.” (SARTRE, 2007a, p. 553, grifos nossos). Diante disso, não posso confinar-me ao um, ainda que a multiplicidade não me seja apreensível também por ser apenas postulada e ser a dimensão mesma dessa infinidade na imanência, já que ela mesma se dá nesse limite de unificação e totalização, mas que não é mais opaco e afogado na indiferença, mas unificado por mim na minha situação.
Com isso, a situação é uma ação, uma composição de si e do mundo concreto como resultado da sua totalização, contudo, que não cessa de se totalizar, porque, mesmo não sendo a situação apenas a soma de objetos (pois é a transcendência que unifica), a inserção na trama de um único objeto, dada sua potencialidade própria (SARTRE, 2007a, p 549), pode trazer uma modificação radical à situação[131] (SARTRE, 2007a, p 550), mas que, como já salientado, só pode aparecer à consciência entrando na trama dessa mesma consciência, ao retirar o dado do seu “exílio de indiferença” (SARTRE, 2007a, 553). Assim, e uma vez que isso ocorre, “[...] certas alterações empíricas de seu meio podem incliná-lo a modificar seu projeto original ou, ao menos, ser a ocasião de fissuras ou de distúrbio no interior deste projeto.” (SARTRE, 2007b, p. 96). Por isso, nem mesmo a situação deve ser vista como um bloco de identidade, mas uma constante singularização pelo seu movimento de escoamento como mundo.
Destarte, o que muda não é a forma da situação (unificação), pois as mudanças (que ocorrem ante essa multiplicidade) que descubro é somente sob a condição de ser mudanças “em minha vida”, ou seja, nos limites unitários de um mesmo projeto (SARTRE, 2007a, p. 598). E que, portanto, nada impossibilita a vastidão do mundo para além de minha suposta solidão, pois justamente a requer enquanto condição de sua singularização, todavia, que aparece como meu projeto existencial. Ademais, Sartre mesmo assevera que a situação não é nem subjetiva, porque não é a soma de impressões do para-si, nem objetiva, já que não é apenas um conglomerado de coisas, mas ele mesmo enquanto comprometido nas coisas. Por conseguinte, “[...] a situação é o sujeito inteiro (ele não é nada mais do que sua situação) e é também a ‘coisa’ inteira (não há jamais nada mais do que as coisas.” (SARTRE, 2007a, p. 594). Logo, a situação é a imagem própria da transcendência nessa facticidade. A isto Sartre denomina “estrutura primitiva da situação”:
É pelo ultrapassamento (dépassement) mesmo do dado rumo a seus fins que a liberdade faz existir o dado como sendo este dado – anteriormente não haviam nem isto, nem aquilo, nem aqui -, e o dado assim designado não é formado de qualquer maneira, é existente em bruto, assumido para ser ultrapassado. Mas, ao mesmo tempo que a liberdade é ultrapassamento deste dado, ela se escolhe como sendo este ultrapassamento do dado. A liberdade não é um ultrapassamento qualquer de um dado qualquer; mas, assumindo o dado em bruto e conferindo-lhe seu sentido, ela se escolhe ao mesmo passo: seu fim é justamente mudar este dado, da mesma forma como o dado aparece como sendo este dado à luz do fim escolhido. Assim, o surgimento da liberdade é cristalização de um fim através de um dado, e descoberta de um dado à luz de um fim; essas duas estruturas são simultâneas e inseparáveis. Com efeito, veremos mais adiante que os valores universais dos fins escolhidos somente se desprendem por análise; toda escolha é escolha de uma mudança concreta a ser provocado em um dado concreto. Toda situação é concreta. (SARTRE, 2007a, p. 553, grifos nossos).
Ademais, essa indicação não é apenas restrita a O ser e o nada, mas é o horizonte próprio que, em sua filosofia, tomará a figura do universal singular. Toda situação é histórica, porque alude a essa facticidade mundana que me ultrapassa, não somente enquanto polarizada pela contingência, porém, pela dimensão mesma da facticidade, como já apontado. O fato é que cada objeto, sobretudo a partir da Crítica, enquanto fato social[132] ou prático-inerte, carrega essa condição de universalidade interiorizada pela dialética entre a materialidade passiva e o projeto existencial humano.
Por isso, o universal não será tomado apenas como valor impossível (em-si-para-si), nem como algo que subsiste por si, num hiperurânio, no entanto, como algo que só é dado finitamente e interiorizado finitamente: “O universal ou essência, como eu mostrara (E.N.), só pode aparecer a partir de uma limitação de ponto de vista. O universal ou possibilidade de ultrapassar perpetuamente minha finitude.” (SARTRE, 1983, p. 509, grifos nossos). Ultrapassamento que não é outra coisa que a retotalização constante de meu ser, enquanto singularização dessa finitude, numa radicalidade que a singularidade exige enquanto tal: todo universal é universal singularizado, jamais puro ser. E como é ultrapassamento de si, só posso ultrapassar em direção a minha finitude. Paradoxalmente, sou minha própria transgressão, cujo refluxo é a singularização dessa finitude. Ultrapassar o universal é requerê-lo apenas por sua especificidade. Assim, não há universal senão na própria finitude em seu ultrapassamento, isto é, como singularização. Em suma, o universal singular é singularização.
E se ele é o próprio projeto existencial, essa interiorização já passa por um crivo próprio que é a personalidade do indivíduo que vai assimilar segundo seu modo de ser e exteriorizar consoante a escolha própria, pois essa interiorização “[...] contém e sustenta estruturas abstratas e universais, mas deve ser entendida como a fisionomia singular que o mundo nos oferece, como nossa oportunidade única e pessoal.” (SARTRE, 2007a, p. 595, grifos nossos). Trata-se, assim, de minha oportunidade, mas ela implica o mundo com tudo aquilo que a conjura. Se não compreendemos a multiplicidade (a partir da nadificação e da exterioridade), não podemos entender como algo novo (como nova aventura, portanto, horizonte novo de liberdade e de configuração do humano enquanto singularização) possa ocorrer no mundo histórico ou como poderia esse mesmo mundo se diferenciar.
Além disso, Sartre ainda pensa a situação isolada em O Ser e o Nada e apenas na Crítica a insere numa aventura mais ampla (SARTRE, 2002a, p. 158), daí a ideia de alargamento da situação proposta por Donizetti da Silva (2010, p. 105). Por conseguinte, sem a historialização, a negação seria apenas “[...] um nexo categorial e ideal que eu estabeleço entre eles, sem os modificar no que quer que seja, sem os enriquecer ou os empobrecer da menor qualidade” (SARTRE, 2007a, p. 211), porque o que se teria, então, é a determinação do transcendente como objeto[133], mas este como objeto qualquer, numeração tal que corresponde apenas à adição indiferenciada e não singularizada de vários istos quaisquer; em suma, estrutura geral e abstrata, e não como esse objeto na conjuntura de uma situação singular confluente ao mundo, tal como assumida por Sartre, sobretudo a partir da Crítica.
Embora a ontologia apresente essas estruturas abstratas, é apenas devido ao seu movimento de análise, pois, reiteramos, a filosofia de Sartre sempre assume essa dimensão sintética entre transcendência e facticidade. Uma melhor tradução desse acontecimento, enquanto ato ontológico na determinação de suas estruturas[134] para o acontecimento enquanto universal singular, encontramos em Defesa dos Intelectuais:
[...] um fato que carrega uma ideia, quer dizer, um universal singular, porque limita a ideia carregada, em sua universalidade, por sua singularidade de fato datada e localizada, que tem lugar a um certo momento da história nacional e que a resume e a totaliza, na medida em que é seu produto totalizado. (SARTRE, 1994b, p. 37).
Há, assim, uma determinação um pouco diferente na noção de acontecimento, tal como colocada em O ser e o nada, como ato ontológico e assumida depois do “encontro” com a História. Tal diferença é que essa aventura individual é tomada na sua concretude histórica, da qual é impossível ser dissociada, pelo fato de agora se assumir a facticidade como História ou Época. Poderíamos dizer que só ali a fenomenologia encontrará o seu fenômeno próprio, a finitude na História como acontecimento concreto. Minha vida como paixão na história, como processo singularizador, ultrapassa tanto a dimensão de uma alienação insuperável (ao menos como possibilidade ontológica e histórica) quanto a ideia de uma totalidade fechada, mesmo que a verdade se faça devinda como Época.
Para Sartre, todo esse processo histórico não tem outra inteligibilidade senão o indivíduo em sua irredutibilidade, isto é, em sua finitude, na forma como os universais são singularizados. Por isso, qualquer sombra de totalidade é subjugada ante a finitude: ela, na sua livre invenção de fins (SARTRE, 2007a, p 612), é quem determina a concretude dos universais. Essa determinação revela que o acontecimento absoluto só pode se dar como acontecimento histórico, donde resulta que, na finitude mesma desse acontecimento, se denote o fenômeno como totalidade histórica, mas totalidade que remete às vidas que os totalizam na sua totalização vivida[135], conforme o exemplo de Valéry, na Crítica, que não pode ser reduzido ao seu ser-de-classe, a qual justamente é posta em questão pela vida singular desse indivíduo. Isso não quer dizer que os universais sejam subjetivos, contudo, que é a aventura mesma dos indivíduos que os animam e não o contrário, senão por uma condição de má-fé. Por isso, seria incoerente pensar o mundo com suas instituições, firmes e solidificadas, animadas por algo que não o próprio projeto existencial e humano.
Mas é o que encontramos como exigência, nas análises de Mészáros sobre a ideia de totalidade em Sartre. Sua acusação é justamente sobre o problema da mediação entre esses universais. A primeira crítica que ele dirigia à totalidade era com respeito ao dualismo que a fraturava, segundo seu dualismo imanente, do em-si e do para-si, fazendo dessa distância a sua lei ontológica (MÉSZÁROS, 2012, p. 108), de modo que “Sartre, porém, nunca tenta seriamente enfrentar a alternativa monista, pois esse tipo de confronto iria briga-lo a tentar justificar suas próprias suposições.” (MÉSZÁROS, 2012, p. 110). Sem mediação ante o dualismo, o que restava para Mészáros era uma “[...] ontologia de uma totalidade radicalmente dilacerada, na qual a mediação é eliminada, com as antinomias necessariamente inerentes a esse dilaceramento.” (MÉSZÁROS, 2012, p. 110).
Todavia, Mészáros critica justamente o que aqui se procura afirmar, o ser na sua unidade sintética e, portanto, a vida concreta como mediação. Se o indivíduo é esse medium entre ser e nada, universal e singular, de modo que ele vive o universal como particular, Mészáros (2012, p. 121) alude à pseudomediação que tal ideia traz, porque tal ideia evita o que para ele é o verdadeiro problema da mediação: “[...] como é possível viver o universal como particular?” Segundo ele, seria apenas por “[...] mediações específicas (o que, certamente, requer a identificação precisa dessas especificidades) e não ‘vivendo-o’ – que é a resposta de Sartre – , o que é incorrer em petição de princípio.” Mas viver não é tomar um modo geral pendente de especificidades exteriores que medeiam o que sou e o que interiorizo de fora como meu eu. Viver não remete senão a essa singularidade mesma que é a existência própria do indivíduo.
A mediação é condicionada pela própria finitude, porque o universal não se dá senão por essa singularidade que o vive, contudo, viver para o para-si é interiorizar sua facticidade, imprimindo nele a condição própria da Época, seja para mantê-la e prolongar o momento da História, seja para alterar esse mesmo momento, tal qual como ocorre segundo a situação vivida. Nesse caso, não é o particular que medeia, mas é a singularidade a condição de mediação e de universalização, de modo que não há universal, senão por sua mediação. Não há, per se, instituição sólida. Portanto, se aludimos à vida como mediação, o indivíduo como mediação, não é simplesmente porque ele representa uma estrutura específica, porém, é que a vida enquanto finitude irredutível requer para si mesma qualquer especificidade, justamente por ser o motor da finitude, isto é, aquilo que confere a especificidade às coisas, mediando as estruturas gerais homem-mundo e, com ela, os universais enquanto vida singular neste mundo. Por conseguinte, o conflito entre universais não é outro a não ser a relação própria entre os indivíduos em suas singularidades, as quais, na trama da história, confluem ou não segundo o mesmo passo. Como muito bem esclarece Rizk,
[...] as universalidades singulares são fundadas sobre as mesmas significações gerais, no sentido de condições práticas, sociais, culturais, que afetam um conjunto prático. Estas significações são, contudo, vividas em uma pluralidade de microtemporalizações. Isso quer dizer que estas microtemporalizações, próprias das existências singulares, se modificam, se opõe e se complementam. (RIZK, 2011, p. 233).
É por isso que o plano situacional não é constituído tão somente por minha situação, mas por uma “pluralidade situacional” (SILVA, 2004, p. 125). Essa malha de situações é que constitui a Época. Disso se inferem os conflitos existenciais como conflitos estritamente práticos e associados às relações que se têm concretamente com o outro, na História. Sartre expressa isso tanto horizontalmente, pelas relações concretas, como verticalmente, pelo conflito das gerações. Em todo caso, o outro, mas que frente à singularidade que apontamos nos exige dizer os outros, aparecem não somente como istos particulares, mas como “[...] centros de escoamento de realidades” (SARTRE, 2002a, p. 215), e a relação do dois é vista não mais como entre duas substâncias ou seres, ou particulares, mas como “[...] dois deslizamentos centrífugos e divergentes no âmago do mesmo mundo”, constituindo uma relação de reciprocidade que “[...] transcende minha própria percepção” (SARTRE, 2002a, p. 216). Sob esse aparente enigma ontológico, encontramos, no Cahiers, um ponto decisivo:
O Ser puro não é amável na sua total exterioridade de indiferença. Mas o corpo do Outro é amável enquanto ele é a liberdade na dimensão do Ser. E amar significa aqui absolutamente outra coisa que desejo de apropriar. É, a princípio, desvelamento-criador: aqui, também, na pura generosidade eu me assumo como perdendo-me para que a fragilidade e a finitude do Outro exista absolutamente como reveladas no mundo. [...] Mas eu não me limito a dar-lhe uma outra dimensão de ser: em outras palavras, eu me faço o guardião da sua finitude. (SARTRE, 1983, p. 523, grifos nossos).
Isso se torna crescente na filosofia de Sartre, na qual o não tematizado não será o indiferente e o contingente, mas fará com que a facticidade seja integrada à História, para a qual a contingência apenas intensificará a liberdade, enquanto possibilidade histórica, e não somente enquanto falta de sentido do objeto por sua opacidade. Estes passam a ser determinados enquanto relacionados à História, a qual subjaz à situação particular e a confina na pluralidade situacional como Época. A História, assim, me pertence, porque sou ela, mas me escapa, seja porque o outro também a faz (SARTRE, 2002a, p. 75), seja pela materialidade inerte e passiva do prático-inerte, seja pelo fundo da contingência que a calca sempre no inesperado. A indiferença do ser, assim, aparece como um revés da coisa historicamente constituída, a qual é inserida na multiplicidade situacional da Época. Para o homem, nada escapa à História, embora tudo ainda seja ontologicamente contingente, no entanto, a única forma de eu assumir essa contingência é fazendo-me na história enquanto sua singularidade pela finitude que sou. Assim, o indivíduo não é confinado em sua solidão, mas integrado numa multiplicidade de relações e situações que ele exige para sua própria composição situacional e singularização. É sobre essa forma que Sartre assumirá a dialética como “[...] a lei de totalização que faz com que existam vários coletivos, várias sociedades, uma história, isto é, realidades que se impõem aos indivíduos; mas, ao mesmo tempo, deve ser tecida por milhões de atos individuais.” (SARTRE, 2002a, p. 156).
Ora, o que passa a ser, então, tal existência frente a esse todo, cujo fundo revela uma multiplicidade histórica como teia de relações, na qual eu sou minha própria relação e situação como projeto, o qual, ao mesmo tempo, resgata e dá unidade à História, na medida mesma em que, para ser essa relação, exige seu ultrapassamento? A resposta só pode ser a singularização, contanto que essa relação implique, justamente, a própria nadificação enquanto essa singularização, enquanto negação qualificada. É essa nadificação que possibilita a abertura, enquanto essa abertura, que, sendo ao mesmo tempo escolha, é singularização. Assim, mais que a imagem de uma totalidade-destotalizada, e com isso a própria imagem do nada como um buraco no ser (SARTRE, 2007a, p. 115, 531), tal fissura pela nadificação é a imposição de uma existência na ordem do mundo. Só se move a História, só se abre o campo de possíveis pela negatividade, quando um possível se erige no mundo, por sua singularização. Por isso, a possibilidade nunca é abstrata, pois ela exige, para abalar tal malha da História, a singularização como presença real e concreta nessa História. Aqui tal negatividade aparece em toda sua concretude e o fenômeno em seu acontecimento.
Observamos que a interiorização não pode ser tomada apenas como um processo íntimo, mas como minha condição de relação, tal que o mundo seja essa pluralidade de relações que me escapa e me obsidia, sob o fundo da contingência do ser. A relação ao todo não é o fechamento por uma unidade, porém, uma abertura enquanto modo (instauração de um possível concreto) de assumir os universais históricos (que não subsistem por si e por essa necessidade só aparecem singularizados), ante a teia de relações singulares das quais minha existência conflui e, por sua vez, singulariza-os por sua própria medida. Assim, esse nada que irrompe a totalidade e a impede de ser é a própria singularização enquanto forma pela qual o mundo se abre a seus possíveis. É por isso que, seja a aventura individual, seja a aventura histórica como aventura mais ampla (SARTRE, 2002a, p. 158), ambas são um processo cujo invólucro é a finitude:
A relação original ao mundo não poderia ser dada, nem pode existir em potência nem permanecer em suspenso em algum flutuamento inerte: é preciso que ela seja vivida, existida; isso quer dizer que cada realidade humana deve se fazer ela mesma e sempre (à neuf), relação singular ao Todo. O ser-no-mundo é um ultrapassamento da pura contingência singular rumo à unidade sintética de todos esses acasos; é o projeto de jamais tomar a aparição particular senão sobre o fundo do Universal e como uma certa limitação concreta do todo. (SARTRE, 2007b, p. 94 e 95, grifos nossos).
ADessa maneira, como movimento sem pausa nem intervalo de mediação, sendo ele próprio mediação, pois o para-si não é um termo da relação, mas é ele próprio a relação (SARTRE, 2007a, 672), ainda que não seja uma relação recíproca com o em-si, ele é, por conseguinte, relação singular. Por isso, mesmo que o para-si seja “[...] interiorização da sua própria finitude” (SARTRE, 1983, p. 549) e que, com isso, “[...] seus limites existem na liberdade profunda de seu ser”, no sentido de que “[...] existir sua própria finitude é fazer-se como não sendo o Todo do Ser” (SARTRE, 1983, p. 549), esse fazer alude a essa condição múltipla e singularizante que é tal movimento. Se a existência é fluxo, ela jamais pode ser um particular de um universal. E se há algum sentido de solidão é apenas porque o para-si se torna absolutamente “responsável por sua maneira de ser” (SARTRE, 2007a, p. 593), enquanto subsume “[...] as formas de eu ser meu próprio nada” (SARTRE, 2007a, p. 490), uma vez que o homem não cria o ser, mas se cria enquanto maneira de ser (SARTRE, 1983, p. 543).
Essa maneira, enquanto singularidade, que na finitude é um processo e uma limitação ou ponto de vista (SARTRE, 1983, p. 509), pressupõe, então, que as situações são relações, e a própria finitude para se finitizar na sua singularização exige essa dialética das relações. Assim, somos levados à assunção da ambiguidade da totalidade apontada em O ser e o nada: nem síntese, nem coleção, mas os dois ao mesmo tempo (SIMONT, 1998, p. 137). Síntese e dispersão: diáspora, em outras palavras, relações: “[...] não há senão homens e relações reais entre os homens; desse ponto de vista, o grupo em certo sentido não passa de uma multiplicidade de relações e de relações entre essas relações.” (SARTRE, 2002a, p. 67).
E, se nessa trama social, sobretudo pelo grupo, apontará Sartre na Crítica, o indivíduo comporá não uma comunhão com o outro, mas uma relação de ubiquidade, é porque nela acontecem “[...] relações novas entre os indivíduos que não são atomizados, mas se totalizam para tecer uma resposta inédita a uma situação original.” (REIMÃO, 2005, p. 339). Ora, é pela abertura enquanto negação do todo e não pelo próprio todo que essa teia situacional enquanto História é possível, e não mais por um fundamento que unifica, como o Ser-Deus, enquanto “[...] consciência-testemunha exterior que realiza sua própria unidade como consciência-testemunha de uma exterioridade de indiferença (esta exterioridade de indiferença das unidades acabadas que é a pluralidade).” (SARTRE, 1983, p 163). É por isso que o peso sobre a maneira de ser recai no próprio para-si enquanto relação e por isso o peso é a própria finitude como responsável por sua maneira de ser, por sua singularização, enfim, por sua “livre invenção” (SARTRE, 2002a, p. 622; 2007a, p. 612) ou por seu nada de fundamento.
É o que bem nos recorda Simont, contra a psicologia empírica e contra a psicologia substancialista, de que a pessoa humana deve ser considerada uma “livre unificação” (1998, p. 170). Assim, por mais que a negação seja sempre ao todo, isso não alude nem à totalidade da contingência, que nos é inapreensível pelo limite do fenômeno, nem à tomada da História e da facticidade, numa opacidade absoluta e invariável, contudo, ao contrário, na multiplicidade que minha abertura exige pelo fato mesmo de que a situação supõe que o para-si, enquanto relação singular, denote que “[...] essas relações são moleculares porque só existem indivíduos e relações singulares entre eles.” (SARTRE, 2002a, p. 121, grifos nossos).
Nem sujeito de identidade, nem mundo idêntico a si, mas uma abertura singularizante, eis a forma da mediação, eis a relação ao Todo:
O Ser me reenvia ao que eu sou pois, uma vez que sou a Relação, quanto mais o mundo é múltiplo, mais eu me perco para que esta multiplicidade exista, eis minha riqueza (je suis riche). Assim, nós encontramos, na pequenez (humilité) da finitude, o êxtase da Criação divina. (SARTRE, 1983, p. 513, grifos nossos).
Dessa feita, Sartre assevera a impossibilidade de separar a causa sui da causa mundi (SARTRE, 1983, p. 542), uma vez que, tal como o deus aristotélico não poderia encontrar motivação para criar fora de si (SARTRE, 1983, p. 542), o para-si só pode ser neste mundo. Logo, essa criação não é uma assunção ontológica, senão ontológico-ôntica (SARTRE, 1983, p. 533), o que assegura que a facticidade é condição imprescindível para que o ser se dê nas suas maneiras de ser e como sua finitude, na pluralidade situacional. Sendo a causa sui, ipso facto, causa mundi, a condição ôntica não é menosprezada pela ontológica, mas justamente a ontológica a requer como condição múltipla, concreta e finita. Só salvaguardando o aspecto ôntico no ontológico é que a multiplicidade das relações como mundo encontra todo o seu peso, ante a finitude, e a finitude sua dimensão de finito, por sua singularização. Do contrário, cair-se-ia num abstracionismo intangível, e da incomunicabilidade das consciências passaríamos à incomunicabilidade dos seres. Nesse ponto, a separação das dimensões apenas traria um prejuízo, não só ao ôntico, mas também ao ontológico, que faria da própria fenomenologia aquela fenomenologia sem fenômenos de que Barbaras acusava Sartre.
Claro que não se trata apenas da consideração ôntica, pois, como já alertava Bornheim (2003, p. 242), “[...] não existe problema filosófico que possa sê-lo fora da consideração ontológica.” E filosófico não apenas no sentido reflexivo, mas existencial, pois, do contrário, seria também entregar a existência à sua absurdidade fáctica, cujas relações e ela mesma enquanto relação se perdem na indiferença do ser. Também não se trata de considerar a extensão do mundo, porque a totalidade aparece como limite da minha finitude, na qual, portanto, a diversidade ôntica não é considerada na sua numeralidade nem infinidade, contudo, como possibilidade múltipla sempre latente no mundo, enquanto fato desse mesmo mundo na trama de suas relações históricas e conjuradas ante minha situação enquanto finitude.
Daí porque a consideração dialética seja ontológica e ôntica, mas numa ontologia que não é antes da condição ôntica, nem a ultrapassa como Espírito ou Natureza, porém, que se exerce como práxis histórica e humana. É justamente disso que o método regressivo-progressivo deveria dar conta, porque, como o lembra Donizetti da Silva (2010, p. 295, grifo nosso), essa má dialética se dá por conta não da oscilação entre ser e nada, nem de um idealismo ou realismo, mas porque “[...] a totalização é sempre parcial, trata-se do homem em sua práxis, e Sartre é o primeiro a reconhecer que a história só é história se estiver inconclusa.”
Assim, o aspecto ontológico e ôntico se complementam e se limitam. Complementam-se porque, já que o ontológico não conduz a uma totalidade, para não cair no absurdo dos princípios, ele exige a concretude ôntica como multiplicidade fáctica, isto é, qualitativamente diferenciada – finitude singularizada. Esta, por sua vez, para não cair na totalidade de indiferença do ser, exige o movimento de diferenciação que resguarda o Ser como História, no campo material e fáctico, como reflexo das relações singularizadas. Mas também se limitam, porque a multiplicidade ôntica assegura que a dialética não caia no abstracionismo ontológico, e o aspecto ontológico impede que essa dialética ôntica se reporte à irracionalidade da natureza que Sartre rejeita em Engels.
Tal é a coroação da finitude, esse ponto de singularização do Ser, no qual o “[...] chassé-croisé do ser e do nada é projetado na serenidade (calme) do Ser” (SARTRE, 1983, p. 534), o todo do ser; ou
[...] “o mistério em plena luz” ou a “face escura da lucidez”. Há, com efeito, um inconsciente no coração da consciência. Ele não é alguma potência obscura e nós sabemos que a consciência é consciência de ponta a ponta. É a finitude interiorizada. Mallarmé é afetado e esmorecido até ao coração de sua intimidade pelo que nós sabemos hoje, mas ele não sabia (SARTRE, 2007b, p. 89, nota do autor, grifos nossos).
Ora, a impossibilidade da identidade entre o Ser e a totalidade sugere não apenas uma ausência metafísica, mas a tomada do ser próximo a algo que Sartre sempre rejeitou, a saber, o inconsciente. Todavia, como salienta Simont (1998, p, 185), este em nada tem a ver com o inconsciente dos analistas. É todo o efeito desconhecido que, desde o surgimento da criança de sorte[136] na sua condição de necessidade da liberdade e, portanto, de interiorização do seu meio[137], vai “às cegas” adentrando ao campo fáctico pelo transcorrer de sua vida. Desde essa condição de constituição passiva até a revolta personalizante e o limite vivo do projeto, é na própria consciência pré-reflexiva (SIMONT, 1998, p. 185) que prefigura tal inconsciente, na medida mesma em que o horizonte fenomenológico é, ao mesmo tempo, um horizonte centrífugo (pois o ser é sempre sem relação e, por isso, exterioridade de indiferença) na tomada centrípeta da consciência enquanto finitude singularizada ou processo de finição. Uma vez que ele designa um “[...] vivido original, ele é obrigatoriamente pré-lógico e não pode ser deduzido, mas apenas encontrado (récontré).” (SIMONT, 1998, p. 171, grifo nosso).
Entretanto, o que se interioriza e o que escapa não é a contingência inócua, senão a própria materialidade histórica, meu horizonte presente e seu transcorrer temporal. Assim, seja sincronicamente, seja diacronicamente, o para-si se faz “[...] interiorização da finitude histórica” (SIMONT, 1998, p. 185):
A ambiguidade desta relação vem de que ela não é [relação] do Todo a si mesmo, mas pro-jeto de uma certa realidade contingente e acidental, perdida no âmago dos fenômenos, e que se constitui como ultrapassamento de si rumo à totalidade que o esmaga; é, portanto, ao mesmo tempo, explosão de uma singularidade que se projeta sobre o infinito dos fenômenos e que se perde para que possa existir alguma coisa como um Mundo [...] É ao mesmo tempo abdicação da finitude original e a resolução de se fazer anunciar esta finitude pelo mundo como uma existência particular que aparece sobre o fundo obscuro da Totalidade. (SARTRE, 2007b, p. 95, grifo nosso).
Justamente por isso não se poderia fazer da finitude uma totalidade isolada ou do ser uma totalidade perdida. Esse processo de finição, que é a singularização existencial, é o “[...] modo de viver o puro fado contingente de nosso ser-aí e uma maneira de ultrapassá-lo.” (SARTRE, 2007b, p. 95). Porém, uma vez que tal finitude arroja sua concretude fáctica, não apenas como seu limite, mas como sua condição pela qual sua transcendência se configura na sua facticidade enraizada como seu ultrapassamento, ao reclamar a finitude do acontecimento, esse acontecimento não é apenas uma irrupção como origem, todavia, todo deslizar como singularização concreta. E porque o Todo só aparece na universalidade singularizada, ou finitude interiorizada, essa realidade “contingente e acidental” (SARTRE, 2007b, p. 95), como “maneira de viver e de se fazer existir” (SARTRE, 2007b, p. 95), é a nossa forma de “saborear” o mundo. E, enquanto relação singular ao Todo que me compõe e me escapa, nesse processo, nossa “[...] atitude em relação ao Ser se desvela aos nossos olhos como nossa qualidade pura e inefável, aos olhos dos outros como nosso indefinido estilo. Resumindo, é a estrutura a priori de nossa afetividade.” (SARTRE, 2007b, p. 95). Tal é a tarefa que uma psicanálise existencial e uma fenomenologia devem visar a constituir: a singularidade ou a finitude do finito, como sempre o reclamou Bornheim (2003, p. 193), mas que o mesmo acusava faltar à ontologia fenomenológica sartriana. Cremos que, pelo movimento de nosso trabalho, tal tarefa se torne mais legítima e, quiçá, a tarefa própria de tal filosofia.
Ora, que deve isso à solidão ontológica? De fato, a totalidade nos escapa, e só entra em nosso horizonte como nossa própria totalização enquanto conflui à temporalização histórica tecida pelos “[...] milhões de atos individuais.” (SARTRE, 2002a, p. 156). Não experimentamos esse sem-fundo da contingência, porque somos seu ultrapassamento enquanto singularização como resultado dessa negação do Todo, tal é a condição de absoluto da consciência intencional. Um todo que nos escapa e constitui apenas enquanto nossa totalização, a qual é interiorização do fundamento como ser que é responsável por seu próprio nada e dispensa o homem da necessidade analógica do ser. Entregue a si mesmo, responsável por seu ser, ultrapassamento do Todo, assumindo a criação divina pra si, ele parece, assim, encarnar a própria solidão divina. Tal é o sentido absoluto da revolta e da liberdade. Essa condição centrífuga do real (seja pela nadificação mesma do para-si, seja pelo para-outro, seja ainda àquilo que, pela facticidade, adentra conjuntamente à minha nadificação) alude ao mesmo tempo à total responsabilidade sobre o que entra em minha vida, mas, ao mesmo tempo, à total gratuidade dessa dispersão sempre recomeçada, que é o real e a História.
Bornheim (2003, p. 151) afirmava que a filosofia de Sartre é aquela que levava às últimas consequências a crise do fundamento pela assunção da finitude do finito, embora criticasse o filósofo por não ter atingido tal finitude, mas que, em nosso trabalho, cremos ter apontado como o oposto. Essa finitude enquanto singularização alude a si mesma como o corolário do Ser. Se é sempre pelo jogo do ser e do nada que o real é posto, Sartre sempre requer a unidade desse lance, isto é, a raiz fáctica da transcendência, cujo ato unitário no lançar desses dois dados exige a singularidade do processo ou lance como seu ser, ou melhor, seu nada de fundamento. A finitude do finito traduz a filosofia de Sartre àquelas que, como resposta a tal crise do fundamento, erigem o humano como esfera própria do ser. Para lembrar Mallarmé, diríamos que o lançar dos dados é a finitude desde seu princípio, sob o fundo da contingência e da História, os dados o ser (em-si) e o nada (para-si), e o movimento único entre o lance e o resultado é a singularização. No entanto, o jogo, para nós, é totalmente humano. Partindo do fundo inconsciente da exterioridade de indiferença, traduzidos já no imediato em nossa facticidade pela malha da História com seus universais, jogando e dançando entre o ser e o nada, deslizamos por esse movimento como nossa singularização. Finitude de ponta a ponta, a liberdade enquanto singularização é a nossa vitória pela finitude.
Novamente nos deparamos com aquele gosto da solidão ontológica. Mas, frente à abertura do todo, uma vez que basta um ato, um acontecimento, para que tudo se rasgue, se rompa, e que esse acontecimento mesmo sou eu (SARTRE, 2006, p. 74); que liberdade por vir e que condição humana poderá nos aparecer, no irromper de uma vida humana? Nesse sentido, uma solidão, que é abertura do humano por sua existência mesma, já não é totalmente solidão, mas, justamente, possibilidade do absolutamente Outro (no) homem: “Que glória, se bastasse que Genet começasse um sonho para que todas as consciências fossem por ele afetadas, para que a humanidade inteira perdesse a bússola, abandonasse o leme e se deixasse deslizar para o impossível.” (SARTRE, 2002b, p. 397, grifo nosso).
Totality and finitude: on singularization in Sartre
Abstract: This article aims to analyze the problem of totality in Sartre in its relation with finitude. We begin with the problem of ontological solitude by which we analyze Being as the exteriority of indifference and the event of the it-self or ontological act. Postulating this event as a process of singularization and the life of the individual, we show how the finitude affects totality as totalization and singularization. Image condensed by the singular universal, the finitude, then, is not taken as an isolated totality, but is understood by its opening of the human in the singularization of a life.
Keywords: Ontology. Phenomenology. Finitude. Totality. Singularity.
Referências
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Recebido: 19/4/2022
Aceito: 20/6/2022
Luciano Donizetti da Silva[138]
Referência do artigo comentado: PRATES, Marcelo. Totalidade e finitude: sobre a singularização em Sartre. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 177 - 208, 2023.
Prates (2023) toca uma questão fundamental para a filosofia da liberdade: a finitude. Por certo, foi a suspeita nietzschiana a primeira a negar mais recentemente o etéreo-apriórico-transcendental, essa fantasmagoria cunhada pelos idealismos de todos os tempos, desde a alma de Platão. Heidegger, em suas rusgas com Husserl, deu um passo importante: estabeleceu o Dasein como modo de ser privilegiado, autor da questão sobre o sentido do Ser em Geral a partir do ser mesmo que ele é – ser-no-mundo; assim, se o Espírito Absoluto ou Eu Transcendental não sofrem nem podem morrer, o ser humano – Dasein – é ser-para-a-morte. Isso, no universo de Ser e Tempo, revela-se pela condição humana de, sendo, ter seu ser em jogo.
Sartre mantém e aprimora esse princípio, mas, mesmo reconhecendo a importância de Heidegger na definição da fenomenologia como berço de ontologias (liberação do ser do âmbito do juízo), recusa-se terminantemente a admitir qualquer finalidade prévia que determine Ser-Para-Si. Somente a liberdade poderia estar no princípio, pois será mesmo dela que pode advir todo e qualquer sentido para a realidade humana, sobretudo no que se refere a seus fins. Ora, o problema passa por fazer “[...] de meu ser-para-a-morte”, ou da morte ela mesma, dessa “[...] morte ‘ôntica’ que terei”, a “[...] minha possibilidade mais essencial” (SARTRE, 2011, p. 321); morte, assim como nascimento, são eventos devidos à absoluta facticidade de existir, contingência de Ser: morre-se porque se vive, e tudo que vive morre, ensina a inspeção fenomenológica; todavia, ela também ensina que existir demanda, ao menos, ilusão de ser eterno.
Tão misterioso quanto o início é o final da existência, o qual se anuncia onticamente de modo nebuloso: nunca se sabe o dia nem a hora, mas se sabe com certeza que o fim é inexorável. E fim aqui não significa finalidade, porém, encerramento, extinção, deterioração, apodrecimento, esquecimento – morte. Ainda pior, do ponto de vista da filosofia da liberdade, isso se reverte em determinação (nega a liberdade): o que se perde sob a máscara da finalidade fúnebre de homens e mulheres é justamente o que há de mais precioso, aquilo que homens e mulheres são (livres). Entra em cena a finitude, “[...] condição necessária do projeto original do Para-si” e “[...] para que eu seja o que não sou e não seja o que sou” (SARTRE, 2011, 412); no plano ontológico, descreve-se a passagem do não-ser ao ser-aí (nascimento), que não deve ser confundida com aquela do ser-aí ao ser-para-si: para, na expressão hifenizada, remete exatamente à reflexão, característica única que define ser homem e mulher no mundo; não as crianças e demais casos à parte.
Em resumo, o acontecimento absoluto – esse aparecimento de um novo para-si – dá-se a partir de um ser sui generis, o qual, por si mesmo, se revela consciência intencional, movimento de si a si; contudo, isso se faz em dois momentos: a idade da razão, que se sobrepõe a existência que antecede a reflexão. Assim, refletir não é atributo necessário ao ser humano, mas consciência, sim; todavia, ser homem exige o movimento da consciência (de) consciência, que, além de mostrar-se como liberdade, se revela como finitude. E isso é pressuposto, não para ser humano, mas para ser aceito no mundo humano como liberdade; note-se que há homens e mulheres que são tutorados por outros.
Para além do medo de morrer, condenação ôntica de todos os que vivem, Sartre chama a atenção para a consciência da finitude: concomitante com a descoberta da liberdade, a qual exige a assunção da situação na confecção de todos os projetos de ser-homem-no-mundo, revela-se também “Esse algo dado que sou sem ter-de-sê-lo – salvo ao modo do não ser – não posso captar nem conhecer, pois é por toda parte retomado e transcendido, utilizado para meus projetos, assumido.” (SARTRE, 2011, p. 412-413). Ser livre exige assunção da finitude: é pela negação do que se é, finito, que as noções de eternidade e infinidade podem ser aventadas; no entanto, todo projeto dessa ordem, seja na filosofia, seja fora dela, evidenciou-se impossível para o homem individualmente e para a humanidade (fim do homem é fim do mundo).
E, de novo, o paralelo; afinal, também de seu início nem a consciência nem a humanidade pode dar conta: portanto, finitude não se confirma somente pela morte previsível, mas também pelo nascimento ignorado. Resta como alternativa a má-fé, porque não há como escapar de algo que é indicado por todo o transcendente: não é somente morrendo que se deixa o mundo, vale lembrar, bastando para tanto a perda da consciência reflexiva; meu fim é esboçado, revela como eco por sua própria transcendência, donde “[...] eu jamais possa voltar-me para aquilo que me é indicado porque sou o ser indicado.” (SARTRE, 2011, p. 413).
A visão do Ser é estrábica, como também o são as noções de liberdade e finitude: sou a liberdade absoluta que pretendo, mesmo sendo finito. E aqui cabe trazer Descartes como vidraça: a primeira verdade, o Cogito, onde o filósofo pretendeu fundar a certeza do próprio Deus, mal garante existir uma coisa que pensa (descoberta do transcendental, ou sua invenção?). Afinal, homem não é coisa, é para-si: não se trata mais de uma diferença substancial que exigiria explicar sua união, mas da descrição fenomenológica, que se ocupa da separação ontológica sempre anunciada e nunca realizada. Não se trata mais de perguntar sobre o erro, o qual, para a sisuda Razão, é a existência de homens e mulheres; trata-se de descrever. Foi assim com Descartes, quando ele se deparou com sua liberdade: assustado, ele a atribui arbitrária e sem razão a Deus, que figura na ontologia de Sartre como mera hipóstase (Ser-Em-si-Para-si).
Ora, por uma reversão genial das estruturas da filosofia racionalista, Sartre mostra que, ao mirar a liberdade divina, foi a liberdade (ela mesma, estrutura ontológica de ser-homem-no-mundo) que Descartes acertou. Ou, em suas palavras: “Descartes, homem de ciência dogmático e bom cristão, se deixa esmagar pela ordem preestabelecida de verdades eternas e pelo sistema eterno dos valores criados por Deus.” (SARTRE, 2005, p. 297). A finitude volta-se para o infinito, que ela mesma criou e do qual espera suas respostas: notável que, em ciência, apenas se encontre de certo aquilo que a própria razão levou ao transcendente, dirá Kant.
Enfim, permanece insustentável a crítica heideggeriana (ou outras) endereçadas a Sartre, no sentido de que sua filosofia teria somente invertido termos da filosofia medieval. Para isso, esquece-se primeiro que a filosofia da liberdade é fenomenológica, e que não pretende revelar nenhuma verdade, senão fenomênica: por um lado, tem-se a provisoriedade (e falibilidade) de todo saber humano, todavia, de outro, permanece garantida a liberdade absoluta (ainda que ontológica) como sua única fonte. A passagem ao plano ôntico exige algumas mediações (a Crítica da Razão Dialética inteira), mas parece claro que inverter essência e existência não foi tarefa do existencialismo; mais, e isso parece claro no artigo em pauta, há de fato uma inversão: não aquela indicada por Heidegger, porém, da compreensão desse não-ser que serei (cadáver ou alma) e das esdrúxulas ideias medievais (Deus antes do mundo) claramente fundadas no ser-homem. Tudo se explica pela finitude ontológica de ser-para-si (que começa antes de seu início) e pelo medo demasiado humano (ôntico) de morrer, donde toda a inventividade de vidas eternas e paraísos flutuantes. Então, para encerrar, recorro ao mestre Bento Prado de Almeida Ferráz Júnior, nas últimas linhas de seu incontornável trabalho sobre Bergson: “A filosofia da consciência finita é, ao mesmo tempo, a projeção do ideal de sua infinidade.” (PRADO JÚNIOR, 1988, p. 217).
Referências
PRADO JÚNIOR, B. P. de A. Presença e campo transcendental. São Paulo: Editora da USP, 1988.
PRATES, M. Totalidade e finitude: sobre a singularização em Sartre. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 177 - 208, 2023.
SARTRE, J-P. A liberdade cartesiana. Tradução de Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
SARTRE, J-P. O ser e o nada - Ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 20. ed. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
Recebido: 11/08/2022
Aceito: 21/08/2022
ESBOZOS PARA LA CREACIÓN DE UN CONCEPTO DE “PRÁCTICA FILOSÓFICA”[139]
[…] en la afirmación de lo múltiple hay la alegría práctica de lo diverso. La alegría surge como si fuera el único móvil para filosofar […] (Ya Lucrecio y Spinoza escribieron páginas definitivas a este respecto. Antes que Nietzsche, conciben la filosofía como la potencia de afirmar, como la lucha práctica contra las mistificaciones, como la expulsión de lo negativo). (Deleuze, Nietzsche).
Resumen: El presente texto busca introducir una interrogante referida al lugar que ocupa la filosofía dentro de la escena contemporánea, abriendo así una problematización respecto a si esta es capaz de responder a las demandas y exigencias que le impone el presente. En esta medida proponemos repensar la noción de filosofía desde un encuadre que rescata sus dimensiones prácticas, materiales y afectivas, visibilizando el impulso transformador que esta puede tener respecto de los sentidos habituales asociados a la producción disciplinar, vinculada a la división tradicional entre teoría y práctica, abriéndola así hacia una dimensión que reconozca el rol implicante – creativo e interventivo – que la filosofía posee en la producción de la realidad.
Palabras clave: Práctica filosófica. Materialismos. Metodología. Afectos. Creación.
INTRODUCCIÓN
Hace ya treinta años, Francis Fukuyama (2006) presentaba frente al mundo su polémica interpretación de la tesis hegeliana respecto al “fin de la historia”, que en ese momento se corporeizaba en torno al triunfo económico y político del liberalismo en Occidente. A pesar de los reparos y las críticas que recibió el politólogo en su momento, lo cierto es que sus dichos instauraron la atmósfera de los tiempos venideros al consignar la inevitabilidad de que el triunfo liberal en el ámbito de la conciencia trajera aparejada consigo su concreción material. Más allá de disponernos a verificar o refutar esta tesis, podría decirse que este anuncio porta una relevancia retrospectiva a la luz de la serie de eventos que, treinta años después, parecen haber marcado una contemporaneidad signada por un sinnúmero de crisis y catástrofes en todos los ámbitos de la vida: desde la diversidad de guerras, luchas socio-políticas y económicas alrededor del globo, pasando por los desafíos migratorios y multiculturales, llegando a una crisis ambiental de dimensiones nunca antes vistas provocada por la humanidad. Proponemos que la celeridad consustancial a estos fenómenos que componen el mundo de la vida global en sus diversas variantes, y la aceleración en los procesos asociados a la primacía de la racionalidad técnica, han impulsado mutaciones sobre los modos de existencia, principalmente en relación con sus ritmos, velocidades, intensidades y modos de circulación, provocando a su vez un impacto en las formas en que se entreteje el pensamiento y los modos de producción de saberes asociados a este.
En otras palabras, asistimos a una transformación histórica que parece obligar al pensamiento a desplazarse desde el límite del paradigma de la “crisis”[141], aproximándose vertiginosamente hacia el de la “devastación” (HARAWAY, 2016) o el de la “catástrofe” (STENGERS, 2017), atestiguando una urgencia referida ya no solo a la serie de acontecimientos particulares que ponen en vilo la continuidad de la vida humana como la conocemos, sino -y sobre todo- constituyendo la manifestación material de una disyunción entre el tiempo hegemónico de la historia y las múltiples temporalidades que subsumen lo humano en una situación de indistinción con lo no humano. Ello, en la línea de lo que plantean Danowsky y Viveiros de Castro (2019, p. 21) al retomar la idea de “ruina” vinculada a la de “fin del mundo”, en relación con una “[…] desarticulación de los marcos espaciotemporales de la historia” y en virtud de una “[…] intensificación de los cambios en el macroambiente terrestre.” (Danowsky; Viveiros de Castro, 2019, p. 23).
Es frente a este diagnóstico situacional que el presente trabajo se propone interrogar la posición que ocupa la filosofía dentro de la escena contemporánea. En otras palabras, busca abrir una problematización respecto a si la filosofía, entendida como un conjunto de saberes y reflexiones vinculados a cuestiones que afectan la vida humana en sus diversas expresiones, es capaz – o debería serlo – de responder a las demandas y exigencias que le impone este presente.
Afirmamos preliminarmente que la filosofía, entendida como un conjunto de saberes y herramientas conceptuales críticas capaces de comprender, diagnosticar e interpretar la realidad, se encuentra en una situación de parálisis frente a las complejidades y desafíos que impone el paisaje contemporáneo. Frente a la constatación de que la mayoría de los espacios de producción filosófica en la actualidad se encuentran sometidos a los espacios, estándares y ritmos de producción de conocimiento eminentemente academicistas[142], se hace evidente que este gesto de distanciamiento del mundo ha decantado en una situación de impotencia de la disciplina para hacerse cargo de las problemáticas contemporáneas derivadas de la materialización de los fenómenos socio-políticos y económicos en el contexto del Capitalismo Mundial Integrado (GUATTARI, 2004).
En contraste con este diagnóstico, nos interesa proponer una argumentación tendiente a recomprender la filosofía desde la perspectiva de una pragmática del pensamiento, es decir, atendiendo a las potencias prácticas que esta tiene, vinculándola con una dimensión de creación e intervención del y en el presente. Este relevo de una filosofía enfocada en sus dimensiones empírico-prácticas busca situarla desde una posición afirmativa, es decir, como una analítica que avanza a partir de un desgarro de los enclaves discursivos tradicionales que la sostienen mediante la problematización del ordenamiento de sus disposiciones de enunciación tanto semióticas como materiales. Una analítica cuyas disposiciones, “[…] no implican componentes semiológicos significacionales […] no tienen componentes subjetivos […] carecen de componentes concienciales.” (GUATTARI, 2000, p. 32).
En otros términos, lo que moviliza el presente escrito es la inquietud respecto a la posibilidad de enunciar un reposicionamiento filosófico que opere como impulso transformador de los sentidos habituales asociados a la producción disciplinar; producción enfocada en la reflexión, interpretación y comunicación de una realidad preexistente (DELEUZE; GUATTARI, 1997), instituida a partir de la conocida división entre teoría y práctica[143]. Este desafío supone relevar el rol creador e implicante que la filosofía tiene en la producción de la realidad que intenta interrogar.
En esta medida, proponemos el concepto de práctica filosófica, en las inmediaciones de un pensamiento cartográfico que atiende a los entrelazamientos semiótico-materiales que forman parte de las estrategias de producción filosófica, abriéndose necesariamente hacia otras gramáticas y prácticas que exceden sus límites disciplinares.[144] Ello, no solo en cuanto a los enclaves epistemológicos y categorías conceptuales de análisis a las que se suelen atribuir los aportes filosóficos – las llamadas “epistemologías de las ciencias” –, sino relevando una función performativa propia de la filosofía al entenderla como un medio abierto, es decir, como una práctica fundada en trayectorias conectivas a la luz de su función epistémico-política (MOSCOSO-FLORES; AZÓCAR, 2019).
Es desde esta función que proponemos la posibilidad de esbozar una filosofía abierta y porosa hacia zonas de contacto con y entre otros espacios de saber, tanto institucionalizados como no institucionalizados, disciplinares y no disciplinares. En torno a esta indagatoria resulta sugerente la posibilidad de crear artefactos filosóficos[145] y conceptuales (LANDAETA, 2020) que operen como engranajes catalizadores de potencias afectivas sensibles, posibles de vislumbrarse alrededor de enclaves metodológicos generadores de espacios de conjunción disyuntiva. Afirmamos, preliminarmente, que la “practicidad” de la práctica a la que nos referimos se vincula a los movimientos menores que la filosofía habilita; son estos movimientos los que, en simultáneo, la actualizan y transforman en razón de sus contactos con otros espacios de saber.[146] Asumimos que el enclave para lograr pesquisar estas trayectorias de y desde la filosofía ha de ser eminentemente afectivo y atento a las multiplicidades que puedan surigir de los movimientos que la práctica habilita.
Este giro pragmático de la filosofía desde sus potencias sensibles se torna refractario a la racionalidad que se organiza el conocimiento en torno a modelos de valorización centrados en principios funcionales de utilidad y que, intuimos, han decantado en la exclusión de otros modos de saber incapaces de adaptarse a modelos de medición y valorización de resultados centrados en esquemas de verificación predefinidos.[147] Por ende, proponemos que esta gestualidad filosófica se encuentra vinculada inexorablemente a determinadas prácticas de resistencia, asumiendo que dicha disposición forma parte consustancial de las mismas, logrando así, como propone Nietzsche (2013), una aproximación a un saber útil para la vida.
Para dar cuenta de lo planteado, proponemos dos nodos que justifican la fundamentación de la presente propuesta. Dichos nodos se concentran alrededor de trayectorias que transitan entre prácticas, materialidades y afectos. Es en las intersecciones de estas nociones se augura la noción de práctica filosófica que pretendemos esbozar, visibilizando a partir de estos encuentros posibles enclaves metodológicos.
1 PRIMERA INTERSECCIÓN: NODO CONCEPTUAL PRÁCTICAS-MATERIALISMOS
No cabe duda de que, dentro del devenir histórico de la filosofía occidental, fue el materialismo histórico el sistema de pensamiento que abrió las puertas para una recomposición filosófica de la relación existente entre teoría y práctica. Gracias a la problematización crítica respecto al vínculo existente entre filosofía y realidad abierta por Hegel[148], fue Marx quien advirtió sobre la necesidad de redirigir la mirada hacia la construcción de la realidad social material, asumiéndola como el resultado de un vínculo inextricable entre hombre y naturaleza. Esto le habría servido para tomar distancia de aquellos antiguos materialismos que proponían la materia del lado de los objetos, dejándola en una posición pasiva y, al mismo tiempo, desconociendo el carácter activo del hombre respecto de la producción de sus condiciones materiales, tal y como lo consigna el pensador alemán el año 1845 en la tesis I y XI sobre Feuerbach (MARX, 2010).
Es a partir de este momento que la noción de práctica – entendida como actividad a la vez social y material – cobra un valor sin precedentes, especialmente gracias a la distinción fundamental entre “práctica” – ordinaria, orientada a la utilidad – y “praxis”, vinculada a la cuestión revolucionaria, es decir, a la superación de la conciencia ingenua como condición para alcanzar el sentido real, objetivo y verdadero de lo humano en función de su carácter transformador y revolucionario:
[…] la filosofía habría de ser por ello, ante todo, crítica de la realidad para asegurar esa transformación. Ahora bien, si su crítica no lograba transformar la realidad, era preciso establecer otro tipo de vinculación entre filosofía y realidad […] para cambiar esta, la filosofía tiene que realizarse. (SÁNCHEZ-VÁSQUEZ, 2003, p. 134-135).
Aún cuando es indudable que los aportes del marxismo han constituido un avance histórico respecto al lugar que ocupa la materialidad como nodo que pone la teoría al servicio de esta praxis filosófica, dicha recomposición parece haberse mantenido anclada a un principio de verdad metafísico que presupone la potencia en torno a la correspondencia de dicha unidad. Y, en tal sentido, este sistema se nos presenta como problemático considerando el rol que cumple el trabajo como engranaje articulador de la mediación presente en la dialéctica hombre-naturaleza[149], haciendo de la práctica el predicado de un sujeto de la historia – el proletariado – que, sabemos, es quien se encuentra llamado a tomar conciencia de sí mismo. En esta medida, nos queda abierta la interrogante respecto a cómo se configura y cuáles son las especificidades de este sujeto de la historia; sujeto cuya materialidad práctica se sustenta teóricamente en una posición de exterioridad respecto del capital. Esto podría comprenderse a la luz del ideal de cientificidad totalizador presente en el materialismo dialéctico marxista. Adicionalmente, habría en este posicionamiento dialéctico una consideración del capital como “sujeto automático”, que deja sin atender el lugar que ocupan las resistencias sensibles de los cuerpos y sus especificidades como parte integrante de los procesos de lucha política al interior del capitalismo.
A raíz de lo anterior, desplazar la discusión conceptual sobre las materialidades hacia los aportes de algunas corrientes de estudio recientemente desarrolladas y reconocidas cercanas a los neomaterialismos[150] puede resultar de especial utilidad para nuestro propósito (MOSCOSO-FLORES; VIU, 2020). La apuesta fundamental de estos desarrollos conceptuales diversos reside en interrogar lo humano considerando la cuestión del antropoceno, desde una perspectiva que se abre a las posibles imbricaciones con elementos que han quedado tradicionalmente marginados del campo de estudios de la filosofía por considerarse secundarios o subsidiarios a la experiencia humana. Esta serie de investigaciones interdisciplinarias se han ocupado de desarrollar aparatos conceptuales orientados a reformular las bases epistemológicas de los modelos tradicionales de construcción de saberes, abriendo así la escena a una ontología crítica que permita recomprender los componentes éticos, estéticos y políticos propios de la diversidad de fenómenos que componen la vida social contemporánea en virtud de sus singularidades y multiplicidades.
En esencia, estas propuestas apuestan por transformarse en una alternativa a las insuficiencias mostradas por las disciplinas humanistas para responder a las profundas crisis que afectan el presente. Y, aún cuando se torna difícil situar un campo de estudios homogéneo en torno a estas preocupaciones por reproblematizar lo material, dejamos consignadas algunas características básicas que emergen en ellas como fondo común. En primer lugar, resaltamos la fuerza que han cobrado las aproximaciones interdisciplinares referidas a la revalorización y reconceptualización de lo material. Para estas, la concepción de la materia –o materialización- se encuentra vinculada a una condición posthumana que, si bien no elimina la pregunta por el lugar que ocupa la agencia humana en los fenómenos, sí la resitúa dentro de una perspectiva que reconoce la agencialidad de las cosas en términos de sus condiciones procedimentales, complejas y plurales. Lo anterior implica aproximarse críticamente a los principios ontológicos que han sostenido por siglos la distinción y jerarquización entre lo humano y lo no humano (MIDGLEY 2000). Desde esta perspectiva se reconoce una condición activa, vibrátil y fluida de la materia (BENNETT, 2010), cuya particularidad reside en las capacidades que esta tiene de ensamblarse dentro de determinados escenarios situados considerando sus cruces contingentes.
En segundo lugar, parece relevante destacar dentro de este ámbito de estudios sobre las materialidades la inserción de un fuerte cuestionamiento a los modos de teorización y tratamiento de conceptos monumentales, tales como los de “Naturaleza”, “Cultura” y “Sociedad”. Frente a la tradición científico-social de corte positivista, las perspectivas neomateriales han promovido una serie de engranajes conceptuales orientados a estudiar las formas en que confluyen y se generan interacciones entre agentes sociales en contextos históricos situados. En esta línea encontramos, por ejemplo, los trabajos de teóricos como Latour (2005), quien a partir de la construcción de su teoría del actor-red (TAR) acuña la noción de ensamblaje para dar cuenta de cómo las acciones que refieren a lo social nunca son simples ni lineales sino que implican la influencia de múltiples agentes activos y factores, produciendo de este modo localizaciones, dislocaciones y posibilidades múltiples de asociatividad. En una línea similar encontramos el trabajo de DeLanda (2016), quien ha sistematizado una ontología de las formas sociales que prescinde o, más bien, tensiona las concepciones que tenemos de ellas, mostrando cómo los estudios científico-sociales se han erigido sobre una concepción organísmica que agrupa lo social a través de la metáfora funcionalista de un cuerpo unido constituido por partes organizadas por elementos que explican lo social desde un ideario integrado, excluyendo de estas formas de organización la dimensión conflictiva inherente a sus modos de composición.
Otra noción clave asociada a este nodo crítico es la de “entrelazamientos” [entanglements], vinculada a una metodología que analiza los lazos entre lo social y lo natural desde la perspectiva de su inseparabilidad y afección mutua, es decir, desde una “exterioridad del interior.” (BARAD, 2007, p. 71). Esta visión nos parece del todo pertinente, puesto que posibilita articular una analítica de los vasos comunicantes entre sistemas de saberes que tienden tradicionalmente a situarse como excluyentes, ya no desde un esquema analógico-semiológico sino en términos de sus diferenciales. Sería un método difractivo centrado en patrones de diferencia, asunto que la pone en las cercanías del modo en que Haraway (1997) comprende el término, así como también en las inmediaciones de la noción de performatividad que propone Butler (2017).
2 SEGUNDA INTERSECCIÓN: NODO METODOLÓGICO MATERIALISMOS-AFECTOS
La posibilidad de esbozar una práctica filosófica como la que proponemos parece requerir de un enclave metodológico que habilite una aproximación a fenómenos situados, por medio de un trabajo de activación de las potencias sensibles que emerjan en los límites que la filosofía posibilita y proyectándola hacia un registro conectivo como condición de posibilidad para una labor de sistematización que permita posicionarse activamente frente a los desafíos que impone nuestro presente. Desafíos que, como ya hemos dicho, no serían ni exteriores ni ajenos a la disciplina filosófica sino inherentes a ella, en especial si consideramos los propios procesos históricos de transformación a los que esta se ha visto afecta. Esto supone visibilizar las dificultades asociadas los encuadres epistémicos contemporáneos centrados en la primacía de la agencia humana, particularmente aquellos concentrados en torno a un marco conceptual, metodológico y ético-político que dispone y define la materia en una relación de subordinación frente a las capacidades simbólico-lingüísticas.
Entendemos que la crítica de la cosmovisión dualista a la base de la historia de la filosofía no es nueva, encontrándose ya presente en pensadores reconocidos bajo la corriente de pensamiento posestructuralista. Pensadores tales como Judith Butler, Michel Foucault, Jacques Derrida, Félix Guattari y Gilles Deleuze, entre otros, han surgido como intercesores que han permitido reactualizar el debate respecto del lugar que la dimensión material ocupa para la comprensión del mundo, aun cuando ellos estén habitualmente vinculados al “giro lingüístico”. En otras palabras, planteamos que los aportes de estos pensadores mantienen vigente la necesaria discusión alrededor del binomio material-inmaterial, abriendo así un campo de análisis a otras formas de materialidad que no remiten exclusivamente a una condición “sólida” o “dada” (BEETZ, 2016); o, como plantea Grosz (2017), permiten interrogar a las corrientes materialistas sobre las dificultades inherentes que supone articular un materialismo con conceptos, procesos y marcos referenciales cuya proveniencia es otra que la materialidad.
Dicho desafío supone abrir el diálogo con otros campos, permitiendo reposicionar metodológicamente el lugar que cobran las condiciones materiales alrededor de los procesos de construcción de subjetividad. Esto implica centrarse no solo en la materialidad de los objetos, sino en las condiciones de materialización que se producen entre las materialidades y los procesos de significación. Ello, en consonancia con la definición de sujeto que propone Balibar (2007), quien lo define como un efecto de condiciones materiales, relaciones, procesos y prácticas. Este gesto es especialmente claro en el caso de pensadoras como Coole y Frost (2010) y Braidotti (2013), quienes han retomado el trazado legado por la matriz deleuziana[151] para poner en funcionamiento analíticas que comprenden los cuerpos como superficies de inscripción de múltiples intensidades afectivas y temporalidades en constante tensión e interacción, asunto que les permite aproximarse a una visión no esencialista ni dualista de las materialidades y, al mismo tiempo, eludir los problemas asociados a concepciones reduccionistas propias de determinadas ontologías materialistas[152], a saber, aquellas que han dejado sin atender los movimientos y trayectorias que se encuentran a la base de los procesos composicionales de las cosas. Esta condición senso-afectiva, consustancial a la experiencia o, dicho de otro modo, a la condición de afectación que habilita una relectura del lugar que ocupan los cuerpos, se encuentra anclada en la lectura que realiza Deleuze de Spinoza[153]. Desde ahí se desprende que la capacidad de afectar y ser afectado tiene que ver con la posibilidad de aproximarse al pensamiento de una forma alternativa, intensiva, desplazando así el énfasis hacia dimensiones relacionales, abiertas, procesuales en lo que refiere a la construcción de la experiencia.
En otros términos, desde este enclave los afectos han de ser sopesados en términos de intensidades que atraviesan la materialidad, tanto de los cuerpos humanos como no humanos (GRUSIN, 2015). Esto, a su vez, supone reconsiderar las formas en que los cuerpos se afectan, ya no solo en términos de fuerzas direccionales o causales entendidas desde una analítica del poder tradicional sino en torno a fuerzas pluridimensionales que atraviesan los cuerpos, articulándose alrededor de formas de “contagio afectivo” (HARAWAY, 2016; VIU, 2016), contaminación e inspiración (BENNETT; CONNOLLY, 2002; IVAKHIV, 2013).
Este anudamiento entre materialidades y afectos posibilita un replanteamiento sobre el asunto de un pensamiento proyectado hacia sus disposiciones prácticas. Un pensamiento en el medio – par le milieu – como señala Stengers (2005) leyendo a Deleuze, asumiendo la doble acepción del término: por una parte, atendiendo a sus desplazamientos y movimientos en torno a un límite; límite que no se piensa, como sugiere Lapoujade (2016, p. 307), sino que se enfrenta o, más bien, “[…] solo se piensa si se lo enfrenta.” En este sentido, el problema del límite para el pensar nos retrotrae una vez más al problema epistémico y político al que hemos referido, toda vez que lo que parece estar en juego es la puesta en obra de una práctica de resistencia del pensamiento frente al Todo totalizador que imponen las dimensiones jurídico-normativas – quid juris – de los dispositivos o máquinas de captura discursivas. Y, en esta medida, el límite al que se enfrenta el pensamiento como resistencia no ha de proponerse como franqueándose absolutamente, “[…] no es abolido puesto que es por la distancia misma de su no-relación que los dispares comunican de ahora en más” (2016, p. 311), sino más bien en relación con sus mutaciones, cambiando de naturaleza a la luz de un ejercicio de movimientos disyuntivos. Por otra parte, atendemos a la cuestión del medio como “hábitat”, asunto que supone un pensamiento etho-ecológico o ecosófico (GUATTARI, 2017) posible de inscribirse alrededor de en-tornos singulares, contingentes y múltiples que componen los paisajes planetarios que emergen como resultado del conjunto de relaciones que ahí acontecen.
De este modo, la cuestión de estos modos otros de pensar suponen reposicionar la filosofía en correspondencia con un sistema de prácticas materiales y que permiten eludir las totalizaciones que no hacen más que reducir sus potencias sensibles. Retomando la inquietud planteada en el apartado introductorio a la luz de esto último, proponemos entonces comprender la práctica filosófica desde la perspectiva de una tecnología de la co-pertenencia (STENGERS, 2005). Ello implica, metodológicamente, reemplazar la relación de correspondencias casuales en sus diversas variantes (teórico-prácticas, o bien inter-disciplinares), por una fundada en el reconocimiento de modos heterogéneos, es decir, de divergencias compuestas por aquellos fragmentos que emergen como resultado de actos de “derrape” del pensamiento[154], habilitando de este modo una analítica de los encuentros disyuntivos que abra nuevas derivas comunicativas. Comunicación entendida ya no desde una perspectiva puramente lingüística, sino como espacios singulares de contacto expresados en las materialidades que constituyen estos rituales, haciendo que el lenguaje representativo se estremezca frente a su propio extrañamiento.
De esta manera, la práctica filosófica que anunciamos no podría concebirse como un posicionamiento con propiedades mediadoras; sí, en cambio, se la puede concebir como operando una función de inmediación, es decir, como fuerza de transformación sin significado, un potencial sin posibilidades de cuantificación. Potencial que, “[…] insiste en una relacionalidad ecológica que, siguiendo los postulados del materialismo vitalista y del realismo inmanentista, aspira, entre otras cosas, a hacernos más sensibles a la presencia de afectos impersonales circulando entre seres.” (BORDELEAU, 2019, p. 162. Nuestra traducción.). Esta noción de inmediación compone, a su vez, un triedro en torno al pensamiento, las prácticas y las formas de construcción de experiencia. Se trata entonces de una experiencia que se construye a partir de la serie de entidades que interactúan cualitativamente a través de una fuerza implicativa que aun no distingue entre humano y no humano, entre sujeto y objeto, “[…] componiendo un campo único de acción mutua, de co-fusión y cambios contrastantes: una co[n]moción.” (MASSUMI; MANNING, 2014, p. 4. Nuestra traducción.). Lo dicho encuentra afinidad con la propuesta de Lazzarato (2018) quien, leyendo a Gabriel Tarde, acuña la noción de “acoplamientos fecundos” como asociaciones en que lo universal queda supeditado a “[…] la producción de singularidades individuales y colectivas.” (Lazzarato, 2018, p. 203).
CONCLUSIONES
La práctica filosófica, tal y como la hemos esbozado hasta aquí, constituye una propuesta que se erige como una alternativa frente a los modos en que la filosofía ha ido estableciéndose históricamente como espacio discursivo disciplinar eminentemente orientado a la reflexión, interpretación y comunicación. En esta medida, y asumiendo la urgencia que propone nuestro presente histórico en relación con la serie de crisis y catástrofes que nos aquejan, parece viable asumir un desafío epistémico y político vinculado a la necesidad de visibilizar las potencias prácticas de una filosofía inexorablemente conectada a las condiciones de enunciación propias de su época.
Siguiendo la matriz de pensamiento neomaterialista y las influencias provenientes de la filosofía procesual y vitalista, sostenemos la posibilidad de esbozar una filosofía bajo un esquema metodológico de experimentación íntimamente ligado a elementos que releven el carácter eminentemente pragmático, relacional y conectivo, es decir, una(s) filosofía(s) abierta(s) a otros ámbitos disciplinares y no disciplinares, institucionales y no institucionales, mostrando así su potencia de creación y de intervención frente a fenómenos propios del mundo de la vida.
Esta propuesta implica, por una parte, repensar críticamente los modelos de pensamiento lineal centrados en disposiciones exclusivamente humanas, haciendo hincapié en las dimensiones conectivas que visibilizan los modos y las intensidades en juego en las formas de experiencia sensible y afectiva que se producen entre elementos múltiples – siempre singulares – y que se encuentran en constante devenir y en permanente transformación. Por otra parte, retornando a Nietzsche, supone reconocer que existe una relación estrecha entre pensamiento y vida que se ha perdido en el tránsito histórico de la filosofía occidental y que es preciso recuperar, asunto que requiere cuestionar críticamente los modelos hegemónicos bajo los que se enmarca la relación entre teoría y práctica. Lo anterior puede situarse en las cercanías de lo que Deleuze y Guattari anunciaron como método cartográfico, entendiendo por ello la “[…] invención de estrategias para la constitución de nuevos territorios, nuevos espacios de vida y de afecto, una búsqueda de salidas hacia afuera de los territorios sin salida.” (ROLNIK, 2006, p. 24).
SKETCHES FOR THE CREATION OF A NOTION OF “PHILOSOPHICAL PRACTICE”
Abstract. This text seeks to introduce a question related to the place that philosophy occupies within the contemporary scene, thus opening a problematization regarding whether it can respond to the demands imposed on it by the present. In this regard, we seek to rethink the notion of philosophy from a standpoint that rescues its practical, material, and affective dimensions, making visible the transformative impulse that it can have with respect to the usual meanings associated with disciplinary production linked to the traditional division between theory and practice, thus opening it to a dimension that recognizes the implicating (creative, interventional) role that philosophy has in the production of reality.
Keywords. Philosophical practice. Materialisms. Methodology. Affects. Creation.
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Recibido: 08/4/2022
Aceptado: 13/6/2022
Referencia del artículo comentado: Moscoso-Flores, Pedro E. Esbozos para la creación de un concepto de “práctica filosófica”. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 213 - 230, 2023.
Nuestra actualidad se encuentra marcada por los signos de la catástrofe y la devastación, y es menester superar el relato apocalíptico para leer el amplio espectro de la debacle presente. Esta es la premisa del artículo, “Esbozos para la creación de un concepto de ‘práctica filosófica”, escrito por Moscoso-Flores (2022) en sintonía con los diagnósticos y las propuestas de intervención de autoras como Donna Haraway e Isabel Stengers.
Que la catástrofe se imponga como la condición de nuestro presente, implica para la filosofía contemporánea dos cosas íntimamente ligadas: por un lado, renunciar al modelo de pensamiento de la crisis y, con ello, a la identificación que existe entre conocer y pensar según las categorías heredadas del idealismo alemán; en segundo lugar, asumir de manera irrenunciable la implicación de la filosofía en su reflexión, lo cual conduce a derribar las fronteras de teoría y práctica, tejidas con tanto espero desde los primeros balbuceos de la filosofía occidental en Grecia y reforzada desde los albores de la modernidad.
Para el ejercicio del pensar filosófico, son múltiples las repercusiones del problema que aborda con acierto este artículo. Quisiera destacar las que me parecen, en lo personal, las más importantes: en colmar las distancias entre teoría y práctica se nos va no solo el pensamiento de nuestra época, sino la propia vida, vida que se asume (o debiera asumirse) desde la precariedad, desde la indigencia, desde la falta de condiciones, desde la explotación, desde la pobreza y desde la violencia que campa en pleno siglo XXI, como lo han puesto de relieve los autores que han ahondado en el problema del Antropoceno o del Capitaloceno. Paralelamente, es importante destacar que la catástrofe no impone a la filosofía solo un cambio de paradigma, sino la necesidad de asumir otra temporalidad: la de la urgencia. Pensar desde la urgencia, implica abandonar la comodidad del aislamiento que inauguran como locus filosófico las Meditaciones metafísicas. Con lo cual, la revuelta, la guerra y la devastación que se cierne sobre el planeta nos ponen en movimiento para pensar colectivamente – más allá de todo cinismo y obviando el tono apocalíptico – lo que queda por hacer.
Vincularnos con la precariedad desde la urgencia implica poner en juego, ensayar estrategias –donde se anudan lo discursivo y no discursivo– que han de ser capaces de romper la parálisis actual de la filosofía, encerrada en las cuatro paredes de la academia, que cómodamente se parapeta en la universidad sin intentar cuestionar (ni menos confrontar activamente), las condiciones que impone a la ciencia y a la subjetividad el Capitalismo Mundial Integrado.
Una filosofía en clave pragmática, como la que propone Moscoso-Flores, es refractaria no solo del racionalismo, que pone al sujeto, en su soledad, en un más allá del mundo, sino también de la pretendida -y valorada- neutralidad del conocimiento. En efecto, a la precariedad desde la urgencia se responde con gestos que trasuntan la necesidad de resistir al presente y, por tanto, de cocrear un saber útil para la vida entre prácticas y saberes que se sitúan en medio de la indigencia del (in)mundo.
Pues bien, la elaboración de una pragmática en clave de práctica filosófica establece filiaciones con dos importantes líneas actuales del pensamiento, que proveen a este ejercicio de un repertorio conceptual arraigado en prácticas y de un enclave metodológico anclado en el cuerpo.
Con respecto al primer eje, en el nodo conceptual de prácticas-materialismos, nos encaminamos a través de una discusión que ha sabido romper con las fronteras disciplinares, para poner el acento en la capacidad o, mejor dicho, en la potencia transformadora y revolucionaria de la filosofía. Asumiendo, a la base, el lugar de la filosofía de Marx en esta conquista del materialismo filosófico, el artículo se detiene en el examen de la contribución de los neomaterialismos en su confrontación con el Antropoceno, destacando la relevancia que han tenido al “reformular las bases epistemológicas de los modelos tradicionales de construcción de saberes, abriendo así la escena a una ontología crítica que permita recomprender los componentes éticos, estéticos y políticos propios de la diversidad de fenómenos que componen la vida social contemporánea en virtud de sus singularidades y multiplicidades”. Efectivamente, los neomaterialismos han sido clave en la labor de repensar la ciencia y la “textura de la realidad”, soldando el vínculo del mundo humano y no-humano, desde la perspectiva del cuidado.
En relación con segundo eje, nodo metodológico materialismos-afectos, Moscoso- Flores se sumerge en el ‘giro afectivo’ del pensamiento, por una clara razón. La ‘teoría de los afectos’ spinoziana, y la lectura deleuziana de esta, deviene en ‘metodología de los afectos’, dado que permite replantearse la relación e imbricación de los cuerpos en el mundo desde el ‘contagio afectivo’ que implica vivir juntos. Sin embargo, esta imbricación no se agota en el nexo que describe las relaciones humanas. Al contrario, busca sobrepasar lo humano en virtud de articular una ecología ampliada, capaz de establecer vecindades entre distintas especies.
En este sentido, estos Esbozos dan cuenta de la necesidad de asumir un desafío que es al mismo tiempo epistémico y político, cuando se trata de contribuir a crear nuevas formas inmanentes de existencia, donde la filosofía no asume una posición de vanguardia o guía, sino de ejercicio táctico que busca contribuir a desplegar las posibilidades futuras aún plegadas en el presente.
Referencia
Moscoso-Flores, Pedro E. Esbozos para la creación de un concepto de “práctica filosófica”. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 213 - 230, 2023.
Recibido: 23/10/2022
Acepto: 30/10/2022
Abstract: Throughout the history of Christianity in Japan, tension and conflict have persisted between the Jesuits and Franciscans. At face value, this appears to be due to their different readings of the policies of Rome and varied approaches to apostolic work. However, upon closer examination, politics also played an important role. Behind the two orders were two rival maritime powers – Portugal and Spain, whose fellow countrymen’s feelings of national sentiment may occasionally have outweighed their interests in the mission in Japan. In an attempt to keep the peace, Rome had issued the Patronatus missionum. However, it intensified the conflict and rendered the situation into an irreparable state of disarray. This eventually caused heavy losses to the whole mission. For a better understanding, in this thesis I summarize the following arguments between the Jesuits and Franciscans. The first, and most salient, argument pertains to commerce; the second pertains to the separation of parishes; the third to their apostolic approaches, and the final argument is on their practical policies. It is also worth mentioning that the relationship between the Jesuits and the Franciscans was not eased by the 26-person Nagasaki martyrdom incident. Indeed, this was a heavy loss.
Keywords: The Christian mission in Japan. Jesuit. Franciscan. Portugal. Spain.
INTRODUCTION
Two of the most influential Christian orders in ancient Japan were the Society of Jesus (Jesuits) and the Order of Saint Francis. The Jesuit Order was founded by the Spanish nobleman, Ignatius de Loyola, a vigorous opponent of the Protestant Reformation. Ignatius and six other Christians gathered in 1534 and professed vows of poverty, chastity, and obedience to the Pope. They used IHS (Iesus Hominum Salvator) as their monogram. The Pope approved this new order in 1540. In order to revitalize the withering Roman Catholicism with new blood, the Jesuits set out for Japan, an unevangelized land. The pioneer of the Japanese mission was Francis Xavier, who was one of Ignatius’ followers, and one of the seven co-founders of the Jesuits. Prior to the Jesuits, another Catholic order, the Franciscans (Friars), was founded in 1210, by Saint Francis of Assisi in Italy. The Friars were barefoot mendicants, clad in rough garments. They professed vows of poverty, obedience, and innocence (Shinmura, 1941, p. 10). Although both orders were Catholic, they had more differences than similarities. For example, they read the decrees and policies of Rome differently, based on their own interests, and had varied approaches to apostolic work. Tension developed due to the complex connections between the two rival Catholic kingdoms, as did intense feelings of national sentiment and departmentalism. Conflict between them persisted, despite their solidarity in the face of prosecution. To maintain the peace, the Pope issued the Patronatus missionum, but unfortunately, both groups read it for their own purposes. This led to even more chaos and disaster.
1 ORIGIN OF THE TENSION AND CONFLICT
During the Age of Exploration, tension and conflict proliferated between the two neighboring maritime powers. To keep the peace, Pope Alexander VI decided to redefine their spheres of political interest, and established a line known as the Papal Meridian from the Azores Islands to the North Pole in 1493. This limited Portugal to the East and Spain to the West. Under the guarantee of the Patronatus Missionum[157] (Zhang et al., 2001, p. 144-145), the king of Portugal had the privilege to send missionaries to and assign bishops in Africa, East India, and other colonies of Portugal. Moreover, each European missionary sent to Asia had to sail to Goa first via a Portuguese vessel, and receive the Portuguese king’s approval. Then they would await assignment from the archbishop of Goa, who was appointed by the king. For a long time, the Portuguese king had held the orient parish in hand. However, under pressure from other groups, the Pope decided to undermine the Portuguese king’s Patronatus Missionum, and separated some rights from the Jesuits. He did this with no regard for their dissatisfaction. So as to secure direct control over the global mission, Rome established the Congregation of Propagation in 1622 and took back the privileges given to the Jesuits. In 1659, Rome also implemented a system called Vicar Apostolic in the Far East to eliminate the Patronatus Missionum, in which Rome established the Tokyo, Cochin and Nanking Parishes governed by the Vicar Apostolic, appointed directly by the Pope. With this, the Jesuits’ influence and power in the Far East received a heavy blow, while the Franciscans and Dominicans were given access to the Far East. This is where the conflict ensued.
Unfortunately, Japan was located at the centre of these conflicts. The consultas were consultative meetings with senior missionaries convened by Valignano Alessandro, the Jesuit Inspector of the East Indies. During his first visit to Japan, one question discussed at length had been the desirability of other religious orders entering and working alongside the Jesuits.[158] The reasons in favor of cooperating with other Catholic missionaries advanced in the consultas were apparent. By that time, Japan had been evangelized for twenty years, but the Society of Jesus was still the only religious order operating in the remote island country. Several missionaries argued that a missionaries’ plurality was in itself desirable, enabling the various orders to concentrate on different aspects of the apostolate; in this way, their labors, at least in theory, would be complementary, and combine to constitute a united whole. Some of the Jesuits felt that the time had come for experimentation along these lines.[159] Furthermore, there was a missionaries’ shortage in Japan. In 1580, there were only 59 Jesuits in Japan. Ten years later, this number had increased to 140, two thirds of whom were unordained and therefore unable to celebrate mass or administer the sacraments. There were scarcely enough priests to tend to the baptized Christians’ needs, let alone concentrate on the work of converting non-Christians. As Valignano observed: No matter how many missionaries were sent to Japan, it was not enough.[160] Vice-Provincial Coelho substantiated this statement with concrete figures. In 1581, he noted in writing. There are 6,000 Catholics in Ōmura alone, and the Jesuits only sent four priests, making it impossible to take care of all believers. Four priests listen to the confessions of up to one-sixth of the faithful a year, and most do not receive the gospel until their deaths. Moreover, due to the shortage of missionaries and the inability to regularly tour Catholic villages, some Japanese people have difficulty converting to Catholicism, and do not understand Catholic doctrine at all.[161]
Against these cogent reasons was raised the objection that the introduction of other orders, with their disparate habits and customs, might confuse the Japanese faithful, leading to an undesirable loss of uniformity in the apostolate. Furthermore, experience in other countries, especially in India, showed that conflict and rivalry was practically inevitable among religious orders. Moreover, in Japan there was neither a bishop, nor a secular arm to which one could appeal to settle such disedifying squabbles. Finally, it was argued that inexperienced missionaries were bound to repeat the same mistakes the Jesuits had made at the beginning of their work in Japan, and that the advent of other orders would only increase Japanese suspicion that the foreign missionaries had come to pave the way for European colonial expansion.[162] Valignano left nobody in any doubt that his sympathies lay with excluding other missionaries from Japan. Thus, it became an article of official Jesuit policy to exclude other orders from the country (Cooper, 1991, p. 97).
The problem was aggravated, and in fact largely caused, by intense national sentiment. The treaties of Tordesillas and Saragossa had demarcated the Portuguese and Spanish spheres of political and commercial interest in Asia. This had been a moderately successful attempt to prevent disputes between the two great colonial and maritime powers. The Jesuits, including Rodrigues, had no doubt that Japan fell within the Portuguese zone of influence, and that the Spanish friars from the Philippines should stay out of the country.[163] Even though Philip II’s accession to the Portuguese throne in 1580 united the two nations under one ruler, the rivalry and antipathy persisted.[164]
2 WHAT CAUSED THE TENSION AND CONFLICT?
The most inciting consideration that caused the rivalry was the problem of commerce. Although the two countries had the same ruler (Philip II of Spain/Philip I of Portugal),[165] their colonial interests remained separate. The Portuguese enjoyed a virtual monopoly over European commerce with Japan, and they were determined exclude Spanish trade interests from the Philippines. This was because the prosperity of the Portuguese community in Macau depended on trade with Japan.
Complicating the problem of commerce was another problem—the separation of the parish. In an attempt to keep the peace, Gregory XIII, who had received the young Kyushu ambassadors at Rome, issued the papal brief Ex pastorali officio on January 28, 1585. Under pain of ecclesiastical censure, it forbade anyone other than Jesuits from entering and working in Japan (Cooper, 1991, p. 98). King Philip duly instructed the viceroy of India, Duarte de Meneses, to ensure that the papal directive was obeyed. Accordingly, in 1586, Menses ordered Domingos Monteiro, that year’s captain-major, to prevent any friar from entering Japan; if he were to find any already in the country, he was to deport him to Macau. With the publication of the brief, the matter seemed beyond dispute: the Japanese mission was reserved for the Jesuits. But at the end of 1586, Gregory’s successor, Sixtus V, issued the brief Dum ad uberes fructus, in which he raised the status of the Franciscan mission in the Philippines, and granted its Spanish Superior permission to found other houses in the Philippines “and in other lands and places of the above-mentioned Indies and kingdoms of China”.[166] There was obvious overlap between the scope of the two papal documents, and even today, canon lawyers argue over its interpretation.
The situation in Japan was complicated by the fact that the Jesuits were not united in their opposition to the Franciscans. In particular, the Spanish Jesuits faced the difficult conflict of loyalty between the Order and their fellow countrymen in the Philippines. Rightly or wrongly, some of the Portuguese Jesuits suspected that the Spanish vice-provincial Pedro Gomez had sympathy for the friars. Although not named by the friars as their friend or ally, Rodrigues’ professor of theology, the Spaniard Pedro de la Cruz, was an ardent supporter of his countrymen; he argued for Jesuit Superiors to allow the Franciscans to enter Japan, and even wrote to Cardinal Robert Bellarmine in Rome about the issue, asking for his intervention. In fact, some non-Spanish Jesuits in Japan were equally concerned about the ban, and doubted the wisdom of the official policy of the Order. Both the Portuguese Diogo de Mesquita, who had accompanied the Kyushu ambassadors to Europe, and the Spaniard Antonio Critana sent letters to Rome, explicating their views.[167]
The differences between the Spanish and Portuguese Jesuits went deeper than the question of whether to admit the friars. Although Japan was held to be within the Portuguese zone of influence, the mission had actually been founded by three Spanish Jesuits – Xavier, Torres, and Fernandez. In addition, not only was Pedro Gomez, vice-provincial of the mission from 1590 until his death in 1600, a Spaniard, but so were many other local superiors. In 1598, Valignano reported to Rome: “The Portuguese and Spaniards distrusted each other, and specifically, the Portuguese Jesuits were outraged by the belief that the Spaniard Jesuits not only approved of the entry of the Franciscans, but also held real power in the Japanese Church.”[168]
Valignano summoned the Spanish Jesuits at Nagasaki and exhorted them to unity, warning them to be prudent in their speech. The visitor pointed out one of the problems of running the Japanese mission:
One of the many organizational problems of the Church in Japan was that the Indian Jesuit authorities, in order to keep capable and learned priests, adopted the policy of never sending (Portuguese priests) to the East. There was a period when eight even made solemn oaths.[169] Of the Jesuits, there were four Italians and three Spaniards, while the Portuguese had only one.[170]
The first Franciscan to set foot in Japan was Fray Juan Pobre. He reached the country as a result of a storm which damaged his ship and obliged it to port at Hirado in 1582 or 1583.[171] Pobre stayed no more than several months in Japan, but during that time he influenced various Christians. The Dominican Fray Juan Cobo came to Japan in 1592 on behalf of the governor of the Philippines; he too did not stay permanently, and during the return voyage to Manila, he died in a shipwreck in Formosa.[172] The first friars to reach Japan with the intension of permanent settlement arrived in 1593. Although the Jesuits in Manila had objected to their departure, four Franciscans, under the leadership of Fray Pedro Baptista Blázquez, left the Philippine capital a few days later and duly arrived in Japan in two groups. With this assurance, four Franciscans, under Fray Pedro Baptista Blázquez’s leadership, left the Philippine capital a few days later and duly arrived in Japan in two groups. Following Valignano’s example three years before, they circumvented Hideyoshi’s expulsion decree by being accredited with diplomatic status. This was because Blázquez traveled as the ambassador of the governor of the Philippines and carried an official letter and gifts to Hideyoshi. As the friars later admitted, they were kindly received by the Jesuits, and shown charity at Nagasaki. The Jesuits provided the newcomers with accommodations in their homes for many days. However, this friendly reception thawed when the Jesuits realized that the Franciscans planned to outstay their welcome and settle permanently in Japan.[173]
The difference between the Jesuits and Franciscans was also reflected in their respective approaches to apostolic work. Since the publication of the expulsion edict, the Jesuits had been repeatedly warned by Christian nobles and friendly officials to keep a low profile. Despite the decree and Hideyoshi’s periodic outbursts, they were assured that they could remain in Japan as long as they lived quietly and conducted their work unobtrusively. Hideyoshi was no fool, and he did not have to be omniscient to know that his decree was neither strictly obeyed nor enforced. For the sake of Portuguese trade, Taiko was prepared to turn a blind eye to the missionaries’ continuous presence in the country, as long as they refrained from extreme actions which would force him to act. Frois explains: “Although Hideyoshi is well aware that we are all in Japan, he still pretends not to know this.” (Cooper, 1991, p. 106).
In this spirit of compromise, typical in Japanese affairs and practical in the field of human relations, neither party would lose credit and both would remain satisfied. By that time, the Jesuits had firsthand experience of Hideyoshi’s volatile moods, whose outbursts of anger became more irrational over time, and they learned the hard way that patience and prudence usually won in the end. Taiko was no longer young, and his presumptive heir, Hidetsugu, was friendly towards the missionaries, providing them with hope for better times to come.
It is in this context that one must view the Jesuits’ consternation when the Franciscan friars founded a church in Miyako in October 1594, and openly conducted services therein. Jerónimo de Jesús declared: Hideyoshi regarded the friars benignly, and wrote enthusiastically about the ruler’s loving and caring for the Order of Saint Francis with such an excessive love, and he said that the friars in Japan enjoyed “the same security as in Spain” (Cooper, 1991, p. 106).
Blazquez concurred: “Hideyoshi had granted permission to build a convent and church, and to conduct divine service, as in Spain, singing masses and other devotions con voz alta and ringing bells.”[174]
At that time, as a Jesuit missionary and Portuguese interpreter, João Rodrigues warned the Franciscans to moderate their outward zeal, and to place less trust in Hideyoshi, about whom both a Jesuit and a friar had written that nobody dared tell him anything he did not wish to hear.[175] But Blazquez held that, in his audience with Hideyoshi at Nagoya in 1593, he had received express permission to build the church and preach the Gospel. Whether it was the poor translation at the time or Blazquez's wishful thinking, in fact, Hideyoshi never said the words Blazquez publicly preached.
When describing the Nagoya audience, Blazquez equivocates: “To which the king (Hideyoshi) replied that we were welcome and that he wished to give us a house and food, and desired friendship; and that we should write to him from time to time, as he himself would do.”[176]
The Jesuits maintained that the ruler had denied them permission to preach. This view must have been largely based on Rodrigues’ testimony. From September 28th to 30th, 1593 at Nagasaki, he declared under oath that he had been in the audience at Nagoya, and that Hideyoshi had stated “[…] the friars should not preach in Japan.”[177] The inquiry had been organized by the Jesuits, and all five witnesses asked to testify were favorably disposed to their cause; furthermore, the statements to which they testified were ‘loaded’ in as much as they presented the Jesuit view. Rodrigues was an experienced interpreter and a student for the priesthood. Under oath, he stated that he had heard Hideyoshi tell the audience that the friars should not preach. However, it is possible that this never actually happened.
Only a few weeks before the inquiry, Bugyo Maeda, who had been in the audience, wrote to Gomez and confirmed that Hideyoshi had forbidden preaching. Even if the accuracy of the contemporary Portuguese translation of the letter is questionable, the original Japanese text serves as extant verification of this statement. The relevant sentence reads: “This religion has been forbidden, and so it is only natural that it should not be propagated in Japan.”[178]
When Bishop Martins arrived in Nagasaki with Rodrigues and the other newly ordained priest in August 1596, he wasted no time in parlaying his feelings to the friars. First, he threatened them with excommunication and forbade (though with little enforcement) the visiting European merchants from using the Franciscan chapel in Nagasaki.[179] The man who had accompanied the visionary King Sebastian on his crusade to Africa likely viewed Philip II’s accessin to the Portuguese with little enthusiasm. He quipped: “Japan belongs to the Portuguese crown”, and was determined to prevent the Spaniards at Manila from obtaining a foothold, either commercial or religious, in Japan.[180]
The Franciscans were equally determined to remain in Japan, and they protested that they had every right to work in the country. When challenged about his position, Blazquez wrote to Pedro Gomez: “May I inform you that I am in Japan with the permission of God; of King Philip; of Taiko-sama, the emperor of Japan; and of Hoin [Maeda], Governor of Miyako.” (Cooper, 1991, p. 116).
Further complicating the relations between the two religious orders, the Jesuits and Franciscans disagreed over matters of practical policy. The friars were concerned about the Jesuit policy towards absolving usurers in confession, as well as the established practice of performing “mixed marriages” between Christians and non-Christians. There was also disagreement over which fasts to observe, and on what dates. The lively controversy between the Jesuits and the Friars was to cause untold harm to the Japanese mission. As Cooper said: Eventually Clement VIII effected an unsatisfactory compromise by issuing Onerosa pastoralis at the end of 1600, ruling that any missionary might go to Japan provided he traveled there by way of Portuguese India. Eight years later, Paul V removed all restrictions, but by that time it was too late and the damage had been done (Cooper, 1991, p. 100).
3 A RIVALRY EXACERBATED IN THE PERSECUTION
After Blazquez and his fellows’ arrival, more Franciscans arrived from Manila, in 1594 and 1596, and joined the original friars’ band in Japan. In October 1596, two more arrived when violent storms forced the Spanish galleon San Felipe to port at Urado in Shikoku (Cooper, 1991, p. 115). The arrival of the galleon caused a series of troubles, which exacerbated into an unexpected disaster for its crew and the mission in Japan – all of the cargo was confiscated and 26 men were killed.
For the Japanese missionaries, 1597 was an eventful year. Far from being assuaged by the Nagasaki martyrdoms as might have been hoped, the acrimony between the Spaniards and the Portuguese, and between the Franciscans and the Jesuits, only intensified as charges and countercharges were freely exchanged. Each side blamed the other for the seizure of San Felipe and the subsequent mass execution at Nagasaki. According to the Portuguese, the Spanish pilot’s boasting had angered Hideyoshi, prompting him to drastic action. Not so, said the Spaniards: the real reason was that the Portuguese had spread the word that the Spaniards were robbers and pirates. The religious orders joined in the dreary controversy. According to the Jesuits, the friars had ignored all warning signs, and their public preaching had brought trouble on upon their own Jesuits’ hands. The Franciscans answered that the Jesuits had maligned them in court. Furthermore, although they had probably known about the friars’ impeding arrest, they had done nothing to help their religious brethren. Both the Jesuits and the Franciscans instituted certified inquiries to present their perspectives.[181] Within two weeks after the martyrdoms, Martins presided over a judicial inquiry at Nagasaki. Some twenty-two witnesses, all Portuguese laymen, gave glowing testimony and eyewitness account of the martyrs’ consistency.[182] This was followed by an inquiry organized by the Franciscans in Macau at the beginning of June that same year. Thirteen statements concerning the friars’ apostolate and martyrdom in Japan were drawn up. Additionally, fifteen witnesses, including Figuciredo, the captain who had taken both Martins to and from Japan, testified to their truth. The declarations describe how the friars first arrived in Japan, settled in Miyako, Osaka, and Nagasaki, and were arrested and executed. That same June, another process began in Manila. This time a score of witnesses testified. Many of these witnesses had been passengers aboard the San Felipe and one of them was Landecho, the captain of the ill-fated galleon. In another process held in Manila a year later, in June 1598, a more polemical note was introduced. Andres Cuacola, the notary of the galleon, stated in his evidence that he had heard an interpreter inform Landecho and other Spaniards in Urado that, in Miyako, two Jesuits and three Portuguese had told Hideyoshi that the shipwrecked Spaniards had come to Japan as a ruse to overtake the country, and that in a similar way, they had overtaken Peru, Mexico, and the Philippines. It was this false information, declared the notary, which had caused Hideyoshi to confiscate the cargo. He affirmed that he had met Rodrigues near Nagasaki and the Jesuit had told him that at the time of the wreck he had visited Hideyoshi. During the interview, the ruler had offered to return the ship if Rodrigues were to ask him for it, so that the Jesuit could win credit in the eyes of the king. Cuacola then stated that he had asked Rodrigues the obvious question: why he had not favored the Spaniards on that occasion. According to the notary, Rodrigues replied that the Jesuits had not wanted to interfere in the matter, as Landecho and the Spaniards of the San Felipe had yet to send their gift to Hideyoshi through the Jesuits’ good offices. They also had not consulted with these missionaries, despite their forty years of experience in Japan (Cooper, 1991, p. 125).
The other witnesses’ testimony escalated the Jesuits and Portuguese’s critique. An account written soon after the shipwreck by the layman Pedro de Figueroa Maldonado offers an extreme example. In some places, it verges on the hysterical:
Martins, Organtino, and Rodrigues had gone to Hideyoshi’s minister and told him that the Spaniards were robbers and pirates who went about robbing and disturbing other kingdoms, and that the king of Spain was a tyrant and usurper of other kingdoms. They allegedly denied to Hideyoshi that they were the king of the Philippines’ subjects; instead they professed loyalty to Don Antonio, the duke of Beja’s son and pretender to the Portuguese throne.[183]
Fray Jeronimo de Jesus also expressed his suspicious: “It has been claimed that the Society knew about it [the impending arrest] three days before the event, but did not tell the poor friars.” (Cooper, 1991, p. 126).
These reports did the Jesuits’ reputation little good; if such allegations appeared in writing and in public testimony, it requires little imagination to guess what must have been expressed in rumors and private conversations. Therefore, the Jesuits held their own inquiry from August to October 1597 in Nagasaki. The inquiry consisted of two parts, the first dealing with the San Felipe affair and the second with the martyrdoms. The purpose of the exercise was to present the Jesuit view of these unhappy events, and to answer charges against the Order. Fourteen witnesses testified to the seventeen statements in the first part and the ten statements in the second. On August 19th, 1597, Rodrigues appeared as the eighth witness and promised in verbo sacerdotis to tell the complete truth:
The deputation from the San Felipe had not asked for the the Jesuits’ services at Miyako to present their case at court. He furthermore believed that if they had this deputation approached Maeda in the first instance instead of Masuda, Hideyoshi would not have confiscated the cargo. He knew that Organtino had complained to Blazquez that the friars had not asked the Jesuits to help in the delicate negotiations, but Blazquez replied that the Franciscan had the matter well in hand. He also confirmed that Masuda had already left for Urado before him and the bishop (had) reached the capital. Only Organtino was in Miyako and he was in hiding, so the Jesuits could not have persuaded Hideyoshi to seize the cargo of the ship. Thus, Rodrigues surmised that Mashda must have concocted the hostile speeches, which the Portuguese had allegedly made to Hideyoshi.[184] (Cooper, 1991, p. 125).
Rodrigues then referred to the fifth statement of the inquiry, declaring:
He had told Hideyoshi that Mexico, the Philippines, India, and Portugal are governed by the same king. Moreover, Hideyoshi had told him to deal with the matter of the ship and had said that if he, Rodrigues, were to ask him for the ship, he would grant his request. Rodrigues confirmed that Martins had told Blazquez this. (Cooper, 1991, p. 127).
Rodrigues took the stand to testify in the second half of the inquiry into the Nagasaki martyrdoms:
He testified that both in Miyako and Kyushu he had several times advised the friars to be more circumspect in their apostolic work, and that Maeda had also warned two friars that they were heading for trouble. He affirmed that he had not been in Miyako when the guards were placed around the Jesuit and Franciscan houses, but that on his return to the capital he had heard that Maeda had reported a Spaniard’s rash words to Hideyoshi, who had thereupon ordered the arrest of the missionaries. This was confirmed, Rodrigues said, by what Hideyoshi later told him in a personal conversation. Rodrigues then described his part in trying to help the victims on their way down to their execution at Nagasaki. (Cooper, 1991, p. 127).
Rodrigues was a key figure in the entire affair, as he was the official representative of both the Jesuits and the Portuguese in the dealings with Hideyoshi. When there were assertions that somebody had vilified the Spaniards in the presence of Hideyoshi, suspicion fell on him. After all, he had the ruler’s ear and therefore would have had the opportunity, had he wished to take it, to speak to him against the Spaniards and friars. What, then, was his role in the affair? Rodrigues’ movements during the period in question are uncertain, but according to considerable documentary evidence, he is surely not responsible for the confiscation[185] In all probability, Hideyoshi needed little encouragement to seize the cargo, and in any case, there were precedents for confiscating ships blown onto the Japanese coasts. But the responsibility for the arrest and execution of the Spanish friars must be attached to the Captain’s vitriol. If the ruler had actually been told that the Spaniards had come as pirates and robbers, it is strange that he punished the friars and their group living peacefully in Miyako, while allowing the captain, crew, and passengers of the San Felipe swift return to the Philippines later the same year. Conversely, if he had been informed that Spanish missionaries had been sent ahead as a fifth column to prepare the way for colonial expansion, the friars' arrest and execution had a certain logic. Certainly, Hideyoshi seems to have heard that Spanish missionaries were a potential threat to his rule. In his August 1597 letter to the Philippines in reply to the embassy, Hideyoshi states: “I have received information that in your kingdoms the promulgation of the law is a stick and deceit by which you overcome other kingdoms.”[186]
Thus, the ruler must have been informed that Spanish missionaries had formed a fifth column and prepared the way for colonial conquest. Whether he believed this is another matter. Certainly his fears for national security of Japan were exaggerated, as neither the Portuguese in Macau nor the Spaniards at Manila were even in a remote position to challenge Japan. Persecution happened from time to time after the martyrdoms. This led to hard times for all missionaries in Japan, even during Ieyasu’s reign when Portuguese-Japanese trade was promoted. The mission in Japan progressed from bad to worse, hitting rock bottom in 1614 when Ieyasu issued an expulsion decree ordering all missionaries to leave Japan. From then on, Japan closed the door to the outside world.
CONCLUSION
In summary, the Jesuits and Franciscans often differed in their use of methods of interpretation and preaching, based on the rigidity of the doctrines between the two congregations. This led to constant friction. Behind the dispute between the Jesuits and Franciscans in the Diocese of Japan is a substantial national feeling and sentiment. Moreover, the localism of each one’s missionary sphere of influence and the conflict of rights and interests, due to the protection of religious rights, have instigated internal friction in the Missionary Efforts of the Catholic Church in Asia. In the competition for missionary forces in the Far East, Portugal and Spain have long been at odds with one another. Many factors have contributed to this. For example: 1) the issue of trade, the factor inciting the most feelings among the people; 2) the scope of missionary activities, the embodiment of the contradictions between the two sides; 3) the means of missionizing, where there is immense disagreement between the Jesuits and the Franciscans; 4) the conflict between the Jesuits and the Franciscans over specific policies. These contradictions decayed the relationship between the two religious orders, and even the “Twenty-six Martyrs” in Nagasaki did not ease the relationship between the Jesuits and the Franciscans. Additionally, the face-to-face attacks intensified, causing heavy losses to the missionary cause in Japan at that time.
DISPUTAS ENTRE LOS JESUITAS Y LOS FRANCISCANOS: UNA REVISIÓN HISTÓRICA DE LAS POLÍTICAS DE DOS ORDENES CRISTIANAS EN JAPÓN
Resumen: A lo largo de la historia del cristianismo en Japón, han persistido las tensiones y los conflictos entre los jesuitas y los franciscanos. A primera vista, esto parece deberse a sus diferentes lecturas de las políticas de Roma y a sus variados enfoques del trabajo apostólico. Sin embargo, si se examina más detenidamente, la política también desempeñó un papel importante. Detrás de las dos órdenes se encontraban dos potencias marítimas rivales -Portugal y España-, cuyos sentimientos nacionales de sus compatriotas pueden haber superado en ocasiones sus intereses en la misión de Japón. En un intento de mantener la paz, Roma emitió el Patronatus missionum. Sin embargo, intensificó el conflicto y llevó la situación a un estado de desorden irreparable. Esto acabó causando grandes pérdidas a toda la misión. Para una mejor comprensión, en esta tesis resumo los siguientes argumentos entre jesuitas y franciscanos. El primer argumento, y el más destacado, se refiere al comercio; el segundo, a la separación de las parroquias; el tercero, a sus planteamientos apostólicos, y el último, a sus políticas prácticas. También cabe mencionar que la relación entre los jesuitas y los franciscanos no se vio aliviada por el incidente del martirio de Nagasaki de 26 personas. De hecho, fue una gran pérdida.
Palabras clave: La misión cristiana en Japón. Jesuita. Franciscano. Portugal. España.
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Zhang GG. et al. Missionaries and European Literature. China: China Social Science Press, 2001.
Received: 31/05/2022
Accept: 09/08/2022
Abstract: This paper uses the research method of historical context to place Sontag’s “New Sensibility” in the historical context in which “the demise of art” was prevalent, and puts forward that Sontag’s “New Sensibility” is the sensibility in line with the needs of that time by denying “the demise of art” and affirming the dominant position of visual art. Its definition can be summarized as an ability of aesthetic perception of arts. It appeals to pure sensibility to appreciate visual arts, and devotes to changing modern people’s consciousness and sensibility. At the same time, by comparing “New Sensibility” with “Camp Sensibility”, proposed by Sontag, and “new sensibility”, proposed by Marcuse, this paper points out that the main connotation of “New Sensibility” is to emphasize form, neglect content and suspend morality. However, “New Sensibility”, which overemphasizes perceptual experience and ignores moral dimension, has its inherent defects, which cannot be ignored. Therefore, this paper finally takes Sontag’s critical practice of Riefenstahl as an example to specifically explain the defects of “New Sensibility” and reflect on it. More than half a century after Sontag’s “New Criticism”, the orientation and reflection of it is conducive to re-facing the significance and value of it under the background of further development of science and technology and more diversified artistic styles at contemporary era.
Keywords: Susan Sontag. New sensibility. The demise of art. Camp; the visual arts.
INTRODUCTION
“New Sensibility” is an aesthetic concept first proposed by Susan Sontag (1933-2004) in 1965. As soon as this concept was put forward, it has attracted extensive attention and continuous discussions from western scholars. As early as in 1966, Robert Boyers recognized the significance of Sontag’s “New Sensibility”, and tried to defend it. He said “Perhaps Miss Sontag’s primary importance is as the most articulate spokesman for a sensibility which, for lack of anything, may label post-modern, or anti-art.” (Boyers, 1966, p. 31). According to him, “New Sensibility” emphasizes “sensual response” (Robert’s words), instead of art’s “meaning” or “content”, just as Sontag herself did: “What Miss Sontag wants to experience in the work of art is ‘[…] the pure, untranslatable, sensuous immediacy’.” (Boyers, 1966, p. 30). At the same year, Paul Velde also praised Sontag, declaring her as a “liaison critic” who moves between “[…] the new art world and the intellectual community at large” on behalf of a “new sensibility.” (VELDE, 1966, p. 390-392). Elizabeth McCaffrey, in her Ph. D. dissertation, also agreed with Sontag’s “New Sensibility” (1981). For them, “New Sensibility” is such a kind of capacity, which can enable human being’s appreciation of arts, especially those popular arts. While, some critics hold different ideas. David Holbrook criticized Sontag, saying “[…] what Susan Sontag offers is a false way of feeling strength of identity through cultural symbolism of hate.” (Holbrook, 1968, p. 153-163). Daniel Bell (1971, p. 63-73) denied that the “New Sensibility” (alone, in fact) has “fused” politics and art. Then, almost ten years later, in the 1980s, some critics found some changes in Sontag’s idea. Hilton Kramer argued that even though Sontag still defended “New Sensibility” after the collapse of high modernism, she no longer adhered to pure aestheticism (Kramer, 1982, p. 88-92). Actually, those critics had realized such changes in Sontag’s “New Sensibility” aesthetic thought. They merely did no effort to find the reasons. Then, entering into the 21th century, compared to her other aesthetic thoughts or critical opinions, “New Sensibility” was relatively ignored, and there appeared many studies about “camp”, “disease as metaphor”, etc. The significance of “New Sensibility” needs to be re-recognized. Different from the situation at West, in China, especially during these two decades, many researches were done on “New Sensibility”. Many of those researchers are Ph. D. candidates or postgraduates. They studied Sontag’s “New Sensibility” in their thesis or doctoral dissertations, including Zhao Yuteng’s A Study on Susan Sontag’s New Sensibility Aesthetic (2020), Jiang Sijie’s On New Sensibility of Susan Sontag: The Function and Responsibility of Art Reconsidered (2019), Tang Shujing’s A Road to Aesthetic Liberation: A Study on Susan Sontag’s Aesthetics of New Sensibility (2012), Zhang Zhengping’s On Susan Sontag’s “A New Sensibility”(2010) and Liu Danling’s doctoral paper A Study on Susan Sontag’s Aesthetic of New Sensibility (2007), etc. Among them, Liu’s opinion is very typical. She “[…] regarded Sontag’s thoughts as a whole system and took the aesthetics of New Sensibility as the ‘General Question’.” (Liu, 2007, p. 8). By comparing Sontag’s “against interpretation”, “camp aesthetics”, “aesthetics of silence” with “New Sensibility”, Liu believed that all of them are the implications or connotations of the latter one, and that’s the reason why she can take it as the “General Question” for study. Generally speaking, there was a common view which took “New Sensibility” as running through Sontag entire critical career without big modifications, and critics in China tended to use it to analyze her other sensibility concepts or ideas. So, this paper holds that this previous research route has some defects, which leads to the deviation of the accurate understanding of Sontag’s “New Sensibility”. It is not a constant concept, nor can it contain Sontag’s other aesthetic thoughts together. It is only one of her major aesthetic views at the early years, and has overlapped with “Camp” while having some differences.
Based on the explanation of its times context, this paper firstly focuses on the argument that Sontag’s “New Sensibility” is grounded on her accurate grasp on the era of visual culture. At the same time, through the comparison between “New Sensibility” and “Camp”, between “New Sensibility” and “Old Sensibility”, especially Herbert Marcuse’s “new sensibility”, this paper will discuss the main connotations and basic characteristics of Sontag’s “New Sensibility” in detail. Finally, combined with the films and photographic works made by Leni Riefenstahl (1902-2003), which Sontag criticized a lot, this paper tries to reflect on the thoughts of Sontag’s “New Sensibility", so as to accurately understand the theoretical defects of it.
1 New Sensibility: The Typical Sensibility in the Era of Visual Culture
Sontag’s concept of “new sensibility” is closely related to the times context in which visual art has become the model of art. It is Sontag’s accurate grasp of the times that makes “New Sensibility” become an influential concept and widely accepted by critics. Sontag’s accurate grasp of the times context is mainly realized on the premise of denying the so-believed “the demise of art”. Specifically, Sontag figured out the new changes in the contemporary arts, then strongly denied the idea “the demise of art”. On this basis, she proposed that “[…] the model arts of our time are those with much less content, and in a much cooler mode of moral judgment like music, films, dance, architecture, painting, and sculpture.” (Sontag, 1965b, p. 298-289).
Since the first half of the 20th century, views about the demise of art have been proposed and spread out. It is not only because of the development of art itself, such as the decline of traditional elite art and the rise of popular art, but also due to the threat imposed by the rapid development of other cultures, such as scientific culture. There is no doubt that the prosperity of scientific culture is inevitable because of the rapid development of industrialized society. With its further development, it will inevitably become the main cultural stream to dominate modern people’s life and shape their personalities. However, for many intellectuals, this prosperous scientific culture poses a serious threat to the development of literary-artistic culture. On one aspect, it makes the function of literature-art “degraded” and “weakened”. On the other aspect, it makes the art itself “transformed” and “deformed” by science and technology. For this reason, the idea is put forward that literary-artistic culture will die and be replaced by scientific culture finally.
Sontag disagrees with this viewpoint. First of all, she believes the premise that art is static and science is changing is not valid. As a matter of fact, just like science, art is also in the process of constant progress and change. With science becoming more and more professional, art also becomes more and more professional. In contemporary world, in the fields of some visual arts, there appeared some new forms or styles of them which needed people to have special training or special sensibilities to understand. Influenced by new technologies and new ways of expression, contemporary art is more difficult to be understood than traditional one. Taking painting as an example, the traditional painting art takes “imitation” and “representation” as its highest pursuit and goal. This imitative art is easy for people to understand because most of the works come from our life or the real world. While since the late 19th century, the Impressionism created a completely new painting style. Coupled with a more severe challenge of photography for the function of imitation, painting has gradually become an abstract art. Many new arts emerged such as Fauvism, Cubism, Futurism, Dada and Surrealism, Pop art and other new painting styles. Because the update and increasing maturity and perfection of the painting techniques, contemporary painting is becoming more and more difficult to understand.
Based on the above situation, Sontag even proposed the idea of “specialist sensibility”. She argued that “[…] in our time, art is becoming increasingly the terrain of specialists. The most interesting and creative art of our time is not open to the generally educated; it demands special effort; it speaks a specialized language.” (Sontag, 1965b, p. 295). She even put forward several artists’ works, such as Milton Babbitt’s music, Mark Rothko’s painting, Merce Cunningham’s dance, those visual arts as examples to prove the requirements of a special sensibility to appreciate them. This view is Clement Greenberg’s reminiscent, who lived from 1909 to 1994. In his essay “The Avant Garde and Kitsch” (1939), he had already put forward similar ideas, such as “artists’ artists” and “cultivated spectator”. In the context of the emergence of avant-garde art at the first half of 20th century, which aimed at breaking established perceptions about arts, Greenberg in his paper pointed out that “[…] the avant-garde’s specialization of itself, the fact that its best artists are artists’ artists and its best poets poets’ poets, has estranged a great many of those who were formerly capable of enjoying and appreciating ambitious art and literature, but who are not willing or unable to acquire an initiation in to their craft secrets.” (GREENBERG, 1939, p. 56) Same as Sontag, Greenberg has expressed his concern about the audience’s sensibility in terms of artists, the creation of arts, as well as their increasing professionalism. He proposed that both the artist himself and the audience need to have an unique specialist’s sensibility to appreciate the works of art. Otherwise, they can’t create the best art, not even appreciate them.
The second supporting idea for denying the demise of art is that the relationship between art and science is not completely exclusive but complementary. Each rapid advance of art in history is inseparable from the invention and innovation of scientific and technological means. It can be said that art has been “encouraged” by science and technology to go further. Henry Focillon (1881-1943), a French art historian in the 20th century, firmly put forward the slogan of “technology first” (Chen, 2011, p. 9) in the art field as early as the early 20th century.
For the above two reasons, Sontag argued that art was not dead and that the conflict between art and science was just an illusion. However, it is undeniable that the function of art has transformed compared with that in the past. It is no longer to console the human soul by playing the role of religion in the early period, nor is it to enlighten and guide human life by describing and commenting on the reality in the later secularized period. According to Sontag, “Art today is a new kind of instrument, an instrument for modifying consciousness and organizing new modes of sensibility.” (Sontag, 1965b, p. 296). Because of the profound changes in human experiences in modern society, the traditional pastoral and stable way of life has been substituted by fast, fluid, and perishable modern lifestyle. And art must be rooted in these experiences to update and cultivate the humans’ sensibility and the ability nowadays. Art can help them to experience, to listen, to see, and to feel.
Meanwhile, Sontag points out that the representative art of this era expresses new experiences with new technological media in new forms. It is conducive to the restoration of human sensations and feelings. Therefore, the traditional dominant position of content-oriented literature is inevitably replaced by new artistic styles, especially those visual arts represented by film, photography, dance, painting etc. The conclusion is mainly based on the following premises: First of all, because contemporary art aims to “modify and educate sensibility and consciousness”, artists have become aestheticians, and art constantly needs to seek materials from non-artistic fields. Compared with literature, which one has only language or letters as its material, visual arts represented by painting, architecture, film, and dance, can use much more diverse and richer materials.
Secondly, as stated earlier, along with the further development of scientific culture, there are more and more advanced and various scientific and technological achievements. Visual arts, especially film and photography, need to make the utmost of those results. Thus, compared with literature, visual arts can benefit and make use of those outcomes more largely and reasonably. Even if there may be a strong mark of technology, it still will not embarrass the audience.
Finally, as the development of visual art itself, its achievements in the second half of the 20th century enable it to surpass literature and become the most important culture in modern times.
So far, it is easy to understand why Sontag takes visual art as the model of contemporary art and chooses visual arts, especially films, photography, painting, and dance, as her targets to criticize on. Finally, it can be said that Sontag’s raise of “New Sensibility” is just based on her accurate understanding of the contemporary art models. It meets the demand of the historical background.
2 Definition and Characteristics of New sensibility
Since one of the important functions of art in modern society is to modify consciousness and organize new modes of sensibility, modern humans need this new sensibility to appreciate contemporary art. Then, what exactly is “New Sensibility”? What is its definition? What are the similarities and differences with Marcuse’s “New Sensibility” and Sontag’s “Camp”?
Sontag does not provide a clear definition of “New Sensibility”. Readers can only identify its main connotations by comparing it with “Old Sensibility”. This contrast is mainly reflected in the following three aspects, namely, the object, the concept of art, and the experiencing mode.
Firstly, the objects. According to Sontag, all ages have the kind of sensibility corresponding to or needed by the objects. “This new sensibility is rooted, as it must be, in our experiences which are new in the history of humanity.” (Sontag, 1965b, p. 296). The traditional way of life, despite the industrial revolution that began in the mid-18th century, was generally more stable than it is today, and there was no widespread social and physical mobility. Now, along with the science and technology revolution further, there appears a new experience in human history with characteristics of strong liquidity, fragmentation, and mechanics. The fast circulation of population and objects in modern society is unbelievable compared with that in the previous centuries. Along with this fluidity comes a fragmented experience of time and space. And this new experience inevitably requires and cultivates a new sensibility.
Secondly, the concept of art or culture has also changed significantly. Traditional cultural concepts insist on the pursuit of truth and eternity. For example, Martin Heidegger (1889-1976), in The Origin of The Work of Art (1935), believes that Art is the self-insertion and manifestation of the truth of existence (HEIDEGGER , 1996, p. 255). Matthew Arnold (1822-1888) argues that art is a criticism of life. It is understood as proposing thoughts on moral, social and political aspects (commented by Sontag, 1965b, p. 300). These artistic or cultural concepts always consider literature as a model. According to the concepts, literature with language as the carrier can reveal the truth and human thinking more effectively. As stated earlier, with the advent of this visual cultural age, the model status of literature has been represented by painting, film, photography and other visual arts. To express truth value is no longer the primary purpose of art, and art is no longer the criticism but the expansion of life. It is committed to modifying and cultivating human sensibility. Sontag bluntly states that the first characteristic of “New Sensibility” is that its model product is not the literary works.
Third, the fundamental difference between “New Sensibility” and “Old Sensibility” lies in their different ways of aesthetic experiencing modes. On the basis of the first two, rooted in the relatively stable and complete life experience of human beings, it expresses truth and eternal value, especially in literature as a model of art. The effective way of aesthetic experience is to appeal to rational cognition, and dig their potential significance. In Sontag’s words, it is to replace A (art) with B (interpretation), “[…] to set up a shadow world of ‘meanings’. It is to turn the world into this world.” (Sontag, 1964a, p. 7), which is the main content of the “Old Sensibility”. But for new experiences rooted in flow and fragmentation reality, art aims at expanding life, while “New Sensibility” appeals to sensory experience, or pure sensibility, requiring people to cutting back content so that we can see the thing at all.
Through the above comparison, we can give Sontag’s “New Sensibility” a more acceptable definition, that is, “New Sensibility” is a kind of aesthetic perception ability rooted in the experience of today’s new era, aiming at visual art, appealing to pure sensibility and cultivating people’s sensory experience.
In other words, the essential characteristic of “New Sensibility” is to appeal to pure sensations or sensibility. Here, Sontag did not leave any room for reason or rationality. On the contrary, she objected to the traditional way of experience, that was to excavate content and meaning of art. Instead, Sontag required people to make full use of all kinds of sensory perceptions, to see, to listen, to touch in person, for the overall form of art or “Style”. Therefore, it is not difficult to find that when it comes to new sensibility, the difference in rational treatment between Sontag and Marcuse is the main difference. Marcuse proposed that the “New Sensibility” wanted to correct what he called the “new totalitarian society”, in order to relieve modern people’s suffering from alienation and being controlled by scientific and technological products in the industrial society, so as to reshape the new modern people with a complete personality. He said that the new sensibility has become a political factor: a new principle of reality is born, and under which a new sensibility combines the same anti-sublimated scientific understanding with a “scale of beauty” (Marcuse, 1989, p. 106-107). In Marcuse, reason was not completely abandoned, but combined with sensibility under the framework of “imagination”[188] (Marcuse, 1979, p. 110-112), so as to guide the reconstruction of reality.
If appealing to pure sensibility is the essence of “New Sensibility”, Sontag’s “Camp Sensibility” also has such connotation, then, what are the differences between “New Sensibility” and “Camp Sensibility”? Can they be understood as the same?
“Camp Sensibility” is a concept that Sontag often uses in his aesthetic practice. In describing camp[189], she only used two words “wholly aesthetic” (Sontag, 1964b, p. 287) In other words, “Camp Sensibility” is actually a kind of pure aesthetic sensibility. Through analyzing Sontag’s “Notes on Camp’” and other critical essays, and by comparing “Camp Sensibility” and “New Sensibility”, it is not difficult to find that they overlap each other in many aspects. For example, content is impaired in both sensibilities. Sontag said: “Camp is a certain mode of aestheticism. It is one way of seeing the world as an aesthetic phenomenon. That way... is in terms of the degree of artifice, of stylization […]” (SONTAG, 1964b, p. 277) and “Camp art is often decorative art, emphasizing texture, sensuous surface, and style at the expense of content.” (SONTAG, 1964b, p. 278). Therefore, artifice or stylization are emphasized, and content is slighted. Besides, both sensibilities emphasize the cultivation of human sensibilities so as to restore their senses. They are all elaborated by Sontag in order to affirm the great changes that have taken place in contemporary art, and so on. It is not difficult to understand why many critics discuss camp directly under the title of “New Sensibility”. However, in addition to the similarities between the two, there are some other major aesthetic features of “Camp Sensibility” that are different from “New Sensibility” and are easily overlooked.
First of all, in terms of the way of experience, if “New Sensibility” mainly relies on sensory intuition, to experience the form or overall style of the work, then “Camp Sensibilty” plays its role through the “camp taste”. At the end of 1964, Time magazine re-published “Notes on ‘Camp’” in the form of sketches. In Time, Sontag’s original text was shortened into five paragraphs with two columns, and the most striking word is “taste”[190]. The word is in bold, followed by “camp” in quotation marks. Through Sontag’s description of camp, taste is always the core part of camp, and the two are often used together: camp is a kind of taste; this kind of taste is defined as “camp”. Traditionally, this special aesthetic taste usually refers to the elite taste embodied by the declined aristocrat class at the 19th century. Disgusted by the mediocrity and vulgarity of the bourgeoisie, they expected to realize their “delicate spiritual confrontation” against the bourgeois mediocrity through the improvement of aesthetic ability. Inspired by it and the situation of contemporary art in Sontag’s time, she said “Camp is the modern dandyism.” (SONTAG, 1964b, p. 288). In a word, “Camp Sensibility” relies on aesthetic taste or ability. It can be said that “taste” both contains sensibility and transcends sensibility. Therefore, Camp taste is mainly a kind of aristocratic taste. It is the style of modern dandyism.
Secondly, “New Sensibility” unifies the traditional binary opposition of form and content by “style”, while the main feature of “Camp Sensibility” is “Stylization”. In the article “On Style”, Sontag defined “stylization” as “[…] what is present in a work of art precisely when an artist does make the by no means inevitable between matter d manner, theme and form.” (Sontag, 1965a, p. 18). It is not difficult to see that “stylization” in Sontag’s concept reflects the distinction or even opposition between subject matter and mode, or content and form. When subject matter is used in a certain style, “stylization” appears. Obviously, the style mentioned here refers more to the style in the narrow sense of tradition, that is, a style genre that has been established and formed, including its usual creation techniques and skills. At the same time, compared with “style” proposed by Sontag, which is internalized in works of art as the unification of form and content, “stylization” again separates content and form, and refers more to form and its manifestation of content. Therefore, “stylization” embodies decorative, artificial or technical, dramatic and other characteristics. While, according to Sontag, “[…] the essence of camp is its love of the unnatural: of artifice and exaggeration.” (Sontag, 1964b, p. 275). In other words, “Camp Sensibiity” is the aesthetic experience of the skills and the degree of stylization in one work, rather than the aesthetic experience of the overall form or style of the work based on the sensory intuition emphasized by “New Sensibility”.
If appealing to pure sensibility is the essence of “New Sensibility”, Sontag’s “New Sensibility” also embodies the following three main characteristics:
The first is a preference for form over content. Starting from the form of works of art, Sontag’s “New Sensibility” requires appreciating works of art as a whole. Here, form is no longer the antithesis of content in the traditional sense, but the overall Form or Style presented by the work. Although Sontag put forward the concept of “Style” in “On Style” to unify content and form in artistic works, throughout the whole essay, “form” and “style” are often used instead. Therefore, in terms of the overall presentation effect of artistic works, style and form have the same connotation: style is form, and form is style. Besides, Sontag’s concept of form is in line with the concept of form put forward by the Russian formalists, Focillon, Marcuse and others: in a narrow sense, they are all convinced that form gives art works that kind of uniqueness. Content is only “special” with the help of form, and becomes the only content of this unique work of art; in a broad sense, they all affirm the independent existence of art as an object. Once completed, the work of art becomes an object, not just the artist’s some view or projection. Finally, they all affirm the aesthetic experience that art brings to people. This aesthetic experience is no longer the acquisition of some kind of knowledge or moral judgment, but the aesthetic pleasure based on the perceptual experience of the form or style of artistic works. Therefore, for “New Sensibility”, form is undoubtedly the first, and content is weakened and even directly included in the category of form, becoming a part of form.
The suspension of morality is the second major feature of the “New Sensibility”. The moral enlightenment of the content of artistic works advocated by people through “old” sensibility or traditional sensibility is suspended in the “New Sensibility”. In “On Style”, Sontag even replaces the traditional meaning of “morality”, which does not refer to the ethical standards for judging people’s behaviors and emotions, but to the moral pleasure brought by art, that is, “[…] the enlivening of our sensibility and consciousness.”. (Sontag, 1965a, p. 25).
This kind of moral pleasure and aesthetic pleasure therefore have similar contents, or in Sontag’s case, morality and aesthetics are no longer two opposing concepts, but mutually integrated. Sontag believed that
Art performs this “moral” task because the qualities inherent in aesthetic experience (disinterestedness, contemplativeness, attentiveness, the awakening of the feelings) and aesthetic objects (grace, intelligence, expressiveness, energy, sensuousness) are also fundamental constituents of a moral response to life. (Sontag, 1965a, p. 25).
It is in this sense that Sontag defined whether art is “moral” or not.
Finally, for the emphasis on form and the negation of traditional moral judgements, “New Sensibility” inevitably shows the characteristic of pluralism, which is the third main feature of “New Sensibility”. For contemporary art, the pluralism of “New Sensibility” proves that there is no difference between good and bad, moral and immoral, so long as it can give people usual aesthetic pleasure, educate and cultivate people’s awareness and sensibility. So even as contemporary art becomes more serious and incomprehensible, “New Sensibility” remains equally receptive.
Sontag’s “New Sensibility”, therefore, is essentially an experiential method or ability to appeals to pure sensuality, which is characterized by its emphasis on form, its weakening of content, and its pluralism. Its aim is to restore people’s sensations or feelings. It is important to note that this is just Sontag’s understanding of Modern Sensibility in the 1960s, and her emphasis on form still arouse some controversies among the readers, especially as her opinions about the Nazi movies published in the 1960s, which will be discussed in this article. More details below.
3 Aesthetic Practice of and Reflection on New Sensibility
The emphasis of “New Sensibility” on the form can help modern people accept and understand artistic works, which were generated in the latter half of the 20th century and showed bold innovative forms and styles. However, influenced by the emphasis of the new sensibility on the form, Sontag’s understanding of some works can be described as being “deviated”. She overstressed the form and ignored the immoral connotations of content, putting too much emphasis on aesthetics instead of morality. That point can mainly be embodied in how she criticized Leni Riefenstahl’s movies in the early period. Nevertheless, Sontag reflected on this obvious “deviation” and corrected it in her later critical essays.
Riefenstahl is known as Nazi filmmaker[191]. Her films show extremely perfect aesthetic forms, fully matching Sontag’s “New Sensibility”. Therefore, in the early period, Sontag hold the “maintenance” attitude towards Riefenstahl. Riefenstahl claimed herself to be an artist dedicated to discovering beauty and only focusing on beautiful things. In fact, for art or beauty alone, they were worthy of being called masterpieces. Up to this day, Riefenstahl’s techniques and epic recording in both documentaries have been admired by others, and even Steven Spielberg (1946-), one of today’s most celebrated directors, openly admired her.
Sontag’s defense for Riefenstahl was mainly based on the two aesthetic points of her “New Sensibility”. One is the emphasis on the form, and the other is on the objectiveness of artistic works. Sontag said: “Riefenstahl is a genius filmmaker, through whose ‘content’, we come to – even assume and defeat her intentions – play a purely formal role.” (SONTAG, 1966, p. 35). Clearly, Sontag at that time weakened the Nazi “contents” of these two documentaries and blended them into forms of pure beauty. At that time, Sontag defended Riefenstahl by noting that she was just a moviegoing person, yet did not care about the geniality or talent shown in Riefenstahl’s films, and she did gain enough aesthetic pleasure from those with the fullest expression of artfulness. The objectiveness of artistic works proposed by “New Sensibility” also provided an excuse for Riefenstahl to shed or downplay her connections with the Nazi content of the film. Sontag always believed that truly great artists could achieve a “high degree of neutrality.” (Sontag, 1966, p. 40). That could immunize the artist against any criticism he or she may face. Therefore, in terms of aesthetic experience itself, Sontag did not deny the enjoyment or satisfaction brought by artistic works, even the content of which may be immoral. She thought that “[…] as long as we regarded these works as artistic works could we obtain the sense of gratification from them.” (SONTAG, 2006, p. 86)
After nearly 10 years, Riefenstahl’s publication of the album The Last of The Nuba (German original title: Die Nuba Nuba, 1973) gave Sontag a novel chance to review her ideology of “New Sensibility” during that time to rethink the relationship between form and content, and to reflect on her “New Sensibility”.
The Last of the Nuba is an extraordinary collection of 126 colored photographs of the Nuba and records the wrestling and funeral rites of over 8,000 primitive Africans living in the mountains of southern Sudan. Notably, Riefenstahl’s shots focus on well-built, muscular adult Nuba men, with few images of the elderly, the sick or women, which Riefenstahl explains is the result of her desire for beauty. The collection caused an immediate sensation. It has been credited with revealing the mysteries of primitive African tribes and has even been equated with the anthropologists’ sacred mission to excavate and preserve vanishing races. However, Sontag just found that it was only the continuation of Riefenstahl’s fascist aesthetic thought, and it was the third of her “[…] fascist propaganda film trilogy.” (Sontag, 2015, p. 28). In “Fascinating Fascism” (1974), Sontag exposed and interpreted Riefenstahl’s fascist aesthetics to debunk her “lies”.
Then, why did Sontag change her opinions? What are those changes? Is “New Sensibility” out of date? Sontag’s interview in 1975 provided some answers to these questions. “My understanding of the moral service performed by artwork is less abstract than it was in 1965.” (SONTAG, 2015a, p. 28). At that point, she began to think about “[…] the content implicit in the concept of some forms.” (Sontag, 2015, p. 27). Tracing her personal life and critic career, we can find this change was closely related to the international environment, social environment and personal life experience at that time. Sontag published “Against Interpretation” and “One Culture and The New Sensibility” in 1964 and 1965 respectively, but in 1968, an event called “May Storm” spread from France to Europe and United States. Influenced by that, Western intellectuals’ enthusiasm of taking part in the social and political events decreased, instead, they used theoretical discourses to intervene politics. After 1968, Sontag saw the severe international situation and was also influenced by cultural studies and ideological criticism. She could not ignore the content of literary and artistic works. Especially after 1965, she went to Vietnam and was touched by it. In the 1970s, Sontag suffered from cancer, and during her treatment, she endured the pain of her disease as well as the moral condemnation of the metaphor of the disease, which caused her to have a big change of thought. She began to think that disease was not just a medical problem to be treated, but a metaphor, evolving into a moral judgment, a political judgment, and a cultural judgment, which clearly moved beyond her “against interpretation” domain and began to be interpreted in terms of cultural studies. It was this deep thinking that made her give up her previous position of emphasizing the aesthetics of “New Sensibility”. So, when Riefenstahl published her album The Last of The Nuba in 1973, Sontag changed her previous attitude toward this controversial artist, no longer highly-praised her anymore, and reinterpreted Riefenstahl’s Nazi films by exposing the fascist aesthetic shown in The Last of the Nuba.
Sontag acknowledged that Triumpf des Willens (1934) was a film intended to promote fascist aesthetics and revealed the hypocrisy of Riefenstahl’s insistence that her aesthetic creation was independent of political intent. But her previous enjoyment of the exquisite images and extreme forms of Riefenstahl films made her realize that she was “[…] paving the way for a very unintentional promotion of all kinds of disruptive emotions.” (Sontag, 2015, p. 97). Apart from this, one can easily identify the main features of the Fascist aesthetic, such as the yearning for supreme power, the praise of blind obedience, and the glorification of death. These characteristics are reflected in Riefenstahl’s early films. Through the investigation of Riefenstahl’s later photographic works and other achievements, Sontag (2015, p. 109) even believed that Riefenstahl was the one who most insisted on the fascist aesthetics thoroughly compared with other fascist artists.[192]
CONCLUSION
This paper firstly analyzed the background situation of “New Sensibility”. Sontag’s “New Sensibility” was put forward in 1960s. At that time, there were some typical changes and visual art became the dominant one instead of traditional elite art. Those visual art required a special aesthetic ability to appreciate, so, in such context, Sontag raised a new aesthetic idea: “New Sensibility”. Then, by comparing “New Sensibility” with camp, “Old Sensibility” and Marcuse’s “New Sensibility”, this paper defined “New Sensibility” as an aesthetic sensibility that appeals to pure sensory experience and aims to restore people’s sensory experience. Finally, based on Sontag’s specific critical practice of Riefenstahl’s artistic works, this paper reflected on Sontag’s aesthetic thought of “New Sensibility” and revealed its defects, which is its overemphasis on the form instead of content, and on aesthetic experience instead of moral dimension. Sontag corrected the limitation of “New Sensibility” in her later period. Therefore, it is not right to regard “New Sensibility” as the “general problem” unifying Sontag’s aesthetic thoughts, or merely to equate it with or define it as the artistic concept expressed by avant-garde art.
ORIENTACIÓN Y REFLEXIÓN: UNA INVESTIGACIÓN SOBRE LA NUEVA SENSIBILIDAD DE SUSAN SONTAG
Resumen: Este artículo utiliza el método de investigación del contexto histórico para situar la Nueva Sensibilidad de Sontag en el contexto histórico en el que prevalecía "la desaparición del arte", y plantea que la Nueva Sensibilidad de Sontag es la sensibilidad acorde con las necesidades de esa época al negar "la desaparición del arte" y afirmar la posición dominante del arte visual. Su definición puede resumirse como una capacidad de percepción estética de las artes. Apela a la sensibilidad pura para apreciar las artes visuales, y se dedica a cambiar la conciencia y la sensibilidad de la gente moderna. Al mismo tiempo, al comparar la Nueva Sensibilidad con la sensibilidad de Campamento propuesta por Sontag y la "nueva sensibilidad" propuesta por Marcuse, este artículo señala que la principal connotación de la Nueva Sensibilidad es hacer hincapié en la forma, descuidar el contenido y suspender la moralidad. Sin embargo, la Nueva Sensibilidad, que hace demasiado hincapié en la experiencia perceptiva e ignora la dimensión moral, tiene sus defectos inherentes, que no pueden ignorarse. Por ello, este artículo toma finalmente como ejemplo la práctica crítica de Sontag sobre Riefenstahl para explicar específicamente los defectos de la Nueva Sensibilidad y reflexionar sobre ella. Más de medio siglo después de la Nueva Crítica de Sontag, la orientación y la reflexión de la misma son propicias para replantear el significado y el valor de la misma bajo el trasfondo de un mayor desarrollo de la ciencia y la tecnología y de estilos artísticos más diversificados en la era contemporánea.
Palabras clave: Susan Sontag. Nueva sensibilidad. La desaparición del arte. Campamento. Las artes visuales.
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Received: 31/05/2022
Accept: 09/08/2022
Resumo: Encontra-se, no título, a temática do artigo de Taminiaux: trata-se de uma abordagem sobre a relação entre filosofia e pintura, no pensamento de Merleau-Ponty. Ela desdobra-se em reflexões sobre seu projeto de superação das dicotomias clássicas sedimentadas na filosofia. O autor trata do tema a partir de três eixos, todos interligados ou entrecruzados, no interior da filosofia merleau-pontiana: a percepção, o pensamento e a pintura. O artigo é uma oportunidade para entrar em contato com a filosofia de Merleau-Ponty, particularmente em seu diálogo com o mundo da pintura, através do entrelaçamento entre pensamento e percepção.
Palavras-chave: Merleau-Ponty. Percepção. Pensamento. Pintura.
INTRODUÇÃO
O próprio título – O pensador e o pintor – sugere que, aos olhos de Merleau-Ponty, existe uma ligação, uma proximidade, um parentesco, entre a atividade à qual ele, enquanto filósofo, consagrou sua vida, e a atividade à qual os pintores dedicaram as suas.
Tal proximidade precisa ser esclarecida e explicada, porque ela está longe de ser óbvia. Basta lembrar, a esse respeito, que, para o fundador da tradição filosófica ocidental, as duas atividades das quais tratamos aqui são estritamente antinômicas. De fato, Platão sustenta fortemente, na República, que pintar é recusar-se a pensar e que a atividade de pensar exige um distanciamento com relação ao percebido, ao qual, por outro lado, o pintor nos conecta. Pintar é recusar-se a pensar, porque, para Platão, o pintor é, por excelência, aquele que toma partido pela aparência em detrimento do ser. Ele copia as aparências sem jamais considerar as essências, ou lida com as cópias sem jamais ter em vista seus modelos. Ele celebra o claro-escuro e os equívocos do sensível, tal como ele se entrega aos nossos olhos carnais, sem dar-se conta de que, para além dessa região confusa, é possível aos olhos do espírito, pelo pouco que ele se distancia da carne, ter acesso à ordem clara e distinta das ideias inteligíveis. Esse acesso, que é acesso ao ser além do aparecer e, mais precisamente, a um aparecer puro, livre das ambiguidades da aparência sensível, é reservado ao pensador. Ele permite ao pensador compreender com total clareza que aquilo de que o pintor se orgulha não merece outra coisa senão desdém: o trabalho ao qual ele devota tanto esforço é vão, pois, ainda que o pintor creia captar o que é verdadeiro, ele se deixa desviar pelo não ser. Desejando elevar as coisas sensíveis à glória do brilho pictural, ele só consegue a fabricação irrisória de cópias irreais de entes desprovidos de ser e de verdade, porque o sensível não é o meio pelo qual se oferece a verdadeira face das coisas. Os aspectos sensíveis das coisas são apenas os reflexos distorcidos de sua verdadeira fisionomia. Preso ao aspecto sensível das coisas, o pintor produz apenas reflexos dos reflexos.
Não cabe, neste momento, questionar as transformações que essa concepção platônica sofreu ao longo da história da filosofia, nem mesmo evocar sua persistência, sob diversas formas, nos escritos dos filósofos sobre a pintura.
Tais escritos são relativamente raros, porque apenas no início do século XIX, com Hegel e Schopenhauer, podemos encontrar análises de obras pictóricas elaboradas por filósofos de primeira linha. Limito-me a salientar que, embora esses pensadores dediquem bastante atenção à pintura e, por isso mesmo, pareçam reabilitá-la filosoficamente, concedendo a ela o estatuto honorável de uma forma de pensamento, suas análises continuam operando segundo as antíteses bimilenares elaboradas por Platão: a própria coisa e sua cópia, o real e o imaginário, a diversidade sensível e a unidade inteligível, o corpo e o espírito. Em outras palavras, o que essas análises restituem à pintura, por um lado, por outro a destituem. É assim que Hegel, contra Platão, argumenta que a arte tem relação com a Ideia, sendo sua manifestação. Mas ele imediatamente acrescenta, concordando profundamente com a distinção platônica entre o sensível e o inteligível, que o sensível, elemento no qual a arte produz suas obras, não é adequado à manifestação plena da Ideia. É dessa forma que Schopenhauer, contra Platão, também defende que a arte tem relação com a Ideia e a manifesta, o que não significa que a arte manifesta o caráter racional do real, como sustenta Hegel, mas, ao contrário, manifesta o caráter profundamente absurdo da coisa-em-si que é a vontade insaciável.
Todavia, Schopenhauer concorda profundamente com Platão, quando apresenta a ideia de que, embora seja uma forma eminente de pensamento por exibir a verdadeira fisionomia do real, a arte não é adequada para abordar aquilo que ela pensa, pela simples razão de ela continuar nos atrelando aos fenômenos sensíveis e, consequentemente, às emanações da vontade de viver, ao mesmo tempo que denuncia o absurdo de tais emanações. Apesar do abismo que os separa, Schopenhauer concorda com Hegel, seguindo Platão, quando afirma que o defeito da arte é o fato de ela nos amarrar ao sensível. E ambos continuam sustentando definitivamente, com Platão, a antinomia entre o pensamento e os laços com o sensível.
É justamente essa dicotomia que Merleau-Ponty recusará, do início ao fim de sua obra. Para ele, pensar não é desviar-se do percebido, mas reconhecer seu primado e habitá-lo, auscultá-lo, interrogá-lo, e a ele sempre retornar. E é justamente porque permanece fundamentalmente ligado ao percebido que o pensamento, no sentido em que Merleau-Ponty o entende exercer, liberta-se das dicotomias nas quais a tradição o aprisionou.
1 PERCEPÇÃO
Em que medida, então, o percebido convida o pensamento a livrar-se dessas dicotomias, fazendo-se tema privilegiado deste? Ora, na medida em que as dualidades de origem platônica não se aplicam ao percebido. As descrições husserlianas já haviam mostrado que a fenomenalidade específica do percebido entrecruza as antíteses que a tradição considerava heterogêneas, e Merleau-Ponty foi rápido em reconhecer o caráter inovador e bem fundado de tais descrições, comparando-as com a herança platônica, retomada e metamorfoseada por Descartes, em função do projeto científico da mathesis moderna. A tradição da filosofia moderna, seja ela racionalista, seja empirista ou kantiana, relegou o percebido ao regime da multiplicidade e da diversidade puras. Essa tradição sustenta que o percebido é refratário à unidade e à identidade.
Husserl reage contra essa tradição. Ele mostra que não é além ou acima da diversidade de seus aspectos — os famosos perfis husserlianos — que a coisa percebida adquire sua unidade e sua identidade. Essas características não ocorrem no objeto, posteriormente, vindas do exterior em função de um ato sintético do entendimento ou de uma repetição associativa. É no próprio coração da diversidade de seus perfis que se verifica imediatamente a unidade da coisa percebida. Eis, portanto, uma unidade que não é heterogênea à multiplicidade, pelo contrário, a requer e liga-se a ela estreitamente. A identidade, aqui, não é a antítese da diferença. O percebido perderia sua densidade perceptiva, sua carne; ele deixaria de ser percebido, se os aspectos que ele oferece não anunciassem outros, ainda não ofertados, latentes, os quais formam o horizonte dos primeiros. Uma coisa percebida de todos os lados de uma só vez não seria mais uma coisa percebida.
Enfim, o percebido escapa da antítese clássica entre o particular e o geral. O percebido nunca se dá como particularidade pura, como forma singular, como cor incomparável. Como observaram os psicólogos da Gestalt, subitamente a percepção generaliza: é verdade que nós vemos tal branco singular, e que o vemos como um exemplar da brancura. Subitamente, também, a percepção estiliza: é verdade que vemos uma árvore singular e que a vemos como um exemplar de árvore, e que, então, apreendemos ao mesmo tempo sua forma singular e o esquema nela que a relaciona com todas as demais árvores.
Além do entrecruzamento do particular e do geral, o percebido atesta ainda um entrecruzamento surpreendente do eu com o outro, uma sobreposição intersubjetiva. Como os perfis da coisa permanecem para mim na latência, na medida em que eu a inspeciono, a partir de meu ponto de vista, eu experimento imediatamente o fato de eles se mostrarem àquele que a inspeciona a partir de outro ponto de vista. E esses perfis não se apresentam a mim como imagens privadas ocorrendo na cena solipsista de meus estados de consciência, mas como os aspectos da coisa que testemunham sua consistência e que valem igualmente para aquele que está ao meu lado. A esse respeito, as descrições realizadas por Merleau-Ponty permitem que ele se aproprie das palavras de Husserl (Manuscrit K III1 III, p.19-20): “Nós vemos e ouvimos não simplesmente uns ao lado dos outros, mas uns com os outros (miteinander).”
É conveniente acrescentar a esses vários entrecruzamentos, que fazem o percebido ofuscar as antíteses clássicas, entrecruzamentos análogos, da parte do sujeito que percebe e na própria relação que ele mantém com o percebido.
Segundo um esquema tradicional firmemente estabelecido, a visão e o movimento são heterogêneos: uma coisa é ver, outra coisa é mover-se. Consequentemente, o sujeito que percebe é mais ou menos espontaneamente interpretado como um espectador que, além da capacidade de ver, teria também a capacidade de se mover. A fenomenologia da percepção abala essa distinção. Ela torna imperativo reconhecer que aquele que vê, ao passo que vê, e não por um acidente extrínseco, é “[...] um entrelaçamento de visão e movimento.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 16). Nesse sentido, ver é imediatamente ser capaz de juntar-se ao que se vê, de tê-lo a seu alcance, de restituir a capacidade de aproximar-se do que se vê. Conforme bem disse Merleau-Ponty, o “mapa do visível” se cruza com aquele de meus projetos motores e “[...] esse entrecruzamento extraordinário [...] nos impede de conceber a visão como uma operação do pensamento que construiria diante do espírito uma representação do mundo [...]” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 17).
Mas esse entrecruzamento da visão e do movimento, o qual ofusca os esquemas tradicionais, gravitando em torno da distinção da contemplação e da ação, acompanha outro “entrelaçamento”: aquele da visão e da visibilidade. O que o entrelaçamento da visão e da visibilidade recusa é outra distinção tradicional considerada como evidente: aquela da atividade e da passividade, mais precisamente, da espontaneidade e da receptividade. De fato, o titular do entrelaçamento da visão e do movimento faz parte do visível; ao mesmo tempo que o vê, ele é simultaneamente visível e vidente, e seu próprio corpo móvel, que faz parte do visível, é concomitantemente movido e movente, bem como é, ao mesmo tempo, tocante e tocado. Por isso mesmo, ele é sincronicamente descentralizado e centralizador e, paradoxalmente, é a mesma coisa dizer que “visível e móvel, meu corpo está entre as coisas, é uma delas”, e dizer, contrariamente:
Porque se vê e se move, ele tem as coisas ao seu redor, e elas são um anexo e um prolongamento de si, elas estão incrustadas na sua carne, elas fazem parte de sua definição plena e o mundo é feito do mesmo estofo do corpo. (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 19).
Além de recusarem as dicotomias tradicionais, esses entrelaçamentos, entrecruzamentos, essas reversões, também recusam a noção clássica de reflexão como cogito me cogitare, como presença a si da cogitatio no seu cogitatum. O que a fenomenologia da percepção ensina, contra essa noção clássica, é que existe uma reflexão no próprio coração da percepção, mas que tal reflexividade de modo algum faz da percepção um “pensamento de ver”, no sentido que Descartes dava a essa expressão. Por ser indissociável da “indivisão do senciente e do sensível”, a reflexividade nascida no próprio coração da percepção é esta de uma carne que permanece atrelada às coisas, ao mesmo tempo que se torna um para si. Há uma interioridade que, como ressalta Merleau-Ponty, “[...] não precede o arranjo material do corpo humano” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 20), porque ela ocorre graças a essa organização e, no entanto, “não deriva dela” como efeito de um conjunto formado pela soma de um certo número de partes. Dizer que a interioridade precede o arranjo do corpo significa que ela recai sobre ele como um espírito em um autômato e, por isso, “[...] o próprio corpo não tem um dentro e nem um ‘si’.” Dizer que a interioridade resulta do arranjo do corpo é concebê-la como efeito derivado da disposição das partes do corpo, é conceber esse arranjo partes extrapartes sem reconhecer no próprio corpo, em seu todo e em suas partes, e na relação destas com o todo, a possibilidade de refletir. É verdade que,
[...] se nossos olhos fossem feitos de tal forma que nenhuma parte de nosso corpo ficasse sob nosso olhar, ou se qualquer dispositivo maligno, deixando livre o movimento de nossas mãos sobre as coisas, nos impedisse de tocarmos nosso corpo - ou se simplesmente, como ocorre em certos animais, tivéssemos olhos laterais, sem uma sobreposição dos campos visuais - esse corpo, inapto para refletir sobre si mesmo, incapaz de sentir-se, esse corpo quase adamantino, que não seria exatamente carne, não seria mais um corpo de homem, e seria desprovido de humanidade. (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 20).
Mas isso não significa que a reflexividade corporal seja produzida pela disposição espacial dos órgãos, na qual cada um teria uma função estritamente determinada, pois essa disposição, precisamente por dar-se como partes extrapartes, também seria sem interseções, sem entrecruzamentos, sem entrelaçamentos. É preciso, então, admitir que esses entrelaçamentos são a base da qual nenhuma teoria mecanicista do corpo pode dar conta.
2 PENSAMENTO
Esses traços fenomênicos específicos do percebido e da percepção atribuem à atividade do pensamento, desde que este resolva dar direito àqueles e a eles permaneça unido, um ritmo bem diferente daquele assumido por ele, na tradição platônica ou na filosofia clássica moderna. Essa diferença é destacada no prefácio dos Signos, quase da mesma época do ensaio sobre “O Olho e o Espírito”.
Segundo a tradição cartesiana, o pensamento é pura atividade esclarecedora, diante da qual tudo aparece e que se identifica consigo mesma, sem nenhuma sombra, no regime identitário da pura presença a si. Não é mais dessa forma que se pode definir um pensamento que leva a sério o primado da percepção. “A filosofia de sobrevoo, diz Merleau-Ponty fortemente, foi um episódio, e ele acabou.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 20). À questão “o que é pensar?”, aquele que fez do mundo percebido sua casa não pode responder como Descartes ou Platão. Valéry se refere, em algum momento de sua obra, a um “corpo do espírito”. Entre outros temas, dois permitem que Merleau-Ponty destaque a adequação dessa concepção: o tempo e a linguagem. É a ligação intrínseca e concomitante entre o pensamento, o tempo e a linguagem que leva o pensamento a ser definido, assim como acontece com a percepção, em termos de entrelaçamento e entrecruzamento. Pensar, no sentido cartesiano, é intuir uma ideia clara e distinta, no instante presente: o pensamento se efetua no registro exclusivo do presente. E como esse pensamento é intuição pura, a linguagem não é essencial para ele, sendo apenas um instrumento destinado a preservar as intuições ou a relatar a outras pessoas as intuições que, como tais, transcendem a linguagem. Contra as concepções cartesianas, Merleau-Ponty ressalta a conexão intrínseca do pensamento, não com o presente, mas com o não atual. Se o pensamento se mantém, escreve o filósofo, é “[...] graças ao deslizamento que o joga no não-atual.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 21). Pensar é, de fato, apoiar-se sempre sobre um pensamento adquirido, o qual, por definição, é um passado, mas que em vez de simplesmente ser obsoleto, abre “[...] um advento do pensamento, um ciclo, um campo.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 21). Na atividade de pensar, compreendida dessa forma, o sucessivo e o simultâneo não são contraditórios, como eram em Descartes, pois se entrecruzam. Nesse sentido, Merleau-Ponty escreve:
“Se eu penso, não significa que eu saio do tempo, em um mundo inteligível, nem que eu recrio toda vez a significação a partir do nada, mas que a flecha do tempo leva tudo com ela, fazendo com que meus pensamentos sucessivos sejam, em um segundo sentido, simultâneos, ou pelo menos que eles legitimamente se entrecruzem. (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 21).
Olhando mais de perto, há aqui um duplo entrecruzamento: aquele do sucessivo e da simultaneidade, e também aquele do passado (o adquirido) com o porvir (o campo do pensamento que pede para ser explorado). E, olhando ainda mais de perto, muitos outros entrecruzamentos se ligam a esses. O tempo, ao qual a atividade de pensar está ligada, não é o pensador que o institui, nem é dele o mestre: o pensador sofre seu empurrão; ele o recebe, é receptivo e sensível a ele. Dizer que “[...] meu pensamento não é outra coisa que o avesso de meu tempo” é dizer, ao mesmo tempo, que ele é o avesso “[...] de meu ser passivo e sensível.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 22). Mas reconhecer isso é reconhecer que não posso pensar sem permanecer atrelado ao sensível ao mesmo tempo em que dele me distancio para refletir. É também reconhecer que o solipsismo do ego cogito é apenas uma abstração. É verdade que é preciso isolar-se para refletir, porém, mesmo nesse isolamento, os outros permanecem implicados. Existe, então, um entrecruzamento do sensível e do pensamento e dos outros com aquele que pensa. Merleau-Ponty condensa esse entrecruzamento nesta fórmula admirável: “Mas se meu pensamento não é outra coisa que o avesso de meu tempo, de meu ser passivo e sensível, quando tento apreender a mim mesmo o que tenho é todo o estofo do mundo sensível, e os outros atrelados a ele.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 22).
Assim, pensar não é deixar o sensível para passar ao inteligível, mas é refletir e recuperar as estruturas de entrecruzamento que são aquelas do sensível. Assim como ver é já ter visto e, contudo, permanecer aberto àquilo que falta ver, também pensar é sempre já ter pensado, e ainda permanecer aberto ao que resta para pensar. Em ambos os casos se opera a mesma conexão com o tempo. Temos uma tendência espontânea de crer que a percepção é uma relação espacial de um “aqui” que percebe e um “lá” percebido. Contudo, o tempo anima secretamente essa relação. A coisa que eu percebo é vista como estando diante de meu olhar que pousa sobre ela e, nesse sentido, ela é passado. Mas ao mesmo tempo ela se doa a mim como futuro, como “coisa esperada”, diz Merleau-Ponty, ou seja, como solicitante do poder que tenho de explorá-la, de investigá-la por todos os ângulos. Minha percepção, nesse sentido, é entrecruzamento de um atual e de um não atual, ou ainda de um visível e um invisível. Nesse entrecruzamento, os outros estão implicados, pois aquilo que é invisível para mim é imediatamente apreendido por mim como visível, através daqueles que estão do outro lado da coisa percebida. Aparecer perceptivamente é aparecer não apenas para um indivíduo, mas para vários. E assim como a menor percepção testemunha a pluralidade humana, o menor pensamento testemunha a presença do outro. Portanto, o que é pensar, senão dialogar consigo mesmo? Em tal diálogo, nós somos conduzidos pelas palavras das quais não somos os autores, mas que nos foram transmitidas por outros.
Tanto quanto a aderência ao tempo, a aderência do pensamento à linguagem confirma a adequação do termo de Valéry sobre a “carne do espírito”. O fato de que não se pode pensar sem falar a si mesmo, e que as palavras despertam os pensamentos, revela um entrecruzamento que torna inconsistente a ideia cartesiana de um pensamento que, na sua solidão, assume a posição de legislador universal.
Esse entrecruzamento é diferente de um paralelismo entre duas ordens, aquela das idealidades ou do significado e aquele do código que as exprime, no qual cada uma seria completa em si mesma. Sobre isso, Merleau-Ponty escreve:
As operações expressivas ocorrem entre a palavra pensante e pensamento falante, e não como se diz levianamente, entre pensamento e linguagem. Não é por eles serem paralelos que nós falamos, mas é porque falamos que eles são paralelos. A fraqueza de todo “paralelismo” está no fato de ele doar as correspondências entre as ordens e mascarar as operações que os produzem primordialmente através do entrecruzamento. (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 26).
Pensar não é contemplar o inteligível, é apoiar-se sobre palavras adquiridas, uma tradição de palavras onde se entrelaçam os outros e nós mesmos, e que são tanto “dimensões de pensamento” quanto “[...] esteira que nós continuamos.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 26). Assim como minha visão do objeto ao longe encontra em meu corpo uma correspondência que é a arte de me aproximar dele e ter uma visão mais próxima, também meu pensamento encontra nesse corpo de palavras sobre o qual me apoio, e que me é legado por uma tradição, a arte de dizer aquilo que ainda permanece a ser pensado. No entanto, nessas condições, a posição do pensador não tem muito a ver com a realeza soberba do filósofo platônico ou com a solidão do ego cartesiano. Da mesma forma que perceber é ser pego pelo visível, ou seja, fazer parte dele, da mesma forma pensar é ser pego “[...] por uma Palavra e por um Pensamento que nós não possuímos, mas que nos possui.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 27). Enquanto o pensamento de sobrevoo tinha “[...] o mundo prostrado a seus pés” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 31), o pensamento que tem seus laços nos diversos entrecruzamentos, aqui mencionados apressada e esquematicamente, é capaz de restituir aquilo que Merleau-Ponty chama de sua “verticalidade” do mundo.
3 PINTURA
Acredito que já dissemos o suficiente para que possamos agora voltar nossa atenção à pintura. Mas, antes de fazê-lo, como a noção de entrecruzamento teve um papel particularmente insistente na minha proposta, permita-me ainda ilustrar, com um exemplo familiar a todos, a falha das dicotomias clássicas. Trata-se simplesmente do cruzamento de dois olhares. Quando dois olhares se cruzam, ocorre um entrecruzamento do observador e do observado, do qual a filosofia da reflexão — aquela que prioriza o eu penso — não pode dar conta, porque ela propõe a dualidade do mesmo e do outro, do cogito e da extensão ou, como em Sartre, do nada e do ser. Para a filosofia da reflexão, só pode haver aqui uma simples justaposição de duas consciências, na qual uma das duas consciências reduz a outra a um objeto, e também é reduzida a um objeto pela outra, de tal modo que há “[...] sempre apenas um cogito por vez.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 24.) A alternativa apresentada pela reflexão é simples: ou eu observo e, por isso, sou sujeito e o outro é objeto; ou eu sou observado e, assim, me torno objeto e, o outro, sujeito. O que a reflexão não pode compreender é que o cruzamento de dois olhares supera essa dicotomia: há um ajuste fino entre um e outro ou, como enfatiza Merleau-Ponty, “[...] dois olhares, um no outro.” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 24).
A ideia central da meditação de Merleau-Ponty sobre a pintura, particularmente no ensaio sobre “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” e n’O Olho e o Espírito, é que todos os problemas da pintura se relacionam com os entrecruzamentos que evoquei, quando falei sobre percepção, entrecruzamentos, que, formando o tema central da obra de Merleau-Ponty, o levam a definir o próprio pensamento em termos de entrecruzamento.
Os pintores, como Dürer, frequentemente dizem que os traços de suas telas estavam na natureza, lá no mundo visível, e que eles se aplicam em decifrá-los, mas afirmam também que encontram esses traços neles mesmos. Assim, Cézanne declara que “[...] a natureza está no interior” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 22); ou aquele clássico chinês dizendo que, para pintar um bambu, é preciso fazê-lo crescer em si mesmo (cf. CHENG, François. Souffle-Esprit, Le Seuil, 1989, p. 158.) As duas afirmações não são contraditórias: elas devem ser tomadas conjuntamente. Juntas, elas dizem que o pintor não pinta simplesmente o visível, mas o entrecruzamento do visível e do vidente. As dimensões do visível são, como foi proposto, indissociáveis do vidente, do eco que elas suscitam em nosso corpo, na medida em que este as acolhe. É esse eco que o quadro torna visível. Nesse sentido, Merleau-Ponty questiona: “Esse equivalente interno, essa fórmula carnal de sua presença que as coisas suscitam em mim, porque ela não suscitaria um traço, ainda no domínio do visível, onde os outros olhares encontrariam os motivos que sustentam sua inspeção do mundo?” E ele responde: “Assim, aparece um visível em segunda potência, essência carnal ou ícone do primeiro.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 22). Há uma frase de Valéry que Merleau-Ponty gostava de citar: “O pintor emprega seu corpo.” Isso parece trivial: não podemos conceber um ser sem corpo, capaz de observar o motivo, de misturar as coisas, de segurar o pincel. A frase não tem nada de trivial, se ela significa que o pintor é aquele que exprime em sua tela o diagrama de uma das múltiplas relações de entrecruzamento que o visível mantém com nosso corpo.
Dessa forma, a tela nunca é um trompe-l’oeil, um duplo das coisas, uma cópia, um sistema de elementos ou de fragmentos ou de “dados visuais” emprestados do mundo dito “real”, para acessá-lo em sua ausência, como pensado por Platão com os gregos, ou Descartes, e também Pascal, no início da modernidade. A tela não é o duplo irreal do real: ela mostra ao olhar o diagrama bastante atual da vida das coisas, em nosso corpo. Isso nos faz compreender que, mesmo os artistas cuja obra está, à primeira vista, mais distante da percepção comum – um Giacometti, por exemplo –, podem escrever: “O que me interessa em todas as pinturas, é a semelhança.” E ele acrescenta, para destacar que tal semelhança nada tem a ver com um trompe-l’oeil: “[...] isto é para mim a semelhança: o que me faz descobrir um pouco o mundo exterior.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 24).
Nessas condições, o trabalho do pintor vem romper com o paradigma da distinção entre o real e o imaginário, sendo aquele verdadeiro e este ilusório e irreal. O que o trabalho do artista expõe ao nosso olhar não é um duplo irreal do real, mas aquilo que Merleau-Ponty chama, sem contradição, de “textura imaginária do real”. No entrecruzamento do visível com o vidente, há imediatamente o entrecruzamento imaginário-real. Tal entrecruzamento é expresso frequentemente pelos criadores mais inclinados a dar livre curso à fantasia. As palavras de Max Ernst, por exemplo, expressando todos os surrealistas: “[...] o papel do pintor é identificar e projetar aquilo que se vê nele.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 30-31). A cor também atesta esse entrecruzamento, se for verdade que, já no campo visual quotidiano e, consequentemente, na pintura, ela é indissociável do significado simbólico ou cultural nelas investidos, e não é definitivamente um puro “dado sensorial”, a não ser no laboratório do psicólogo.
Pode-se objetar: pode ser, mas esse diagrama que as coisas despertam no corpo do pintor só pertencem a ele, a seu mundo privado e, por isso, não é real. No entanto, o paradoxo é justamente o fato de que esse mundo alegadamente privado, tão logo é expresso, torna-se constitutivo de um mundo comum, e que o diagrama tornado tela desperta nos outros os ecos e impõe a cada um uma maneira de inspecionar o mundo. Proust observa, em La Recherche du Temps Perdu, que logo após os retratos femininos de Renoir terem suscitado sarcasmo e reprovação por causa de não semelhança com mulheres reais, as pessoas passaram a ver as mulheres sob a luz de Renoir. Pode-se dizer quase o mesmo sobre os retratos de Modigliani ou sobre os desenhos e papéis recortados de Matisse. Estranhas de início, essas obras logo reavivaram em cada um os ecos, as reminiscências carnais, e fizeram as pessoas reconhecerem os diagramas coletivos da feminidade.
Como podemos observar, o entrecruzamento do visível com o vidente toma corpo, por assim dizer, com o entrecruzamento do real e do imaginário e do privado com o comum.
Tudo se passa como se a pintura atestasse uma propagação generalizada do entrecruzamento. Mas retomemos o entrecruzamento entre o visível e o vidente. Ele opera, de fato, em duas direções. O visível, como acabamos de dizer, suscita naquele que vê um diagrama carnal de sua maneira de ser. É o mesmo que afirmar que o visível faz parte do vidente. Porém, inversamente, o vidente faz parte do visível. Essa noção é expressa por vários pintores que, como frisa Merleau-Ponty a respeito de Paul Klee, dizem sentirem-se “[...] observados pelas coisas.” (Cf. MERLEAU-PONTY, 1964, p. 31). É esse sentimento que é expresso iconograficamente, desde a época clássica, quando os pintores se representam em sua atividade pictórica (Matisse o faz em alguns desenhos), ou como em muitos interiores flamengos, ou holandeses, pela instalação de algum tipo de espectador no coração do visível, sob a forma de um espelho onde a cena é refletida. O espelho, sustenta Merleau-Ponty, é como um “[...] olhar pré-humano que é o emblema do olhar do pintor.” E ele acrescenta: “O espelho aparece porque eu sou vidente visível, porque há uma reflexividade do sensível que o espelho traduz e redobra”, e mais ainda, “Ele é o instrumento de uma magia universal que transforma as coisas em espetáculo, os espetáculos em coisas, eu em outro e o outro em mim.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 33-34). Se Merleau-Ponty fala aqui de magia, não é certamente por gostar do irracional, mas para marcar o contraste entre a visão efetiva e a reconstrução dela dada pelo pensamento analítico da filosofia da reflexão, como a de Descartes, por exemplo. Esse pensamento recusa, por princípio, a promiscuidade entre vidente e visível, de tal modo que
[...] um cartesiano não vê a si mesmo no espelho: ele vê um manequim, um “fora” que não é para ele a carne de sua carne, mas uma simples “imagem”, tomada pelo pensamento como um reflexo mecânico de seu próprio corpo, um reflexo ao qual o pensamento atribui, como a um efeito, alguma semelhança com sua causa. (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 38-39).
Os entrecruzamentos dos quais tratei até aqui estão longe de serem os únicos expressos pela pintura. De fato, o que a pintura expressa mais fortemente é o entrecruzamento recíproco de todas as dimensões do visível: luz, sombras, cores, reflexos, linhas. Não é necessário dizer que, para um pensamento de estilo cartesiano, linha e cor são distintos, como o são a forma e o conteúdo: a linha marca o contorno da coisa, o envelope que a cor vem preencher. Mas uma distinção desse tipo, clara para o entendimento, é contestada pela pintura. Algumas linhas, e nada mais que linhas, eram suficientes aos pintores pré-históricos da caverna de Teruel, na Espanha, para nos fazer ver um grupo de caçadores. Merleau-Ponty recorda que Leonardo da Vinci, no Tratado da Pintura, se referiu a “descobrir em cada objeto [...] a maneira particular pela qual uma certa linha sinuosa perpassa toda sua extensão como seu eixo gerador.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 72). Tomando um exemplo mais próximo a nós, Paul Klee foi um pintor para quem era necessária apenas uma linha para que estruturasse diante de nós o personagem de um “bruto tímido”, e para tornar visível uma espécie de gênese das coisas (Cf. MERLEAU-PONTY, 1964, p. 74). Isso mostra que a linha, em vez de ser um limite, pode exprimir a coisa, em sua inteireza, e paradoxalmente funcionar como uma “parte total”. O que vale para a linha vale também para a cor: ela também funciona como parte total capaz de sozinha apresentar o objeto em sua forma e volume próprios, como em Cézanne, que costumava dizer: “Quando a cor está em sua perfeição, a forma está em sua plenitude.”
Não menos significativo que os entrecruzamentos dos quais tenho falado é o fato de que frequentemente bons pintores – pensemos em Degas, Renoir, Picasso e Matisse – foram também bons escultores, ainda que os gestos e processos requeridos para fazer uma escultura sejam diferentes daqueles requeridos pela pintura. Merleau-Ponty vê nisso “[...] a prova de que há um sistema de equivalências, um Logos das linhas, das luzes, dos relevos, das massas, uma apresentação sem conceito do Ser universal.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 71). Ou como escreve, em outro trecho, “[...] um polimorfismo do Ser.”
É ainda a noção de entrecruzamento que guia a reflexão de Merleau-Ponty, mesmo não expressamente formulada, em sua meditação sobre o estilo, em seu ensaio sobre As vozes do silêncio de Malraux.
Por estilo podemos entender a coerência estrutural conquistada por uma obra individual, coerência com a qual o espectador se familiariza rapidamente e que lhe permite reconhecer como obras de determinado pintor as telas que ele nunca viu. Sobre isso, Malraux alude a uma “deformação coerente” que se exprime como se a forma conquistada pelo artista fosse puramente arbitrária com relação ao visível e coerente somente com relação a si mesma, no sentido de que o estilo forma uma espécie de sistema. Mais precisamente, ele se exprime como se o estilo fosse imposto soberanamente pelo artista, sem nenhuma preliminar no mundo visível. “As artes plásticas”, diz ele, “[...] não nascem de uma forma de ver o mundo, mas do fazê-lo.” Merleau-Ponty recusa esse voluntarismo, essa ideia de soberania, esse acosmismo.[195] E o que ele recusa nessas noções é precisamente o fato de que elas se fundamentam sobre as alternativas e os dualismos dos quais falamos. Malraux nos impõe uma escolha entre o mundo visível e o mundo espiritual do criador, e o mundo do criador não tem nenhum antecedente no mundo sensível, de modo que a vitória de um estilo parece implicar a abdicação de um grande número de outros, diante da genialidade do pintor. Porém, Merleau-Ponty afirma não haver abdicação, mas reconhecimento. Tal reconhecimento é baseado no fato de que o estilo se impõe simplesmente porque ele adere ao visível e, de alguma maneira, encontra nele seus antecedentes, sendo, nessa medida, acessível aos demais, como uma construção interindividual, não emergindo ex nihilo e jorrando da solidão tempestuosa do gênio (cf. MERLEAU-PONTY, 1960, p. 67-68 e 72-73). Visto pelos outros, o pintor pode às vezes aparecer como o criador de um contramundo, entretanto, para o pintor em trabalho, há um mundo, e é um mundo que lança a ele um apelo ao qual ele jamais cessará de responder.
Há ainda um último entrecruzamento. O pintor não responde somente àquilo que o mundo visível espera dele, nem meramente segue as tarefas inerentes à pintura, desde seus primeiros passos, mas ele se inscreve sempre em uma tradição da pintura, na medida em que há entrecruzamento entre sua obra e essa tradição. Nesse ponto, novamente o debate com Malraux é esclarecedor. Malraux insiste que a pintura forma uma aventura temporal única, de tal forma que há uma fraternidade entre pintores do passado e do presente, um parentesco entre passado e presente, nos problemas e soluções, em suma, uma unidade da pintura como tal. Contudo, essa unidade se exprime apenas como retrospectiva, ou seja, é tornada visível e, por assim dizer, constituída posteriormente pelo fenômeno moderno do museu. Assim, a unidade da pintura parece ser, para Malraux, trans-histórica, e ele vê na história efetiva nada além de desunião, uma luta de cada pintor com os demais, esquecimento, fracasso no reconhecimento. É essa dualidade — de um lado, a unidade do museu, e, de outro, a divisão histórica — que Merleau-Ponty recusa. Dizer que a unidade é retrospectiva é ignorar que, assim como ver é sempre ver mais do que se vê, ou seja, uma franja invisível que não tem lugar na totalidade dos dados estritamente visuais, em sentido positivo, também pintar é pintar além do que se pinta. Desde que existe, a pintura excede a si mesma. Ao mesmo tempo que ela se oferece aos olhares, ela abre um campo de visibilidade que a transborda, seu poder perceptivo é acoplado a um poder prospectivo. Em vez de opor a unidade intemporal do museu à divisão da história efetiva, trata-se de compreender a própria história efetiva em termos de entrecruzamentos temporais, nos quais nem o já adquirido e nem o novo são absolutos e a ideia “[...] de uma totalização da pintura [...] é desprovida de sentido.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 90).
Se for verdade que os entrecruzamentos constituem a raiz e a fonte do pensamento, e se for verdade, por outro lado, que a própria pintura tem suas raízes e sua fonte nos entrecruzamentos análogos, podemos compreender por que Merleau-Ponty fala de um “pensamento mudo” da pintura (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 91).
Compreende-se, com isso, que Merleau-Ponty está muito longe dos filósofos que, desde Platão, proclamam de uma maneira ou outra a necessária superação da pintura, seja em nome das Ideias, platônicas ou cartesianas, seja em nome daquelas da História do Espírito, ou daquela da Práxis material, da absurdidade da Vontade, seja ainda em nome da história do Ser. A atenção desses filósofos, embora falem de pintura, não se volta para a especificidade do visível.
Reconhecemos isso ao dizer, em sentido contrário a todas as grandes narrativas que, desde o mito da caverna, proclamam a morte da arte: “Ainda que dure milhões de anos, o mundo ainda estará por pintar, para os pintores, se eles ainda existirem, e acabará sem que seja totalmente pintado.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 90.)
REFERÊNCIAS
HUSSERL, E. Manuscrit K III1 III, p. 19-20.
MERLEAU-PONTY, M. Signes. Paris: Gallimard, 1960.
MERLEAU-PONTY, M. L’oeil et l’esprit. Paris: Gallimard, 1964.
Recebido: 25/01/2022
Aceito: 13/06/2022
[1] Docente no Departamento de Filosofia e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Marília, SP – Brasil e Líder do Grupo de Estudos em Filosofia da Informação, da Mente e Epistemologia – GEFIME (CNPq/UNESP). Editor responsável da Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da UNESP. Pesquisador CNPq/Pq-2. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5704-5328. E-mail: marcos.a.alves@unesp.br.
[2] Esta entrevista, realizada por telefone, em 15 de janeiro de 2021, faz parte do trabalho de coleta de fontes da pesquisa de pós-doutorado que realizamos junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás (PPGH/UFG). Agradecemos ao Professor Pedro Leão da Costa Neto pela ajuda na formulação das perguntas e ao próprio Professor Antonio Paim, pela disposição e disponibilidade em nos conceder a entrevista. Agradecemos ao Professor Marcos Aurélio Silva (UFSC) e a Aldo Rebelo, ex-deputado e ex-ministro, por nos facilitar o contato com Antonio Paim.
[3] Professor do Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Goiás (PPGHIS/UEG), Morrinhos, GO – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3736-4804. E-mail: jurucemattos@gmail.com.
[4] Edições da História das ideias filosóficas no Brasil: 1. ed. São Paulo: Grijalbo/Edusp, 1967, 276 p.; 2. ed. São Paulo: Grijalbo/Edusp, 1974, 431 p.; 3. ed. rev. e aum. São Paulo: Convívio/Instituto Nacional do Livro, 1984, 615 p.; 4. ed. rev. e aum. São Paulo: Convívio, 1987, 615 p.; 5. ed. rev. Londrina: Ed. UEL, 1997, 766 p.
[5] Recentemente, Antonio Paim foi entrevistado pelo jornalista Guilherme Evelin (conteúdo disponível em: https://epoca.globo.com/quem-antonio-AntonioPaim-filosofo-baiano-que-fez-cabeca-do-ministro-da-educacao-23361323) e por Aldo Rebelo, do canal Bonifácio do YouTube (disponível em: https://youtu.be/N5AOgmn2s2w). Ambos os entrevistadores perguntam a Antonio Paim questões mais relativas à conjuntura política, sem centrar em sua trajetória intelectual, a qual é nosso foco. Nesse sentido, a entrevista concedida a José Crisóstomo de Souza e Ricardo Andrade é particularmente interessante, disponível no site da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF): http://anpof.org/portal/index.php/en/2014-01-07-15-22-21/entrevistas/1980-crisostomo-e-ricardo-andrade-conversam-com-antonio-AntonioPaim-sobre-filosofia-no-brasil-1.
[6] A lista completa de artigos publicados por Antonio Paim, na Revista Brasileira de Filosofia, encontra-se no Índice (CDPB, 2005, p. 322-324). Sobre o Instituto Brasileiro de Filosofia, a Revista Brasileira de Filosofia e Miguel Reale, indicamos: GONÇALVES (2016, 2017a, 2017b, 2019a, 2017b, 2020a e 2020b), MOTOYAMA (2001), PATSCHIKI (2014), PINHO (2019), ZILLES (2000).
[7] Originalmente publicado em 1960, pela editora Itatiaia, de Belo Horizonte. A edição póstuma, publicada em 2015, pela editora Três Estrelas, de São Paulo, traz a apresentação de Antônio Paim. Quando o Golpe de 1964 foi dado, Peralva estava à frente do jornal carioca Correio da Manhã, e, após o Ato Institucional número 5 (AI-5), foi preso e acabou deixando o Brasil. Viveu na Alemanha Ocidental até 1979, quando foi promulgada a Lei de Anistia. De volta ao Brasil, integrou o conselho editorial do jornal Folha de S. Paulo, do qual foi correspondente no Japão.
[8] Soveral deve estar se referindo à Margaret Thatcher, primeira ministra do Reino Unido, entre 1979 e 1990, responsável por aplicar políticas neoliberais de austeridade e de desmonte do welfare state, naquele país.
[9] Publicação: Rio de Janeiro: Arte Nova, 1979.
[10] Trata-se do texto “Filosofia como autoconsciência de um povo”, que foi a conferência pronunciada por Miguel Reale, em 1961, durante a fundação da seção da cidade de Fortaleza do Instituto Brasileiro de Filosofia. O texto está disponível em livro de Antonio Paim (1979, p. 224-248), e foi publicado na obra: REALE, Miguel. Pluralismo e liberdade. São Paulo: Saraiva, 1963, p. 47-62. Para uma análise pormenorizada do IBF e da obra filosófica de Reale e do grupo ibeefeano, recomendamos: GONÇALVES, 2016, a ser publicada em breve.
[11] Lei Municipal 3.360/1984, Lei Estadual 4.281/1984 e Decreto Presidencial 92.368/1986.
[12] CENTRO de Documentação do Pensamento Brasileiro (CDPB). Dicionário Biobibliográfico de autores brasileiros: filosofia, pensamento político, sociologia, antropologia. Brasília: Senado Federal, 1999.
[13] Eduardo Silvério de Abranches de Soveral (1927-2003) foi um intelectual monarquista, professor, diplomata e filósofo português. Em Portugal, lecionou na Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. No Brasil, lecionou na Universidade Católica de Petrópolis, na Universidade Gama Filho e na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Foi membro da Academia de Ciências de Lisboa e da Academia Brasileira de Filosofia.
[14] Na Alemanha, os chefes do governo ocupam o cargo de “chanceler”.
[15] A Fundação Presidente Tancredo Neves (1910-1985) foi fundada em 28 de julho de 1987. A fundação mantém o Memorial Tancredo Neves, inaugurado em dezembro de 1990, sediado em São João del-Rei, Minas Gerais.
[16] Edmund Burke (1729-1797), um dos fundadores do conservadorismo moderno, publicou, em 1777, A Letter to the Sheriffs of Bristol (Uma carta aos delegados eleitores de Bristol).
[17] Vilmar da Silva Rocha foi presidente do Instituto Tancredo Neves entre 1997-2007, deputado estadual de Goiás, deputado federal e secretário de Estado do governador goiano Marconi Perillo, entre 2014 e 2018.
[18] Diógenes Arruda Câmara (1914-1979) foi um militante do PCB e diretor da Problemas – revista mensal de cultura política.
[19] Antonio Paim se refere aos levantes comunistas do ano de 1935, os quais ocorreram nas cidades do Rio de Janeiro, Recife e Natal, liderados pelo PCB. Sobre esse evento histórico, indicamos o livro de Marly de Almeida Gomes Vianna (2007).
[20] Boleslaw Bierut (1892-1956) foi Presidente da República Popular da Polônia de 1947 a 1952 e secretário do Partido Operário Unificado Polaco até sua morte.
[21] Nikita Kruschev (1894-1971) foi Primeiro Ministro da União Soviética entre 1958 e 1964.
[22] Antonio Paim se refere a Wladyslaw Gomulka (1905-1982), líder comunista polonês e primeiro secretário do Partido Operário Unificado Polaco.
[23] Sigla da Central Intelligence Agency, a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos.
[24] Pedro I (1672-1725), czar e imperador da Rússia.
[25] Roberto de Oliveira Campos (1917-2001) foi presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no governo de Juscelino Kubitschek, Ministro do Planejamento, entre 1964 e 1967, deputado federal e senador.
[26] A Comissão Preparatória do Plano Siderúrgico Nacional – também conhecida como “Comissão Mista” – foi criada em 5 de agosto de 1939, durante o Estado Novo, sob a presidência de Getúlio Vargas, que visava à construção de uma grande usina siderúrgica no Brasil, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), que foi sediada na cidade de Volta Redonda, Estado do Rio de Janeiro. Em setembro de 1940, após negociações com o governo dos Estados Unidos, um empréstimo para a construção da CSN foi liberado. A “Comissão Mista” foi reavivada em outras ocasiões, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra, entre 19 de julho de 1951 e 31 de julho de 1953, com vistas aos setores da agricultura, energia e transporte, e durante o segundo governo de Getúlio Vargas, que durou de 31 de janeiro de 1951 a 24 de agosto de 1954. Nessa ocasião, a Comissão Mista valeu-se dos estudos realizados pelas missões norte-americanas Cooke (1942) e Abbink (1948), enviadas ao Brasil, e aprovou 41 projetos do Plano de Reaparelhamento Econômico.
[27] Jornal diário que circulava no Rio de Janeiro, criado em 22 de maio de 1945 e fechado em dezembro de 1947, vinculado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB).
[28] João Alves Jobim Saldanha (1917-1990) foi um quadro histórico do PCB, jornalista, escritor, e dirigente técnico da Seleção Brasileira de Futebol, entre 1969 e 1970. Devido à sua militância contra a Ditadura, denunciando internacionalmente as atrocidades cometidas, acabou substituído por Mário Jorge Lobo Zagallo.
[29] PAIM, Antonio. A Filosofia da Escola do Recife. Rio de Janeiro: Saga, 1966.
[30] Miguel Reale foi membro do Conselho Federal de Cultura entre 1974 e 1989, tendo sido nomeado pelo Presidente Emílio Garrastazu Médici, durante a Ditadura Militar.
[31] Paulo Mercadante era filho de Xenofonte Mercadante, o qual foi um jurista brasileiro, deputado estadual constituinte de Minas Gerais, entre 1947 e 1951. Assim como Antonio Paim, Paulo havia sido do PCB e desligou-se do partido, após as revelações do Relatório Kruschev.
[32] Benedito Valadares (1892-1973) foi jornalista e influente político. Foi prefeito de sua cidade natal, Pato de Minas, governador de Minas Gerais, na época de Getúlio Vargas, entre 1933 e 1945, e posteriormente deputado federal e senador.
[33] Uma breve consideração sobre esse parágrafo da entrevista. Durante a entrevista, esse trecho foi dito pelo Professor Antonio Paim, quando respondia à pergunta seguinte, de número 9; todavia, ele retornou ao tema de Vita, de modo que inserimos essa fala aqui, para que o material ficasse mais organizado para a leitura.
[34] A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, criada em 1962) e a Universidade de São Paulo (USP, criada em 1934) são universidades públicas mantidas pelo governo do Estado de São Paulo.
[35] Ivan Domingues é autor de Filosofia no Brasil: Legados e Perspectivas - Ensaios Metafilosóficos (São Paulo: Unesp, 2017). Paulo Roberto Margutti Pinto é autor de História da Filosofia do Brasil (1500-hoje). 1ª Parte: O Período Colonial (1500-1822) (São Paulo: Loyola, 2013) e História da Filosofia do Brasil. A Ruptura Iluminista (1808-1843) (São Paulo: s Loyola, 2020).
[36] Este artículo ha sido elaborado en el marco del proyecto ANID/FONDECYT N° 11200836.
[37] Profesor del Departamento de Sociología de la Universidad Alberto Hurtado, Santiago – Chile. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2102-6966. E-mail: csembler@uahurtado.cl.
[38] La expresión “mutuamente desinteresados” corresponde a la conocida descripción que realiza John Rawls (1971, p. 14) de las partes en la “posición original” en su A Theory of Justice.
[39] Un ejemplo de tal experiencia de libertad describe Honneth (2011) a propósito de las relaciones personales como la familia o la amistad.
[40] Esta consideración es especialmente relevante, como se verá, para comprender los problemas sobre la democracia que genera un mercado carente de regulaciones sólidas.
[41] El problema tampoco se deriva, sostiene Held (2006, p. 121-122), directamente del mecanismo de la competencia: “La comercialización no debe confundirse con la competencia en sí. Cuando músicos o artistas compiten para ver cuál será juzgado como el mejor, podemos promover mejor los valores artísticos, no alejarnos de ellos […] Pero cualquier apoyo de la competencia también debe evaluarse a la luz de nuestras prioridades.”
[42] No es difícil apreciar una importante similitud entre esta descripción y aquella forma de reciprocidad que Honneth (2011) llama “libertad social”.
[43] Esto no quiere decir que los derechos, también en ámbitos como la familia, no tengan un importante significado moral en tanto garantías de libertad. El problema, desde la perspectiva de Honneth, consiste en la medida que su extralimitación desplaza o subordina el significado ético de otro tipo de prácticas basadas en la reciprocidad.
[44] Ahora bien, cabe indicar que durante el último tiempo Honneth (2016) ha sugerido también – a diferencia de Tronto, por ejemplo – algunos posibles límites del concepto “neoliberalismo” para el análisis de las sociedades contemporáneas.
[45] Professor Adjunto de Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS – Brasil. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2592-5590. Email: deniscoitinhosilveira@gmail.com.
[46] Scanlon, Daniels e Walden são outros influentes defensores do procedimento, asseverando que ele é o único método defensável em questões morais, sendo puras ilusões as outras aparentes alternativas, de sorte a constituir a concepção de normatividade que nos resta, uma vez que reconhecemos que um modelo absolutista é impraticável. Ver Scanlon (2003, p. 149); Walden (2013, p. 254); Daniels (1979, p. 256-257).
[47] Uma crítica mais recente feita por David Copp ressalta que o ER poderia implicar em conservadorismo na teoria moral, uma vez que a justificação das crenças se daria apenas pela consistência entre as crenças e não pela verdade das crenças iniciais. O problema central estaria na determinação dos juízos ponderados que seriam identificados apenas pela confiança do agente. Ver Copp (1985, p. 141-169).
[48] Siegel, por exemplo, defende que há uma circularidade viciosa no ER, pois o procedimento não ofereceria nenhum outro elemento, além daqueles que se justificariam internamente pela própria coerência. Por isso, no seu entender, o método falha como uma concepção plausível de justificação dos nossos juízos concernentes com esses princípios inferenciais. Ver Siegel (1992, p. 43-44).
[49] Julia Annas assevera que a virtude envolve um raciocínio prático que é similar ao exercício de uma habilidade prática, tal como nadar, jogar ou tocar um instrumento musical. Assim, o raciocínio prático do agente virtuoso compartilha características importantes daquela do expert prático, mas que deve contar com uma aspiração específica para ser uma pessoa melhor (perfeição). Ver Annas (2011, p. 1-7).
[50] Hurthouse também compreende ser esse o saber específico do pudente, chamando-o de modelo perceptual: “O que podemos chamar de ‘modelo perceptual’ toma o conhecimento especial do phronimos como tendo uma capacidade perceptual de ver corretamente o que ele deve fazer ou como agir bem em uma situação particular.” (HURTHOUSE, 2006, p. 285).
[51] Aquino sustenta, na Suma Teológica, que outras virtudes intelectuais, como sabedoria, ciência e arte, podem existir sem a virtude moral, mas a prudência não. E isso em razão de a prudência ser a reta razão da ação, sendo precedida pelo julgar e ordenar com respeito aos fins e meios que os conformam, não sendo isso possível sem a remoção dos obstáculos representados pelas paixões (2005, I-II, q.58, a4).
[52] David Carr faz uma reflexão muito interessante nesse sentido, ressaltando que o conhecimento do prudente tem relação com a premissa menor. O seu exemplo é que não se delibera especificamente sobre ser desejável o perdão aos agentes, quando possuidores de desculpas apropriadas, pois isso é intuído sem muita dificuldade pelo agente prudente. O caso específico de deliberação é considerar se o agente culpado em tal circunstância é, de fato, desculpável ou não. O erro deliberativo aqui levaria a uma conclusão falsa, a saber, a de que o agente deveria ser punido. Ver Carr (2020, p. 1391-1393).
[53] De forma similar, Scanlon enfatiza que os juízos ponderados no ER devem ser compreendidos como claramente verdadeiros. O seu ponto é dizer que não basta assegurar com confiança um juízo ponderado, sendo necessário, também, que o agente o tome como claramente verdadeiro, “[...] quando eu estou pensando sobre a questão sob boas condições para chegar a julgamentos deste tipo.” (SCANLON, 2014, p. 82). E, assim, a força justificatória dos juízos em ER dependem, também, dos méritos substantivos dos juízos que nós fazemos no processo e não apenas por sua coerência. Ver Scanlon (2014, p. 76-84).
[54] Na teoria contratualista de Scanlon, por exemplo, o que determina a razoabilidade é a aceitabilidade dos envolvidos. Em sua formulação, um ato é errado, se ele for proibido por um princípio que ninguém poderia razoavelmente rejeitar, e isso nos oferece uma razão direta de conexão com o ponto de vista dos outros. Nesse modelo deontológico, a justificação é intersubjetiva. Ver Scanlon (1998, p. 189-247).
[55] Hursthouse, em “Virtue theory and abortion”, apresenta o modelo da ética das virtudes de forma similar aos modelos consequencialista e deontológico, explicando-o da seguinte forma: “P.1. Uma ação é correta sse ela for o que um agente virtuoso faria em determinadas circunstâncias. P.1a. Um agente virtuoso é aquele que age virtuosamente, isto é, é aquele que tem e exercita as virtudes. P.2. Uma virtude é um traço de caráter que um ser humano precisa para florescer ou viver bem.” Ver Hursthouse (1997, p. 219).
[56] Professor no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, RS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8697-6105.E-mail: lmdalsotto@hotmail.com.
[57] Por ER, o professor Denis refere-se ao que Rawls denominou equilíbrio reflexivo amplo, em oposição a equilíbrio reflexivo restrito.
[58] Gostaria apenas de pontuar que não vejo como isso representaria um problema, pois teorias liberais que fazem uso de ER aceitam essa diversidade de sistemas de crenças coerentes. Acho que haveria um grave problema, se os sistemas fossem contraditórios, porém, esse não parece ser o conteúdo da objeção.
[59] Esse é um elemento que evidencia com clareza o caráter híbrido ou misto da teoria moral defendida pelo professor Denis.
[60] Rawls (1971) é um conhecido crítico do perfeccionismo e acredita que essa conciliação não é possível.
[61] Em The Morals of Modernity, Charles Larmore (1996) argumenta que a teoria moral de John Stuart Mill é um tipo de liberalismo-perfeccionista.
[62] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Guarapuava, PR – Brasil e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Cascavel, PR – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8977-8841. E-mail: marciano.spica@gmail.com.
[63] Professor do Curso de Graduação em Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7891-8896 E-mail: luciano.teixeira@uece.br.
[64] Evidentemente, deve-se levar em conta que o termo democracia, literalmente, não foi universalmente admitido, como se pode entender, no pensamento grego. Exceção dada a Tucídides, Heródoto considera o termo isonomia mais adequado ao que se chama democracia; Platão, por sua vez, critica a democracia e Aristóteles a concebe como uma forma desvirtuada da política. Guardada a retidão terminológica, refere-se, aqui, como democracia, à experiência política ática, nos anos que se seguem às reformas introduzidas por Sólon (e, principalmente, por Clístenes e Péricles), até o declínio, pós-Guerra do Peloponeso e o esfacelamento da experiência real, com a dominação macedônica.
[65] “[…] every Englishman shall be ‘intended’ – that is, understood – to be present in parliament, by himself or his representative.”
[66] Vale lembrar que, para Hobbes, o Soberano está sujeito ao julgamento de Deus, apenas. Também é de se notar, que o mau Soberano poderia vir a ser deposto pela Guerra Civil, mas ele é absolutamente intocável pela lei humana, a qual nada mais é do que a expressão de sua vontade racional.
[67] É claro que Skinner está ciente dessa questão. Linhas adiante, ele afirma: “[...] mas está longe da claridade o que ele quer dizer com esta afirmação, e ainda menos claro o que ele quer dizer ao acrescentar que essa pessoa também é a sede do poder.” (SKINNER, 2002, p. 178).
[68] “Tudo foi criado por ele e para ele e ele, existe antes de tudo; tudo nele se mantem, e ele é a cabeça do corpo, que é a Igreja.” (1Cl 1,17-18). Bíblia. Tradução Ecumênica. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2015.
[69] Antiga armadura, reconhecidamente usada entre os romanos, que era feita com pequenos segmentos de metal ou couro duro, costurados, formando uma proteção parecida com escamas.
[70] Docente do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), Itaquaquecetuba, SP – Brasil. Integrante do GEFPC (Grupo de Estudos de Filosofia Política Contemporânea, PUC-SP/CNPq) e do GPEPS (Grupo de Pesquisa em Educação, Politecnia e Sociedade, IFSP). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1479-3323. E-mail: andersonesteves@ifsp.edu.br.
[71] Professora associada da Universidade Federal do Ceará (UFC), Sobral, CE – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2306-4264. E-mail: ritahelenagomes@gmail.com.
[72] Para aprofundar essa discussão, veja-se Rosales (2013).
[73] Para aprofundar esse ponto, veja-se Souki (2008).
[74] This work was supported by the National Social Science Fund “Translation Mode, Dissemination and Influence of Burton Watson’s Translation of Chinese Classics” (Grant nº 19CYY025).
[75] Ph. D. Professor of Translation Studies. School of Foreign Studies, Northwestern Polytechnical University, Xi'an, 710129 – China. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6534-9471. E-mail: jasonlin@gdufe.edu.cn.
[76] Ph. D. School of Foreign Languages, Guangdong University of Finance and Economics, Guangzhou 510655 – China. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1355-1840. Corresponding author e-mail: yuxinbing@gdufe.edu.cn.
[77] Ph. D. School of Foreign Languages, Hunan University of Finance and Economics, Changsha 410205 – China. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2340-3091. E-mail: songliu0707@126.com.
[78] Ph. D. School of Foreign Languages, Guangdong University of Finance and Economics, Guangzhou 510655 – China. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3146-0029. E-mail: mingqiaoluo@yeah.net.
[79] Ph. D. College of Humanities, Arts, and Social Sciences, Nanyang Technological University, Singapore 308232 – Singapore. ORCID: https://orcid.org/000-0001-5776-7518. E-mail: younkonchou@yeah.net.
[80] Ph. D. Faculty of International Tourism and Management, City University of Macau, Macau, 999078 – China. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8033-5753. E-mail: gyuemeng@126.com.
[81] Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ – Brasil. orcid: https://orcid.org/0000-0003-3785-626X. E-mail: luis.alves.falcao@gmail.com.
[82] Sobre a presença indireta de Cícero, nos Discorsi, cf. Walker (1950, v. 2, p. 277). Para uma visão geral dos antigos, nos Discorsi, cf. Bausi (2015, p. 182-188). Os Discorsi serão citados de acordo com o livro, capítulo e linha da edição estabelecida por Giorgio Inglese (2010); O Príncipe, conforme o capítulo e paragrafação fixada por Raffaele Ruggiero (2008); as demais obras, pela edição das Opere, realizada por Corrado Vivanti (1997). Todas as traduções são nossas.
[83] Ainda que não seja propriamente errôneo empregar “contrato”, “pacto” e expressões similares para o universo romano, a fim de evitar anacronismos, pelo fato de que esse campo semântico se solidificou posteriormente a Maquiavel, optamos pela expressão “consentimento originário”, mais comum durante o medievo. Uma característica comum do contratualismo, embora seja mais forte em sua versão moderna, é o preceito natural de que todos os homens buscam a própria defesa. É possível encontrar expressões desse gênero em Maquiavel: “[...] e veja como aos homens primeiramente basta poder se defenderem a si mesmos e não serem dominados por outros” [“et vedete come agl’huomini prima basta potere difendere se medesimo et non essere dominato da altri”] (MACHIAVELLI, carta de 10/08/1513; 1997, v. 2, p. 277; cf. MACHIAVELLI, Discorsi, I, 37). Retomaremos esse ponto sob outro ângulo.
[84] Não seria implausível inserir Deodoro da Sicília entre os autores que apontam para esse tipo de reflexão (cf. SASSO, 1993, v. 1, p. 482), mas aqui não exploraremos essa hipótese, por ser uma conjectura mais distante dos termos conceituais de Maquiavel.
[85] “[...] nel principio del mondo, sendo gli abitatori radi, vissono un tempo dispersi a similitudine delle bestie.”
[86] Noções dessa espécie, segundo as quais houve época em que os homens se comportavam como bestas e que se tornariam homens verdadeiros após um contrato social, já se encontram em referências gregas, particularmente, sofistas, descritas por Platão (Político, 272a e Leis, 739 b-d). É bastante improvável que Maquiavel considere essas fontes e, mesmo que se aponte alguma similaridade, elas seriam demasiadamente distantes da versão romana. Mais plausível é que ele tenha extraído essas ideias dos escritores romanos, com a possível exceção de Deodoro da Sicília.
[87] É importante marcar, por exemplo, a glosa de Maquiavel (Il Principe, 18, 2) sobre Cícero (De Officiis, I, 34), na diferenciação dos modos de combate – os homens, com leis; as bestas, com a força – para que fique evidente que os homens diferem das bestas. Além disso, a despeito de afirmações quase idênticas, a comparação mostra que Maquiavel não seguia, geralmente, as afirmações dos autores citados em toda sua completude (BAUSI, 2015, p. 188). Outro exemplo, extraído tanto de O Príncipe quanto de seus escritos de governo, pode ser visto na descrição da virtù em linguagem francamente ciceroniana, com a imprescindível anulação da justiça como uma das virtudes. Sobre isso, cf. Skinner (2002b, p. 160-185).
[88] Sobre a presença de Aristóteles na obra de Maquiavel, cf. ao menos Falzone (2014), Guillemain (1976), Pedullà (2011, p. 293), Sasso (1993, v. 1), Walker (1950, v. 2, p. 273).
[89] “Il primo caso ocorre quando agli abitatori dipersi in molti e piccoli parti non pare vivere sicuri.”
[90] “[...] non potendo ciascuna per sé, e per il sito e per il piccolo numero, resistere a lo impeto di chi le assaltasse; et ad unirsi per loro difensione, venendo il nimico, non sono a tempo; o quando fussono, converrebbe loro lasciare abbandonati molti de’ loro ridotti e così verrebbero ad essere subita preda de’ loro inimici.”
[91] “[...] cominciarono infra loro, sanza altro príncipe particulare che gli ordinasse, a vivere sotto quelle leggi che parevono loro più atte a mantenerli.”
[92] Os estudos sobre natureza humana e naturalismo em Maquiavel têm merecido destaque em anos recentes. Cf., ao menos, a detalhada análise, com perspectivas críticas sobre a regularidade da natureza, de Lucchese (2015, p. 30-41), a interpretação de Lefort (1972, p. 485), a qual opõe o naturalismo clássico ao racionalismo, e a de Dotti (1979, p. 13), que se embasa nos princípios dos movimentos naturais.
[93] A passagem mais evidente de Cícero sobre o consentimento originário fundador da Civitas encontra-se em De Republica (I, 25, 39), obra que, em sua maior parte, foi redescoberta apenas no século XIX. A despeito de esse trecho específico ser comentado por Agostinho (De Civitate Dei, XIX, 21), é bastante implausível que Maquiavel tenha tido acesso e meditado sobre ele. Por isso, optamos por não comentá-lo. Para uma visão geral do tema do consentimento originário durante o Renascimento, cf. Lima (2019, p. 28, n. 1).
[94] “[...] dipoi moltiplicando la generazione si ragunarono insieme, e per potersi meglio difendere cominciarono a riguardare infra loro quello che fusse più robusto e di maggiore cuore, e feccionlo come capo e lo ubedivano.” O início de um novo governo, seja ele o primeiro de um povo, seja a partir do assalto ao governo anterior, necessita da força indistintamente da forma desse governo (cf. RUGGIERO, 2008, p. 74, n. 1). Aliás, essa ideia é uma constante no pensamento de Maquiavel, pois, já em 1503, escreve: “Todas as cidades que nunca foram governadas por determinado tempo por um príncipe absoluto, por optimates, ou pelo povo, como se governa essa [Florença], tiveram sua defesa através da mescla de forças e prudência, porque essa só não é suficiente e as primeiras ou não conduzem as coisas como se devem ou não as mantêm.” (MACHIAVELLI, Parole da dirle sopra...; 1997, v. 1, p. 12). [“Tucte le città le quali mai per alcun tempo si son governate per principe soluto, per optimati, o per populo, come si governa questa, hanno hauto per defensione loro le forze mescolate con la prudentia, perché questa non basta sola et quelle o non conducono le cose o conducte non le mantengano.”] A diferença para com o texto dos Discorsi é sutil, recaindo apenas na separação entre coragem e prudência. Mas é aqui que ele evidencia que todos os regimes são originalmente sustentados nessas duas características, e isso o difere da versão tradicional principesca de que o primeiro e mais natural dos governos é o principado. Cf. Maquiavel (Il Principe, 6, 6).
[95] Maquiavel elimina completamente a família, como instância intermediária entre o indivíduo e a coletividade. Lefort (1972, p. 470-473) afirma que essa omissão aprofunda “[...] a oposição entre estado de natureza e estado político”, contudo, remete-a ao diálogo com Políbio, e não com o aristotelismo ou o epicurismo. Na perspectiva aristotélica, ele passa diretamente para a vila (komê); na perspectiva lucreciana, para comunidade política em forma de Civitas. Isso reforça a prospectiva do consentimento originário, na medida em que se percebe a preponderância individual na formação dos agremiados humanos, de caráter voluntário, consentido, não natural nem espontâneo, mas mediado pela vontade e pelo desejo de segurança. A favor de uma interpretação aristotélica, todavia, pode-se lembrar que as “pequenas partes”, quando não se transmutam em cidades, fenecem e, com elas, qualquer vida humana.
[96] Salústio (Bellum Catilinae, II, 1) ressalta que os primeiros governos são sempre de reis, que exerciam o poder pela inteligência ou pelo corpo, ou seja, por atributos físicos e intelectuais do comandante originário.
[97] Lucrécio já havia exprimido a ideia de que “[...] grande parte [dos homens] conservava plenamente seus acordos [concordia]; caso contrário, todo gênero humano teria sido destruído, nem poderia a descendência ter-se propagado até hoje.” (LUCRÉCIO, De Rerum Natura, V, 1025). É verdade, porém, que, antes de um acordo geral de todos para com todos em razão da fundação das comunidades políticas, trata-se aqui de acordos individuais, nos quais se asseguram as vantagens de cada uma das partes em situações específicas. Nada semelhante ocorre em Maquiavel: seu princípio de união se volta tão somente à formação de um coletivo.
[98] “Perché, quando uno stato mutar fai,/dubita chi tu hai principe fatto,/tu non gli tolga quel che dato gli hai;/e non ti osserva poi fede né patto,/perché gli è più potente la paura/ch’egli ha di te, che l’obligo contratto.”
[99] “[...] alla natura umana poco amica,/per privarci di pace e porne in guerra/ per torci ogni quiete e ogni bene,/mandò duo furie ad abitare in terra.”
[100] “Queste nel mondo, come l’uom fu nato,/nacquoco ancora;”
[101] “[...] il mondo fu sempre ad un modo abitato da uomini che hanno avuto sempre le medesime passioni.”
[102] “[...] mutandosi gli uomini facilmente e diventando di buoni tristi.”
[103] “[...] non solamente variorono il governo e il principe, ma le leggi, i costumi, il modo del vivere, la religione, la lingua, l’abito, i nomi.”
[104] Sobre esse complexo tema, cf. ao menos Sasso (1993, v. 1, 167-399). Cf. Maquiavel (Discorsi, II, 5).
[105] “[...] dico come gli antichi poeti, i quali furono quelli che gli uomini erano nella prima età tanto buoni, che gli Idei non vi vergognorno di discendere di cielo et venire insieme con loro ad habitare la terra.”
[106] “[...] ne’ primi tempi/un petto ambizioso, un petto avaro,/quando gli uomini vivieno e nudi e scempi/d’ogni fortuna, e quando ancor non era/ di povertà e di ricchezze esempi.”
[107] “voglia infinta”
[108] “voglia ambiziosa”
[109] “[...] si fe’ la prima morte violenta/nel mondo, e la prima erba sanguinosa!”
[110] “Di qui nasce ch’un scende e l’altro sale;/di qui dipende, sanza legge o patto,/il variar d’ogni stato mortale.”
[111] Há casos em que “pacto” (patto) é utilizado por Maquiavel (Del modo di tratare i popoli della Valdichiana ribellati, 1997, v. 1, p. 23) com o sentido de conquista ou acordo de submissão entre dois povos, a fim de evitar a guerra (cf. MACHIAVELLI, l Principe, 8, 3) ou para defesa comum (cf. MACHIAVELLI, Dell’arte della guerra, I; 1997, v. 1, p. 556). Savonarola (1898, p. 80), em sua pregação sobre Ageo, de 12 de dezembro de 1494, descreve uma antiguidade de pura graça, mas, passando os tempos, “[...] pela voluptuosidade, os homens se tornaram efeminados e, consequentemente, mais fracos.”
[112] Uma importante evidência disso é a referência de Maquiavel à reunião de diferentes povos pelo medo comum do ataque de outro povo (MACHIAVELLI, carta de 20/06/1513; 1997, v. 2, p. 263). Se, por um lado, o medo pode ser visto como o operador da união de uma cidade, ele também o é para aproximar povos diferentes. Isso oportuniza a compreensão da potência do medo no sistema de Maquiavel (Il Principe, 17), mas, contrariamente, enfraquece a dimensão consensual que origina cidades. Há uma clara inspiração em Salústio (Bellum Iugurthinum, XLI, 4-5), no fato de que o medo une as cidades já formadas.
[113] A respeito da utilidade em Maquiavel, com referência a Cícero, cf. Walker (1950, v. 2, p. 278).
[114] Em 1483, Bartolomeo Scala publica um diálogo no qual apresenta o debate sobre a existência ou não de leis naturais e em quais medidas essas leis são concernentes aos costumes dos diferentes povos. Impactado pelas recentes descobertas geográficas, o texto comenta os “[...] povos desconhecidos que vivem completamente sem leis, como bestas [ferarum] obedecendo a natureza.” (SCALA, 2008, p. 175; On laws and legal judgments, 13). Na sequência dessa passagem, argumenta-se que a lei da natureza se sobrepõe a todas as demais e que é a única forma de se “viver bem”, numa clara alusão à boa vida aristotélica. Como nos outros dois humanistas, Bartolomeo Scala concilia as noções de consentimento originário com aristotelismo. Ainda que se tenha claro que Scala era provavelmente mais conhecido do entorno de Maquiavel, e provavelmente dele próprio, do que, por exemplo, Quirini, os termos do primitivismo e do consentimento originário são menos desenvolvidos por ele.
[115] O desenvolvimento demográfico das cidades é tratado em alguns lugares por Maquiavel, mas devemos remeter à circularidade entre o engrandecimento populacional de Roma com sua expansão (MACHIAVELLI, Discorsi, I, 4-8; MACHIAVELLI, Discorsi, II, 3). Cf. Pedullà (2001, p. 132).
[116] “Io non voglio giudicare s’egli era vero o no […] ma io dico bene che infiniti lo credevono.”
[117] “La cagione di questo credo sia da essere discorsa e interpretata da uomo che abbi notizia delle cose naturali e sopranaturali: il che non abbiamo noi.”
[118] Para uma leitura diferente, cf. Dotti (1979, p. 71).
[119] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9455-2057. E-mail: heltonadverse@hotmail.com.
[120] Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5180-6053. E-mail: marceloprates1@gmail.com.
[121] Tal é a síntese da tese ontológica: “O ser, com efeito, onde quer que seja, de onde quer que venha, e sob qualquer modo que seja considerado, quer seja ele o em-si ou o para-si ou o ideal impossível do em-si-para-si, na sua contingência primeira, é uma aventura individual.” (SARTRE, 2007a, p. 644, grifos nossos). Veja-se que não se trata de Ser e Nada, porém, de modos distintos de um mesmo Ser, pelo seu fundamento primeiro que é a contingência. Nesse caso, o mundo como resultado da relação entre em-si e para-si na sua unidade sintética não deveria ser tomado pelo princípio do Ser e do Nada, mas por sua aventura individual, isto é, sua finitude. Assim, é a finitude que subsume os princípios – e não o contrário. Embora apareça como um “buraco no ser”, tal imagem não é o resultado do jogo de princípios superiores, todavia, dado no coração mesmo da finitude, na imanência de um indivíduo como sua aventura.
[122] É essa condição que leva à separação entre ontologia e metafísica, em Sartre, isto é, entre o caráter estrutural da ontologia e o caráter genético da metafísica (PRADO JUNIOR, 2006, p. 33; 1989, p. 217). Esta última seria tomada não num sentido heideggeriano, mas resguardando “[...] algo do sentido quase negativo que recebera na Crítica da Razão Pura de Kant. Não o sentido de uma ciência ilusória (delírio da Razão), mas antes o de uma heurística que não deixa de ter sentido sem ser constitutiva, algo como um raciocínio hipotético que se diferencia do caráter apodítico da ontologia fenomenológica.” (PRADO JUNIOR, 2006, p. 33).
[123] Nesse sentido, é apenas porque o fenômeno se apresenta como totalidade que é hipostasiado o ser como totalidade, além de que, sendo o mundo resultado da mediação entre o ser e o nada, sendo o nada totalidade destotalizada e o mundo totalidade totalizada, o Ser só pode ser compreendido como reflexo dessa mesma totalidade, enquanto síntese impossível: “O para-si, que se mantém frente ao ser como sua própria totalidade, sendo ele mesmo o todo da negação, é negação do todo. Assim, a totalidade acabada, ou mundo, revela-se como constitutiva do ser da totalidade inacabada pela qual o ser da totalidade surge ao ser. É por meio do mundo que o para-si faz-se anunciar a si mesmo como totalidade destotalizada, o que significa que, por seu próprio surgimento, o para-si é revelação do ser como totalidade, na medida em que tem de ser sua própria totalidade de maneira destotalizada.” (SARTRE, 2007a, p. 217).
[124] O termo jogo convém mais para nomear tal relação, pelo fato de não haver totalidade a priori a dimensionar a forma mesma da liberdade e do fenômeno, senão pela quase-totalidade, a qual, como vimos, aponta à finitude do empreendimento. O resultado desse jogo ao qual se exigem nossos lances (já que somos nossa livre invenção), essa relação ontológica entre facticidade e transcendência, é a finitude singularizada.
[125] Observemos: “[...] a negação que sou e que desvela o isto tem de ser à maneira do ‘era’. Essa pura negação que, enquanto simples presença, não é, tem seu ser atrás de si, como passado ou facticidade. Enquanto tal, é preciso reconhecer que ele jamais é negação sem raízes. Ao contrário, é negação qualificada, se quisermos entender com isso que traz sua qualificação atrás de si como o ser que tem de não ser sob a forma do ‘era’. A negação surge como negação não-tética do passado, ao modo da determinação interna, enquanto faz-se negação tética do isto.” (SARTRE, 2007a, p. 238, grifos nossos). Assim, a negação é sempre uma tomada conjunta com a facticidade e não algo que se opera sobre ela. Mesmo que haja uma anterioridade lógica do Ser, o surgimento do nada é o próprio surgimento do há e do mundo. Só por abstração é que podemos purificar esses princípios, os quais, na realidade, são sintéticos.
[126] Isso porque “esta desvela-se a mim pelo fato de que a negação que sou é uma unidade-multiplicidade, mais que uma totalidade indiferenciada. Meu surgimento negativo ao ser fragmenta-se em negações independentes que só tem como nexo entre si o fato de serem negações que tenho de ser, ou seja, que tomam sua unidade interna de mim, e não do ser” (SARTRE, 2007a, p. 226 – negrito meu). Disso se segue: “Assim, a unidade e a pluralidade supõem originalmente um ser que realiza a unidade e a pluralidade no Ser, isto é, que seja ele mesmo sua própria relação. Portanto, o Ser não é antes do surgimento da falta, nem uno nem múltiplo. Não que ele seja outra coisa, mas simplesmente porque um ser só se manifesta como um ou como plural com a aparição do “há”. Nós poderíamos opor à teoria da unidade progressiva a coesão do Em-si. Mas este não é unidade – pois a unidade supõe justamente a diversidade – ela é pura densidade ou compressão. É precisamente a descompressão que, criando o recuo, produz ao mesmo tempo a quase-pluralidade. Mas é ela também que coloca a pluralidade e a exterioridade, pois o Para-si se determina como não sendo o conjunto dos seres” (SARTRE, 1983, p. 163, negrito meu). Observamos que é sempre pelo para-si que a exterioridade se torna essa pluralidade que invade o campo prático, mas que, por ter seu ser próprio (tese da transfenomenalidade do ser), ele não é constituído em seu ser pelo para-si, mas se constitui concomitantemente na situação.
[127] Complementamos: “Sartre não está alheio à multiplicidade que compõe o objeto de sua análise; no entanto, compreende que o múltiplo apenas pode fazer sentido caso se constitua como um todo. Essa exigência se aplica devido ao método progressivo-regressivo, afinal, o sentido da análise se encontra na síntese, isto é, a partir do existente apenas se justifica a totalização dialética. A totalização é responsável pela organização e unificação da pluralidade, e ela apenas se possibilita num cenário humano” (SILVA, 2010, p. 216).
[128] Acrescentemos: “[...] concebemos bem o que isso significa: se nós supomos a unidade antes do todo do Ser (absoluto espinozista), nós não poderemos descender à nenhuma determinação particular, pois não há nenhum meio para a plenitude absoluta conter nela mesma sua própria negação de um ponto de vista individual (que seria o modo). De outra parte, do ponto de vista próprio da negação pura, nós só podemos conceber que ela apareça sobre o fundo de uma unidade absoluta, porque, então, é preciso ao mesmo tempo negar a unidade na sua simplicidade própria. De resto, a unidade é necessariamente unificação. E não é jamais um dado, mas um ato. O dado é necessariamente plural e ele apenas aparece como um dado a um ser que é sua própria unidade.” (SARTRE, 1983, p. 162).
[129] Na verdade, é sobretudo pela tese da História na filosofia de Sartre que tal afirmação ganha mais legitimidade e fundamento. Trata-se de tese complexa, que exigiria maior trabalho e foge ao escopo proposto; apenas a indicamos mais à frente, neste trabalho.
[130] “Assim, o mundo, como correlativo de uma totalidade destotalizada, aparece como totalidade evanescente, no sentido de que jamais é uma síntese real, mas limitação ideal obtida pelo nada de uma coleção de istos. Assim, o contínuo como qualidade formal do fundo deixa aparecer o descontínuo como tipo da relação externa entre o isto e a totalidade. É precisamente esta evanescência perpétua da totalidade em coleção, o contínuo no descontínuo que nós chamamos espaço.” (SARTRE, 2007a, p. 219, grifos nossos). Encontramos aqui, ainda, os resquícios de idealismo de tal ontologia pela determinação do mundo como ideal. Não obstante, com a determinação dialética do mundo e a entrada da História, é um lugar-comum no pensamento de Sartre aceitar essa posição e a sua reparação posterior. Em todo caso, para maior aprofundamento, veja-se o trabalho de Donizetti da Silva, aqui utilizado.
[131] Novamente, o fazer pressupõe a autonomia da consciência se se quer enquanto fazer, sobretudo como práxis: “Se estou em condições de poder fazer qualquer coisa em geral, é necessário que exerça minha ação sobre seres cuja existência é independente da minha existência em geral e, em particular, da minha ação [...] a liberdade, portanto, encerra a existência de arredores a modificar, obstáculos a transpor, ferramentas a utilizar.” (SARTRE, 2007a, p. 551).
[132] Embora o objeto entre em minha trama existencial, ele é tomado em geral na sua indiferença social e histórica: “Com efeito, no campo prático-inerte, é a indiferença a tônica de nossa (falta de) percepção cotidiana do outro: só o notamos, de fato, quando ele interfere diretamente em nossa vida, nossos interesses, etc. No dia a dia, presos ao modo de vida serial, praticamos efetivamente aquele “solipsismo de fato” pelo qual se definia ontologicamente a indiferença em O ser e o nada.” (SANTOS, 2014, p. 182, grifo nosso).
[133] “[...] é impossível para mim ter qualquer experiência do objeto, como objeto distinto de mim, sem constitui-lo como objeto.” (SARTRE, 2007a, p. 212).
[134] Com relação a isso, é preciso observar, em O Ser e o Nada, a noção de ante-historicidade: “Também meu ser-para-outro, tal como o surgimento ao ser de minha consciência, tem o caráter de acontecimento absoluto. Uma vez que este acontecimento é ao mesmo tempo historialização – pois eu me temporalizo como presença ao outro – e condição de toda história, vamos denominá-lo por historialização ante-histórica.” (SARTRE, 2007a, p. 322). Ante-histórica, não no sentido de um tempo anterior à história, “[...] mas que faz parte desta temporalização original que se historializa e torna a história possível.” (SARTRE, 2007a, p. 322). Com isso, não que essa dimensão fáctica esteja ausente, pois é dada conjuntamente, mas por conta desses resquícios idealistas ou mesmo pelo grau de abstração em alguns momentos da obra, costuma-se relegar tal dimensão sintética.
[135] Acrescentamos: “[...] o cenário humano é o campo específico que totaliza a pluralidade, mas a totalização está sempre em curso; ainda que o objetivo almejado seja a totalidade, apenas são alcançadas totalizações parciais e deficitárias, porque a totalidade se define ontologicamente por um ser que não é a simples soma de suas partes. Por exigir reconhecer-se inteira e em cada uma de suas partes e necessitar de contato consigo mesma na relação entre suas partes e na relação dessas partes consigo, a totalidade apenas existe no âmbito do imaginário. A totalidade é correlata de um ato de imaginação e é, ao mesmo tempo, o objetivo almejado das totalizações presentes.” (SILVA, 2010, p. 216).
[136] Tal é a empreitada psicanalítica (e, dizemos, ontológica e fenomenológica) realizada em O Idiota da família: “O que procuramos aqui, nós, é a criança de sorte, o encontro de certo corpo com certa mãe: laço não-compreensível visto que duas séries se encontram sem que possamos explicar o cruzamento; e, ao mesmo tempo, compreensão primeira, fundamento compreensível de toda compreensão: de fato, essas determinações elementares, longe de somarem ou afetarem uma à outra em aparência, são imediatamente inscritas no campo sintético de uma totalização [...] Por fim subimos o curso dessa vida até o seu começo: nós a interrogamos sobre o primeiro acaso ultrapassado, isto é, sobre a característica fundamental de seu destino.” (SARTRE, 2013, p. 59, grifos nossos). Observemos que, com isso, o processo não é de todo conhecido, totalidade impossível para um ser que é totalização, mas totalidade compreensível, na medida em que sou essa totalização. Por isso, “[...] a compreensão refere-se sempre a um processo, e é a antítese do saber absoluto.” (SILVA, 2003, p. 57, grifos nossos). Portanto, “[...] a compreensão nada mais é que minha vida real, isto é, o movimento totalizador que reúne meu próximo, eu próprio e o meio ambiente na unidade sintética de uma objetivação em andamento.” (SARTRE, 2002, p. 116, grifos nossos). Assim, se enfatizamos a singularização como vivência e a vida como essa mediação vivida, é porque o que o vivido aponta é justamente a sua compreensão e não o seu conhecimento: “Quando eu mostro como Flaubert não se conhece por ele mesmo e como ao mesmo tempo ele se compreende admiravelmente, eu indico o que eu chamo de vivido, isto é, a vida em compreensão consigo mesma, sem que seja indicado um conhecimento, uma consciência tética. Essa noção de vivido é uma ferramenta que eu me sirvo mais que eu ainda não teorizei. Eu o farei em breve. Se vocês querem, em Flaubert, o vivido é quando ele fala das iluminações que ele tem e que o deixam em seguida na sombra sem que ele possa reencontrar os caminhos. De uma parte, ele está na sombra antes e na sombra depois, mas, de outra parte, há o momento onde ele vê ou compreende alguma coisa sobre si mesmo.” (SARTRE, 1976, p. 111).
[137] Reiteramos: “Ignorância multiforme que se apossa de minha liberdade e a aliena sem que ela seja avisada, a partir dos espessos deformantes da matéria ou das novas verdades dos séculos porvir. O inconsciente, esta discordância inaparente entre o investimento unívoco de minha subjetividade em tal ou tal escolha e a objetividade plurívoca que a petrifica e a desvia – sincronicamente pela contra-finalidade, e diacronicamente pela inevitável infidelidade do mundo depois do amanhã e das gerações futuras.” (SIMONT, 1998, p. 186, grifos nossos).
[138] Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0584-7377. E-mail: donizetti.silva@hotmail.com.
[139] El presente trabajo forma parte de los proyectos Fondecyt Regular nº 1210004 y nº 1220806.
[140] PhD en Filosofía, Académico Departamento de Filosofía e Investigador asociado al Grupo de Investigación en Lenguajes y Materialidades da Universidad Adolfo Ibáñez (UAI), Santiago – Chile. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3766-7656. E-mail: pedro.moscoso@uai.cl.
[141] Consignamos, por una parte, el hecho que la noción de “crítica” – separación, distinción, ordenamiento, discernimiento – y la de “crisis” -la disección de sus elementos en sus partes constituyentes – comparten, etimológicamente, la misma raíz [krinein] (FROSH, 2019). Por otra parte, pensamos este nodo crítica-crisis a razón de los principios de la modernidad fundados por Immanuel Kant, y retomados más tarde por Michel Foucault a la luz de la analítica de la finitud, es decir, a partir de la problemática del límite, al emerger una “[…] tensión del pensamiento sobre sus propias condiciones de existencia”; límite que deviene crisis, actitud límite (MOSCOSO-FLORES; FUSTER, 2018): “La crítica es, ciertamente, el análisis de los límites y la reflexión sobre estos.” (FOUCAULT, 2007, p. 90). De modo que sería pertinente comenzar por abrir una interrogante respecto de la actualidad de la crítica y sus potenciales actualizaciones, es decir, una pregunta por las posibilidades que esta tiene de hacer frente al contexto de devastación contemporáneo. Sin dar una respuesta definitiva a esta cuestión nos parece sugerente el análisis que plantea Diego Sztulwark (2019) quien, refiriéndose a la crisis argentina del 2001, propone una tensión al interior de dicha noción al visibilizarla cooptada por las discursividades estatales, ajustándola a estrategias de normalización que operarían a la base del enclave binomial crisis-orden/norma-excepción.
[142] Por esto entendemos tanto los marcos impuestos por los estándares de construcción y validación del conocimiento científico, así como también las diversas tecnologías, estrategias de circulación, prácticas de reproducción, distribución y consumo concertadas alrededor de las tareas se producción y publicación de papers científicos en revistas indexadas y las estrategias de socialización del saber. Estos sistemas de prácticas parecen, a simple vista, ser subsidiarios a mecanismos de regulación del conocimiento por parte de grandes corporaciones educacionales sostenidas desde enclaves regulados por las lógicas del mercado. Esto, en definitiva, ha decantado en un modelo de producción de conocimientos filosóficos altamente individualizantes (THAYER, 2019).
[143] Respecto a esta disyunción teórico-práctica, nos resuena la reflexión surgida entre Foucault y Deleuze publicada en el número 49 de la revista L`Arc, del año 1972. En ella, Deleuze define el tratamiento habitual de la relación entre teoría y práctica como una de totalización: “[…] como una aplicación de la teoría, como una consecuencia, o bien al contrario, como aquello en lo que la teoría tenía que inspirarse, como si fuera ella misma creadora de una forma futura de teoría.” Por el contrario, el filósofo vitalista propone un nuevo acercamiento en que “[…] teoría y práctica son mucho más parciales y fragmentarias […] una teoría es siempre local, relativa a un dominio pequeño y puede encontrar sus aplicaciones en otro dominio más o menos lejano.” (DELEUZE, 2005, p. 267-268).
[144] Para el estudio que proponemos, es del todo interesante la alusión que hace Foucault respecto de la situación de desagregación en que ya a fines de los años setenta se encontraba la filosofía continental – en particular las filosofías del sujeto –, en la medida que le parecía poco probable que la Filosofía – con mayúscula – pudiera asumir el desafío de dar cuenta de las grandes preguntas que han aquejado históricamente a la humanidad: “Parecería que esta especie de filosofía ya no es viable; que, si quieren, la filosofía se ha, si no volatilizado, de algún modo dispersado: de que hay un cambio teórico que se conjuga, de alguna manera, en plural […] no digo que haya desaparecido, sino que está diseminada en una gran cantidad de tareas diversas.” (FOUCAULT apud CASTRO, 2004, p. 161-162).
[145] Proponemos la noción de “artefacto” – etimológicamente vinculada a la conjunción ars [arte] y factus [hecho] – más allá de su comprensión habitual centrada en el objeto, para introducir tres condiciones vinculadas a los procesos que están a la base de una práctica. En este sentido, como señalan Re y Berti (2011), un artefacto: 1) supone una producción intencional; 2) dicha creación se produce partir de una modificación material; 3) por último, presupone una intencionalidad o una finalidad específica, aun cuando dicha finalidad no pueda ser asegurada a priori de modo definitivo. Siguiendo esta línea, Margolis (2009) propone una aproximación estético-filosófica procesual, híbrida, que reposiciona lo humano en función de una compleja red de contactos e intercambios entre artefactos (simbólicos, sociales, técnicos, materiales etc.).
[146] Se hace interesante notar que existen pocos estudios dirigidos directamente a la problematización y delimitación de la noción de práctica filosófica al interior del campo disciplinar. Lo anterior referido, tal vez, al hecho que dicha inquietud podría ser entendida como una cuestión que requiere de otras categorías extra-filosóficas para poder realizarse (SCHATZKI; SHOVE, 2016). Dentro de las escasas referencias explíticas a esta temática encontramos el trabajo de Grimes y Uliana (1998), quienes proponen la mayéutica socrática como método para desarrollar una clinical philosophy. En esta misma línea, Marinoff (2001) utiliza esta noción para referirse a un quehacer cercano al counseling o la psicoterapia, a saber, como un encuadre analítico individual centrado en las condiciones de justificación empírica de determinados pensamientos y acciones asociados a razonamientos adecuados/inadecuados. Aun así, comprendemos que esta falta de sistematización del concepto no implica una ausencia de trabajos e investigaciones posibles de concertar en torno a una práctica filosófica, si entendemos por ello el uso de categorías filosóficas para enfrentar y problematizar fenómenos humanos y más que humanos en contextos situados singulares.
[147] Esta cuestión remite directamente a la pregunta por los límites de la filosofía. Siguiendo a Nancy, tal vez sería pertinente abrir una interrogante respecto a las implicancias epistémicas y políticas de que la disciplina filosófica se haya orientado hacia el ámbito del entendimiento centrado en un orden predominantemente visual: primacía de la forma, el marco, la representación, todos elementos de una dimensión sensible sensata [logos]. Por el contrario, el filósofo propone la “escucha” como un modo de aproximación sensible de otro tipo, a saber, que opera en torno a resonancias o, diremos, de intensificaciones. Registro sonoro que, “[…] en todo caso se propone como una estructura abierta, espaciada y espaciadora (caja de resonancia, espacio acústico, aparatamiento de una remisión), al mismo tiempo que como cruce, refriega, recubrimiento en la remisión de lo sensible a lo sensato, así como a los otros sentidos.” (2015, p. 23).
[148] La inversión de la dialéctica hegeliana permite a Marx proponer la primacía de la materialidad -o de las prácticas materiales- por sobre el pensamiento; en otras palabras, un pensamiento que no puede -so riesgo de alienación- ser deslindado de sus propias condiciones materiales específicas de producción. Y, en esta misma línea, Marx sitúa las relaciones entre individuos y cosas, o entre individuos, como unas -entre otras- formas de materialidad, lo que posibilita augurar las bases para pensar la dimensión procesual y práctica inscrita en estas materialidades. Procesos que derivan, en definitiva, en las capacidades de transformación de la realidad.
[149] Con esto nos referimos a una suerte de “doble faz” que emerge a lo largo de la obra de Marx, lo que a su vez le permite pensar el problema de dicha relación desde un esquema dialéctico. Por un lado, aquella concepción gnoseológica de la materia del jóven Marx que identifica la “naturaleza” como “exterioridad” (SCHMIDT, 1977), es decir, como guiada por sus propias leyes independientes de cualquier tipo de conciencia y/o intervención humana. Por otro lado la naturaleza vinculada a la fuerza de trabajo, como elemento clave del proceso dialéctico que sirve para justificar la inseparabilidad entre naturaleza e historia (SMITH; O’KEEFE, 1980).
[150] Tal y como nos señalan Coole y Frost (2010), los Nuevos Materialismos suponen un ethos sustentado en una concepción de la materia como aquello que posee capacidades agenciantes, subvirtiendo de este modo el esquema hombre-mundo instaurado por el modelo de pensamiento newtoniano-cartesiano. En este sentido, podrían clasificarse dentro de las corrientes centradas en torno a lo posthumano, rescatando la complejidad de los procesos de inter e intra acción presentes en el estudio de los fenómenos mundanos, entendiendo la materialidad como más que meros objetos (BARAD, 2007; FROST, 2016). En forma análoga, Rosi Braidotti (2012), siguiendo el pensamiento de algunos autores como Foucault y Deleuze, señala que esta corriente puede ser pensada a la luz de una epistemología situada de carácter pragmático-creativo.
[151] Esta alusión refiere específicamente al pensamiento y a las derivas que Deleuze ha abierto por medio de la actualización del pensamiento de otros tantos filósofos y pensadores. En este punto nos interesa consignar la afinidad entre el pensamiento deleuziano y el vitalismo bergsoniano, en la medida que la idea de “vida” de este último permite augurar un acercamiento al mundo que reposa metodológicamente en la capacidad intuitiva que ella trae consigo: “Conocimiento de la inmersión, del roce, de la inmanencia, del arrojo […] Conoce porque crea, y porque puede interrogar la propia experiencia del fluir de la conciencia […] Entre conciencia y materia […] no hay diferencia de naturaleza, sino de grado e intensidad.” (LÓPEZ apud BERGSON, 2017, p. 14), siendo la Naturaleza [como totalidad] la expresión de diferencias de naturalezas y de grados. Siguiendo esta línea, Bergson propone lo vital como un movimiento, a saber, como una “[…] virtualidad que se está actualizando, de una simplicidad que se está diferenciando, de una totalidad que se está dividiendo.” (DELEUZE, 2017, p. 90-91).
[152] Parece pertinente diferenciar entre aquellas perspectivas que ponen énfasis en la dimensión ontológica de los objetos como entidades materiales que poseen una fuerza autónoma respecto de sus posibilidades de autoorganización, como el caso de la Object Oriented Ontology [OOO] (HARMAN, 2018) y el Realismo Especulativo (BRYANT; SRNICEK; HARMAN, 2011). Y, por otro, aquellos neomaterialismos que se concertan alrededor de una ontología procesual, es decir, a las potencias relacionales singulares producto de encuentros disyuntivos contingentes entre objetos – humanos y no humanos (BARAD, 2007; BENNETT, 2010; BRAIDOTTI, 2013; DELANDA, 2016).
[153] Como nos enseña Deleuze, subsiste en Spinoza una teoría de las afecciones referida a los grados de potencia que componen la esencia singular de los individuos. Potencia desde la que no parece pertinente darle preeminencia al pensar sobre el existir y el actuar: “Así la distinción de la potencia y acto, al nivel del modo, desaparece en provecho de una correlación entre dos potencias igualmente actuales, potencia de actuar y potencia de padecer […] la potencia de actuar (o fuerza de existir) ‘aumenta’ o ‘disminuye’ según la proporción de afecciones activas que contribuyen a cumplir ese poder a cada instante.” (1999, p. 87). En otras palabras, la potencia remite a la medida de todo ser finito formando parte de un todo, razón por la que está siempre en una relación de poder afectar y ser afectada (SPINOZA, 1986, 1999). Dentro de este planteamiento emerge la noción de cuerpo como una materialidad compuesta por partes, cuya característica fundamental es la dimensión relacional que posee dentro de una multiplicidad de otros cuerpos que se afectan mutuamente (DELEUZE, 2004). Para explicar esta aclaración, Deleuze remite a la distinción entre affectio y affectus, utilizando la primera, “afección” para designar “[…] el efecto instantáneo de una imagen de cosa sobre mí” (DELEUZE, 2008, p. 226), mientras que la segunda, el “afecto”, refiere a “[…] lo que toda afección envuelve y que es sin embargo de otra naturaleza, es el pasaje, es la tradición vivida del estado precedente al estado actual, o del estado actual al estado siguiente.” (DELEUZE, 2008, p. 228).
[154] Utilizamos este concepto atendiendo a su acepción original en francés [déraper], entendiendo por esto un deslizamiento que acontece en una dirección oblicua; asunto que, a su vez, nos lleva a un segundo sentido del término según el que algo emerge fuera de lo esperado o de lo posible de controlar. Esto, a nuestro modo de ver, obliga al pensamiento -en tanto simulacro imaginario- a enfrentarse a su propia extrañeza, al ser confrontado con aquellos elementos fragmentarios que lo componen pero que se hacen imposibles de integrar.
[155] PhD en Filosofía, Investigador del Centro de Estudios Avanzados y Coordinador del Grupo Interdisciplinario de Investigación Avanzada: Patrimonio, Espacio Social y Desarrollo Territorial de la Universidad de Playa Ancha (UPLA), Valparaíso – Chile. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3713-4155. E-mail: patricio.landaeta@upla.cl.
[156] Department of Journalism, School of Journalism & Communication, Jinan University, Guangzhou 510632 – China. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2314-378X. Email: researcher_xzc@163.com.
[157] The Patronatus Missionum is a grant of rights, privileges and obligations from the Pope to the Portuguese imperial, the financer of the Roman Catholic Church in Catholic parishes and churches across Asia, Africa, and Brazil.
[158] The series of meetings held in October 1580, July 1581 and December 1581 in Bungo, Azuchi and Nagasaki, respectively, according to historical material from ADDITIONAL MANUSCRIPT SERIES, British Library n. 9852, v. 72-73.
[159] ADDITIONAL MANUSCRIPT SERIES, British Library n. 9852, v. 72-73.
[160] ADDITIONAL MANUSCRIPT SERIES, British Library n. 9852, v. 72-73.
[161] COELHO, CHINESE AND JAPANESE ANCIENT CUSTOMS SERIES. Tabularium, Archives of Jesus Church, IX (I), v. 44-45, May 13 1581.
[162] Later, other monasteries entered Japan successively to preach, and many events transpired. This corroborated the opponents’ worries at this meeting.
[163] RODRIGUES, Jesuitism - Asia Series, The Ajuda Library, Lisbon n. 49-IV-53, v. 29.
[164] VALIGNANO, CHINESE AND JAPANESE ANCIENT CUSTOMS SERIES. Archives of Jesus Church, XII (Ib), v. 126, June 15, 1593.
[165] The Spanish called him Philip II, while the Portuguese called him Philip I.
[166] VALIGNANO, CHINESE AND JAPANESE ANCIENT CUSTOMS SERIES, Tabularium, Archives of Jesus Church, XLI, v. 13-14.
[167] MESQUITA, Nagasaki, CHINESE AND JAPANESE ANCIENT CUSTOMS SERIES, Tabularium, Archives of Jesus Church, XII (Ib), v. 120-121, June 12, 1593.
[168] ORGANTINO, Nagasaki, CHINESE AND JAPANESE ANCIENT CUSTOMS SERIES, Tabularium, Archives of Jesus Church, XIV (II), v. 279, March 28 1607.
[169] The Jesuits who took solemn vows were to make special oaths to the Pope in addition to the four monastic vows – poverty, purity, poverty tolerance, and obedience. The Jesuit elders and professors were selected from among those in this capacity.
[170] ORGANTINO, Nagasaki, CHINESE AND JAPANESE ANCIENT CUSTOMS SERIES, Tabularium, Archives of Jesus Church, XIV (II), v. 279, March 28, 1607.
[171] The date of the visit might have been as late as 1584; most likely it was after Fray Odoric arrived in Japan in the 14th Century; VALIGNANO, CHINESE AND JAPANESE ANCIENT CUSTOMS SERIES, Archives of Jesus Church, XLI, v. 9.
[172] VALIGNANO, CHINESE AND JAPANESE ANCIENT CUSTOMS SERIES, Tabularium, Archives of Jesus Church, XLI.
[173] Jesuitism - Asia Series, The Ajuda Library, Lisbon no. 49-IV-56, V. 24.
[174] PEREZ, CHINESE AND JAPANESE ANCIENT CUSTOMS SERIES. Tabularium, Archives of Jesus Church, XLI, v. 36.
[175] FROIS, Jesuitism - Asia Series, The Ajuda Library, Lisbon n. 49-IV-57, v. 190-192.
[176] FROIS, Jesuitism - Asia Series, The Ajuda Library, Lisbon n. 49-IV-57, v. 190-192.
[177] CHINESE AND JAPANESE ANCIENT CUSTOMS SERIES. Tabularium, Archives of Jesus Church, XXXIa, v. 84.
[178] CHINESE AND JAPANESE ANCIENT CUSTOMS SERIES. Tabularium, Archives of Jesus Church, XXXIa, v. 85.
[179] MARTINS, Nagasaki, CHINESE AND JAPANESE ANCIENT CUSTOMS SERIES. Tabularium, Archives of Jesus Church, XIII (I), v. 16-18, May 23-24, 1596.
[180] MARTINS, Nagasaki, CHINESE AND JAPANESE ANCIENT CUSTOMS SERIES. Tabularium, Archives of Jesus Church, XIII(I), v. 16, May 23-24, 1596.
[181] These proceedings were common at the time. Rodrigues attended at least six of these hearings during his stay in Japan (COOPER, 1991, p. 122).
[182] ALVAREZ TALADRIZ, Original Data, Additional Manuscript Series, British Library n. 9860, v. 13-20.
[183] At this hearing, 13 reports were written on the missionary and martyrdom of the Franciscans in Japan. A total of 15 witnesses, including Figueiredo, the commander of the boat that Martins rode back and forth, attested to the accuracy of the report's records. The reports documented the Franciscans when they had first arrived in Japan, and their arrests and executions during their activities in the capital, Osaka, and Nagasaki. This is according to Perez, Jesuitism - Asia Series, Ajuda Library, Lisbon n. 49, v. 3.
[184] Among the witnesses were Francesco Pasio, Pedro Morejon and two Augustinian priests, as well as several believers. There are also believers who came to Japan on the San Felipe.
[185] Rodrigues reached Nagasaki from Macau on August 15, and then traveled to court to arrange Bishop Martins’ audience. Then, he left the capital with Garces on September 20, and returned to Nagasaki. On Rodrigues’ arrival at the port, presumably around the end of September, he found that Martins was away visiting the boys’ school, and so he wrote to the bishop sharing the latest news from the court with him. Rodrigues certainly preceded Martins back to court to arrange the audience, but the exact date of his arrival at the capital is unknown. The San Felipe was founded in Urado on October 20, and the ship’s deputation reached Osaka on October 29. However, certainly, Rodrigues was not in the capital on this date, as Rodrigues and Pasio, Morejon, and Christoval de Mercado later testified to this. Therefore, it can be presumed that Rodrigues had not returned to the capital by October 29. However by that time, the fate of the San Felipe had already been decided, as Masuda had issued a decree ordering the preparation of a fleet of barges to carry away the confiscated cargo. FRIAS, Additional Manuscript Series, British Library n. 9860, v. 51.
[186] CHINESE AND JAPANESE ANCIENT CUSTOMS SERIES, Archives of Jesus Church, LXV, v. 159.
[187] School of Foreign Languages, Sichuan Normal University, Chengdu, 610101 – China. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8035-5212. Email: nancy_618618@163.com.
[188] Marcuse put forward the concept of “imagination” in The Aesthetic Dimension. Inspired by Kant, Marcuse believed that the “productive” and creative senses provided the empirical materials for the imagination, while the reason provided the logical guidance for the imagination. In the conception of the imagination, the sensibility and reason wanted to be combined, thus creating the free kingdom of imagination. Thus, Marcuse believed in the power of imagination to reconstruct reality. See Marcuse, The Aesthetic Dimension, preceding quote, p. 110-112.
[189] Apparently, in the Western English-speaking world, the word “camp” was popularized by Sontag. However, there are several different versions of its origin. Bruce Rogers argues that camp was a 16th century variant of the French word “campagne”, meaning the village where passing pantomime troupes went to perform. Thomas A. King believes camp is from Middle English “cammock” or “Cambok”, meaning a crooked branch. This understanding may have something to do with the Welsh word “cambren”, which is a portmanteau of “CAM”, meaning “curved” and “pre” meaning “branch”. It has also been linked to the “Akimbo”, a posture of poise of the aristocrats in 18th century, as well as gay subcultures such as mollies. The more modern understanding is that the word is derived from the abbreviation “KAMP” for “Known as male prostitute.” Other popular explanations suggest that the word comes from the French slang “se camper”, meaning “to present oneself in an exaggerated manner” or “to boldly present oneself,” which is the most accepted interpretation of camp today. All these information can be referred to the book The Politics and Poetics of Camp, edited by Moe Meyer.
[190] Sontag uses “taste” instead of “gusto”, which means “hobby”. It can be seen that the concept of taste which Sontag wants to express is not divorced from sensory intuitive experience, which can also indicate that Camp sensibility is also based on sensual experience, which overlapped with New Sensibility.
[191] As for the identity as a Nazi filmmaker, Riefenstahl has been on the defensive that she was only employed by Hitler to work for him for just seven months, and she usually took her female director’s status as a “pretext”. She pointed out that male intellectuals used to work for Nazi or pro-Nazi, such as Heidegger, Salvador Dalí (1904-1989, Spanish painter), Herbert von Karajan (1908-1989, Austrian conductor), Roberto Rossellini (1906-1977, Italian director) and others, and they were not affected by this experience at all and even gained their fame in respective fields. In contrast, she was blamed simply because she was a woman, and “women are not allowed to make mistakes.” However, that is not the case, as critics have proved that her aesthetic propositions or pursuit of film qualities highly matched Hitler’s political philosophy through detailed argumentations. Therefore, she could not claim that she was innocent. And the fact that she refused to admit the pains her films really brought to the people worldwide made people cannot forgive her Nazi filmmaker identity.
[192] Through a detailed reading of Sontag’s discussion on fascist aesthetics, this paper argues that if only from the perspective of fascist aesthetics, Sontag does not completely deny it. She even thinks that as a special aesthetic style, it is sometimes reflected in modern and contemporary youth pop culture with relatively positive significance. It is just that Sontag elaborated on Riefenstahl’s fascist aesthetic works in the later period (at this time, she no longer only paid attention to the aesthetic level, but also began to examine from the moral level), and adopted a critical perspective to condemn her fascist opinions. For details, see Susan Sontag, Under the Sign of Saturn, preceding quote, p. 90-91.
[193] Título original: “Le penseur et le peintre: sur Merleau-Ponty”, publicado pela revista La Part de L’Oeil, em sua edição de nº 7, Dossier: Art et Phénoménologie, p. 39-46, no ano de 1991. Agradeço a Dirk Dehouck pela gentileza e atenção, e pela autorização da publicação da tradução do texto em português. O autor Jacques Taminiaux (in memoriam) foi um filósofo belga, professor emérito da Université de Louvain e do Boston College.
[194] Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7795-8116 E-mail: tnschw@usp.br. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
[195] Negação do mundo real e sensível. [N.T.]