Sumário

 

Apresentação_________________________________________________________ 4

Marcos Antonio Alves________________________________________________ 4

 

Por uma Filosofia (da Religião) Criativa: o Problema da Formação Filosófica a partir de uma Analogia com a Música____________________________________ 17

Agnaldo Cuoco Portugal; Clarissa Pimentel Portugal_______________________ 17

Comentário a “Por uma filosofia (da religião) Criativa”: o problema da formação filosófica a partir de uma analogia com a música___________________________ 46

Murilo Rocha Seabra________________________________________________ 46

 

Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir______ 50

Alfredo Pereira Jr.; Vinícius Jonas de Aguiar_____________________________ 50

Comentário a “Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir”_____________________________________________________________ 78

Juliana de Orione Arraes Fagundes_____________________________________ 78

Comentário a “Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir”: o lugar e a função dos afetos e das emoções: uma crítica psicanalítica dos fundamentos e aplicações da sentiômica__________________________________ 83

Manuel Moreira da Silva_____________________________________________ 83

 

Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético_______________________________________________ 92

André J. Abath_____________________________________________________ 92

Comentário a “Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético”_________________________________ 122

Felipe G. A. Moreira_______________________________________________ 122

 

Comentário a “Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético”: de conceitos a perguntas, de perguntas a conceitos__________________________________________________________ 127

Cesar Schirmer dos Santos___________________________________________ 127

 

O disjuntivismo ecológico e o argumento causal___________________________ 132

Eros Moreira de Carvalho___________________________________________ 132

Comentário a “O disjuntivismo ecológico e o argumento causal”_____________ 158

Sabrina Balthazar Ramos Ferreira_____________________________________ 158

 

Qual o papel das experiências subjetivas na crítica social? Distinguindo entre justiça de primeira e de segunda ordem________________________________________ 164

Filipe Campello___________________________________________________ 164

 

Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo______________ 185

Giovanni Rolla____________________________________________________ 185

Comentário a “Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo”: representações situadas como um terreno comum entre o cognitivismo e o enativismo__________________________________________________________________ 213

Felipe Nogueira de Carvalho_________________________________________ 213

Comentário a “Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo” 219

Marcos Silva_____________________________________________________ 219

 

A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos___________________________________________________________ 225

Ivan Domingues___________________________________________________ 225

Comentário a “A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos”_______________________________________________ 243

Lúcio Álvaro Marques______________________________________________ 243

 

Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica________________ 248

Jonas Gonçalves Coelho____________________________________________ 248

Comentário a Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica”__ 264

Leonardo Ferreira Almada___________________________________________ 264

 

Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira__________________________________________________________ 269

José Crisóstomo de Souza___________________________________________ 269

Comentário a “Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira”: a filosofia é conversação_____________________ 304

Waldomiro J. Silva Filho____________________________________________ 304

 

Inteligência contínua: a sétima revolução cognitiva do Sapiens_______________ 311

Lucia Santaella____________________________________________________ 311

Comentário a “Inteligência contínua: a sétima revolução cognitiva do Sapiens”_ 326

Adriano Messias___________________________________________________ 326

 

Hábitos e racionalidade: um estudo filosófico-interdisciplinar sobre autonomia na era dos big data_____________________________________________________ 330

Maria Eunice Gonzalez; Mariana C. Broens; José Artur Quilici-Gonzalez; Guiou Kobayashi_______________________________________________________ 330

Comentário a “Hábitos e racionalidade: um estudo filosófico-interdisciplinar sobre autonomia na era dos big data”: buscando o equilíbrio no fio da navalha digital_ 348

Maxwell Morais de Lima-Filho_______________________________________ 348

 

Leis de ponte na Filosofia da Mente e nas Ciências Físicas__________________ 364

Osvaldo Pessoa Jr._________________________________________________ 364

Comentário a “Leis de ponte na filosofia da mente e nas ciências físicas”_______ 378

José Gladstone Almeida Júnior_______________________________________ 378

 

A cultura pode evoluir?_______________________________________________ 383

Paulo C. Abrantes_________________________________________________ 383

Comentário a “A cultura pode evoluir”: a evolução cultural da cultura cumulativa – a hipótese da “automontagem” como uma teoria de “coevolução cultura-cultura”__________________________________________________________________ 418

João Pinheiro_____________________________________________________ 418

 

Sobre o status metafísico das cores______________________________________ 426

Plínio Junqueira Smith______________________________________________ 426

Comentário a “Sobre o status metafísico das cores”: sobre o projeto de uma metafísica cética sobre as cores________________________________________ 452

Luiz A. A. Eva____________________________________________________ 452

Comentário a “Sobre o status metafísico das cores”: a concepção comum das cores e a ciência das cores__________________________________________________ 462

Raquel Krempel___________________________________________________ 462

 

Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão_______________ 467

Roberto Horácio de Sá Pereira; Sérgio Farias de Souza Filho; Victor Machado Barcellos________________________________________________________ 467

Comentário a “Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão”: cerebralismo radical_________________________________________________ 500

César Fernando Meurer_____________________________________________ 500

Comentário a “Por que somos nossos cérebros” e “Por que não somos só o nosso cérebro”: avaliando um debate_________________________________________ 506

Ralph Ings Bannell_________________________________________________ 506

 

Uma visão de mundo filosófica_________________________________________ 514

Rodrigo Reis Lastra Cid_____________________________________________ 514

Comentário ao artigo: “Uma visão de mundo filosófica”: visões de mundo filosóficas e visões da filosofia__________________________________________________ 538

Gregory Gaboardi_________________________________________________ 538

 

O perspectivismo neutro e a função biológica de experiências fenomênicas______ 542

Sofia Inês Albornoz Stein___________________________________________ 542

Comment on “O perpectivismo neutro e a função biológica de experiências fenomênicas”_______________________________________________________ 560

Ricardo Augusto Perera_____________________________________________ 560

 

Contextualismo e relativismo na ética___________________________________ 564

Wilson Mendonça_________________________________________________ 564

Comments on “Contextualismo e relativismo na ética”: relativism in ethics_____ 602

André Fuhrmann__________________________________________________ 602

Comentário a “Contextualismo e relativismo na ética”: contextualismo e relativismo na ética___________________________________________________________ 606

Léo Peruzzo Júnior________________________________________________ 606


 

Apresentação

 

Marcos Antonio Alves[1]

 

Algo vem mudando na comunidade filosófica nacional. A tradição de pesquisa baseada em análises hermenêuticas e de comentários de grandes nomes da história da filosofia, embora ainda permaneça dominante e seja de grande valia e relevância, vem abrindo espaço para o surgimento, no Brasil, de uma área de reflexão filosófica feita em primeira pessoa. De início modesta e reservada a pequenos nichos, essa área vem se ampliando, nos últimos anos.

Os adeptos dessa metodologia não visam a comentar as propostas de filósofos, incluindo os considerados tradicionais, sem, no entanto, desmerecê-los ou menosprezá-los, nem mesmo dar suas respostas, através das citações de outros. Buscam, em boa parte das vezes, a partir de uma abordagem interdisciplinar e com o uso de ferramentas conceituais contemporâneas, oferecer respostas próprias a questões filosóficas, muitas delas tradicionais. Nesse sentido, são as suas propostas que devem ser comentadas, analisadas e avaliadas.

Foi nesse contexto que, em 24 de junho de 2020, Gustavo Leal Toledo, coeditor desta edição, me envia a seguinte pergunta, via redes sociais:

A Trans/Form/Ação não estaria interessada em fazer um número bem diverso dos especiais que são padrão na academia brasileira? Eu pensei em um fascículo sobre Filosofia Brasileira, no sentido de Pensadoras e Pensadores nacionais que realizam estudos mais livres e autorais, que se constituem em propostas próprias ao desenvolvimento de problemas filosóficos.

 

A minha resposta, de imediato, expressou minha admiração pela excelente ideia, observando a sua harmonia com o que já estávamos realizando, na revista. Lembrei que, naquele momento, já estávamos organizando o “Especial Filosofias do Sul”, o qual se identificava com esse estilo autoral, valorizando e apoiando a reflexão própria sobre questões filosóficas, em função de uma perspectiva de pensadoras e pensadores do Hemisfério Sul. Tal edição especial, lançada em 2022, chamava para publicação de textos com pensamento em primeira pessoa, sem que se baseassem na citação, interpretação ou divulgação de outros autores ou de suas ideias. O próximo passo seria pensar em algo especificamente brasileiro, o que veio a calhar com a proposta do professor Toledo.

Dada a convergência da proposta com os intuitos recentes da linha editorial da Trans/Form/Ação, passamos a conceber este fascículo, ora apresentado. Por questões diversas, decidimos compô-lo não por chamada aberta, mas por convite aos autores. Elaboramos, pois, uma lista de possíveis contribuidores, cerca de trinta. Nossa escolha tomou como ponto de partida a mais equânime distribuição possível de gênero e de proveniência geográfica. De alguma forma, tais critérios foram atingidos, nesta publicação. Embora ainda haja uma maior concentração de autores do sexo masculino e da Região Sudeste, a porcentagem de autoria está bem distribuída, se comparada à porcentagem de artigos normalmente publicados por mulheres, na filosofia, ou oriundos desta região do país em relação às demais. Nosso intuito, ainda, com este fascículo, seguindo os princípios da revista, é contribuir para essa melhor distribuição. Buscamos a socialização do conhecimento produzido, sem distinção de gênero, raça, localização geográfica, bem como preferências ideológicas, linhas de pensamento, áreas de pesquisa ou metodologias filosóficas.

Entretanto, como toda escolha, também por conta do espaço, tempo e restrições financeiras, há sempre algum tipo de delimitação, com base em certos critérios. O rol de textos aqui publicados possui, em boa parte, um direcionamento de pesquisa, voltado especialmente a uma linha mais analítica. Não desconsideramos ou desconhecemos a existência de outras frentes, com diferentes objetivos e perspectivas das oferecidas aqui, na discussão e contribuição para a composição de uma filosofia brasileira ou de um pensamento autoral. Mas foi necessária uma escolha.

Uma vez feitos os convites aos possíveis autores, o prazo para envio dos artigos, em sua primeira versão, foi para setembro de 2021. Em geral, a construção de textos filosóficos exige um período de maturação e constituição. Mesmo para esses autores, cujo texto produzido seria resultado de suas pesquisas, algumas já de longa data, outros de jovens pesquisadores, mas já especialistas e promissores em suas áreas, seria necessário um tempo mínimo para a recepção da primeira versão do artigo.

Uma vez recebidos os textos, fizemos uma experiência de publicação de Preprints, seguindo os princípios do Programa “Ciência Aberta”. Publicamos os textos no ScieLO Preprints e na página da revista Academia.edu, onde ficaram por aproximadamente dez meses disponíveis. Nesse período, os autores poderiam receber contribuições de leitores aos seus textos ainda em composição.

Ademais, em outra frente, realizamos a XXXIII Jornada de Filosofia e Teoria das Ciências humanas da Unesp, com o tema “Filosofia Autoral Brasileira” (https://www.marilia.unesp.br/#!/eventos/2022/xxxiii-jornada-de-filosofia-e-teoria-das-ciencias-humanas-filosofia-autoral-brasileira/). Os vídeos podem ser conferidos no canal da Unesp, que nos auxiliou na produção do evento, implementado pelo Grupo de Estudos em Filosofia da Informação, da Mente e Epistemologia – GEFIME (https://www.youtube.com/playlist?list=PLzEm9RCekzdjzXrfdYFhFOmNQMqNEKPj4). Os autores deste fascículo, em sua maioria, puderam apresentar seus textos, discutindo-os com a comunidade acadêmica, tendo outra oportunidade de aprimorar suas ideias aqui, por fim, publicadas.

Uma vez enviados os textos em sua versão final, submetidos no sistema da Revista, o próximo passo editorial foi, a partir de junho de 2022, cumprir outra difícil tarefa de revistas acadêmicas: a busca por avaliadores. Mesmo para os fascículos especiais, a Trans/Form/Ação prima pela avaliação dos artigos enviados, passando pelo crivo de pareceristas, no modo de parecer duplo cego. Entretanto, nesse caso, procurando cumprir outro requisito do Programa “Ciência Aberta”, os pareceres seguiram o modo aberto de revisão por pares, no qual tanto o avaliador quanto o avaliado são identificados. Por volta de agosto de 2022, os autores receberam os textos com as observações dos avaliadores e tiveram o prazo até novembro, para fazer as adequações finais.

Uma vez aprovados os textos, os próprios avaliadores foram convidados a compor um comentário a respeito do texto avaliado, prática já consagrada na Revista e de grande sucesso, como apontado por Alves (2021). Aqueles que puderam aceitar esse convite têm seus comentários publicados nesta edição.

Uma vez recebidos os textos, partimos, no começo de 2023, para o serviço de revisões técnicas, como correção gramatical e normalização dos textos, que, depois de corrigidos, voltaram novamente aos autores, para sua aprovação final. Em abril de 2023, estávamos com todos os textos em sua versão definitiva e fizemos a diagramação com posterior publicação dos textos, na página da revista e em outros ambientes, como ANPOF e Academia.edu. Por fim, foi feita a marcação XML para publicação em certos portais, como SciELO e REdalyc, possibilitando a indexação dos artigos em determinados bancos de dados, como Scopus, SJR, Web of Science.

Os textos foram apresentados em ordem alfabética de seus autores, seguindo o padrão da revista. Ao contrário do evento, os textos não foram agrupados por temas. Ainda assim, podemos distinguir duas linhas basilares temáticas: por um lado, há textos que discutem o que seria uma filosofia brasileira, um pensamento autoral. Em outra frente, encontramos textos que tratam de problemas filosóficos em diferentes áreas, tais como epistemologia, ética, metafísica, filosofia da mente, ciências cognitivas.

Por questões técnicas, foi necessário dividir o fascículo em dois Tomos. O primeiro deles é constituído de 10 artigos e 12 comentários. Já o segundo possui oito artigos e 11 comentários.

 

O primeiro artigo do Tomo 1 é “Por uma Filosofia (da Religião) Criativa: o Problema da Formação Filosófica a partir de uma Analogia com a Música”, escrito em parceria por Agnaldo Cuoco Portugal e Clarissa Pimentel Portugal, comentado por Murilo Rocha Seabra. Os autores dividem o artigo em três partes, buscando investigar a produção filosófica acadêmica autoral e criativa, no Brasil. Na primeira parte, eles expõem o desafio da produção autoral em filosofia, no Brasil, com base no exemplo de iniciativas recentes em filosofia da religião. Na segunda parte, por meio de uma analogia com a música, argumentam que a defesa de uma maior valorização da filosofia autoral, no Brasil, não significa desvalorizar o trabalho com história da filosofia, área que aparenta maior predominância na filosofia acadêmica, no país. Na terceira parte, abordam os desafios para a formação, para a autoria filosófica, baseando-se na tríplice fórmula aluno-professor-conhecimento e reconhecendo os aspectos objetivos e subjetivos da aprendizagem.

Em seguida, vem “Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir”, de Alfredo Pereira Jr. e Vinícius Jonas de Aguiar, comentado por Manuel Moreira da Silva e por Juliana de Orione Arraes Fagundes. A sentiência, definida como a capacidade inconsciente de se ter experiência consciente do sentir, é um fenômeno psicobiológico, envolvendo padrões dinâmicos de ondas eletroquímicas, em sistemas vivos. O processo de sentir pode ser estudado em duas modalidades, dizem os autores: a) identificação empírica e análise dos padrões temporais universais, que caracterizam a sentiência, cujo estudo seria a Sentiômica; b) identificação introspectiva e relato da variedade de experiências conscientes, na perspectiva de primeira pessoa, cujo estudo seria a Qualiômica.

A Qualiômica é, sem dúvida, um desafio para a ciência convencional, como afirmado no “problema difícil da consciência” de Chalmers, pois a perspectiva de primeira pessoa não é acessível aos métodos de medição e às explicações científicas convencionais. A Sentiômica, enfocando padrões dinâmicos que definem a capacidade de sentir, é, portanto, por definição, suscetível de um tratamento empírico e experimental. Com base nisso, os autores propõem uma contextualização de pressupostos e problemas filosóficos da Sentiômica, bem como apresentam algumas das suas diversas aplicações, com foco na sua relação com a música.

Em terceiro lugar, publicamos o texto de André J. Abath, intitulado “Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético”, comentado por Cesar Schirmer dos Santos e Felipe G. A. Moreira. Abath apresenta uma posição costumeiramente denominada aprimoramento erotético, segundo a qual devemos avaliar e, eventualmente, aprimorar nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?”. O foco será em casos em que x captura uma categoria fortemente social, como o casamento. Tal posição é oferecida enquanto alternativa à ideia – por vezes identificada como engenharia conceitual de acordo com a qual devemos avaliar e, eventualmente, buscar uma melhoria de nossos conceitos. Uma vez introduzida a ideia de aprimoramento erotético, o autor busca mostrar como ela pode ser mobilizada para lidar com o que chama de desafio da preservação de tópico, e que vantagens possui em relação a uma posição semelhante disponível na literatura, nomeadamente, o Quadro Austero, defendido por Cappelen.

“O disjuntivismo ecológico e o argumento causal”, de autoria de Eros Moreira de Carvalho, é comentado por Sabrina Balthazar Ramos Ferreira. Carvalho explica que a abordagem ecológica da percepção oferece recursos para desarmar o argumento causal contra o disjuntivismo. Segundo o argumento causal, como os estados cerebrais que proximamente antecedem a experiência perceptiva e a experiência alucinatória correspondente podem ser do mesmo tipo, não haveria, portanto, uma boa razão para rejeitar que a experiência perceptiva e a experiência alucinatória correspondente tenham fundamentalmente a mesma natureza. O disjuntivismo com respeito à natureza da experiência seria, assim, falso.

O autor identifica três suposições que apoiam o argumento causal: a suposição da indistinguibilidade, a suposição da linearidade e a suposição da duplicação. Conforme a abordagem ecológica da percepção, essas suposições não se sustentam, abrindo espaço para a defesa de uma versão ecológica do disjuntivismo. Episódios perceptivos se estendem ao longo do tempo e são supervenientes ao sistema organismo-ambiente. Eles também podem ser distinguidos dos “correspondentes” episódios de alucinação, por serem o resultado de um processo controlado de sintonização, ao passo que as alucinações são passivas e refratárias às atividades de exploração e sintonização. Por fim, o autor procura enfatizar que o disjuntivismo ecológico, na medida em que é imune ao argumento causal, se mostra vantajoso em relação aos disjuntivismos negativo e positivo.

O quinto artigo é de Filipe Campello: “Qual o papel das experiências subjetivas na crítica social? Distinguindo entre justiça de primeira e de segunda ordem”. Nas últimas décadas, diferentes abordagens ligadas à tradição de(s)colonial têm movido o pêndulo da crítica de pretensões de universalidade para relatos e experiências particulares. Contudo, nisso que podemos chamar de virada narrativa, não são sempre evidentes as justificativas morais de perspectivas em primeira pessoa. A questão explorada por Campello diz respeito à possibilidade de encontrar relevância epistêmica de relatos e experiências subjetivas na crítica de injustiça. O autor inicialmente inverte a questão, partindo do problema da objetividade na crítica, diante da particularidade das experiências. A questão, nesse caso, é de onde fala o filósofo ou a filósofa, na sua intenção de descrever experiências de sofrimento de outras pessoas. Se falamos sempre em primeira pessoa, e se existe algum limite cognitivo ou epistêmico de experiências, de onde viria a capacidade de criticar experiências que não são as nossas? Afinal, como podemos compartilhar experiências de injustiça?

Em seguida, Campello sustenta que podemos avançar, se distinguirmos duas dimensões de justiça. Acompanhando distinções conhecidas de teorias de primeira e de segunda ordem, ele defende que reivindicações ligadas à virada narrativa se referem a demandas de justiça de primeira ordem: trata-se de reconhecer moralmente a pretensão epistêmica dos sujeitos, vendo-se ali a possibilidade de confrontar noções falhas de universalidade e pontos cegos em teorias da justiça. Todavia, essas pretensões não possuem em si próprias critérios de justificação, requerendo dependências normativas, as quais são externas às próprias experiências – essas, sim, situadas em justiça de segunda ordem. O autor assevera que esse modelo tem a vantagem de incorporar as vantagens teóricas de teorias de(s)coloniais, sem negligenciar os potenciais da crítica da injustiça.

“Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo”, de Giovanni Rolla, é a próxima publicação, comentada por Felipe Nogueira de Carvalho e por Marcos Silva. Conforme Rolla, no artigo “Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão” (neste volume), Pereira e colaboradores levantam uma bateria de críticas ao enativismo, a qual é uma família de abordagens nas ciências cognitivas que confere centralidade ao corpo e à ação autônoma dos organismos, nas explicações dos seus processos cognitivos. As investidas dos autores miram alguns conceitos centrais da proposta enativista, como conhecimento prático, corporificação (ou corporeidade) e regularidades sensório-motoras. Rolla argumenta que as críticas de Pereira et al. não procedem, por razões diversas: algumas assumem o que querem provar, outras conferem peso excessivo a intuições sobre cenários ficcionais e, por fim, outras atacam espantalhos que não representam as posições enativistas. O autor ressalta que nenhum dos pontos levantados por ele em defesa do enativismo são novos, mas considera importantes explicitá-los, a fim de tornar o debate sobre filosofia das ciências cognitivas mais claro.

Em sétimo lugar, aparece “A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos”, de Ivan Domingues, comentado por Lúcio Álvaro Marques. O artigo versa sobre a filosofia contemporânea brasileira e tem como objetivo introduzir dois pontos. O primeiro deles refere-se aos operadores conceituais no plano teórico-filosófico, com foco no problema da natureza da filosofia brasileira, tomando como ponto de partida as ideias de autoralidade/originalidade. O segundo ponto trata das ferramentas analíticas no plano epistêmico-metodológico, associando os métodos da metafilosofia, ao operar e dar expressão à ratio filosófica, e os métodos da história intelectual, ao operar e dar expressão à realização histórica da filosofia e da intelligentsia filosófica.

O campo das discussões é a metafilosofia, na acepção de filosofia da filosofia, ao desenhar um percurso argumentativo onde metafilosofia, história da filosofia e história intelectual caminham juntas. O autor considera, na vertente da história intelectual, a título de hipóteses para operar os processos históricos, os paradigmas da formação e pós-formação; na vertente metafilosófica, com foco no ethos, para tipificar os diferentes posicionamentos da intelligentsia filosófica brasileira frente à matriz europeia, nos séculos XX-XXI, as atitudes de alinhamento e reverência, autonomia e assimilação crítica, instrumentalização ideológica e política, suspeição e defenestração.

O oitavo texto é “Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica”, de Jonas Gonçalves Coelho, comentado por Leonardo Ferreira Almada. A questão sobre a qual Coelho se propõe refletir, nesse artigo, é se, e em caso afirmativo, em que termos, uma abordagem fisicalista não reducionista e interacionista explica a relação entre consciência e cérebro. Para tanto, o autor toma como fio condutor o problema da lacuna explicativa, em sua relação com o problema da lacuna ontológica, o que envolveu duas questões entrelaçadas: 1. A existência de uma lacuna explicativa implica a existência de uma lacuna ontológica? 2. A inexistência de uma lacuna ontológica implica a inexistência de uma lacuna explicativa? Na visão do autor, essa reflexão pode ser bem-vinda, uma vez que essas duas perspectivas, a epistemológica e a ontológica, muitas vezes se confundem e não são compreendidas.

Em penúltimo aparece “Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira”, escrito por José Crisóstomo de Souza e comentado por Waldomiro J. Silva Filho. Souza apresenta os elementos básicos de um novo paradigma poético-pragmático e destranscendentalizado para a filosofia, situado entre o pragmatismo e a filosofia da práxis, como uma posição não fundacionista, não representacionista, antirrelativista, essencialmente oposta às formas linguocêntricas ou simplesmente intersubjetivistas dominantes, hoje em dia, na cena filosófica não mentalista. Como parte dessa apresentação, o texto recapitula a metodologia, de trabalho coletivo, plural e concertado, que corresponde, no plano do fazer filosofia, ao espírito do paradigma, e a plataforma geral por trás do seu desenvolvimento progressivo.

Por fim, o décimo texto é “Inteligência contínua: a sétima revolução cognitiva do sapiens”, de Lucia Santaella, comentado por Adriano Messias. Conforme ressalta a autora, a sua formação, no campo das linguagens – musicais, visuais e verbais – foi sempre marcada pela atenção à materialidade das próprias linguagens e aos meios pelos quais elas são transmitidas, de sorte a permitir suas funções comunicativas. Desde o aparelho fonador, instalado no próprio corpo, esses meios se constituem como tecnologias que foram evoluindo, através dos séculos, trazendo consigo novas formas de linguagem, tais como as distintas formas de escrita, a galáxia de Gutenberg e, do século XIX para cá, as revoluções industrial, eletrônica e digital, cada qual introduzindo tecnologias que lhe são próprias.

Quando as questões de linguagem são colocadas no foco da atenção, o que importa, desde a Revolução Industrial, é o advento de tecnologias cognitivas, como são a fotografia e o cinema, seguidas das tecnologias eletrônicas – rádio e televisão – e, por fim, a explosão da revolução digital, com todas as suas novas formas de linguagens e, consequentemente, de cognição, que hoje se distribuem pelos mais distintos aplicativos e plataformas. Conforme Santaella, o estudo dessa evolução a levou a postular, a partir da inspiração colhida em alguns autores, que a cognição humana está, desde as primeiras formas de escrita, crescendo fora da caixa craniana. Por conseguinte, é uma proposta que diz respeito à exossomatização da inteligência e da cognição humana, com todas as contradições que isso traz. Santaella dedica esse artigo à explicitação dessa proposta, com atenção ao modo como ela foi se desenvolvendo, no seu pensamento.

 

Assim está constituída essa primeira parte do fascículo, publicada em maio de 2023. O Tomo 2, publicado em julho do mesmo ano, ficou constituído da seguinte maneira.

O primeiro artigo do Tomo 2 é “Hábitos e racionalidade: um estudo filosófico-interdisciplinar sobre autonomia na era dos Big Data”, escrito em parceria por Maria Eunice Gonzalez, Mariana C. Broens, José Artur Quilici-Gonzalez e Guiou Kobayashi, e comentado por Maxwell Morais de Lima-Filho. Os autores discutem o seguinte dilema: por um lado, o crescente impacto das Tecnologias de Comunicação e Informação nos hábitos cotidianos parece influenciar a dinâmica da opinião pública, reforçando crenças irracionais e criando a impressão de que a autonomia da opinião e das decisões das pessoas é apenas um mito. Por outro lado, as pessoas parecem agir racionalmente, na maioria das vezes, nas circunstâncias normais da vida cotidiana, como se suas ações habituais resultassem de decisões relativamente autônomas. A hipótese proposta pelos autores, para superar o dilema, é que as pessoas podem agir racionalmente, na maioria das vezes, mas têm suas opiniões influenciadas por informações insuficientes ou distorcidas ou por hábitos e disposições emocionais previamente adquiridos. Essa hipótese, por sua vez, será examinada em função de uma perspectiva filosófico-interdisciplinar, considerando o papel das escolhas racionais na dinâmica de formação da opinião autônoma. Com diagramas ilustrativos, eles argumentam que hipóteses da teoria dos Sistemas Complexos podem auxiliar a compreensão do possível papel de disposições emocionais, no processo de formação de opiniões.

Em seguida vem “Leis de ponte na filosofia da mente e nas ciências físicas”, de Osvaldo Pessoa Jr., comentado por José Gladstone Almeida Júnior. No debate sobre a redutibilidade da mente ao corpo, o autor sustenta não ser plausível supor que tal redução possa se dar apenas a partir das condições físicas basais, mas que é necessário levar em conta também as leis de ponte psicofisiológicas. Essa posição é geralmente considerada antirreducionista, na Filosofia da Mente, mas Pessoa Jr. prefere chamá-la de “reducionismo indutivo”, devido à analogia com duas outras formas de determinação, nas Ciências Físicas: o determinismo causal e o reducionismo escalar espacial. A discussão é feita com base em “sondas epistemológicas” abstratas, como o demônio de Laplace, o demônio escalar e o demônio psicofisiológico. O autor critica, ainda, a noção de causalidade sincrônica usada por Searle.

Em terceiro lugar, publicamos “A cultura pode evoluir?, de autoria de Paulo C. Abrantes, comentado por João Pinheiro. O artigo parte de uma distinção entre tipos de descrição que podem ser propostos para uma dinâmica populacional, incluindo uma descrição “darwiniana”, em termos de variação, herança e aptidão diferencial, envolvendo as entidades que compõem a população relevante. Depois disso, Abrantes propõe uma categorização de tipos de populações culturais e investiga as condições mais gerais que precisam ser satisfeitas, para que as dinâmicas dessas populações tenham um caráter evolutivo e darwiniano, com ênfase na população composta pelos próprios traços culturais. O autor destaca algumas abordagens da evolução na linhagem hominínea, como a teoria da dupla herança e a memética, as quais concedem à evolução cultural um lugar privilegiado, nos seus cenários. Essas abordagens contribuem, desse modo, para o desenvolvimento de uma teoria geral da evolução cultural, de maneira que as compara, nesse tocante, com outras abordagens. Abrantes defende que esses confrontos também permitem ilustrar analogias entre a evolução biológica e a evolução cultural, bem como falhas na analogia.

“Sobre o status metafísico das cores” é o próximo artigo publicado, de autoria de Plínio Junqueira Smith, com comentários de Luiz A. A. Eva e de Raquel Krempel. Smith desenvolve uma concepção sobre as cores como parte de uma visão cética do mundo. Para isso, investiga como alguns dos principais céticos, ao longo da história da filosofia, conceberam as cores, seja em relação a outras qualidades sensíveis, seja com respeito ao objeto físico. Depois, à luz do debate entre Barry Stroud e John McDowell, ele descreve aquela que lhe parece ser a concepção comum das cores e sustenta que o cético não apenas aceita que os objetos são coloridos, mas que ele pode saber qual é a sua cor, por meio da percepção.

Roberto Horácio de Sá Pereira, Sérgio Farias de Souza Filho e Victor Machado Barcellos escrevem “Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão”, com comentário de César Fernando Meurer e Ralph Ings Bannell. Os autores defendem as seguintes teses: 1- o know-how não é uma forma de saber prático destituído de sentido proposicional; 2- a relação entre cada percepção e o corpo próprio é metafisicamente contingente (os organismos e os corpos podem variar, como podem inclusive variar os espaços que ocupam, em uma mesma experiência), 3- cabe ao cérebro configurar ou moldar um corpo físico (Körper) em um corpo vivo (Leib) e não o inverso; 4- o externismo fenomenal de base enativista, mesmo na sua forma branda, é empiricamente implausível: a correlação entre o caráter consciente da experiência sensorial com padrões neuronais espaço-temporais é muito mais sistemática e regular do que com a correlação com qualquer coisa fora do cérebro. Porém, na sua forma radical, é inteiramente implausível: duplicatas fenomenais não são necessariamente duplicatas de agência; em suma, 5- somos o nosso próprio cérebro, o qual possui um corpo, avatares e artefatos, devidamente configurados e moldados pelo cérebro, e não um corpo que possui um cérebro, dentre outros órgãos.

O sexto artigo dessa parte é “Uma visão de mundo filosófica”, de Rodrigo Reis Lastra Cid, comentado por Gregory Gaboardi. O objetivo desse texto é apresentar uma visão de mundo filosófica, especificamente metafísica. A importância disso é justamente obter uma visão generalista da realidade, em um momento quando as discussões filosóficas se tornam cada vez mais especializadas. A visão de mundo metafísica aqui focalizada é uma perspectiva geral sobre o tempo, o espaço, a matéria, as leis da natureza, a mente e a normatividade. Para realizar esse objetivo, em primeiro lugar, o autor aborda, em linhas gerais, a natureza da filosofia e sobre sua relação com a construção de uma visão de mundo. Em segundo lugar, reúne alguns argumentos para tratar da natureza das entidades mencionadas. Por fim, conclui, expondo uma visão de mundo metafísica unificada, que leva em consideração tais argumentos.

“O perspectivismo neutro e a função biológica de experiências fenomênicas”, de Sofia Inês Albornoz Stein, é o penúltimo artigo publicado, comentado por Ricardo Augusto Perera. Stein argumenta em favor de uma posição acerca da natureza da mente humana, que não é um fisicalismo reducionista e nem tampouco qualquer tipo de dualismo, seja de substância, seja de propriedade. Ela sustenta o perspectivismo neutro, inspirado no monismo neutro, de teor cientificista e materialista, o qual permite incluir experiências fenomênicas conscientes, como parte de cadeias causais de processos perceptivos, emocionais, cognitivos e deliberativos. Embora não existam ainda teorias, leis e dados que autorizem uma decisão final sobre qual o papel das experiências fenomênicas conscientes, em processos físico-químicos do corpo, evidências coletadas nas últimas décadas não apenas fortalecem a crença da autora, na correlação entre eventos físico-químicos e experiências qualitativas conscientes, como também aumentam o número de razões em favor da tese de que essas experiências realmente têm um papel funcional importante nos processos de coleta e uso de informações pelo organismo.

Por fim, “Contextualismo e Relativismo na Ética”, de Wilson Mendonça, comentado por André Fuhrmann e por Léo Pruzzo Júnior, fecha este fascículo. De acordo com uma abordagem proeminente, na semântica formal contemporânea, a verdade das asserções morais depende de uma perspectiva normativa sobre os fatos do mundo. A implementação dessa abordagem, conhecida como contextualismo indexical, concebe a dependência da verdade moral vis-à-vis a perspectiva moral correspondente, em analogia com a dependência contextual característica de sentenças contendo termos indexicais.

Alternativamente, a perspectiva moral é vista como configurando as circunstâncias de avaliação, nas quais o conteúdo expresso pela ocorrência de uma sentença moral é avaliado como verdadeiro ou falso. Ainda segundo o autor, a versão moderada dessa visão alternativa (o contextualismo não indexical ou relativismo moderado) considera que a verdade da ocorrência de uma sentença moral, em um contexto de uso, é determinada pela avaliação do seu conteúdo na “circunstância do contexto”: a circunstância de avaliação representada pelo mesmo conjunto indexado que representa o contexto de uso.

A versão radical (o relativismo de apreciação), por sua vez, faz a verdade da ocorrência de uma sentença moral em um contexto depender essencialmente do valor do padrão normativo em outro contexto, em função do qual o enunciado original é apreciado. Tomando o juízo sobre o status moral do casamento poligâmico como ilustração, Mendonça examina os méritos concorrentes de explicações contextualistas e relativistas do uso da linguagem moral, especialmente em situações de desacordo e debate. Ele argumenta que, embora o contextualismo indexical acoplado a considerações pragmáticas adequadas possa explicar alguns dados relevantes do desacordo, a explicação alternativa desses dados, dada pelo contextualismo não indexical, é preferível, porque mais simples e mais econômica. Ademais, defende que o relativismo de apreciação está mais bem situado do que o contextualismo não indexical, para explicar os fenômenos relevantes da retratação obrigatória, podendo, portanto, acomodar mais facilmente algumas possibilidades discursivas que desempenham um papel central em debates morais.

 

Assim está constituído este fascículo, que teve como finalidade reunir pensadoras e pensadores, a fim de alavancar a ideia de uma filosofia que pense problemas a partir de uma perspectiva que considere também o contexto no qual vivemos, procurando entender e propor soluções para questões nossas, em busca de uma identidade nacional, de um pensamento autônomo e independente, somando-se aos estudos já consagrados na filosofia feita no Brasil, de cunho mais historiográfico.

É com esse intuito de contribuir para o fortalecimento de uma identidade nacional que este fascículo é apresentado, inaugurando as comemorações do jubileu de ouro da Trans/Form/Ação, que, em 2024 completa 50 anos de existência. Desejamos, com isso, fazendo jus ao seu próprio nome, transformar, sem a necessidade de destruir, o pensamento nacional, em vistas de nossa inserção propositiva no cenário filosófico mundial.

Agradecemos a participação de todos aqueles que nos ajudaram a compor este fascículo e desejamos boas leituras e discussões, a partir delas.

 

Referência

ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 9-20, 2021.

 

Recebido: 20/06/2023

Aceito: 25/06/2023


 

Por uma Filosofia (da Religião) Criativa: o Problema da Formação Filosófica a partir de uma Analogia com a Música

 

Agnaldo Cuoco Portugal[2]

Clarissa Pimentel Portugal[3]

 

Resumo: Este artigo se divide em três partes, a fim de investigar a produção filosófica acadêmica autoral e criativa, no Brasil. Na primeira parte, apresenta-se o desafio da produção autoral em filosofia, no Brasil, a partir do exemplo de iniciativas recentes em filosofia da religião. Na segunda parte, por meio de uma analogia com a música, pretende-se argumentar que a defesa de uma maior valorização da filosofia autoral, no Brasil, não significa desvalorizar o trabalho com história da filosofia, área que aparenta maior predominância na filosofia acadêmica, no país. A terceira parte aborda os desafios para a formação para a autoria filosófica, baseando-se na tríplice fórmula aluno-professor-conhecimento e reconhecendo os aspectos objetivos e subjetivos da aprendizagem.

Palavras-chave: Filosofia como composição. Filosofia acadêmica no Brasil. Formação para a criatividade. Falta. Desejo e aprendizagem.

 

Introdução

Pretendemos contribuir, neste artigo, para pensar melhor o problema da filosofia autoral, no Brasil, nos tempos atuais, por meio do estudo do caso da filosofia da religião. O que tem acontecido nessa área pode ajudar a compreender melhor a questão e vislumbrar um encaminhamento viável para ela.

Comecemos com três episódios ilustrativos. Em 2005, quando o filósofo da religião britânico D. Z. Phillips[4] foi convidado para ser conferencista no Congresso Brasileiro de Filosofia da Religião, em 2007, ele aceitou com entusiasmo, dizendo, na ocasião: “Eu adoraria ir ao Brasil, sou um grande fã de Villa-Lobos!”[5] Em 2013, o também britânico Nick Zangwill[6], que estava por um período em São Paulo, aceitou convite do Grupo de Pesquisa em Filosofia da Religião da UnB, para uma série de seminários. Um grande incentivo para o aceite foi sua admiração pela arquitetura de Oscar Niemeyer, o qual ele conhecera ainda criança, por ocasião da inauguração de Brasília. Em 2017, ao ser apresentado a um dos autores deste artigo, David Bentley Hart[7] – um dos mais reconhecidos teólogos e filósofos da religião, nos Estados Unidos ,atualmente – disse ao brasileiro que tinha grande admiração por Machado de Assis, do qual havia lido várias obras, em português mesmo.

Para os fins de nossa argumentação, gostaríamos de chamar a atenção para dois elementos que se repetem, nesses três episódios. Em primeiro lugar, as três pessoas se mostraram admiradoras do trabalho autoral de brasileiros, por suas contribuições internacionalmente reconhecidas. Em segundo lugar, apesar do contexto comum às três interações, nenhum filósofo da religião do Brasil foi mencionado. E por que nenhum trabalho de filosofia da religião do Brasil era considerado digno de nota, por aqueles três filósofos da religião relatados acima? Por que, apesar de serem da área, falando com alguém da área, eles se referiram a obras de um músico, um arquiteto e um literato brasileiros? Uma boa resposta é que não havia nenhuma contribuição brasileira em filosofia da religião que eles conhecessem, ainda. E o problema talvez não seja a desinformação, por parte dos três filósofos mencionados, mas, sim, que não haja ainda uma contribuição internacionalmente relevante nessa área, de nossa parte. E não há ainda uma contribuição internacionalmente relevante em filosofia da religião, porque ainda somos pouco criativos – essa é a tese que este texto pretende explorar.

Para tal, o presente artigo se divide em três partes, a fim de investigar a produção autoral e criativa em filosofia da religião dentro da academia, no Brasil. A primeira parte vai descrever o trabalho mais recente de construção da área de filosofia da religião, no país, desde 2005, o qual servirá para ilustrar a compreensão e os desafios para uma filosofia acadêmica autoral e sua relação com a tradição filosófica. Na segunda parte, por meio de uma analogia com a música, pretendemos argumentar que a defesa de uma maior valorização da filosofia original, no Brasil, não significa desvalorizar o trabalho com história da filosofia, área que aparenta maior predominância na filosofia acadêmica, em nosso país. Percebe-se que o compositor e o intérprete musical são funções interdependentes e sem as quais não seria possível desfrutar das diferentes produções musicais, ao longo da história. Ambas as funções necessitam de uma base técnica e teórica sólida, a fim de executarem e criarem composições, as quais são um elemento fundamental da atividade musical. Porém, o que se destaca, em ambos, é o caráter criativo que advém da subjetividade do compositor/intérprete. Nesse sentido, para o aspecto criativo converge a base objetiva de conhecimento adquirida da tradição e a singularidade própria do sujeito e suas experiências pessoais. Essa interação entre objetivo e subjetivo é um dos fatores centrais que possibilitam a ação criativa do compositor e do intérprete contemporâneos.

A terceira parte aborda os desafios na formação para a autoria filosófica. A partir da analogia com a música, é possível pensar a produção filosófica segundo os aspectos objetivos e subjetivos da criatividade, considerando o ambiente acadêmico, em especial a sala de aula. O aspecto objetivo está consolidado na história de ensino de filosofia nacional, cabendo aqui uma análise do aspecto subjetivo e seu surgimento, na relação entre professor, aluno e conhecimento. De sorte a sustentar essa investigação, utilizaremos o conceito de “transferência” da psicanálise, o qual permite analisar o que opera nas relações subjetivas em sala de aula, a favor da abertura ao diálogo criativo. O que sustenta a relação transferencial entre professor e aluno é o próprio conhecimento, seja como desejo de aprender, por parte do aluno, seja como desejo de ensinar, por parte do professor, ambos embasados na confiança do arcabouço teórico do professor e na reputação da instituição de ensino na qual se encontram. A possibilidade criativa encontra campo fértil, quando há o reconhecimento de que o conhecimento não está dado, ou seja, há ainda falta a suprir e campos a pesquisar, mas não na simples repetição da tradição, e, sim, no seu apoio para algo novo.

 

1 O trabalho recente em filosofia da religião no Brasil e os desafios da filosofia autoral

 

I tell you what mine authors say.

(WILKINS; SHAKESPEARE.

Pericles, Prince of Tyre. Scene I, 20, 1607).

 

Filosofia da religião é o estudo das crenças e práticas religiosas, em termos filosóficos. A noção do que seja “estudar algo em termos filosóficos” é notoriamente controversa. Para fins do presente trabalho, propomos entender como abordagem filosófica da religião aquela que busca compreender, de modo crítico – no sentido de uma intelecção a mais aprofundada possível, à luz da razão –, os pressupostos conceituais mais gerais ou fundamentais daquilo que se crê e se faz nas religiões.

Um modo de justificar essa ideia acerca do que é filosofia da religião é mostrando o quanto ela ajuda a diferenciar-se de outras abordagens do fenômeno religioso. Essa atividade crítica que a Filosofia desenvolve se distingue e se aproxima de outras áreas do conhecimento, de diversos modos. Em relação às ciências da religião (Antropologia, Economia, História, Psicologia, Sociologia, entre outras), a Filosofia se aproxima, porque não usa uma determinada revelação ou tradição filosófica como argumento, em suas análises. Mas a abordagem filosófica se distingue da feita pelas ciências, porque se volta para os conceitos gerais ou fundamentais e não para o que de fato acontece, sob diferentes óticas científicas, no fenômeno religioso – embora frequentemente tome como ponto de partida de sua reflexão uma descrição desses fatos religiosos. Assim, por exemplo, enquanto a Sociologia procura entender como uma religião ajuda a aumentar a coesão das relações sociais, em um determinado grupo, a Filosofia vai se perguntar se aquelas crenças se justificam racionalmente ou qual o significado daquelas práticas.

Por outro lado, a filosofia da religião tenta, assim como a Teologia, uma reconstrução racional da experiência religiosa vivida por uma comunidade. No entanto, diferentemente da abordagem teológica, a filosófica não toma os textos sagrados ou a tradição da religião que está analisando como algo inquestionável, ao qual cabe apenas, no máximo, uma interpretação mais adequada aos novos tempos. A filosofia da religião pode até defender as ideias dos textos ou o sentido das atividades praticadas em uma tradição religiosa, mas isso deve ser justificado racionalmente e não por causa da sacralidade dos escritos ou da venerabilidade daquelas práticas.[8]

Entendida dessa forma, apesar de a expressão “filosofia da religião” ser relativamente moderna[9], aquilo que estamos chamando por ela tem uma longa história, na atividade filosófica. As críticas de Xenófanes de Cólofon ao antropomorfismo da religiosidade popular grega são um exemplo já entre os chamados filósofos pré-socráticos.[10] Quando Tomás de Aquino apresenta suas famosas cinco vias (Suma Teológica, 1ª parte, Questão 2, Art. 3º), para provar a existência de Deus, ele estava fazendo algo filosófico e não teológico, no sentido acima, pois argumentava sobre a existência de Deus, não com base na autoridade das escrituras ou da tradição cristã, mas de princípios que ele entendia serem aceitáveis por qualquer pessoa racional. E quando David Hume, nos Diálogos sobre a Religião Natural (1779), ou Immanuel Kant, na dialética transcendental da Crítica da Razão Pura (1781/87), criticam a atividade de expor argumentos contra ou a favor da existência de Deus, também estavam tratando do que chamamos hoje de filosofia da religião. Esses são apenas alguns exemplos de um dos assuntos mais abordados, ao longo da história da Filosofia.

Além de uma longa tradição histórica, a filosofia da religião se liga a todas as principais áreas da pesquisa filosófica. Os desenvolvimentos recentes do argumento ontológico envolvem um considerável aparato de lógica modal e têm sido um incentivo importante para a pesquisa nessa área. A questão da laicidade do Estado, envolvida na relação entre religião e política nos sistemas democráticos, constitui uma oportunidade interessante de estudo dos limites e das exigências da democracia moderna. O significado da experiência mística e a possibilidade que ela abre para a justificação da crença religiosa trazem à baila e provocam instigantes trabalhos em epistemologia. A existência do mal e sua compatibilidade com uma ordenação intencionalmente benevolente do mundo têm grandes relações com estudos de ética e metafísica. O fato de que religião tem a ver com tudo na vida daqueles que dela participam – é nelas que essas pessoas encontram “o sentido fundamental para as suas existências”, poderíamos dizer – talvez sejam a razão dessa enorme diversidade temática, de modo que, ao se fazer filosofia da religião, é possível transitar pelos grandes problemas da Filosofia e, ainda assim, manter uma unidade quanto ao objeto de reflexão.

Os desenvolvimentos recentes da filosofia da religião, no Brasil, mostram essas características apresentadas acima. É claro que, no sentido de estudo das crenças e práticas religiosas, em termos filosóficos, defendido aqui, a filosofia da religião não é algo recente entre nós. Há vários exemplos dignos de nota. Vale a pena conferir as reflexões sobre a inclinação da pessoa humana para a transcendência, seja em termos estruturais, seja relacionais, propostas pelo Pe. Vaz (cf. VAZ, 1991/2). Não têm ainda a atenção merecida as teses sobre a origem religiosa da cultura, entre várias outras acerca da religião e da mitologia, de Vicente Ferreira da Silva (cf. SILVA, 2010 [1964]). E não podemos esquecer as inúmeras partes dos Sermões do Pe. Vieira que trazem reflexões e argumentos filosoficamente relevantes sobre a atividade religiosa e o tema da relação humana com o transcendente. Com esses casos, entre vários outros, os quais mereceriam menção, se tivéssemos espaço para tanto, queremos afirmar que a exposição a ser realizada aqui, a propósito dos desenvolvimentos recentes da filosofia da religião, no Brasil, não significa desconsiderar o trabalho filosófico que foi feito entre nós sobre esse assunto anteriormente.

O marco temporal que vai nos servir de referência é o início dos anos 2000. Em 2004, um grupo de professores da PUC de São Paulo, da Universidade Federal de Juiz de Fora e da Universidade de Brasília, entre outros, propuseram à ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia) a criação do Grupo de Trabalho de Filosofia da Religião. Em 2005, foi realizado, na UnB, o 1º Congresso Brasileiro de Filosofia da Religião e, em 2006, no X Encontro Nacional da ANPOF, em Salvador-BA, aconteceu a primeira reunião do GT de Filosofia da Religião da ANPOF. Em 2010, foi fundada a Associação Brasileira de Filosofia da Religião – ABFR – e, em 2014, foi criada a Revista Brasileira de Filosofia da Religião.

O que aconteceu na área, no Brasil, desde os anos 2000, reflete a diversidade histórica e temática da filosofia da religião. Os primeiros cinco congressos da ABFR não tiveram tema central, numa estratégia para se abrir ao máximo a possibilidade de participação e se ter uma ideia mais clara do que se estava fazendo no país sobre o assunto. De 2015 em diante, a partir do 6º Congresso Internacional da ABFR (como passaram e vêm sendo chamados até hoje os eventos que começaram como “Congresso Brasileiro de Filosofia da Religião”), propunha-se um assunto principal, o qual seria o núcleo das discussões no evento, mas sem desconsiderar contribuições sobre outros assuntos. O que sempre se observou foi uma expressiva pluralidade de temas e autores abordados relativos ao estudo filosófico da religião. De pré-socráticos à filosofia contemporânea, da filosofia feminista ao pós-modernismo, do tomismo ao novo ateísmo, pensadores brasileiros, europeus, norte-americanos e de várias outras nacionalidades foram objeto de reflexão sobre os mais diversos tópicos da filosofia da religião.

Essa variedade em interação é pouco usual entre nós, mas tem sido bastante instigante. É muito interessante (e, ao que sabemos, pouco frequente, no Brasil) ver um especialista em Schopenhauer apresentando seu trabalho em uma mesa ao lado de um estudioso de Marx, mediados por um kierkegaardiano.[11] Não é só interessante e pouco comum: trata-se de algo muito frutífero para a reflexão filosófica. Em vista de assuntos tão difíceis, como aqueles com os quais a Filosofia lida (e a religião é apenas um deles), o diálogo por meio da comparação das ideias de pontos de vista diferentes pode ser bastante iluminador. Grandes escolas de pensamento se formam a partir de obras fundamentais ou de filósofos tidos como grandes referências de pensamento. Boa parte da filosofia acadêmica moderna se faz como estudo dessas, o que permite significativo aprofundamento na compreensão dessas matrizes de ideias filosóficas.

Ora, o que vimos tendo na filosofia da religião recente, no Brasil, é um encontro de estudiosos de diferentes paradigmas filosóficos, com a possibilidade de mútuo enriquecimento. Quem está nos lendo talvez considere essa análise otimista demais, pois o encontro dessas tradições frequentemente resulta em total falta de comunicação e incompreensão da posição diferente, normalmente tida como adversária e não possível colaboradora, exatamente pela falta de uma base comum. Sem dúvida, isso acontece bastante. Todavia, essa possibilidade de interação se mostra mais factível, quando há um objeto comum a ser discutido, como é o caso da filosofia da religião.

Apesar dessa diversidade salutar, a reflexão intencionalmente original ou autoral[12] tem sido rara nesse movimento que estamos descrevendo. O mais usual, na filosofia da religião acadêmica brasileira, é vermos trabalhos que expõem e interpretam o pensamento de alguém sobre um assunto. A capacidade de organizar as ideias originalmente expostas e apresentá-las com fidelidade e clareza já é considerada um mérito importante de um artigo ou apresentação em evento filosófico brasileiro. No entanto, a intenção não é ser original, não é inaugurar uma ideia e assumir as consequências dela. Tanto é assim que, quando alguém questiona se aquele pensamento é mesmo correto (normalmente, uma pergunta inconveniente daqueles que aparecem na palestra, mas não são do meio acadêmico), uma resposta frequente é de que “estou apenas expondo o que o autor está afirmando”. Geralmente, não se questiona se a ideia está certa, mas, sim, se a exposição feita sobre ela está bem feita ou se a interpretação apresentada é pertinente. É por isso que a contraposição de diferentes pensamentos é tão instigante, pois abre a possibilidade de usar um para questionar o outro.

Contudo, isso ainda não é o que estamos chamando de “reflexão intencionalmente original ou autoral”. Cada um chega com seu autor preferido e expõe suas ideias da maneira mais fiel possível. No debate, pode vir a surgir uma contraposição entre eles e até mesmo uma avaliação capaz de indicar que um dos pensamentos é o mais correto. No entanto, a intenção de quem expôs não era defender uma ideia, embora partindo de determinada autoria, mas apenas que ela seria mais bem compreendida daquela maneira.

Em 2019, a ABFR, com o apoio financeiro da Fundação John Templeton,[13] lançou uma chamada de bolsas com vistas a fomentar o pensamento autoral em filosofia da religião. O nome do projeto é Supporting Constructive Research on the Existence of God in Portuguese-Speaking Latin America (Apoiando a Pesquisa Construtiva sobre a Existência de Deus na América Latina de Língua Portuguesa) e seu título já evidencia duas coisas: trata-se de um projeto voltado para o Brasil e se refere à pesquisa sobre a existência de Deus (concebida em sentido amplo de “divindade”, não precisando se restringir ao conceito monoteísta). O que pode não parecer muito claro é o que venha a ser uma “pesquisa construtiva”. Trata-se, na verdade, exatamente do que estamos explicitando aqui: uma investigação que não se concentre na história das ideias e nas concepções dos grandes pensadores, mas que busque pensar essas grandes questões de um modo que contribua com algo a mais para a sua compreensão, que construa algo nesse sentido. Das mais de quarenta propostas enviadas, foram selecionadas onze, as quais receberam entre trinta e oitenta mil reais de bolsa.

Um apoio assim expressivo – especialmente nesses tempos nada favoráveis para a pesquisa filosófica, no Brasil – não viria de graça. Mas não havia uma agenda de defesa de uma visão religiosa específica (mais de um dos bolsistas agraciados é declaradamente ateu) ou de uma linha ou temática específica de filosofia contemporânea (os temas em filosofia da religião são múltiplos e as abordagens variam bastante).[14] O preço era o de fazer algo que rompia um paradigma, em nosso país. Nosso modelo de fazer Filosofia é o da pesquisa histórica. Ivan Domingues, em seu alentado trabalho sobre essa área de estudo, no Brasil, aponta como um dos marcos iniciais da filosofia acadêmica entre nós a chegada da missão francesa à Universidade de São Paulo, a partir dos anos 1930. Esse marco histórico da atividade filosófica profissional aqui tinha as seguintes características, segundo o autor:

Simplesmente, a filosofia está nos textos e a história da filosofia, assim como a exegese, quer dizer retorno aos textos, e antes de mais nada textos dos clássicos, que criaram tudo e o melhor que podemos fazer é aprender com eles. (DOMINGUES, 2017, p. 409).

 

Esse método de leitura e interpretação atenta dos clássicos, trazido pelos professores franceses, era um modelo inovador em relação ao que se tinha antes, no Brasil, restrito ao estudo de manuais destinados especialmente ao preparo seminarístico. Oferecia-se à incipiente vida acadêmica brasileira um modo de fazer filosofia que era amplamente desenvolvido nas melhores universidades europeias. Nessa concepção, filosofar era ler textos de grandes autores e mostrar que se entendera bem essa leitura. Isso supunha o contato com os textos originais, a abertura para tradições filosóficas nem sempre muito bem acolhidas nos seminários católicos e uma dedicação maior do que se tinha antes ao trabalho filosófico, tal como se exige no ambiente acadêmico, não um estudo menos profundo, destinado à preparação para a atividade eclesiástica. Era um modelo inicial de profissionalização da Filosofia entre nós.

Embora, nos últimos cinquenta anos, os modelos tenham se diversificado[15], o paradigma centrado na história da Filosofia é ainda o predominante.[16] Um bom indício que fundamenta esse diagnóstico é que, das seis matrizes identificadas por Domingues, duas são claramente centradas na história da Filosofia: a histórica e a exegética. Além disso, a descrição das outras (epistemológica, metafísica, ético-política e cultural) se dá com grande ênfase na indicação dos autores ou escolas estudados, ao invés de centrada nos problemas ou debates desenvolvidos. Em outras palavras, mesmo nos modelos não explicitamente voltados para a história das ideias filosóficas, a julgar pelo importante trabalho de Domingues[17], o que temos, na Filosofia feita entre nós, é principalmente a descrição e a interpretação das ideias de autores consagrados.

É o desafio de se fazer filosofia autoral em um ambiente filosófico marcado pela questão histórica, o qual justifica o expressivo investimento em projetos voltados para a “pesquisa construtiva” sobre a existência de Deus que a ABFR pôde fazer, com o auxílio da Fundação John Templeton. A ideia é fomentar trabalhos mais criativos que possam contribuir com o debate internacional em filosofia da religião, com novos problemas ou novas respostas a problemas já colocados. Além de seminários nos quais os textos de cada participante são discutidos pelos demais, o projeto inclui a tradução dos artigos finais para o inglês, de sorte a facilitar a publicação em periódicos internacionais e, assim, aumentar a participação brasileira no debate na área, que tem engajado a comunidade filosófica mundo afora.

Não se trata de desmerecer o trabalho com história da Filosofia: o projeto não nega a importância dessa abordagem. O que ele pretende é incentivar algo que parece pouco cultivado entre nós. Propomos que essas ideias de uma maneira criativa de fazer Filosofia e do caráter complementar e não excludente desses modos de produção filosófica podem ser esclarecidos por uma analogia com a Música – esse é o tópico da próxima seção.

 

2 Entendendo Melhor a Relação entre a Filosofia Autoral e a História da Filosofia por meio de uma Analogia com a Música

É uma arte, como tudo.

(Guilherme Arantes. Cuide-se bem, 1976).

 

Na seção anterior, vimos a experiência recente desenvolvida em filosofia da religião, no Brasil, e as iniciativas que vêm sendo tomadas nessa área, no sentido de estimular um pensamento construtivo ou intencionalmente inovador. Nesta parte, por meio de uma analogia com a música, pretendemos entender melhor o que seja pensamento filosófico inovador e argumentar que a defesa de uma maior valorização da filosofia autoral, no Brasil, não significa desvalorizar o trabalho com história da Filosofia – área que aparenta ter maior predominância na filosofia acadêmica, em nosso país, não só na filosofia da religião, mas em geral. Por meio dessa analogia, pretendemos esclarecer melhor a relação entre criatividade inovadora e a produção já estabelecida.

O raciocínio analógico procede pela comparação de pelo menos dois termos. Seu emprego tem em vista a possibilidade de esclarecer propriedades em um dos termos, por meio das semelhanças que ele tem com o outro, o qual é tido como análogo e no qual essas qualidades são mais evidentes. Obviamente, uma vez que semelhança não é identidade, termos análogos vão ter também diferenças, de modo que um raciocínio analógico precisa prestar atenção também nas distinções e justificar por que essas não inviabilizam as afinidades defendidas e com as quais se pretende adquirir uma intelecção superior do termo a ser esclarecido. Assim, vamos começar com a descrição da Música e depois tentar iluminar, com ela, o caso da Filosofia.

 

2.1 O termo da Música na analogia

A analogia com a música proposta aqui se dá, porque nela podemos identificar claramente as funções de compositor e intérprete, mesmo que ocupadas pela mesma pessoa, e essas funções, apesar de distintas, necessitam uma da outra, para que haja o produto final, a própria experiência sonora da música, no sentido do exercício da arte musical. Essa descrição deverá ajudar a entender melhor o que significa, por analogia, “fazer filosofia” e sua relação com o estudo da história da Filosofia. Na Música, pode-se observar claramente um vínculo estreito entre interpretação e composição, ao se considerar que, por exemplo, a composição das Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos é condição necessária para que os intérpretes a possam tocar e que, sem os intérpretes, essa composição igualmente nunca seria ouvida; além disso, essa interdependência é relevante para o objetivo final da produção artística, o de que haja um público que a testemunhe e aprecie.

Em sua dissertação De onde vêm minhas idéias? Estratégias para a delimitação e a resolução de problemas na composição musical, Bernardo Grassi (2008) inicia a análise do processo criativo da composição musical, associando-o ao processo de resolução de problemas, visto que, ao se compor, cria-se algo novo a partir da tradição existente. Com isso, reconhece-se que o conhecimento da base técnica e teórica dos experts, como ele os denomina, auxilia e facilita o processo composicional (GRASSI, 2008, p. 23). No entanto, ao classificar o processo criativo como uma forma de resolução de problemas, incluem-se à base técnica e teórica as experiências pessoais do compositor. “Os fatores pessoais estão intimamente ligados à experiência do sujeito e envolvem estruturas do conhecimento como a memória, a capacidade para fazer analogias e a utilização de estratégias na resolução do problema.” (p. 25). Nesse sentido – e como em outros processos criativos das diversas linguagens artísticas –, o aspecto objetivo das bases técnicas e teóricas se associa ao aspecto subjetivo das experiências pessoais do sujeito, na resolução criativa da composição.

Ao associar o processo composicional à resolução de problemas, percebe-se que Grassi expande a associação objetivo-subjetivo a qualquer situação na qual há um problema a se resolver, ou seja, quando há a necessidade de uma resolução de problema que exige inovação, as abordagens objetivas e subjetivas se conjugam. A isso Grassi acrescenta ainda outro elemento à resolução de problemas: o insight:

Segundo Sternberg (2000), os insights fazem parte de pensamentos comuns que estão associados à reconceituações de um problema ou de uma estratégia, de um modo totalmente novo. Sua ocorrência está ligada à detecção e combinação de informações relevantes (antigas e novas), de modo que o solucionador possa obter uma visão inédita do problema ou de sua solução. Esta visão do insight, também conhecida como “nada-de-especial”, sugere que os conhecimentos prévios cumprem um papel importante na capacidade criativa, já que estes influenciam a maneira como percebemos, entendemos e manipulamos novas informações. Neste sentido, Weisberg (2006) propõe que o pensamento criativo advém de processos de pensamento comuns em que a expertise do solucionador, a influência do meio e a estrutura de nosso pensamento (revelada em etapas através do uso de analogias e da lógica) são suficientes à produção de produtos “extraordinários”. (GRASSI, 2008, p. 37).

 

Conforme o autor, o insight ocorre quando há a convergência de diferentes fatores cognitivos e experienciais, isto é, das vivências pessoais do sujeito e do arcabouço teórico e prático da sua expertise, a fim de proporcionar uma nova perspectiva ao problema posto. Dessa forma, não é possível inovação, sem que haja uma convergência de experiências e saberes, mesmo que tradicionais, a partir de uma perspectiva singular. Dado insight não se repete e possibilita uma inovação, porque é apenas do sujeito produtor daquele insight a convergência ativa de experiências e saberes singulares. É possível também o insight fruto de duas pessoas ou mais, quando há uma ação ativa e colaborativa a favor da resolução de um problema, necessitando de uma partilha de bases epistêmicas e experienciais, de maneira a conjugá-las ativamente. Mesmo no caso de mais pessoas, é apenas a convergência dessas singularidades objetivas e subjetivas que permite determinada resolução criativa a dado problema.

No aspecto objetivo, Grassi (2008, p. 42) afirma a essencialidade da expertise para o processo criativo: “[...]um primeiro indício da importância que a expertise tem na produção criativa é a necessidade que o sujeito tem de desenvolver habilidades específicas junto a uma ‘tradição’, para só depois poder superá-la.” Nesse sentido, o processo criativo não surge do nada, mas, sim, de uma base provocada pelo uso da tradição que se conhece como parte das experiências pessoais. O compositor conjuga livremente as estruturas da tradição às suas experiências, a fim de compor. Entretanto, é a expertise que lhe assegura essa liberdade.

A subjetividade confere à obra sua singularidade, porque cada sujeito possui perspectivas e experiências singulares na vida; já a objetividade da expertise lhe garante seu caráter criativo, porque depende de o compositor delimitar os pontos de partida e de chegada da sua composição. Logo, “[...] é necessário que o compositor domine as técnicas apropriadas ao estilo de composição escolhido, para que possa estabelecer objetivos finais e intermediários que o possibilitem empregar as estratégias mais adequadas para chegar com mais facilidade e eficiência a uma solução.” (GRASSI, 2008, p. 45).

Assim, é a própria expertise que delimita as restrições sobre as quais o compositor empreende criativamente. O autor aponta para possibilidades de estilos composicionais constituídos de tradições e estruturas próprias, as quais se devem seguir para manter certa fidelidade ao estilo. As restrições não tornam as obras menos criativas ou novas, pelo contrário, é o domínio sobre as características próprias de um estilo que torna possível superá-lo. A superação não é a destruição da tradição, todavia, uma contribuição criativa que a inova, a partir da singularidade do sujeito que compõe.

Quanto ao papel do intérprete, Ana Claudia Assis traz uma análise histórica do trabalho do intérprete, no seu artigo “Fazer música, fazer história: indagando o papel do intérprete contemporâneo” (ASSIS, 2018, p. 127-131), apontando que há uma noção flutuante do que é interpretar a música. Mesmo na noção tradicional, na qual o musicista se dedica a interpretar a composição conforme sua escrita, há variações ao longo da história sobre o que significa essa fidelidade, seja de reproduzir as intenções do compositor através da partitura, seja de resgatar o estilo de se tocar do período da composição, seja ainda, com o advento dos avanços tecnológicos, da influência da qualidade técnica trazida pela indústria fonográfica. Na contemporaneidade, Assis (2018, p. 132) percebe que a fidelidade interpretativa da partitura e da técnica está associada à liberdade criadora:

Assim também a interpretação musical, e no caso específico da interpretação de uma obra contemporânea, ao se realizar no decurso do tempo em performance, revela e articula em cada instante do tecido do tempo musical que delineia, memórias, afetos, referências sonoras do passado em permanente crítica e atualização/re-significação de sentidos. Convite à escuta ativa, a interpretação da música contemporânea articula a tensão entre tradição e liberdade criadora através de modos individuais de ler uma determinada partitura/documento, pois a inexistência de um coloquialismo idiomático que regule modos de tradução deste repertório favorece o desenvolvimento constante de interpretações originais (CARVALHO, 2016, p. 50). Daí o surgimento de uma prática comum em nossos dias, na qual determinadas obras passam a ser quase que exclusivas do intérprete que a estreou (e muitas vezes a quem foi dedicada) constituindo, assim, parte de um repertório individual. Na base desta prática está o interesse crescente dos intérpretes da música contemporânea pela realização de obras inéditas, muitas vezes sob encomenda, fomentando a criação de repertórios personalizados.

 

Interessa-nos considerar a historicidade do intérprete, porque, conforme mostra a pesquisa de Assis (2018), a criatividade também está presente na interpretação de uma peça historicamente situada. Assim como o compositor, o intérprete necessita dominar a teoria e a técnica do instrumento que toca e da leitura de partitura. No entanto, a partitura abre brechas para leituras criativas, apesar de sua notação abordar aspectos estruturais da música, como altura, volume, timbre e ritmo. É nessas brechas que se descortinam as discussões quanto a que se deve a fidelidade da interpretação musical, além da própria criatividade interpretativa do musicista. Na contemporaneidade, a liberdade criadora do intérprete alinha-se à do compositor, no sentido de abarcar a objetividade das bases técnicas e teóricas e a subjetividade das experiências pessoais. Nesse sentido, o intérprete não só reproduz a obra, mas insere sua singularidade na sua execução e, com isso, por mais que interprete a obra de outro compositor, o intérprete é capaz de exprimir sua visão e expressão sobre a obra, através de um diálogo ativo com a partitura.

Nota-se que, mesmo havendo certo consenso sobre os papéis ocupados pelo compositor e o intérprete, a singularidade criativa dos sujeitos está presente tanto na composição quanto na interpretação. Essa liberdade criativa do intérprete ocorre ao disponibilizar-se a uma leitura ativa; sem as amarras de uma leitura estritamente técnica que visa aos intentos do compositor, há espaços para o intérprete colocar-se como agente criador junto à partitura:

Parece evidente na criação do compositor a condição dialógica do termo liberdade criadora. Ela só existe em relação a algo que lhe é anterior e, ao mesmo tempo, em constante atualização. Ela só existe em relação à tradição e ao contexto nos quais o compositor (ou o intérprete) se insere. Daí a metáfora da “ponte entre duas margens de um rio”: o passado e o presente. [...] toda obra de arte incide num processo inconcluso em que cada nova obra altera a anterior, cada obra “fecha e abre simultaneamente velhas e novas etapas”, num movimento em espiral sempre aberta. (ASSIS, 2018, p.131-132).

 

Assis (2018) resume os processos criativos, de forma esclarecedora, e compartilha da ideia de Grassi (2008), quanto ao papel constituinte da tradição para novas criações. Evidencia-se, com esses dois autores, que há uma reverência ao que já foi produzido musicalmente, ao longo da história da humanidade, e, apesar disso, a música não é estanque e há espaço para a criação, seja ela como compositor, seja como intérprete, e que ambas as funções se beneficiam uma da outra, a fim de enriquecer o espectro musical para aqueles que o desfrutam.

 

2.2 O termo da Filosofia na analogia

A leitura e interpretação dos textos clássicos da Filosofia são também um modo pelo qual eles permanecem vivos. Se ninguém mais os lesse, por melhores que fossem, eles deixariam de ter importância no momento presente da atividade filosófica, o que seria ruim não apenas para os textos, que seriam esquecidos, mas, talvez principalmente, para o pensamento filosófico do presente, o qual deixaria de tê-los como parte ativa de sua existência atual. Dessa forma, assim como a interpretação das Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos traz presente essa obra e esse autor ao fazer musical de hoje, a leitura da Metafísica de Aristóteles é parte do fazer filosófico do presente.

Certamente, a orquestra que toca as Bachianas está fazendo música, no sentido de “executando a música”, de torná-la presente na vida dos músicos e da plateia. Todavia, a orquestra não está fazendo música no mesmo sentido em que Villa-Lobos fez, ao compor aquela série. Se ninguém mais tivesse executado as Bachianas, isso não alteraria em nada o fato de que Villa-Lobos fez música, ao compô-la. Por outro lado, se ninguém jamais houvesse composto nenhuma peça musical, não haveria como tocar nenhuma música. Isso significa que a atividade de composição é logicamente anterior à de execução. No entanto, são ações interdependentes, porque visam ao objetivo final, como obra artística, da fruição por parte de um público, porque, por mais que exista a composição na sua forma escrita, como partitura, é o intérprete que veicula a experiência sonora ao espectador; a produção final é a experiência sonora, não a escrita. Aqui se coloca uma das primeiras diferenças na analogia entre Música e Filosofia.

Essa tese da anterioridade lógica da composição em relação à interpretação se complica um pouco, no caso da “música aleatória” e mesmo do improviso, que deixam para o intérprete ao menos parte da tarefa de compor, pois neles a composição parece estar acontecendo ao mesmo tempo que a interpretação.[18] Porém, esses casos não enfraquecem a ideia de que a composição e a criatividade são fundamentais para a Música enquanto arte, mas antes a reforçam. Trata-se de uma “invasão” do âmbito da composição criativa na atividade normalmente mais contida da interpretação musical.

Algo análogo pode ser dito de fazer Filosofia como leitura e interpretação dos clássicos: a escrita dos textos que posteriormente se tornaram clássicos é um pressuposto da atividade interpretativa. Assim como, se ninguém compuser, ninguém vai poder tocar uma música, se ninguém escrever, ninguém vai poder interpretar, o que significa que a atividade de escrita filosófica criativa é, para a Filosofia enquanto área do conhecimento, mais fundamental que a de interpretação. Essa tese se justifica, porque a obra escrita, por si, pode ser compreendida como a produção final, enquanto, na Música, a partitura é um meio para a experiência sonora.

Entretanto, assim como o conhecimento das composições consagradas é fundamental para a formação em Música, o conhecimento dos clássicos da história da Filosofia é central, na formação filosófica acadêmica. O exemplo de Villa-Lobos é eloquente, nesse caso, pois ele compôs uma série de obras que pretendiam ser, ao mesmo tempo, originais e evocadoras do gênio consagrado de Bach[19], ou seja, sua composição estava intimamente ligada a uma interpretação. No caso da Filosofia, o estudo dos clássicos dá aos estudantes os modelos acerca dos temas, problemas e possíveis soluções para essas questões, um conjunto de ideias acerca do que constitui essa área. Estudantes de graduação, em um curso acadêmico de Filosofia, precisam estudar os clássicos, com a finalidade de entender a abordagem específica dessa área, a respeito de questões tratadas também por outras áreas, como é o caso da religião.

Além disso, estudar Filosofia na academia é aprender as principais posições tomadas em um debate, de modo que, para conhecer filosofia da religião, se supõe aprender, por exemplo, o debate acerca da existência de Deus, que acontece desde a antiguidade, tomando contato com os diversos argumentos contra e a favor, em suas diferentes versões. Conhecer esse debate o mais profundamente possível – ou, pelo menos, as teses mais recentes envolvidas na discussão – é uma condição para poder contribuir com ele. Assim como Villa-Lobos precisou conhecer profundamente as obras de Bach, para compor as Bachianas Brasileiras e, assim, contribuir internacionalmente com a arte musical, estudantes de filosofia da religião precisam conhecer as cinco vias de Tomás de Aquino, as críticas de Kant à teologia natural e a alternativa probabilística de Richard Swinburne, entre outras contribuições importantes, para poderem trazer algo de novo sobre a argumentação sobre a existência de Deus.

Por outro lado, essa estreita relação não deve nos levar a pensar que fazer história da Filosofia é o mesmo que fazer Filosofia autoral. O historiador da Filosofia, para fazer uma correta interpretação de uma obra, vai se perguntar, por exemplo, acerca do contexto no qual Kant escreveu suas objeções aos argumentos sobre a existência de Deus, na Crítica da Razão Pura, investigar a estrutura de sua argumentação, nesse livro, compará-lo com outros trabalhos nos quais Kant tratou desse assunto, ou com a estrutura argumentativa dos textos que ele levou em conta, na escrita de suas críticas. Uma correta interpretação do que Kant disse vai exigir conhecer o momento histórico, o contexto intelectual, a língua na qual ele escreveu originalmente, as diferentes versões do texto, o debate dos especialistas na obra de Kant, entre outros elementos. Trata-se de um trabalho altamente especializado, que exige anos de formação e tem, sem dúvida, uma função importante na Filosofia acadêmica, tanto na preparação de novas gerações de filósofos quanto em si mesmo, como conhecimento factual a respeito do que pensaram grandes autores da história do pensamento filosófico. Temos, assim, os especialistas em autores ou escolas de pensamento, análogos aos instrumentistas especialistas em determinados compositores. Mas isso é bem diferente de fazer filosofia autoral.

A principal diferença entre fazer história da Filosofia e fazer Filosofia autoral está no propósito, na intenção. Além de maestro e de tocar outros instrumentos, Villa-Lobos era violoncelista e, como tal, havia interpretado várias peças de Bach, como os Concertos de Brandeburgo, por exemplo. Mas, quando tocava Bach, Villa-Lobos visava a um propósito diferente do que se propunha, quando compôs as Bachianas. Embora tivesse um toque pessoal nas suas interpretações dos Concertos de Bach, o objetivo de Villa-Lobos, nesse caso, não era criar uma obra nova, mas, sim, executar bem a peça. Ao compor as Bachianas, porém, ele obviamente se inspirou em Bach, contudo, sua intenção era criar algo novo, algo que acabou sendo uma contribuição para a história da Música.

Assim, a pergunta que faz alguém que se propõe escrever filosofia autoral não é “qual é o melhor modo de interpretar o autor X”, mas, sim, “está certa essa ideia (dita pelo autor X)?”, “em que essa ideia contribui para entender o assunto Y?” Responder à pergunta acerca da verdade ou da correção (ou o objetivo epistêmico, com a concepção de verdade ou falta dela, que se tiver) de uma concepção é algo que pode começar com informações de história da Filosofia. Posso escrever um texto autoral, partindo das teses de Kant sobre a possibilidade de se formularem argumentos sobre a existência de Deus. Meu texto será histórico ou autoral, a depender da questão que eu tiver a intenção de responder.

Certamente, o conteúdo e a forma da minha questão e da minha resposta em filosofia autoral vão dever muito ao que eu já li sobre o assunto. E minha leitura, ainda que seja sobre o debate ocorrido nos últimos vinte anos, vai exigir em algum grau os cuidados típicos de quem quer entender com fidelidade o que foi escrito. Nesse sentido, acontece na Filosofia algo análogo ao que indicamos acima com a Música: a criação é enriquecida e tem como condição o conhecimento daquilo que já foi produzido antes. Mesmo assim, porém, pode-se dizer que são diferentes os problemas a que se voltam a história da Filosofia e a filosofia autoral, assim como são distintas as questões que tratam a interpretação e a composição musical.

Todavia, há uma diferença importante entre os casos da Música e da Filosofia. Um texto filosófico frequentemente se opõe ou se alinha a uma ideia e pode ser criticado quanto à pertinência das ideias, à profundidade da especulação ou da análise e à validade dos argumentos. Uma peça musical se relaciona com outras de maneiras diferentes, podendo ser criticada também de modos distintos. É verdade que podemos usar uma peça ou um compositor como referência para avaliar outro. Mas isso é diferente da pergunta filosófica sobre a verdade ou pertinência de uma tese. Quando me inspiro em outra peça, na minha composição, não estou me opondo a ela, tampouco a defendendo. Essa diferença na forma como pode ser usado o estudo das obras anteriores na autoria em Música e Filosofia é um dissemelhança relevante a ser considerada nessa analogia.

Outra diferença importante é o modo como são relativamente valorizadas a autoria e a interpretação na Música e na Filosofia, no Brasil. Embora se formem muito mais instrumentistas que compositores e seja mais comum se ouvir a interpretação de obras consagradas do que de composições mais recentes, não se questiona a importância de se formarem novos compositores no panorama musical acadêmico brasileiro. No caso da Filosofia acadêmica entre nós, porém, o fato mesmo de se dedicar uma edição de um periódico importante da área para a questão da filosofia autoral já mostra que se trata de algo muito menos pacífico. Talvez isso se deva à forma como teve início o estudo da Filosofia no meio universitário brasileiro e o fato de que, na instituição que nossa área tem como referência principal, a história da Filosofia seja o modo padrão de se trabalhar. Outra hipótese possível é o chamado “complexo de vira-lata”, o qual levaria a pensar que o melhor que podemos fazer em Filosofia é ler o que os outros escreveram, pois não temos talento ou aptidão para propor ideias filosóficas.

Com certeza, podem ser dadas boas explicações para nosso estado de coisas, mas isso não significa que não possamos defender uma mudança em relação a ele, de sorte que tenhamos condições também de formar quem se arrisque a pensar problemas novos, com soluções inovadoras. Não há por que pensar que a Filosofia se resuma apenas a ler os clássicos, pois eles precisaram ter sido escritos um dia para que os leiamos hoje, e não há por que pensar que não possamos (ou mesmo devamos) escrever hoje aqueles que poderão ser os clássicos de amanhã. Na verdade, a filosofia autoral não precisa mirar somente em grandes inovações que vão revolucionar a história da Filosofia. Uma filosofia criativa já se expressa em pequenas contribuições para um debate específico. O importante de uma filosofia com intenção original é tentar entender melhor os conceitos filosóficos em questão, ousar criticar as ideias que estão colocadas e propor um entendimento mais aprofundado. Precisamos valorizar mais a composição filosófica, no Brasil, seja ela análoga a uma grande sinfonia, seja a uma pequena variação ou um improviso a partir de um tema.

Além disso, a formação de autores não é igual à de leitores. Os desafios da preparação para a autoria em Filosofia são diferentes dos que estamos acostumados a enfrentar, no ensino, para formar especialistas nas obras filosóficas clássicas, como bem sabem nossos colegas da Música, quando ensinam composição e interpretação. A analogia desenvolvida nesta parte visava a defender a diferença entre filosofia autoral e interpretação de obras consagradas, a inter-relação entre essas duas maneiras de fazer filosofia e a importância de se desenvolverem os dois modos do fazer filosófico.

A próxima e última seção deste artigo pretende tratar, mesmo brevemente, dos problemas ligados à formação em filosofia autoral.

 

3 Condições de uma Formação para a Filosofia Autoral: Algumas Sugestões com uma Ajuda da Psicanálise

Se você tem uma ideia incrível, é melhor fazer uma canção.

(Caetano Veloso. Língua, 1982).

 

A partir do exemplo da filosofia da religião, defendemos que há ainda caminhos a percorrer, a fim de instaurar na filosofia brasileira produções criativas com intuito autoral, aliadas ao amplo trabalho que vem sendo desenvolvido em história da Filosofia. Considerando a analogia com a Música, argumentamos que, para a autoria criativa em Filosofia, também são imprescindíveis bases teóricas sólidas da tradição filosófica, com a qual se pretende contribuir e daí avançar. Para isso, tal qual na Música ou qualquer outra área do conhecimento, é necessário muita dedicação e estudo até que o estudante se torne um expert ou possa dar sua contribuição.

Em se tratando de formação para a Filosofia autoral, no meio acadêmico, o principal foco da presente seção é a dinâmica em sala de aula, a qual possibilita caminhar em direção à produção criativa, iniciando-se na graduação, até que o agente tenha as bases adequadas para a produção autônoma madura, normalmente a partir do grau de doutoramento. A tese que vamos desenvolver tem como foco não a Filosofia como área do conhecimento objetiva (que se deve aprender em sua história ou em seus debates específicos), mas no modo como ela é aprendida subjetivamente na formação universitária. O objetivo é ajudar a esclarecer pelo menos algumas condições que propiciem o desenvolvimento da criatividade filosófica.

A abordagem psicanalítica é bastante corrente nas ciências da educação, especialmente no tocante a questões que envolvem a formação para a criatividade. Assim, com um compromisso que não precisa ser mais que instrumental, para aprofundar o entendimento da subjetividade na produção filosófica, utilizaremos alguns conceitos psicanalíticos que permitam analisar as dinâmicas subjetivas que operam em sala de aula na tríplice fórmula aluno-professor-conhecimento a fim de proporcionar ou não a produção criativa. O conceito de “transferência” fornece um campo fértil para analisar a dinâmica da produção criativa dentro da universidade. Segundo D. A. Santos, em Afeto e Transferência na Constituição do Sujeito (2015), compreende-se a transferência como um dos conceitos fundantes da psicanálise e diz respeito à atualização das experiências constituintes primárias marcadas pela autoridade e afeto. Segundo ele, já em A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud apontou que as primeiras relações que o sujeito experiencia são com as figuras parentais, constituindo a partir daí as representações que ele internaliza. Ao se integrar gradativamente a círculos sociais cada vez maiores e mais complexos, o sujeito se relaciona com outros, os quais também lhe dão afeto e assumem o lugar de autoridade, como, por exemplo, o analista ou o professor:

Há, impreterivelmente, uma ligação entre a transferência e o desejo: o desejo de quem almeja passar algo e o do “Outro” que anseia receber algo, o que, no caso do ser humano, podemos interpretar como os cuidados iniciados desde a infância com a sua ligação parental até o que constitui o processo de ensino-aprendizagem. (SANTOS, 2015, p. 33).

 

No entanto, o sujeito não simplesmente repete suas experiências parentais, mas a experiência atual permite a ele uma nova vivência de afeto e autoridade que atualiza suas experiências constituintes:

[...] o fenômeno transferencial, que passa a ser compreendido como lugar de acontecimento de experiências. Logo a transferência passa a representar o “lugar” da emergência do novo, lugar da constituição do ser humano, numa compreensão em que o ser humano estaria continuamente no “entre” e sua constituição como ser humano passa então a acontecer a partir do encontro com o “outro”. Dessa maneira, a transferência apropria-se também como experiência intersubjetiva. (SANTOS, 2015, p. 34).

 

À medida que o sujeito envelhece, as relações transferenciais se tornam cada vez mais complexas, por envolverem certas expectativas sobre os afetos e as autoridades pertinentes a determinadas figuras e instituições. Assim, a transferência opera a partir do desejo de que certas expectativas se concretizem e na sua adequação – frustrada ou não – à realidade.

Conforme Colpo, Escobar e Ravasio, em “Reflexões Psicanalíticas sobre a Ação Educativa no Ensino Superior” (2008), a relação transferencial estabelecida pelo aluno se direciona ao saber do professor e à reputação da instituição de ensino superior que o professor integra e representa. Dessa forma, a expetativa transferencial de afeto e autoridade está atrelada à instituição e ao conhecimento, sendo o desejo pelo conhecimento e a relevância desse conhecimento que sustentam a relação entre professor e aluno:

Ao tomar conhecimento do plano de ensino, a comunidade acadêmica poderá interpretar quem é o professor que ministra a disciplina, a que veio, o que sabe da área, qual seu compromisso com os acadêmicos e qual sua relação com a disciplina. A organização do plano de ensino diz quem é o professor, por isso, se dá grande valor a sua estrutura, este plano também pode ser o documento que segue o aluno, e o dirige a uma posição. Desta forma, o plano de ensino também é um documento que apresenta formalmente a instituição, o curso, a disciplina e, consequentemente, o professor universitário. Instaura-se um primeiro traço identificatório no processo de ensino aprendizagem .(COLPO; ESCOBAR; RAVASIO, 2008, p. 101-102).

 

Com isso, os autores apontam que é na formalidade da instituição e na organização da disciplina que se deposita o desejo de conhecimento, e esse traço identificador diz respeito às expectativas postas sobre o professor e suas competências. Dessa maneira, o sujeito passa a se identificar com o ambiente acadêmico, através do ensino-aprendizagem em sala de aula, e é, efetivamente, o professor que o conduz a tal. No entanto, essa condução só é possível, quando as expectativas de aprendizagem são justificadas e se estabelece a transferência. Calcada no desejo de saber e na confiança de que o professor é capaz de suprir esse desejo, a transferência que parte do aluno confere ao professor sua autoridade e o torna receptor e doador de afeto. Ambos, autoridade e afeto, estão ligados ao conhecimento, ou seja, a autoridade só se estabelece, porque há a confiança de que o aluno aprenderá com o professor, e o afeto dirige-se ao reconhecimento dessa aprendizagem do e no aluno.

Além da transferência que parte do aluno, há a contratransferência, a qual parte do professor e das expectativas que são atendidas ou não. Além disso, a contratransferência é uma resposta inconsciente à transferência:

Freud (1910) defende que a transferência é vivida pelo paciente ao mesmo tempo em que a contratransferência é vivida pelo analista. Na escola, o mesmo acontece quando o aluno “confunde” o professor com figuras importantes da sua vida. O docente possivelmente contra-reagirá àquela situação, respondendo de forma inconsciente aos sentimentos do aluno. (BODINI; OLIVEIRA; PASQUALINI, 2011, p. 133 -134).

 

Nesse sentido, alunos e professor estão inseridos em um cenário de ações e reações inconscientes que mobilizam as relações em sala de aula. Conforme o psicanalista David Levisky (1995), percebe-se a transferência e a contratransferência a posteriori, quando as reações escapam, normalmente através da comunicação não verbal, na postura corporal e na entonação da voz. A transferência e a contratransferência estabelecem os laços relacionais em sala de aula, e é partir destes que o desejo pelo conhecimento e pelo momento de aprendizagem se consolidam, ao longo do período de ensino-aprendizagem. O professor, como autoridade epistêmica, outorgado por seu investimento em pesquisa, pela reputação da instituição e pela confiança do aluno, é o responsável por fomentar o pensamento e a produção criativa. Esse fomento à criatividade é possível quando, apesar de seu arcabouço técnico e/ou teórico, o docente se reconhece não todo ou faltante e abre espaço para o diálogo, a fim de que os alunos manifestem suas percepções e insights.

Vejamos um exemplo disso, na área de Filosofia. No artigo “A School for Philosophers” (1957 [1972]), R. M. Hare discorre acerca da formação de graduandos dentro da faculdade de filosofia na Universidade de Oxford, Reino Unido. Um dos pontos fundamentais desse processo é um tipo de atividade chamada tutorial, na qual o estudante deve ler um pequeno texto seu ao professor, em uma reunião semanal geralmente envolvendo apenas os dois. O texto deverá se basear em bibliografia indicada na semana anterior, mas o aluno deverá se posicionar em relação a ela, ou seja, deverá dizer o que pensa daquelas ideias e por quê.  Hare elenca algumas características que os professores adotam, na tutoria de seus alunos e durante as reuniões mais amplas dos grupos de pesquisa: não há campo restrito ou hierarquia impeditiva, todo e qualquer sujeito que deseje participar dos debates ou empreender uma pesquisa tem o aval da instituição sobre o seu posicionamento, contanto que possua bases sólidas suficientes para sustentar-se à avaliação dos pares.

Assim, os alunos se encontram em um ambiente criativo de ensino e aprendizagem, apoiando-se na tradição para sustentar suas posições e, no caso de perceberem incompletos, inconclusos ou insustentáveis seus posicionamentos, retornam à tradição para consolidar seu conhecimento, ou aproveitam as ideias do debate para aperfeiçoar suas ideias. Essa relação estabelecida entre aluno, professor e conhecimento, citada e exercida em Oxford, segundo Hare, aponta para o espaço onde o pensamento criativo se abre, quando se adota uma atitude de saber-se não todo pelo professor:

[...] se o professor se coloca na posição de que tudo sabe, não resta ao aluno desejo algum. Resta-lhe apenas submeter-se à figura do mestre. Dessa maneira, a posição que o professor deve ocupar não é exatamente aquela em que o aluno lhe coloca, melhor dizendo, para que o aluno se constitua enquanto sujeito pensante, o professor deve reconhecer-se castrado, isto é, um ser em falta. Ao mesmo tempo, não deve deixar sua posição de representante do conhecimento, caso contrário, o aluno não pode supor-lhe o saber, não se estabelece, portanto, o dispositivo da ação educativa. (MONTEIRO apud COLPO; ESCOBAR; RAVASIO, 2008, p. 109).

 

Encontra-se, no exemplo de Oxford, uma produção filosófica autoral que ativamente se sustenta sobre a tradição e na colaboração de uma comunidade de investigação, de sorte a iluminar novos conhecimentos. Em seu artigo, Hare ainda ressalta que todos estão submetidos a essa mesma lógica, professores e alunos; assim, os docentes assumem o lugar de não todo a favor de uma filosofia criativa e dinâmica, mas sem abrir mão da função de professores que orientam a favor da ação educativa.

No entanto, vale reconhecer o contexto do professor de Filosofia, no Brasil, onde a profissão de docente e as instituições de ensino são desvalorizadas de vários modos.[20] O que sustenta a busca por essa profissão e por essa área do saber é o desejo de ensino e o desejo de conhecimento compartilhado por alunos e professores, mas frequentemente se busca satisfazer esse desejo de formas menos edificantes. Na sua tese de doutorado O desejo de saber e suas vicissitudes - da escola à universidade: um enfoque psicanalítico (2005), T. Scorsato aborda como o desejo do professor pode se sobrepor ao desejo dos alunos, apoiando-se no respeito à sua autoridade epistêmica encontrada dentro do ambiente acadêmico, nos espaços de pesquisa e na sala de aula. Nesse contexto, é possível ponderar a resistência em assumir-se não todo e abrir espaços para que alunos percebam uma possível precariedade ou falta. Sendo a sala de aula o lugar onde se manifesta algum tipo de reconhecimento e valorização, é possível o professor fechar-se na vaidade de sua autoridade simbólica e expressar apenas o seu desejo sobre o conhecimento, sem abrir espaços para o desejo dos alunos, anulando-os a uma interpretação restritiva do legado filosófico importado e já consolidado. Aprende-se a tradição para repeti-la e se estabelece a autoridade apenas para se manter uma relação de poder:

Transmitir a verdade como preestabelecida impede o outro de produzir uma versão própria sobre o mundo e aí produzir novos saberes. A ciência pedagógica que seja capaz de transmitir o conhecimento sem imperatividade e também sem desorientação deixa aberto o campo dos saberes como um saber a ser produzido e situa o sujeito como agente de seu processo, permitindo a possibilidade de construir aprendizagem via versão própria e produtora de novos conhecimentos. (SCORSATO, 2005, p. 50).

 

A depender da transferência dos alunos, com suas expectativas frustradas ou não, a contratransferência pode trazer estados de criação, vaidade ou ressentimento. Isso significa que, sendo o depositário da confiança de aprendizagem e tido como representante do saber e da instituição, é o aluno que confere ao professor sua autoridade. Juntamente, o professor reconhece seus esforços para ocupar sua função e espera dos alunos o respeito apropriado ao ambiente acadêmico e a dedicação à pesquisa. Quando há o reconhecimento da falta nessa dinâmica de transferência e contratransferência, alunos e professor se encontram em espaços de diálogo a favor da aprendizagem e da produção criativa. Quando o professor assume o lugar de suposto saber desejado pelos alunos, a vaidade se instaura e não há espaço para o diálogo, mas apenas para a reprodução do conhecimento do professor. Quanto ao ressentimento, esse encontra campo fértil, quando nenhuma das expectativas é atendida.[21]

Isso nos leva de volta ao processo criativo composicional, no qual é necessário apoiar-se na tradição e no debate, para criar algo novo; assim também é, pelo menos parcialmente, o percurso para uma filosofia autoral. Na filosofia acadêmica, normalmente, na graduação, os alunos adquirem as bases das tradições filosóficas; no mestrado, consolidam-se na área de sua preferência para, no doutorado, contribuir criativamente. Contudo, para contribuir originalmente, é preciso que haja também incentivos para empreender nesse processo desde o começo, ou seja, saber como abordar criativamente a tradição filosófica. Como qualquer outra prática, essa também precisa ser estimulada junto à consolidação das bases epistêmicas da tradição.

Assim, na formação para uma filosofia criativa, não basta retornar aos clássicos: é preciso lê-los de modo ativo, como interlocutores, como participantes mais experientes de uma coletividade que tem como finalidade o pensamento filosófico crítico. A leitura ativa certamente exige a busca da compreensão a mais fiel possível daquilo que foi escrito, e nisso, entre outras coisas, a história da Filosofia será de imensa utilidade. No entanto, além de compreender bem um texto em seu contexto e suas articulações lógicas internas, ler os clássicos como interlocutores exige guiar essa atividade por questões, buscando no texto eventuais respostas ou um aperfeiçoamento das perguntas. Ler com um propósito crítico significa colocar o texto em crise, ao mesmo tempo que quem lê se dispõe a aprender com ele. O propósito adequado da leitura dos clássicos a uma formação para a filosofia autoral é uma compreensão conceitual mais profunda de um assunto, é pensar melhor sobre um tema e não a correta interpretação apenas, tampouco a apreciação estética do texto.

Tomar as grandes filosofias do passado como interlocutoras para o pensamento crítico significa que a formação para uma filosofia criativa precisa de uma comunidade de investigação, por meio da qual as ideias possam ser aprofundadas pelo debate. A formação filosófica acadêmica não se restringe à sala de aula; a participação em grupos de pesquisa é um meio fundamental de aprendizado, não somente dos conteúdos da área, mas também dos modos como seu tipo específico de conhecimento se desenvolve. O exercício de escrever um texto sobre um assunto e submetê-lo à discussão de um grupo de pesquisa especializado é uma forma particularmente importante de incentivo à educação de filósofos que possam contribuir com a área, originalmente.[22]

Além disso, assim como há técnicas que ajudam na elaboração de um bom trabalho em história da Filosofia, há também recursos que podem ajudar na escrita de um texto filosófico com intenção criativa. Métodos de análise lógica e probabilística podem auxiliar na preparação de argumentos dedutivos, indutivos ou pela melhor explicação. A formulação de experimentos de pensamento ou a proposição de contraexemplos para teses filosóficas consagradas são igualmente exercícios úteis para o propósito da inovação filosófica. Um diálogo com as artes, as tradições religiosas e as ciências empíricas e formais – e não apenas com o debate em Filosofia, como temos na formação filosófica acadêmica, tradicionalmente – pode ser também uma fonte interessante de problemas e soluções inovadoras em Filosofia. Mas esses são apenas alguns instrumentos possíveis e não devem levar a confundir a proposta de filosofia criativa com a defesa da chamada “filosofia analítica” (se é que essa expressão tem um significado unívoco, hoje em dia) ou de um modo de filosofar que se dá predominantemente com o uso de recursos formais de argumentação.

Por fim, a formação para a filosofia criativa precisa de uma dosagem correta de crítica aos erros (de principiante ou não) e estímulo a continuar na busca pelo pensamento inovador. Faz parte do processo de formação para o pensamento criativo a indicação dos defeitos do texto escrito ou da apresentação oral. Isso certamente pode incluir indicar o quanto as suas ideias boas não são originais e o quanto as suas ideias originais não são boas. A atitude de humildade intelectual, no sentido de se dispor a aprender com os interlocutores do passado e do presente, é uma virtude fundamental no processo de formação para a filosofia autoral. Entretanto, a indicação de lacunas no conhecimento do debate filosófico sobre o assunto tratado, da superficialidade da análise ou da reflexão, ou de erros na estrutura da argumentação não deve levar a um desestímulo no desenvolvimento de pensar criativamente. Leva tempo e se exige paciência para se tornar um especialista em um ponto específico da história da Filosofia, e o mesmo acontece com a filosofia autoral. A crítica deve servir para levar adiante, não para exterminar o futuro.

 

Considerações Finais

Conforme o percurso empreendido no presente artigo, apresentam-se algumas considerações finais acerca da pertinência e possibilidade de se incentivar a produção filosófica criativa nacional, tomando-se o caso do desenvolvimento recente da filosofia da religião, no Brasil. Percebeu-se, com a analogia à composição e interpretação musical, que não há o intento em desvalorizar a atual produção filosófica voltada à abordagem histórica, mas acrescentar outras possibilidades de fazer Filosofia. Como o compositor precisa do intérprete e vice-versa, observa-se que há benefício mútuo entre filósofos que se dedicam à escrita de novas ideias e os que se debruçam sobre a interpretação, visto que assim se diversifica a discussão contemporânea da filosofia nacional.

Por fim, compreende-se que uma abordagem criativa à Filosofia se torna profícua, se iniciada junto à aquisição das bases teóricas da tradição e do emprego de técnicas de argumentação e de escrita com propósito crítico, para que haja o exercício de criação de algo novo, a partir do legado existente. Tendo como foco a filosofia enquanto prática concentrada no ambiente acadêmico, discutimos a relação entre professor, aluno e conhecimento, a favor de momentos de diálogos criativos em sala de aula e na pesquisa. Experiências fora do Brasil mostram que é possível uma abordagem de ensino-aprendizagem criativa em Filosofia, a qual se sustenta nos pilares da tradição consolidada. Cabe reconsiderar a prática pedagógica nacional a favor de uma filosofia autoral e criativa.

Assim, quem sabe um dia possamos contribuir para a área de Filosofia (da religião e em geral) como Villa-Lobos contribuiu para a Música, Niemeyer para a Arquitetura e Machado de Assis para a Literatura, ou mesmo ser também capazes de participar com pequenas contribuições nossas, no debate sobre os temas em que se engaja a comunidade filosófica internacional, inclusive sugerindo novos assuntos e novas abordagens.[23]

 

For a Creative Philosophy (of Religion): the Problem of Philosophical Training from an Analogy with Music

Abstract: This article is divided in three parts in order to investigate on the authorial and creative philosophical production in the Brazilian academic environment. In the first part, we show the challenge to authorial production in philosophy in Brazil, starting from the example of recent initiatives in the philosophy of religion. In the second part, by means of an analogy with music, we intend to argue that the plead for a greater promotion of authorial philosophy in Brazil does not mean to devaluate the work with history of philosophy, which seems to be the predominant approach in academic philosophy in our country. The third part addresses the challenges to the formation of philosophical authorship, based on the triplet student-professor-knowledge, and acknowledging objective and subjective aspects of learning.

Keywords: Philosophy as composition. Academic philosophy in Brazil. Training for creativity. Lack. Desire and learning.

 

Referências

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Recebido: 29/08/2022

Aceito: 04/12/2022


 

Comentário a “Por uma filosofia (da religião) Criativa”: o problema da formação filosófica a partir de uma analogia com a música

 

Murilo Rocha Seabra[24]

 

Referência do artigo comentado: Portugal, A. C; Portugal, C. P. Por uma Filosofia (da Religião) Criativa: o Problema da Formação Filosófica a partir de uma Analogia com a Música. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 23- 52, 2023.

 

A Templeton Foundation tem injetado somas vultuosas no Brasil para fortalecer o campo da chamada “filosofia da religião” – que deveria talvez se chamar “filosofia do cristianismo” ou “filosofia da religião judaico-cristã”, não “filosofia da religião” (Seabra, 2021, p. 132). Os investimentos deveriam no mínimo nos deixar com uma pulga atrás da orelha. Segundo Jerry Coyne, professor de biologia da Universidade de Chicago, a Templeton só quer colocar os velhos argumentos da Europa medieval em favor da existência de Deus – não de Yemanjá, não de Omama, não de Quetzalcoatl, não de Allah, não de Shiva, mas apenas da divindade judaico-cristã chamada “Deus” ou “Jeová” – sob uma roupagem que a comunidade científica moderna considere mais tragável (Coyne, 2011). O uso exuberante da estatística e da lógica formal não é mais do que uma manobra de marketing. Ambas servem apenas para trazer um ar de respeitabilidade a uma religião que mostrou sua verdadeira face na era colonial – e que recentemente tem perdido prestígio devido ao seu apoio a figuras como Bolsonaro, ao seu compromisso inveterado com o etnocídio e aos escândalos de pedofilia que ano após ano envergonham o Vaticano.

As coisas não param por aqui. A Templeton também investe em acadêmicos, organizações e think tanks de direita que combatem leis trabalhistas, defendem a privatização de serviços públicos (inclusive de universidades) e vociferam contra mulheres que lutam pelo direito ao aborto (Evans, Lawrence, Pegg, Barr, 2019). A semelhança com o regime militar inaugurado em 1964 com a ajuda de Washington não é mera coincidência. Aliás, o fundador da Templeton já disse em entrevista que se deve comprar ações em tempos de guerra e títulos em tempos de paz (Templeton, Ellis, 1991).

Em última instância, o que a Templeton almeja é marginalizar o pensamento crítico e aumentar o abismo entre os mais pobres e os mais ricos. As duas coisas andam juntas. Do ponto de vista estritamente lógico, os argumentos a favor da privatização de serviços públicos – e de toda agenda neoliberal – são tão coerentes quanto a afirmação de que 1+2=5 ou de que “Ele não nasceu no Brasil, logo ele é carioca”. Eles são frágeis. Eles são deploráveis. Eles são asquerosos. Deixados à própria sorte, tendem a acumular poeira e a ser triturados pelas engrenagens do tempo. Portanto, é necessário (a) construir um exército de ideólogos preparados para defendê-los com unhas e dentes, e (b) fomentar um ambiente intelectual menos crítico e menos politicamente consciente de modo a facilitar o trabalho dos marines do neoliberalismo.

Não é a primeira vez que uma fundação que se apresenta como puramente filantrópica usa seu poderio econômico para interferir no mundo intelectual. Washington já sabe há muito tempo que as universidades possuem uma enorme importância estratégica. Não foi por outro motivo que a Ford Foundation, trabalhando junto com a Central Intelligence Agency (CIA), distribuiu bolsas de estudo pelo mundo inteiro. Antes da derrubada de Allende em 1973, por exemplo, ambas já tinham formado uma horda de economistas chilenos convencidos de que a melhor coisa a fazer era abrir o país ao capital estrangeiro e entregá-lo de bandeja aos Estados Unidos (Seabra, 2022a).

Um pouco de senso crítico não faz mal a ninguém. A religião pode, sim, ser estudada e discutida de maneira séria e rigorosa pela filosofia (até mesmo em sua face judaico-cristã (aliás, o fato de que ela frequentemente contradiz o que prega a torna especialmente apetitosa)). A reflexão filosófica – a reflexão radical, responsável e corajosa – sobre a religião, porém, parece ter sido terminantemente banida da “filosofia da religião”. Ela se ocupa apenas com perguntas anódinas. As perguntas de importância capital – as perguntas verdadeiramente fundamentais – estão excluídas por princípio. Qual é o papel que o cristianismo continua a desempenhar no etnocídio (por exemplo, no etnocídio dos Yanomami que recentemente virou manchete internacional)? Por que os judeus israelenses estão tratando os palestinos como foram tratados pelos nazistas (a ideia de superioridade étnica já latejava em forma embrionária no judaísmo, antes mesmo da mutilação da Palestina e da criação de Israel)? E por que a filosofia da religião qua disciplina acadêmica – que deve ser nitidamente distinguida da filosofia da religião qua atividade intransigente de reflexão sobre os fenômenos religiosos – insiste em fechar os olhos para o cristianismo em seus aspectos mais fulgurantes e sórdidos, limitando-se a tentar provar que Jeová existe por meio de pseudoargumentos lógicos e pseudocálculos matemáticos?

Talvez a resposta não esteja fora do alcance. A Templeton Foundation não tem nenhum interesse em apoiar a filosofia no sentido estrito do termo. Ela não tem nenhum interesse em apoiar a filosofia qua atividade intransigente de reflexão. Por que o faria? O que ela ganharia? E já deveríamos ser maduros o suficiente para saber que, em se tratando dos Estados Unidos, nada vem de graça. Os objetivos de médio e longo prazo da Templeton não são difíceis de entrever. O que ela quer fazer é esvaziar a universidade de todo pensamento crítico e de todo pensamento não alinhado aos interesses dos psicopatas unidos do capitalismo (Seabra, 2022b). Em uma palavra, ela quer esvaziá-la de todo pensamento. Pois o pensamento não aceita nem 1+2=5 nem “Ele não nasceu no Brasil, logo ele é carioca”.

A menos que já esteja fraco e domesticado – e acredite que a existência de Jeová pode ser matematicamente demonstrada, por exemplo –, o pensamento não abaixa a cabeça nem para a trickle-down theory, nem para a ideia de que as universidades devem ser privatizadas, nem para nenhuma outra asneira neoliberal ou neocolonial. Pelo contrário, o pensamento pensa. Portanto, uma estratégia aparentemente paradoxal precisa ser tomada se quisermos avaliar de forma séria a filosofia da religião (e a mesma coisa vale para a filosofia acadêmica de maneira geral). Não podemos examinar apenas o que ela produz, o que ela publica e o que ela fala. Precisamos também – talvez sobretudo – examinar o que ela não produz, o que ela não publica e o que ela não fala.

 

Referências

Coyne, J. Martin Rees and the Templeton travesty. The Guardian, 06 abr. 2011. Disponível em: https://www.theguardian.com/science/blog/2011/apr/06/prize-mug-martin-rees-templeton. Acesso em: 02 jan. 2023.

Evans, R.; LAWRENCE, F.; PEGG, D.; BARR, C. Wealthy US donors gave millions to righting UK groups. The Guardian, 29 nov. 2019. Disponível em:  https://www.theguardian.com/politics/2019/nov/29/wealthy-us-donors-gave-millions-to-rightwing-uk-groups. Acesso em: 02 jan. 2023.

Portugal, A. C; Portugal, C. P. Por uma Filosofia (da Religião) Criativa: o Problema da Formação Filosófica a partir de uma Analogia com a Música. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 23- 52, 2023.

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Seabra, M. Psicopatas Unidos do Capitalismo. Coluna Anpof, 14/11/2022b. Disponível em: https://anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/psicopatas-unidos-do-capitalismo. Acesso em: 02 jan. 2023.

Templeton, J.; Ellis, J. Templeton: Buy stocks in war, buy bonds if there’s peace. Money, vol. 20, N. 2, 1991, p. 177. Disponível em: https://discovery.ebsco.com/c/6kr4lr/viewer/html/emm7mikzoj. Acesso em: 02 jan. 2023.

 

Recebido: 02/03/2023

Aprovado: 10/03/2023


 

Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir

 

Alfredo Pereira Jr.[25]

Vinícius Jonas de Aguiar[26]

 

Resumo: A sentiência, definida como a capacidade inconsciente de se ter experiência consciente do sentir, é um fenômeno psicobiológico, envolvendo padrões dinâmicos de ondas eletroquímicas, em sistemas vivos. O processo de sentir pode ser estudado em duas modalidades: a) identificação empírica e análise dos padrões temporais universais que caracterizam a sentiência, cujo estudo seria a Sentiômica; b) identificação introspectiva e relato da variedade de experiências conscientes, na perspectiva de primeira pessoa, cujo estudo seria a Qualiômica. A Qualiômica é, sem dúvida, um desafio para a ciência convencional, como afirmado no “problema difícil da consciência” (CHALMERS, 1995), pois a perspectiva de primeira pessoa não é acessível aos métodos de medição e às explicações científicas convencionais. A Sentiômica, enfocando padrões dinâmicos que definem a capacidade de sentir, é, portanto, por definição, suscetível de um tratamento empírico e experimental. Neste artigo, propõe-se contextualizar pressupostos e problemas filosóficos da Sentiômica e apresentar algumas das suas diversas aplicações, com foco na sua relação com a música.

 

Palavras-chave: Sentiômica. Qualiômica. Sentiência. Informação. Cognição Musical.

 

INTRODUÇÃO

            “Sentiência” refere-se à capacidade de sentir, ou seja, de se ter experiência consciente de formas qualitativas (qualia). Neste trabalho, definimos sentiência como a capacidade inconsciente de se ter experiência consciente do sentir. Por exemplo, as pessoas têm a capacidade inconsciente de sentir dor, quando afetadas por um estímulo nocivo; entretanto, isso não significa que sintam dor, durante todo o tempo em que estão acordadas e conscientes. Apenas quando a capacidade de sentir se expressa na experiência o sentimento é conscientemente vivenciado.

            Emoções, sensações, percepções e afetos, tais como experienciados por humanos, são expressões da capacidade de sentir. Utilizamos o termo sentimento para nos referir a todos os tipos de experiências qualitativas, em humanos e não humanos.[27] As experiências conscientes, na perspectiva de primeira pessoa, podem ser afetivas/emocionais, cognitivas e/ou relacionadas ao comportamento; em todas essas modalidades, tais experiências comportam estados qualitativos, chamados de qualia.

            Assumimos que podem existir inúmeras nuances e variações da expressão dos padrões da sentiência, em sistemas humanos e não humanos, muitas das quais seriam dificilmente tradutíveis para a linguagem verbal humana. A Sentiômica, enquanto ciência da capacidade de sentir, enfoca os “genes do sentimento”, isto é, os padrões dinâmicos inconscientes capazes de gerar sentimentos conscientes. Faz parte da fundamentação da Sentiômica a suposição de que esses padrões sejam universais e possam, portanto, ser registrados e analisados na perspectiva da terceira pessoa, a qual caracteriza o método científico tradicional. Uma vez que esses padrões se expressam para alguém, eles são experimentados na perspectiva de primeira pessoa.

            As experiências pessoais, por sua vez, não seriam universais, mas singulares, para cada indivíduo, de cada espécie biológica. Isso plausivelmente se deveria ao fato putativo de que, a cada região do espaço e do tempo, em organismos vivos, as combinações dos padrões universais do sentir ocorrem de modo diferente. Isso é possível porque, assim como na linguagem humana, da combinação de um número finito de elementos (alfabeto), pode-se gerar um número infinito de palavras e frases; do mesmo modo, no estudo da sentiência, de um mesmo repertório universal de padrões dinâmicos que geram sentimentos, pode-se gerar uma variedade infinita de combinações, que compõem a perspectiva de cada pessoa.

            Não iremos aqui nos aprofundar na discussão do conceito de consciência, uma vez que a Sentiômica se refere aos padrões inconscientes, instanciados no tecido biológico vivo, que dão suporte à consciência; caso o leitor se interesse por esse tipo de investigação conceitual, sugerimos nossos trabalhos prévios (PEREIRA JR.; RICKE, 2009; PEREIRA JR. et al., 2010: PEREIRA JR., 2013b; PEREIRA JR., 2018; PEREIRA JR., 2021a). O estudo dos qualia, a ser chamado de Qualiômica, é específico para cada espécie, e os padrões que se expressam na experiência consciente são singulares e restritos às respectivas perspectivas de primeira pessoa. A Qualiômica é, sem dúvida, um desafio para a ciência convencional, como afirmado no “problema difícil da consciência” (CHALMERS, 1995), pois a perspectiva de primeira pessoa não é acessível aos métodos de medição e às explicações científicas convencionais. A relação entre a Sentiômica e a Qualiômica constitui uma temática ampla e complexa, a qual aqui iremos apenas sugerir.

            Para os seres humanos, com base em nossa experiência na perspectiva de primeira pessoa, podemos afirmar que há uma conexão das qualidades subjetivas com a história individual; por exemplo, um acorde menor na harmonia de uma música pode estar relacionado a um grau de melancolia, na mente de quem a ouve. No entanto, essa conexão não é suficiente para a identificação de padrões dinâmicos que geram sentimentos em outras espécies. Como esses padrões biológicos não provocam necessariamente os sentimentos correspondentes à experiência humana, precisamos de ferramentas científicas e tecnológicas para registrá-los e analisá-los, como, por exemplo, a eletroencefalografia. Amparados nesses registros e estudos, podemos conjecturar, com base empírica, que as diversas espécies animais, e mesmo plantas, apresentam padrões básicos do sentir, que expressariam algum grau de experiência consciente, por exemplo, relacionados a sensações básicas, como sentir o toque na pele, sentir calor, sentir fome e sede etc. Por outro lado, há grande probabilidade, a partir dos mesmos dados, de que vários tipos de experiências conscientes humanas, no domínio cognitivo, como a autoconsciência (consciência de ser consciente), não estejam presentes em outras espécies biológicas, o que, evidentemente, não exclui a possibilidade de que tais espécies tenham experiências conscientes sensoriais próprias a seu aparato perceptivo, como no caso da ecolocação em morcegos (NAGEL, 1974).

            A Sentiômica interessa-se por qualquer sistema que expresse os padrões dinâmicos do sentir, como plantas, colônias de seres unicelulares e, certamente, indivíduos de todas as espécies animais, sendo que, em cada um desses sistemas, as experiências geradas (qualia) seriam específicas, relativas a suas respectivas estruturas e história de cada indivíduo. As características consideradas exclusivas a determinadas espécies, como, por exemplo, o comportamento moral humano, ou características típicas de outras espécies, como, por exemplo, a capacidade de discriminação olfativa dos cães, que é muito superior à humana, não seriam de interesse. Em suma, os padrões que interessam à Sentiômica seriam aqueles que podemos considerar como universais, a exemplo do código genético, o qual é o mesmo em todos os seres vivos, enquanto as expressões experienciais conscientes seriam não apenas específicas de cada espécie, mas únicas para cada indivíduo, devendo ser estudadas não pela Sentiômica, mas, quando possível, pela Qualiômica.

            A distinção entre essas duas perspectivas é de natureza epistemológica, não implicando necessariamente algum tipo de dualismo ontológico; ao contrário, assumimos aqui uma abordagem monista, em que os objetos de estudo da Sentiômica e Qualiômica se referem a aspectos da mesma realidade. Os padrões que não geram qualia não interessam à Sentiômica, uma vez que esta se caracteriza pela busca, identificação e análise dos padrões dinâmicos universais que geram sentimentos em sistemas vivos, como plantas, fungos, bactérias e animais. Esses padrões podem ser externos (por exemplo, sinais sensoriais originados fora do sistema) ou internos (por exemplo, formas estruturais, ondas eletroquímicas que percorrem os tecidos) aos sistemas. Os padrões internos se formam em processos psicofisiológicos de estimulação, afastamento da homeostase (perturbação) e alostase (reestabilização), nos quais ocorre a formação de estados vibracionais e ondas, no tecido nervoso. Essas ondas se correlacionam com e dão suporte a processos perceptivos, afetivos e enativos, que denotamos com os termos sensação, emoção, humor, desejo e outros.

            Os padrões dinâmicos da sentiência podem ser estudados na perspectiva de terceira pessoa da ciência convencional, por meio de registros empíricos, formalização lógico-matemática, análise computacional e teste experimental. Seu estudo seria, em um segundo momento, importante para se entender melhor os processos conscientes, ou seja, as experiências pessoais, na forma de episódios temporais vividos na perspectiva da primeira pessoa. Entretanto, vale ressaltar, às custas de sermos repetitivos, que a Sentiômica não é o estudo da experiência consciente, pois esse estudo seria a Qualiômica, exigindo métodos de primeira pessoa, como a introspecção, meditação, fenomenologia transcendental ou existencial, os quais são igualmente importantes, porém, não se encaixam no método científico tradicional.

            Há, portanto, um problema filosófico inerente ao estudo do sentir em geral e da consciência em particular, a saber: como articular essas duas perspectivas, no estudo das experiências sentientes? Como conciliar a abordagem empírica com os métodos de primeira pessoa? Em que medida as abordagens “subjetivas” podem ser úteis para os métodos científicos que compõem a perspectiva em terceira pessoa? Ou ainda: até que ponto os métodos científicos “objetivos” podem contribuir para a nossa compreensão do sentir, sem o auxílio de conhecimentos advindos da perspectiva em primeira pessoa?

            Com o advento da Sentiômica, torna-se desnecessário “forçar a barra” nas duas direções, seja para fazer os métodos de primeira pessoa se passarem por científicos, seja para abordar os qualia na perspectiva de terceira pessoa. Ao se enfocar os “genes do sentimento”, pode-se fazer ciência tal como esta é concebida pela comunidade científica, com base nos registros empíricos, modelos formais, análise computacional (inclusive utilizando as ferramentas contemporâneas da tecnologia da informação) e demais métodos chamados de quantitativos, enquanto os estudiosos que utilizam os métodos qualitativos podem desenvolver a Qualiômica com propriedade, sem a necessidade de lhe colocar a roupagem da ciência convencional.

            Portanto, os métodos que se baseiam na perspectiva de primeira pessoa, acima citados, além daqueles que os combinam com relatos da experiência subjetiva de outras pessoas, verbais (por exemplo, entrevistas) e não verbais (por exemplo, registro do comportamento em vídeo), comumente referidos como “pesquisa qualitativa”, se integrariam na Qualiômica. Tendo em vista o significativo desenvolvimento desses métodos, nas últimas décadas, julgamos desnecessário tratar de suas características neste artigo, pois nosso foco está nos padrões inconscientes do sentir, estudados na perspectiva da terceira pessoa. Trabalhos futuros, que procurem fazer uma síntese dos resultados da Sentiômica e Qualiômica, deverão se debruçar nesses métodos, para melhor entender como se dá o processo de expressão consciente dos padrões inconscientes. Porém, isso vai além do escopo deste texto.

            Podemos dizer, a esse respeito, que a distinção entre Sentiômica e Qualiômica é análoga à distinção que se faz, na Biologia, entre genótipo e fenótipo, e, na Linguística, entre a estrutura gramatical e as sentenças que são geradas pela combinação dos elementos estruturais. A Sentiômica se constrói a partir da mesma estratégia científica das outras “ômicas”, como, mais notoriamente, a Genômica, a Proteômica e a Metabolômica, ou seja, disciplinas que visam à caracterização e quantificação de moléculas biológicas presentes na estrutura, função e dinâmica de organismos vivos.[28] Nas Ômicas biológicas, supõe-se que haja uma continuidade entre as estruturas e as funções pelas quais as estruturas se manifestam, na fisiologia e no comportamento dos sistemas vivos. Do mesmo modo, supomos que haja uma continuidade entre os padrões inconscientes estudados pela Sentiômica e as experiências conscientes estudadas na Qualiômica, mas, neste caso, haveria, ao menos no plano epistemológico, uma “lacuna explicativa” que ainda não foi preenchida com explicações convincentes para a comunidade filosófica e científica, motivo pelo qual não poderemos avançar muito nesse terreno.

 

1 PRECURSORES DA SENTIÔMICA

            Diversas linhas de investigação científica anteciparam e realizaram, em parte, os objetivos da Sentiômica, procurando promover a identificação e análise de padrões dinâmicos da natureza que embasam a capacidade de sentir e, portanto, de se ter experiência consciente.

            Em tempos mais recentes, destaca-se a busca por “correlatos neurais da consciência”, na neurociência (DENNETT, 1991; CHALMERS, 1996; FRITH, 2020). Entretanto, nem todos os chamados correlatos neurais seriam adequados à Sentiômica; apenas aqueles que apresentam uma dinâmica temporal são adequados (sobre a questão do papel do tempo nas neurociências cognitiva, afetiva e da ação, vide CARIANI, 1994; PEREIRA JR., 2013a). Os correlatos identificados em termos de regiões ou circuitos cerebrais não servem para a Sentiômica, já que não tratam de padrões dinâmicos (i.e. dynamic patterns, no sentido de KELSO, 1995) e sim de regiões espaciais de um sistema material.

            Os registros eletroencefalográficos de alta resolução temporal são os que mais se aproximam da Sentiômica, ao evidenciarem ondas eletroquímicas moduladas por frequência, amplitude e fase (vide próxima seção). Mesmo que esses registros tenham sido feitos em apenas uma dimensão (uma linha), mas se deslocando, no tempo, em uma segunda dimensão, pode-se generalizar para mais dimensões, como em recentes abordagens que se referem a um vórtice quadridimensional (LIMA et al., 2021) Essa dinâmica foi representada por Bovenkamp (2013), por meio de um vídeo ilustrativo da dinâmica espaço-temporal estruturante da realidade.

            A teoria intitulada Sentics, desenvolvida por Manfred Clynes (1997), consiste em uma abordagem mais ampla, considerando o corpo vivo total como sistema sentiente, o qual gera sentimentos a partir de padrões temporais que acontecem não só no cérebro como também em outros sistemas, como o cardiovascular e o respiratório (ver Figura 1):

 

Figura 1: Sentic Forms

Conceito elaborado por Manfred Clynes

Gráficos: emoções e registros de taxa de respiração e frequência cardíaca

Fonte: https://www.brainpickings.org/2011/09/05/manfred-clynes-sentics/.

 

            Na mesma direção, o estudo de estados vibracionais dinâmicos, como os padrões de Chladni, tem sido feito desde a antiguidade, tendo inspirado uma área de estudos chamada de Cymatics, relacionada à Antroposofia de Rudolf Steiner, o qual, por sua vez, se baseou na Filosofia da Natureza de Goethe (ver JENNY, 1974).  

            Um exemplo atualizado desse tipo de abordagem pode ser encontrado na obra de Alwyn C. Scott (SCOTT, 2007) — um dos fundadores do Centro para Estudo da Consciência da Universidade do Arizona, que organizou a série de encontros bianuais chamada Towards a Science of Consciousness. Seu trabalho em ondas não lineares, como bem sintetiza Scott Jr.,

[...] mostrou uma amplitude incomum de visão, variando de experimentos e a teoria dos pulsos nervosos a ondas conservadoras de energia (solitons) em dispositivos eletrônicos e macromoléculas. Esses vários tipos de ondas desempenham conceitualmente o papel de “partículas elementares” em uma série de fenômenos físicos e biológicos: “De certa forma, um impulso nervoso pode ser visto como uma partícula elementar de pensamento, assim como um elétron é visto como uma partícula elementar de matéria”.[29]

 

            Uma das áreas que mais se desenvolveu recentemente é a chamada Sonificação, na qual microestruturas biológicas e mesmo eventos físicos de grande escala e complexidade são traduzidos em sons.[30] Nessa abordagem, a representação acústica torna-se símbolo sensível e temporal de padrões dinâmicos da natureza, permitindo-nos identificar, classificar e analisar aspectos desses padrões não disponíveis em representações visuais dos mesmos (ver exemplos em WORRALL, 2019; PONOMARENKO et al., 2017).

            Outra fonte interessante para a Sentiômica, e que recentemente tem sido explorada sobretudo na musicologia e na semiótica cognitiva, é o estudo dos gestos (gesture studies) que exprimem ou induzem sensações, sentimentos e emoções (ver, por exemplo GODØY; LEMAN, 2010; MÜLLER, 2014). O objetivo, nesse caso, é captar e sistematizar, através de diferentes instrumentos metodológicos, padrões gestuais objetivos que acompanham, sugerem, indicam, induzem ou representam algum tipo de experiência sentiente subjetiva. Por exemplo, na musicologia matemática de Mazzola (ver MAZZOLA et al., 2017), em vez de analisar somente as relações presentes no “texto” musical anotado na partitura, pretende-se aprofundar a compreensão do sentido musical por meio da análise matemática da dimensão gestual que objetivamente movimenta a notação no tempo (e.g. MAZZOLA et al., 2017, p. 950-960). Outro método, recentemente desenvolvido, por exemplo, por Mittelberg (2014), utiliza modelos da semiótica cognitiva para classificar as diferentes modalidades de sentidos gestuais. Citaríamos ainda, por fim, o método proposto por Basbaum (2020), inspirado na fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty, o qual pretende “[...] interpretar o problema da semântica em termos de seu enraizamento no corpo” (BASBAUM, 2020, p. 321, grifos no original) por meio da elaboração de “glossários” de gestos.

            Neste ponto, uma discussão que emerge é sobre a relação entre Sentiômica e Semiótica. Seria a Sentiômica uma parte da Semiótica voltada à sentiência? Ou a Sentiômica lidaria também com padrões da natureza anteriores aos signos? Podemos considerar (ao menos alguns) signos artísticos como representações de padrões dinâmicos de experiências sentientes? Lembremos os exemplos teóricos e artísticos dos projetos Amazing Amazon, de José Wagner Garcia (ver GARCIA, 2002; ver também os ensaios sobre o rio Amazonas, em SILVEIRA, 2014), e a música holofractal, de Eufrasio Prates (PRATES, 2011), nos quais nos são revelados padrões biossemióticos e físicos através de signos artísticos — seriam exemplos de aproximação entre Sentiômica e Semiótica?

            Evidentemente, essas questões fogem do escopo deste artigo. Seja como for, a relação entre a Sentiômica e a Semiótica nos remete, por fim, às teses, de grande valor para o tema em pauta, da filósofa Susanne Langer (1971). A densa articulação entre símbolos, artes, fisiologia cerebral e sentimentos (feelings) proposta pela autora aproxima-se da Sentiômica, em ao menos dois pontos. Primeiro, quando Langer, seguindo uma linhagem de críticas à filosofia cartesiana, propõe re-ligar mente e corpo através dos sentimentos (feelings), entendendo-os como um caso limítrofe entre fisiologia e pensamento — dois aspectos de um mesmo ente (cf. LANGER, 1971, p. 13-31). Segundo, quando a autora defende que as artes são formas sensíveis que objetivam o sentimento humano, tal como experienciado em primeira pessoa (LANGER, 1971, p. 81-90). Em uma passagem que sintetiza ambos os pontos mencionados, Langer (1971, p. 85-86) afirma que

[…] [o] sentimento humano […] é uma trama e não uma massa vaga. Possui um intrincado padrão dinâmico […] É um padrão de tensões e resoluções indeterminadas e organicamente interdependentes […] Creio que é esse padrão dinâmico que encontra expressão formal nas artes.

 

            Temos aqui, portanto, duas possibilidades de medição empírica dos substratos materiais da sentiência: uma, típica dos métodos científicos, volta-se aos padrões fisiológicos do corpo sentiente; outra, típica das artes, volta-se à “formalização” dos elementos geradores do sentimento. Nesse sentido, uma hipótese a ser investigada posteriormente é a de que as artes e a música, enquanto formas sensíveis que objetivam experiências do sentir, fazem a mediação epistemológica entre a Sentiômica e a Qualiômica.

 

2 SENTIÔMICA, ONDAS DE ÁUDIO E MÚSICA

            Vejamos a relevância das formas musicais para uma ciência do sentir. A Sentiômica se faz na perspectiva de terceira pessoa, do observador científico, que é externo ao sistema estudado; registra e analisa as formas dinâmicas (dynamic patterns) do sentir. Por conseguinte, padrões sonoros, bem como padrões de composição e de execução musical, são de interesse da Sentiômica. Já o estudo da experiência musical (percepção e sentimentos vividos) ocorre na perspectiva da primeira pessoa, vindo a compor outra área de estudos, a ser chamada de Qualiômica.

            Sublinhemos que as formas do sentir, em geral, e da cognição musical, em particular, se explicitam no tempo. Podemos, então, aludir a uma continuidade entre padrões temporais universais no Cosmos e padrões temporais em sistemas específicos, como na fisiologia do corpo humano, enquanto encarna padrões temporais, ou nos sons, cujas relações temporais estabelecem uma composição musical capaz de induzir sentimentos em seres humanos. Conclui-se, portanto, que permanece atual a antiga tese pitagórica da Música das Esferas. Tomando como referência a obra neoplatônica de Boécio, podemos dizer que hoje, através do conceito de onda, e não mais tanto pelo conceito de razão ou proporção (aritmética), há uma musicalidade que perpassa o universo (musica mundana), o ser humano (musica humana) e a música, em sentido estrito (musica instrumentalis). Uma versão atualizada dessa tríade aparece em Meijer et al. (2019, 2021), em sua “biofísica da consciência”, ainda que os autores não façam referência à obra de Boécio.

            No estudo da cognição musical, a Sentiômica pode abordar, por meio de representações de diversos tipos (simbólicas, verbais, sonoras, gestuais, imagéticas), (i) as formas dinâmicas do som (propriedades das ondas de áudio), (ii) as formas da fisiologia do ouvinte enquanto corpo que sente as formas dinâmicas do som e (iii) as categorias específicas da música (dos elementos mais atomísticos, como melodia, harmonia, ritmo, timbre, até formas temporais mais complexas). Vejamos isto com mais detalhes.

            Comecemos a nossa ilustração pelos conceitos de onda carregadora e moduladora. Onda carregadora é a que contém a energia necessária para a propagação do sinal no espaço (por exemplo, por meio de antenas de transmissão de rádios AM ou FM); está na faixa de frequências não audíveis, é redundante e, portanto, carrega pouca informação. Onda moduladora é a que gera diferenças na onda carregadora, as quais geram diferenças no receptor. A onda moduladora “recorta” a onda carregadora, “esculpindo” uma forma de onda (waveform) temporal. A modulação pode ser por amplitude, frequência ou fase (Figuras 2, 3, 4). O último tipo é relevante, quando o sinal é transmitido por múltiplos canais, que podem se sincronizar (casamento de fase) ou não.

 

Figura 2 – Modulação por Amplitude

Fonte: https://www.quora.com/How-does- amplitude-modulation-work.

 

Figura 3 – Modulação por Frequência

Fonte: https://www.elprocus.com/frequency-modulation-and-its-applications/

 

Figura 4 – Modulação por Fase

Considerar o casamento de fase em múltiplas ondas.

Fonte: https://www.elprocus.com/what-is-phase-modulation-advantages-disadvantages-and- applications/

 

            Da física acústica, passamos às propriedades fisiológicas da escuta, em geral, e da escuta musical, em particular. Com efeito, conforme bem definiu o filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser, em seu ensaio sobre a escuta musical (FLUSSER, 2014, p. 111-117), em nenhuma outra arte a relação entre a mensagem física (i.e., a música) e o corpo receptor (i.e., o ouvinte) é tão próxima, a ponto de o corpo-ouvinte ser literalmente afetado pelo corpo-ressonante. E, não obstante, o modo como o corpo-ouvinte ressoa com a mensagem sonora é extremamente intrincado, como atesta o fato de que “[...] verbos como sentir, desejar, sonhar e pensar, substantivos como alegria, amor, saudade e beleza são as palavras que nomeiam essa complexa experiência […]” (FLUSSER, 2014, p. 115, tradução nossa, grifos no original).

            As abordagens empíricas da escuta musical remontam pelo menos até o trabalho pioneiro de Hermann von Helmholtz. Em sua obra paradigmática, A doutrina das sensações tonais como uma base fisiológica para uma teoria da música (título traduzido por SILVA, 2017), de certo modo, encontra-se condensado o programa científico da psicoacústica, entendida enquanto fundamento da capacidade humana de perceber relações musicais, em particular os intervalos consonantes e dissonantes (mais sobre a obra de Helmholtz, ver SILVA, 2017). Isso inclui não apenas os sucessos da abordagem naturalista ou empírica da escuta musical, mas também as suas dificuldades. Com efeito, na obra de Helmholtz, podemos encontrar todas as tensões dessa abordagem: como articular a fisiologia da escuta, a sensação dos tons e a sua “compreensão” musical (ver, por exemplo, o §123 de Das Causas Fisiológicas da Harmonia Musical em SILVA, 2017, p. 310)?

            Porém, diferentemente do mapeamento de mecanismos fisiológicos da escuta musical, o qual tem sido realizado sistematicamente ao menos desde Helmholtz, à Sentiômica interessam apenas os padrões dinâmicos que, de alguma forma, dão suporte à experiência sentiente, e não as partes ou mecanismos envolvidos na apreensão de informações. Pode-se dizer que um caminho possível para a Sentiômica da escuta musical seria partir dos mecanismos identificados no âmbito da psicoacústica, a fim de identificar padrões temporais subjacentes aos mesmos, e que poderiam esclarecer a passagem do ouvido puramente fisiológico para o sentido da audição e, deste, para o sentido da musicalidade.

            Outra fonte de medição científica da experiência sentiente da música, a qual avançou significativamente, nas últimas décadas, é a neurociência cognitiva da música (ver PERETZ; ZATORRE, 2003; HODGES;  THAUT, 2019). O foco, agora, não é mais a fisiologia da escuta musical, tão bem estudada por Helmholtz, mas sim o cérebro. Podemos sustentar que o surgimento desse novo campo de pesquisa alargou as fronteiras das abordagens científicas da escuta musical. Utilizando ainda o exemplo de Helmholtz, vemos que o cientista alemão encerra a sua ciência da escuta musical, quando esta deixa de versar sobre os mecanismos da escuta de materiais básicos da música — tons e intervalos simples —, e o objeto passa a ser o modo pelo qual esses mecanismos básicos se tornam “imagens” de “concepções” e “temperamentos” que a “mente vê” (apud SILVA,  2017, p. 310). A neurociência cognitiva da música almeja adentrar exatamente nesses domínios mais abstratos que caracterizam o sentido musical.

            Apontamos anteriormente que nem toda medição de atividade cerebral é relevante para a Sentiômica, já que, em muitos casos, o objetivo é identificar áreas ou mecanismos, mas não padrões dinâmicos holísticos do funcionamento cerebral. O mesmo se aplica à neurociência cognitiva da música. O volume editado por Peretz e Zatorre (2013), ainda que já ligeiramente desatualizado, em termos de dados, ilustra a predominância de abordagens “localizacionistas” (cf. BECHTEL, 2014), nas abordagens neurocientíficas da música. Em uma compilação mais recente, editada por Hodges e Thaut (2019), o cenário não é muito diferente. Com efeito, nas considerações finais, os editores defendem a importância de pesquisarmos as bases cerebrais da música para além das áreas e mecanismos, focando, por exemplo, no funcionamento de redes cerebrais dinâmicas e fluxos de neurotransmissores.

            Nota-se aí, por conseguinte, a importância de uma neurociência cognitiva da música de viés sentiômico. Assim como a fisiologia da escuta por si só é incapaz de explicar a integração da informação acústica em uma unidade sentiente (e.g. um tom, uma melodia etc.), também os mecanismos cerebrais, estudados isoladamente, não poderão constituir o substrato cerebral da escuta musical, tal como sentida em primeira pessoa. É necessário, portanto, avaliar (i) até que ponto essas áreas e mecanismos são coordenados temporalmente, no exercício da escuta musical, e (ii) se há — e quais seriam os — padrões dinâmicos mensuráveis relacionados a sentimentos (feelings) musicais específicos, incluindo, nos processos neurais ondulatórios, possíveis interações astrócito-neuronais (ver modelos desse tipo de análise em PEREIRA JR.; FURLAN, 2009; PEREIRA JR., 2014).

            Além de ser um campo de promissora aplicação para a Sentiômica, o estudo da música, enquanto fenômeno temporal que produz sentimentos, também se revela um repositório de modelos e conceitos que podem ser aplicados no estudo da sentiência em outros domínios. Nesse contexto, Dan Lloyd (2011, 2020) tem realizado um trabalho pioneiro. Após décadas de metáforas espaciais e de natureza linguística — como atestam, por exemplo, os modelos “localizacionistas” (cf. BECHTEL, 2014) e a famosa teoria “Linguagem do Pensamento”, de Jerry Fodor (1975) — Lloyd (2011) introduz a seguinte hipótese: dados sobre o funcionamento cerebral, coletados por meio de Ressonância Magnética Funcional, podem conter informações importantes, quando analisados em sua dimensão temporal (e.g. padrões dinâmicos, sequências de ativação etc.). Para estruturar sua hipótese, Lloyd (2020) propõe utilizar conceitos e metáforas da música como ferramentas para interpretar dados de RMF (e.g. temas, motivos, intervalos, ritmos, frequências, harmonias). Os resultados são ainda incipientes, mas promissores.

            Essa hipótese, que vem sendo desenvolvida por Lloyd, vai ao encontro, por exemplo, da tese de Pereira Jr. (2014, 2017), segundo a qual o substrato cerebral da experiência consciente nos humanos depende sobretudo da presença de ondas hidroiônicas no cérebro, como será apresentado abaixo. Nesse caso, além da dimensão temporal do cérebro, interpretada enquanto parte constituinte da atividade mental, tal como propõe Lloyd (2011, 2020), o conceito de onda hidroiônica, introduzido por Pereira Jr. (2014, 2017), aproxima-se da música, também, ao sugerir que o próprio substrato cerebral da consciência tem a forma de onda e, por conseguinte, pode funcionar, em seus padrões dinâmicos, de modo análogo à música (ver PONOMARENKO et al., 2017).

            Evidentemente, a complexidade dos padrões dinâmicos da música é maior que a complexidade do som; o que hoje conseguimos medir da escuta musical ainda está muito aquém da riqueza de variações que constituem essa experiência. Com efeito, compositores e intérpretes empregam vários tipos de padrões temporais para gerar diversos e infinitamente sutis tipos de sentimentos nos ouvintes, como: (i) intervalo entre frequências (harmonia); (ii) timbre; (iii) volume; (iv) silêncio; (v) ruído; (vi) ritmo; (vii) andamento; (viii) gesto; (ix) contraponto; (x) melodia; e (xi) ambientação. Vilém Flusser sintetiza isso muito bem, quando descreve a música como “vibrações” em forma de input que afetam o corpo do ouvinte como uma caixa-preta e “[...] têm amor e lógica como outputs” (FLUSSER, 2014, p. 116, tradução nossa). Dada essa complexidade, a Sentiômica da música e a transferência de modelos musicais para o estudo de outros domínios guardam ainda inúmeras possibilidades para a investigação científica.

            Seja como for, há diversas evidências empíricas de que a abordagem sentiômica das formas sonoras, musicais (e.g. harmonia, ritmo etc.) e fisiológicas (e.g. ritmo cardíaco, respiração, padrões dinâmicos cerebrais etc.) é de interesse científico. Citamos, como exemplo, o fato de que computadores, capazes de lidar apenas com o aspecto informacional dos sentimentos musicais e humanos, podem ser utilizados, com relativo sucesso, no cálculo-composição de paisagens sonoras, de sorte a obter efeitos sentientes específicos em humanos, como aumentar o foco ou induzir o sono. Dois exemplos comerciais são o aplicativo Endel (ver HARUVI et al., 2021) e a tecnologia Music Genome Project, empregada pelo serviço de streaming Pandora Radio.

           

3 PADRÕES DINÂMICOS DO SENTIR NA NEUROBIOLOGIA: A ONDA HIDROIÔNICA

            A identificação de padrões é mais fácil nas comunicações humanas, pois emissor e receptor têm a mesma estrutura psicobiológica. A identificação dos padrões (“diferenças nos sinais que causam diferenças”) que geram sentimentos no ouvinte, em animais não humanos e plantas, é mais difícil. Esta é a razão pela qual se usa inteligência artificial e aprendizagem de máquina para analisar registros de sinais da natureza (por exemplo, sons gravados na floresta amazônica), a fim de detectar padrões que expressam/suscitam sentimentos nos ouvintes não humanos (PEREIRA JR.; GARCIA, 2020), e, eventualmente, também em nós. Por exemplo, as partes redundantes de um som do grilo provavelmente não provocam nenhuma variação no sentimento no ouvinte grilo, mas as variações sobre o padrão básico devem ter funções comunicativas. Apenas por meio da pesquisa empírica/experimental podemos testar hipóteses a esse respeito. Podemos fazer composições de padrões, apresentar o resultado para os seres em questão e observar seu comportamento. Podemos também, no futuro próximo, “educar” sistemas naturais ou artificiais — os quais operem com padrões dinâmicos — em laboratório, e estudar seu comportamento (PEREIRA JR.; GARCIA; MUOTRI, 2023).

            Sabemos, além disso, que plantas e animais apresentam ondas de cálcio semelhantes (PEREIRA JR.; ALVES, 2021), como resposta à estimulação e também, no tecido neural, na transição entre sono e vigília. O conceito de onda hidroiônica (LIMA; PEREIRA JR.; OLIVEIRA, 2021) consiste em uma generalização baseada no fenômeno de ondas iônicas nos tecidos neurais, dando suporte à capacidade de sentir. Como essas ondas ocorrem em sistemas vivos nos quais o hidrogênio e diferentes configurações da água desempenham papel central na comunicação celular, especialmente na interação neuroastrocitária, propusemos considerar que tais ondas comportam complexas interações entre cátions biológicos (cálcio, sódio, potássio) e configurações negativas da água, formando dipolos funcionais (Figura 5).

 

Figura 5 – Onda Hidroiônica

Fonte: Figura de autoria de APJ, cuja primeira versão foi apresentada em um congresso em Lugano, em 2016, e publicada em Pereira Jr. (2017).

 

Transmissores e moduladores liberados pelo neurônio ligam-se aos receptores metabotrópicos astrogliais, ativando as vias de transdução de sinais que levam à liberação de Ca2+ do retículo endoplasmático do astrócito. Os íons liberados são atraídos pela água negativa gerada pela passagem na aquaporina, mas também se repelem entre si e repelem outros cátions presentes nos compartimentos e processos intracelulares dos astrócitos. A pequena onda formada dentro de um astrócito pode propagar-se para outros astrócitos, através das gap junctions (junções comunicantes), interferindo com as ondas de outros astrócitos e formando ondas maiores, ou se propagar para o meio extracelular, vindo a interagir com sítios (microrregiões moleculares) negativos da matriz extracelular. Outra ação da onda de cálcio astroglial intracelular é estimular a liberação de gliotransmissores no espaço extracelular, por intermédio de vesículas liberadas por hemicanais ou por transportadores moleculares. Os gliotransmissores controlam a atividade neuronal e o desenrolar temporal (timing) das sequências de disparos (spike trains) dos neurônios, pelo controle do fluxo de íons de cálcio, sódio, potássio e cloro (este último, não representado na figura) que atravessam os canais iônicos dos neurônios, despolarizando as células e gerando os potenciais de ação. O próton (H+) liberado na passagem da água pela aquaporina fica disponível para facilitar processos interativos, no meio extracelular.

 

4 DA SENTIÊNCIA À CONSCIÊNCIA, E VICE-VERSA

            A interação dinâmica de padrões pré-conscientes e conscientes é consequência do Princípio da Capacidade Limitada de processamento consciente, formulado por Baars (1988). Note-se que, embora esses conceitos sejam plenamente compatíveis com a psicanálise freudiana, devem ser aqui interpretados no quadro conceitual da Sentiômica, a saber, o inconsciente se refere aos padrões dinâmicos psicofísicos no tecido neural vivo, enquanto abordados na perspectiva da terceira pessoa (por exemplo, registros eletroencefalográficos); os padrões pré-conscientes concernem ao subconjunto dos padrões inconscientes que estão no limbo da consciência, e os padrões conscientes correspondem àqueles que são vivenciados na experiência.

            O que está sob o holofote da consciência está sempre mudando, conforme realçado na expressão clássica de William James: “o fluxo da consciência”. Os padrões pré-conscientes dinâmicos (plano de fundo) e consciência experiencial (primeiro plano) podem mudar sua posição, no processamento. O que está no fundo pré-consciente (e pertence à sentiência) pode vir para o primeiro plano e ser experimentado conscientemente, e vice-versa: o que é experienciado conscientemente pode ser retido em um engrama de memória inconsciente, o qual pode ou não ser lembrado no futuro. Esse processo foi descrito na Analogia do Estádio, formulada por Carrara-Augustenborg e Pereira Jr. (2012, p. 41-41, tradução nossa):

Imagine um estádio de futebol lotado. Espalhados por diversos nós focais, agentes especializados são responsáveis pelo monitoramento das arquibancadas. Como cada figura que compõe a multidão se move constantemente ao redor, os agentes especializados fixam o amplo ambiente sem cessar, prontos para detectar qualquer anomalia, para reconhecer uma figura conhecida, para antecipar uma situação previsível ou apenas para captar qualquer informação contextualmente detectável. No entanto, a complexidade do ambiente aberto e a multiplicidade de alvos não permitem que os agentes especializados façam um acompanhamento automático de cada entrada. Portanto, por meio de uma porta constantemente aberta, eles codificam em tempo real sua carga de informações em um dispositivo de transmissão global. Embora não seja capaz de extrair informações diretamente da multidão, tal dispositivo de transmissão global é responsável por fazer circular as relações contínuas dos agentes especializados, e, portanto, para transmitir através do estádio o status quo de cada nó a qualquer momento. Desta forma, é possível para cada agente especializado ser alertado se um evento ocorreu em um nó focal diferente, para antecipar uma situação que se aproxima e para coordenar ações conjuntas quando necessário. Contudo, dentro de um ambiente tão dinâmico, ainda será difícil isolar dados: elementos específicos podem, portanto, ser destacados ao serem colocados no campo de atenção comum aos agentes. Cada agente especializado será então capaz de inspecioná-lo com facilidade e, consequentemente, relatar os resultados de sua avaliação no dispositivo de transmissão global com maior clareza e riqueza de detalhes. Todavia, a capacidade dos agentes especializados de inspecionar adequadamente também a multidão durante os exames de campo mais detalhados provavelmente serão prejudicados e, eventualmente, alguns números - provavelmente aqueles pouco relevantes - podem escapar da atenção. Um detalhe crucial em nossa analogia com o estádio deve ser sublinhado. Assim que os agentes especializados completarem seu relacionamento, seu foco mudará para uma nova entrada, e eles não mais se preocuparão com seu elemento de interesse anterior. No entanto, suas relações - mais ainda se contiverem dados de relevância contextual ou eventual futura - permanecerão (por períodos variáveis de tempo) no conteúdo da transmissão global. Esse recurso implica que novas informações sejam adicionadas a um conjunto existente de dados, que são construídos e mantidos dinamicamente com base na relevância contextual das informações, em sua frequência de recuperação e em seu valor adaptativo. Dentro de tal rede plástica, a entrada relacionada irá se agrupar, novos “arquivos” serão criados (se a informação de entrada tiver relevância potencial), “arquivos” antigos serão apagados (se eles se tornaram obsoletos) ou irão aumentar de tamanho (se novos dados relevantes adicionarem ao seu significado). Além disso, se o conhecimento pré-existente for investigado por novas informações que chegam, o agrupamento relativo pode ser recuperado e trazido à atenção conjunta dentro do campo comum de atenção dos agentes, onde será submetido a uma nova avaliação.

 

            Essa dinâmica complexa, na qual determinados padrões dinâmicos são atendidos e participam da experiência consciente, enquanto outros permanecem não conscientes ou no limbo (estados pré-conscientes), mudando de status (não consciente, pré-consciente ou consciente) ao longo do tempo, leva-nos a enfatizar que tanto a sentiência quanto a experiência consciente não são estados da matéria que correspondem a pontos no espaço de estados do sistema (para os detalhes desta abordagem, ver FELL, 2004), mas processos temporais nos quais os padrões que se tornam conteúdos da experiência consciente emergem dos padrões dinâmicos não conscientes encarnados no tecido neural, e vice-versa (PEREIRA JR., 2021a).

            Nesse processo, há uma oscilação de padrões, inconscientes, pré-conscientes e conscientes. As potencialidades do sistema tornam-se reais, por meio de um processo temporal no qual ele se afasta do equilíbrio homeostático e (se bem-sucedido) retorna a um estado estável no equilíbrio homeostático (sistemas elásticos) ou em processo alostático, atingindo um estado estável fora do equilíbrio (sistemas flexíveis e/ou plásticos). Esse movimento da mente incorporada — da estabilidade à instabilidade e vice-versa — é o “gatilho” que muda os padrões dinâmicos pré-conscientes em padrões experienciais conscientes e vice-versa. Por que é assim, ninguém sabe, mas estamos começando a entender como é que tal processo temporal acontece (PEREIRA JR., 2021b).

 

5 SENTIÔMICA E ONTOLOGIA MONISTA

            Epistemologicamente, os métodos usados para estudar Sentiência e consciência são diferentes; ontologicamente, eles são duas fases do mesmo processo temporal em indivíduos vivos (PEREIRA JR., 2021a, b), gerando experiências conscientes “fenomenais”. Há um continuum entre os padrões dinâmicos e sua expressão consciente.

            Na abordagem protopampsíquica do Monismo de Triplo Aspecto (MTA; PEREIRA JR., 2013b), aqui adotada, os padrões dinâmicos de sentiência não devem ser reduzidos ou identificados com as partículas materiais que compõem a estrutura dos sistemas sentientes. Os padrões dinâmicos acontecem no espaço e no tempo, onde e quando as formas estruturais se combinam e concretizam suas potencialidades. No caso dos sistemas vivos, várias combinações de hidrogênio com oxigênio, bem como vários íons metálicos, constituem a “sinfonia” da sentiência. Reduzir a sinfonia à atividade de apenas um jogador (por exemplo, hidrogênio) não faz sentido. É necessário considerar não apenas os outros músicos da orquestra, mas também a melodia, o ritmo, a harmonia (acordes) e os timbres dos padrões dinâmicos que estão sendo tocados pela orquestra. Conforme o MTA, se houver experiência consciente, haverá Matéria, Informação e Sentimento juntos. Se um desses aspectos estiver faltando, não há consciência. Segundo a mesma teoria filosófica, os três aspectos, devidamente integrados, geram a experiência consciente, sem a necessidade de novos ingredientes.

            Esta não é a única teoria da consciência existente, pois se sabe que há outras, as quais reduzem a experiência consciente a apenas um ou dois dos aspectos acima, ou que alegam a necessidade de mais componentes, como no caso da hipótese da Consciência Universal (KASTRUP, 2017). Na teoria filosófica aqui adotada, para um pedaço de matéria em equilíbrio termodinâmico (uma pedra), não há sentimento e, portanto, não há consciência; para um espírito ou alma desencarnados, não há matéria e, portanto, não há consciência — eles podem perfeitamente existir como entidades puramente informacionais e inconscientes; para máquinas materiais que apenas processam a informação, não há sentimento e, por conseguinte, não há consciência; para Ideias Platônicas ou abstrações matemáticas, não há matéria e nem sentimento e, pois, não há consciência.

            A Psicologia Clínica e também a Psicanálise abordam um fenômeno central da mente, que consiste na alternância das fases inconsciente e consciente, na experiência pessoal. A mente individual corresponde a um processo temporal em que padrões do sentir ocorrem de modo consciente ou inconsciente, deixando traços que transitam de um a outro modo. Realizando uma comparação com o movimento pendular (PEREIRA JR., 2021b), os padrões inconscientes são as potencialidades do sentir consciente (“energia potencial”), enquanto os padrões conscientes são as qualidades (qualia) atuais da experiência (“energia cinética”), as quais, uma vez vivenciadas, podem deixar marcas no inconsciente. Desse modo, em cada pessoa se estabelece uma complexa dinâmica que perpassa os dois modos da experiência, inconsciente e consciente, formando uma identidade a posteriori, o Eu, que persiste existindo enquanto há experiência e memória.

            Com base nos pressupostos acima, podemos argumentar pela impossibilidade de um “Eu Consciente” universal, ou seja, da Consciência Universal assumida em filosofias indianas (em particular, pela filosofia hindu e suas versões atuais – por exemplo, KASTRUP, 2017), ao mesmo tempo defendendo a existência de padrões de informação universais inconscientes, os quais conferem ao cosmos a possibilidade de emergência de seres conscientes em qualquer lugar e tempo. O estudo desses padrões caberia justamente à Sentiômica (como inicialmente proposto em PEREIRA JR., 2021b), que poderia se beneficiar de uma interação construtiva com a Psicanálise.

            Dessa maneira, as consequências de nossa proposta para as áreas de Cosmologia Filosófica e Filosofia da Mente seriam as seguintes. Recusamos certas teorias filosóficas, como o Monismo Idealista e o Pampsiquismo, para as quais a consciência seria uma realidade primitiva, e adotamos uma perspectiva Protopampsiquista, que sustenta que a consciência seria uma possibilidade universal do Cosmos, em todas as suas regiões espaço-temporais; entretanto, tal possibilidade só se atualiza na presença de determinadas condições – estruturais e funcionais – que tornam possível a experiência do sentir, isto é, só há efetivamente consciência, quando há o processo temporal de sentir (PEREIRA JR:, 2021a), e o sentir só existe enquanto é vivido, em uma duração temporal. Desse modo, uma consciência universal atual seria uma impossibilidade conceitual, uma vez que o Cosmos contém uma infinidade de padrões e processos não sentientes e, mesmo para sistemas sentientes, há fases temporais, como o sono sem sonhos para humanos, nas quais o sentir está recessivo.

            Com base em nossos conhecimentos atuais de Astrofísica, podemos dizer que a maior parte do Cosmos conhecido não apresentaria sinais de sentiência e, portanto, não poderia ser consciente. Essa proposta é consistente, por exemplo, com a ontologia de Hegel, que era uma filosofia idealista dialética não pampsiquista, pois considerava a necessidade de um processo temporal para a atualização da consciência. Tal processo temporal seria, para ele, tanto lógico (como descrito na Enciclopédia) quanto histórico (como descrito na Fenomenologia do Espírito), requerendo que a Ideia se negue na Natureza, para se superar como Espírito Consciente (PEREIRA JR., 1994, 2013b). Havendo interesse, pode-se comparar a proposta conceitual da Sentiômica com as várias correntes da ontologia filosófica, consolidando, assim, as bases conceituais desse novo ramo da ciência.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS: ENTRE A SENTIÔMICA E A QUALIÔMICA

            A Sentiômica trata de padrões estruturados temporalmente que geram sentimentos (qualia) em agentes capazes de senti-los e usá-los, para controlar sua própria fisiologia e interagir, com diferentes graus de autonomia, com o ambiente. Um dispositivo físico como o termostato é capaz de detectar mudanças na temperatura, mas não é capaz de controlar sua homeostase com base nelas. A homeostase do termostato obedece a pontos de ajuste mecânicos e não tem sentimentos (qualia) ligados ao processo de controle.

            A distinção entre Sentiômica e Qualiômica não implica um dualismo mente-corpo. O hiato entre as perspectivas de primeira e terceira pessoa é apenas metodológico, não ontológico. Ademais, cabe enfatizar que são duas modalidades de conhecimento válidas e necessárias para a compreensão do sentir.

            Assim, sem deixarmos de reconhecer a validade epistemológica da Sentiômica enquanto ciência do sentir, cabe indagar sobre os seus limites epistemológicos. Sabemos que o estudo da sentiência, em geral, tal como vivida pelo ser sentiente, exige outro tipo de abordagem, nomeadamente a Qualiômica. Mas como articular essas duas abordagens? Seriam dois modos de conhecimento absolutamente distintos? Ou haveria algum tipo de complementaridade entre ambos? Haveria uma modalidade de conhecimento intermediária entre a generalidade da medição científica e a singularidade do sentimento vivido?

            Sobre o entrelaçamento entre Sentiômica e Qualiômica, diríamos, de forma preliminar, que não só é possível, porém, uma vez feita a distinção analítica, é também necessária a síntese final. Com efeito, métodos subjetivos de investigação do sentir (e.g. meditação, introspecção, fenomenologia etc.), mesmo se considerados não científicos, ainda assim produzem um tipo de conhecimento. Sem esse conhecimento gerado pela perspectiva em primeira pessoa, os métodos e análises feitos em terceira pessoa perderão do horizonte o próprio referente da medição, isto é, o sentir, em toda sua complexidade. Se, por um lado, a Sentiômica nos aproxima daquilo que é universal na geração dos sentimentos, por outro, a Qualiômica nos dá acesso, ainda que parcial, àquilo que caracteriza cada experiência sentiente.

            Logo, a Qualiômica pode fornecer critérios para avaliação do sucesso e das limitações da Sentiômica, pois aquilo que distinguimos no nível da Qualiômica nos permitirá refinar as medições da Sentiômica. Quanto mais profunda for a nossa sensibilidade vivida, mais clareza teremos no âmbito dos experimentos em terceira pessoa, bem como na interpretação dos seus dados. Sem um rico fundo obtido pela Qualiômica, a ciência do sentir tenderá a ficar restrita a concepções e modalidades de sentimentos rudimentares ou genéricas.[31]

            Uma hipótese a ser desenvolvida é se caberia à arte fazer a mediação entre Sentiômica e Qualiômica. De certa forma, pode-se dizer que as artes constituem a ponte entre aqueles dois quadros epistêmicos, se adotarmos a definição de Langer (1971, p. 82): arte como criação de “[..] formas perceptíveis expressivas do sentimento humano.” Ora, se um objeto ou fenômeno dá forma — e, portanto, alguma estabilidade — ao sentimento humano (mesmo que a forma esteja restrita a alguns aspectos de alguns sentimentos), tornando-se uma espécie de símbolo natural daquilo que temporalmente se sente em primeira pessoa, logo, a feitura (i.e. poiesis) desse objeto ou fenômeno, bem como a sua análise, ou interpretação, podem gerar algum tipo de conhecimento sobre os sentimentos. A música tem a peculiaridade de ser uma forma ondular temporal, o que a torna um caso intermediário exemplar.

            Como vimos, a Sentiômica da música se ocupará da medição de padrões físicos que acompanham os sentimentos em, ao menos, três níveis: a física dos sons, os padrões musicais complexos e a fisiologia da escuta/cognição musical. A Qualiômica da música, por seu turno, está voltada a métodos tipicamente fenomenológicos de introspecção sobre a experiência vivida. Porém, quando pensamos no exercício de compor música, não podemos negar que está aí implicada alguma modalidade de medição temporal “objetiva” daquilo que se passa no universo dos sentimentos. Afinal, compor é também atualizar essas qualidades em uma forma temporal, dinâmica e relativamente estável (i.e. a composição propriamente dita). Porém, é igualmente verdade que o exercício da composição não se limita à manipulação de formas e símbolos materiais objetivos, contudo, compreende também algo da introspecção, ou melhor, da experiência em primeira pessoa dos sentimentos e qualidades associadas àquelas formas sonoras objetivas. Nesse sentido, no ato de compor, podem ser mobilizados aspectos da Sentiômica e da Qualiômica, sem os quais a composição pode não funcionar, por assim dizer.

            A redução da música à manipulação formal, agenda com a qual a tradição ocidental flertou muitas vezes (e.g. Descartes; Ramaeu; Hanslick), tenderá a perder do seu horizonte o engajamento, não só estético, mas também crítico, com novas formas de sensibilidade — engajamento este que a Qualiômica reforça. Não obstante, a apreensão subjetiva de qualidades, sentimentos, sensações e afins, sem uma contrapartida formal adequada para apreendê-los, objetivamente também inviabiliza a composição musical. Assim, parece-nos acertado dizer que o ato de compor exige tanto uma apreensão da epistemologia da Sentiômica quanto a formalização da epistemologia da Qualiômica, constituindo um exemplar modo intermediário de conhecer o sentir, o qual e se mostra pertinente tanto para a Sentiômica quanto para a Qualiômica[32] da música e da sentiência em geral.

            Por fim, diríamos que o estudo das ondas hidroiônicas pode ser um ponto de partida adequado para identificar e formalizar a estrutura espacial e temporal das formas de onda que tornam a consciência possível, usando matemática e computação. Como vimos, as formas de onda são moduladas em frequência, amplitude e fase. Uma investigação da dinâmica dessas ondas in vivo pode permitir a descoberta de sua estrutura dinâmica, seus padrões de modulação de frequência, amplitude e fase. Ao mesmo tempo, a experiência consciente pode e deve ser sondada por métodos da Qualiômica (e.g. a neurofenomenologia) e por determinadas estratégias intermediárias, como, por exemplo, a música, contribuindo para trazer à tona aquilo que, emprestando as palavras de T. S. Eliot (2018, p. 244), podemos chamar de uma “música ouvida tão a fundo/que nem mais se escuta”; afinal, “você é a música/enquanto dura a música.”

 

Agradecimentos (APJ): à FAPESP, por financiar parte desta pesquisa; aos colegas que discutiram o assunto e contribuíram para que este trabalho se realizasse: Karina Linnell, José Wagner Garcia, Eufrasio Prates, Sérgio Basbaum, Maira Fróes e Manuel Moreira da Silva; a Alberto Foletti, por me convidar para um congresso em Lugano, em 2016, onde elaborei e apresentei pela primeira vez essas ideias; a Luís Felipe Oliveira, por me convidar para evento, em 2021, no qual apresentei os resultados atuais da pesquisa; aos organizadores deste número especial, Marcos Antonio Alves e Gustavo Leal Toledo, pela oportunidade de publicação em periódico de alto nível, e aos pareceristas anônimos, pelos comentários e críticas construtivas.

 

Agradecimentos (VJA): Ao CFCUL, que, desde 2016, apoia institucionalmente a minha pesquisa; ao Alfredo Pereira Jr., que gentilmente aceitou minha sugestão de revisitar o tema da minha Dissertação de Mestrado, por ele orientada entre 2013-2015, na UNESP/Marília; aos organizadores deste número especial, Marcos Antonio Alves e Gustavo Leal Toledo, pela oportunidade de publicação da proposta em periódico de alto nível; e aos pareceristas anônimos, pelos comentários e críticas construtivas.

 

Foundations and Applications of Sentiomics: the Science of the Feeling Capacity

 

Abstract: Sentience, defined as the unconscious capacity of having conscious feeling experiences, is a psychobiological phenomenon involving dynamic patterns of electrochemical waves in living systems. The process of feeling can be studied in two ways: a) Empirical identification and analysis of the universal temporal patterns that characterize feeling, forming a science to be called Sentiomics; b) Introspective identification and report of the variety of qualitative conscious experiences, from a first-person perspective, a study that could be called Qualiomics. Qualiomics is undoubtedly a challenge to conventional science, as stated in the “hard problem of consciousness” (Chalmers, 1995), as the first-person perspective is not accessible to conventional scientific measurement methods and explanations. Sentiomics, focusing on dynamic patterns that define the capacity to feel, is therefore susceptible to empirical and experimental treatment. In this article, we propose to contextualize the philosophical assumptions and problems of Sentiomics and present some of its various applications, focusing on its the relation with music.

 

Keywords: Sentiomics. Qualiomics. Sentience. Information. Music Cognition.

 

Referências

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Recebido: 11/08/2022

Aceito: 14/02/2023


 

Comentário a “Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir”

 

Juliana de Orione Arraes Fagundes[33]

Referência do artigo comentado: Pereira Jr., A.; Aguiar, V. J. de. Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 57- 86, 2023.

 

Pereira Jr. e Aguiar (2023) propõem-se estabelecer bases conceituais para o desenvolvimento da Sentiômica, um estudo científico dos padrões dinâmicos que determinam a capacidade de sentir. Além disso, pretendem desenvolver uma aplicação dessa proposta ao caso da música. Eles aceitam o argumento de Chalmers (1996) de que há um problema difícil em relação à consciência, mas entendem que a Sentiômica pode avançar em estudos empíricos relevantes acerca dos problemas fáceis. O foco do trabalho é a relação temporal entre padrões fisiológicos e frequências sonoras, na experiência musical, como estudo de caso para examinar alguns pressupostos e problemas filosóficos relativos à Sentiômica. A Sentiômica não busca locais no sistema nervoso onde a sentiência[34] ocorra, mas é temporal, voltada para uma dinâmica complexa que envolve relações simultâneas entre indivíduo e mundo.

A Sentiômica se ocupa, a partir de uma perspectiva de terceira pessoa, de padrões dinâmicos na natureza que geram os sentimentos, os quais são experienciados a partir de uma perspectiva de primeira pessoa. Esses padrões se dão tanto internamente aos seres sentientes quanto no ambiente externo. Trata-se, portanto, das diversas dinâmicas naturais que permitem a experiência sensível, envolvendo eventos químicos corporais e cerebrais, padrões anatômicos, frequências de ondas luminosas e sonoras etc. Como a Sentiômica se propõe estudar os padrões inconscientes que determinam as experiências conscientes, ela necessita também da Qualiômica, a qual se volta para os aspectos contextuais e individuais da experiência, aquilo que é consciente.

A Sentiômica é apresentada pelos autores como uma abordagem de terceira pessoa, tendo a característica de estudar padrões fisiológicos universais, ao passo que a Qualiômica observa cada experiência sentiente, de um ponto de vista de primeira pessoa, conforme os autores, podendo assim servir de parâmetro avaliativo acerca do alcance da Sentiômica. Na medida em que a Qualiômica é capaz de fornecer critérios para o avanço ou recuo da Sentiômica, os autores compreendem que as perspectivas de primeira e de terceira pessoa se complementam, para que uma pesquisa acerca da consciência possa avançar.

Note-se que, para isso ser possível, a perspectiva de primeira pessoa não pode ser compreendida no sentido de uma perspectiva estritamente subjetiva a propósito de estados mentais não relacionais – como em Chalmers (1996), Nagel (1974) ou Putnam (1981). Em outras palavras, apesar de compreender uma diferença entre as perspectivas de primeira e de terceira pessoas, o artigo não é levado a uma cisão entre os aspectos objetivo e subjetivo da realidade. Afinal, a perspectiva de primeira pessoa é abordada de um ponto de vista linguístico, ainda que individual[35]; caso contrário, não poderia complementar uma disciplina científica como é a proposta da Sentiômica.

Assim, embora eles tentem manter uma lacuna epistêmica entre as perspectivas de primeira e de terceira pessoa, o estudo da Sentiômica precisará sempre da Qualiômica para regular os resultados das pesquisas, a partir de uma metodologia própria. Segundo Pereira Jr. e Aguiar, a metodologia da Qualiômica não se classifica como ciência: eles propõem métodos como introspecção, meditação e fenomenologia. Defenderemos que é possível compreender a relação entre Sentiômica e Qualiômica, sem a pressuposição de uma lacuna epistêmica. Entre perspectivas epistêmicas diferentes não é necessário haver uma lacuna. Procuraremos sinalizar aqui dois caminhos para isso.

Algumas perguntas relevantes emergem da leitura do artigo: como os estudos a respeito da Qualiômica podem iluminar a pesquisa científica acerca da consciência, em coordenação com os estudos sobre a Sentiômica? Quais são os diversos padrões internos e externos ao indivíduo envolvidos nas experiências de sensibilidade? Até que ponto os aspectos individuais das experiências revelam padrões passíveis de um estudo que almeja a universalidade?

O estudo da música aparece de forma bastante ilustrativa para o leitor esclarecer essa espécie de calibragem entre Sentiômica e Qualiômica, o que vale para as artes em geral. Diante da experiência estética, como ao escutar uma música, uma complexidade de sentimentos será fruída pelo sujeito. Essa complexidade reflete uma história de vida individual em um contexto específico que compõe a experiência consciente daquele sujeito, como uma dinâmica temporal. Simultaneamente, há padrões fisiológicos no corpo e diversas dinâmicas que podem ser estudadas com instrumentos científicos. A música atravessa o corpo humano sob certos padrões fisiológicos de sentimentos que ela provoca. Como a Sentiômica não está voltada para estudar padrões locais no cérebro, ela tem a ver com o estudo de uma coordenação temporal entre fisiologia (incluindo a fisiologia cerebral) e escuta temporal, gerando determinados padrões de sentimentos musicais.

            Em trabalho anterior, Pereira Jr. (2021) trata da relação entre consciência fenomênica e sentiência. Para ele, a sentiência é um requisito para que possa haver consciência. Ali, é possível encontrar uma discussão conceitual sobre consciência e sentiência que acaba por nos permitir uma melhor compreensão do artigo-alvo deste comentário. Conforme o autor, a ciência pode medir os padrões fisiológicos subjacentes à capacidade de sentir, de modo a explicar os correlatos físicos da sentiência. A sentiência engloba uma variedade desestruturada de situações inconscientes, no aqui e agora, que, uma vez estruturadas, formarão a experiência consciente.

            Essa relação entre sentiência e experiências conscientes talvez contraste com a relação entre Sentiômica e Qualiômica. Por um lado, as experiências conscientes parecem emergir de um conjunto desestruturado de padrões dinâmicos dentro e fora dos organismos vivos. Por outro lado, essas experiências poderão ser investigadas a partir de métodos apropriados a um estudo de primeira pessoa e servirão como regulagem para que uma ciência da Sentiômica possa avançar. A experiência subjetiva, uma vez estruturada, poderá se voltar para uma compreensão de algo que é inconsciente e subjacente a ela. Os caminhos pelos quais essa ideia pode prosseguir não estão definidos, é difícil visualizá-los.

Uma boa pista que aparece em Pereira Jr. (2021) é que a geração de sentimentos conscientes, com base na capacidade sentiente, tem razões de adaptação evolutiva. O comportamento adaptativo, segundo ele, é guiado pelos sentimentos, conforme um movimento de buscar o prazer e evitar a dor. Aqui, vemos que a subjetividade gera padrões pelos quais a ciência pode estudá-la. Faz muito sentido pensar a experiência dessa forma. De fato, o que guia o comportamento dos organismos são suas experiências. As perspectivas de primeira e de terceira pessoas, por esse ponto de vista, acabam por se mostrar apenas dois lados da mesma moeda: não é possível abrir mão de nenhuma delas.

A noção de affordance talvez possa ajudar a compreender essa discussão. As affordances do organismo são aspectos do ambiente que se tornam relevantes para aquele organismo. O termo foi usado primeiramente por Gibson: “As ‘affordances’ do ambiente são o que ele oferece ao animal, o que ele provê ou fornece, para o bem ou para o mal.” (1979, p. 127). A noção de affordance permite uma conexão entre as perspectivas de primeira e de terceira pessoas, pois ela carrega consigo uma ideia simples: a de que determinados padrões do mundo objetivo – esses que se dispõem a um estudo científico e de terceira pessoa – se disponibilizam para o organismo, de acordo com as suas capacidades, tornando-se relevantes para ele, de um ponto de vista de primeira pessoa.

Aqui, parece não mais fazer sentido falar em lacuna epistêmica entre primeira e terceira pessoa. O organismo lida com o que se torna relevante e isso está estreitamente ligado à sua história evolutiva. Nesse sentido, se há um “como é ser” um organismo, esse “como é ser” traz informações sobre a realidade externa que podem ajudar em sua missão de sobreviver e se reproduzir em um ambiente hostil. Os organismos vivos, por essa abordagem, são compreendidos por meio de sua relação direta com o ambiente, construída principalmente por seus ancestrais, ao longo de uma história evolutiva.

Há outra ideia que talvez também possa nos ajudar a esclarecer essa regulagem entre Qualiômica e Sentiômica: a distinção de Sellars (1962) entre imagem manifesta e imagem de ciência. Em nosso quotidiano, nossa linguagem se refere às experiências diretas que temos, às coisas que reconhecemos no mundo e das quais temos experiências diretas, conforme nossas capacidades fisiológicas, ou seja, à imagem manifesta que temos. A imagem de ciência depende de uma educação científica, envolve termos teóricos, coisas das quais não temos experiência direta.

Assim, será que não podemos compreender a Qualiômica como uma regulagem, a partir da nossa imagem manifesta, de uma imagem de ciência desenvolvida pela Sentiômica? Note-se que não há qualquer ruptura entre imagem manifesta e imagem de ciência: a segunda é derivada da primeira e apenas esta se relaciona às nossas experiências diretas. Se esse for um caminho possível, a Sentiômica pode ser compreendida como uma sofisticação da Qualiômica, sendo que a segunda não prescinde da primeira. Aqui, deve-se considerar que nem tudo que constitui a sentiência está disponível conscientemente. Olhando por essa perspectiva, o problema da lacuna epistêmica entre primeira e terceira pessoas também deixa de existir.

Pereira Jr. e Aguiar nos oferecem alguns estudos da ciência da Sentiômica, argumentando que não podemos prescindir dela, nos estudos acerca da consciência. A noção de sentiência é de grande relevância, pois esses padrões dinâmicos e desestruturados compõem a consciência e podem servir de material para o desenvolvimento de estudos em todas as áreas científicas que lidam com a noção de consciência. Os autores também argumentam pela importância da Qualiômica como algo que, embora não se sujeite a uma pesquisa a partir dos métodos científicos tradicionais, precisa ser considerado como meio de avaliação e regulagem dos desenvolvimentos em Sentiômica.

Propomos que a Qualiômica não pode se desenvolver, se considerarmos a existência de lacunas intransponíveis entre as perspectivas de primeira e de terceira pessoas, ainda que se trate de uma lacuna epistêmica e não ontológica. Assim, sinalizamos dois caminhos para que essa suposta lacuna possa ser preenchida: a noção de affordance de Gibson e a distinção entre imagem manifesta e imagem de ciência de Sellars.

 

Referências

CHALMERS, D. The Conscious Mind. Oxford: Oxford University Press, 1996.

DENNETT, D. Intuition Pumps and Other Tools for Thinking. New York; London: Norton & Company, 2013.

GIBSON, J. J. The Theory of Affordances. In: GIBSON, J. J. The Ecological Approach to Visual Perception. Boston: Houghton Mifflin, 1979. P. 127-137.

NAGEL, T. What is it like to be a bat? Philosophical Review, v. 83, p. 435-450, 1974.

Pereira Jr., A.; Aguiar, V. J. de. Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 57- 86, 2023.

PEREIRA JR., A. The Role of Sentience in the Theory of Consciousness and Medical Practice. Jornal of Consciousness Studies, v. 28, n. 7-8, p. 22-50, 2021.

PUTNAM, H. Reason, Truth and History. Cambridge: Cambridge University Press, 1981.

SELLARS, W. Philosophy and the Scientific Image of Man. In: COLODNY, R. (ed.). Frontiers of Science and Philosophy. Pittsburg: University of Pittsburgh Press, 1962. p. 35-78.

Recebido: 17/04/2023

Aprovado: 20/04/2023


Comentário a “Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir”: o lugar e a função dos afetos e das emoções: uma crítica psicanalítica dos fundamentos e aplicações da sentiômica

 

Manuel Moreira da Silva[36]

 

Referência do artigo comentado: Pereira Jr., A.; Aguiar, V. J. de. Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 57- 86, 2023.

 

I Posição do Problema

É sempre um acontecimento alvissareiro, quando companheiros de caminhada trazem à luz os resultados de suas investigações científicas, sobretudo enquanto estes se mostram sob a proposição de uma nova ciência. Esta é a Sentiômica, apresentada como tal, em sua diferença em relação à Qualiômica, no artigo “Fundamentos e aplicações da Sentiômica: a ciência da capacidade de sentir”[37], de Alfredo Pereira Júnior e Vinícius Jonas de Aguiar, publicado neste número da Trans/Form/Ação. Nas palavras dos autores, a Sentiômica teria por tarefa a “[...] identificação e análise dos padrões temporais universais que caracterizam a sentiência”, razão pela qual essa ciência “[...] poderia se beneficiar de uma interação construtiva com a Psicanálise.”

Este artigo, porém, se limita a um brevíssimo comentário sobre a proposição de uma interação construtiva entre a Sentiômica e a Psicanálise. Os autores referem-se a essa interação na seção V de seu trabalho, intitulada “Sentiômica e ontologia monista”, mais precisamente quando assumem como pressupostos da Sentiômica a “[...] existência de padrões de informação universais inconscientes.” Tais padrões seriam “potencialidades do sentir consciente” e se distinguiriam dos padrões conscientes porquanto estes, como objeto da Qualiômica, constituiriam as “qualidades (qualia) atuais da experiência”, as quais, porque atuais, uma vez vivenciadas, poderiam deixar marcas no inconsciente. Assim, para os autores, “[...] em cada pessoa se estabelece uma complexa dinâmica que perpassa os dois modos da experiência, inconsciente e consciente, formando uma identidade a posteriori, o Eu, que persiste existindo apenas enquanto há experiência.” Desses pressupostos, os autores chegam às seguintes conclusões:

1. Impossibilidade de um “Eu Consciente” universal;

2. Existência de padrões de informação universais inconscientes, que conferem ao cosmos a possibilidade de emergência de seres conscientes em qualquer lugar e tempo. (grifos dos autores).

A respeito dessas duas conclusões, este artigo se debruça unicamente sobre a segunda. Questiona, portanto, a proposição da existência de padrões de informação universais inconscientes, tomada pelos autores como fundamento da Sentiômica, e, no caso da confirmação de tal existência, questiona ainda a proposição dela decorrente, a saber, de que padrões de informação universais inconscientes conferem ao cosmos a possibilidade de emergência de seres conscientes em qualquer lugar e tempo. No caso de uma única dessas proposições não se sustentar, sua fundamentação se mostrará falsa ou pelo menos falha ou insuficiente.

Nessa perspectiva, o presente artigo assume a forma de uma crítica psicanalítica dos fundamentos e aplicações da Sentiômica, de modo mais preciso, das duas proposições supracitadas, constituintes da segunda conclusão dos autores, mais acima enumerada. A crítica em tela, no entanto, consiste em um discernimento da questão ela mesma – em rigor, da assim chamada experiência inconsciente –, quando esclarece em que medida a Psicanálise pode contribuir assertivamente para a fundamentação e a aplicabilidade da Sentiômica. Isso implica, porém, a exigência de a Sentiômica se depurar de todos os seus outros pressupostos, os quais, porventura, estejam em conflito com o aqui explicitado.

 

II Sobre a existência de padrões de informação universais inconscientes

Quando os autores se referem à “existência de padrões de informação universais inconscientes”, eles como que apenas invertem a proposição pretensamente refutada, a de que um “Eu Consciente” universal ou uma Consciência universal seria possível. Isso porque se mantém o discurso e, portanto, a pressuposição de que há padrões de medida universais passíveis de fazer emergir seres conscientes em qualquer lugar e tempo, embora tais padrões universais sejam negados precisamente a um “Eu Consciente” universal ou a uma Consciência universal. Quanto a isso, nunca é demais lembrar-se das palavras de Hegel (1807/2002), em sua Fenomenologia do Espírito, segundo as quais a consciência se faz para si o seu próprio padrão de medida; assim como do homem-medida de todas as coisas de Protágoras ou, ainda, do Deus-medida de Platão.

Além disso, a proposição que afirma a “existência de padrões de informação universais inconscientes” contém nela mesma uma contradição de termos; porque, se tais padrões são inconscientes, eles não podem ser universais. O universal, em qualquer sentido que se lhe tome, é ele mesmo uma qualidade (um quale) e, portanto, pertence aos padrões conscientes ou às qualidades (qualia) atuais da experiência; se, para estes, é possível estabelecer uma forma universal abstrata, essa possibilidade não se aplica aos padrões inconscientes. Disso se depreende que os autores assumem, de saída, sub-repticiamente, a pressuposição segundo a qual “padrões de informação universais inconscientes” são eles mesmos qualia ou se constituem de um modo ou de outro como qualidades; isso se comprova, quando afirmam que “os padrões inconscientes consistem em potencialidades do sentir consciente”. Se isso é precisamente assim, então padrões inconscientes são ou, antes disso, têm que ser apenas qualidades indeterminadas, qualia que ainda não se apresentaram como tais, mas que necessariamente se apresentarão “em qualquer lugar e tempo”. Se isso é precisamente assim, há que se repetir, então: a Sentiômica ora proposta permanece refém da concepção hegeliana do ser.

Na Grande Lógica, em rigor, no início da seção Qualidade, embora aceda à percepção do ser sem reflexão e sem qualidade, Hegel (1812/2021, p. 121) perde-o de vista, porquanto o designa como ser indeterminado; a saber, como o ser que ainda não recebeu uma determinação, sendo a indeterminação, para aquele filósofo, em oposição ao determinado e ao qualitativo, a sua determinidade imediata. Ora, a concepção do ser sem reflexão e sem qualidade em Hegel e a concepção dos “padrões de informação universais inconscientes” da Sentiômica em tela possuem um ponto de partida comum, cujo início, pura e simplesmente pressuposto, permanecera impensado em ambas, tal como em seu ponto de partida comum.

Este consiste na concepção aristotélica da forma e da matéria, ou do ato e da potência, como constituintes da substância sensível; caso em que a potência ou a matéria contém dentro de si a forma ou o ato da coisa mesma – isto é, da essência – que lhe plasma e conforma, donde a concepção estoica do universal in re, assim como, posteriormente, as respectivas concepções pré-moderna e moderna do Conceito formal do ente, em Francisco Suárez, a de Realidade formal da ideia, em Descartes, ou a de Conceito subjetivo, em Hegel. Todavia, convém perguntar: e aquilo que se constitui como o Início – a Arché – dessas concepções, que dele partem, mas que o ignoram por completo?

Ao que tudo indica, em nenhum momento da história conhecido até aqui, nem a filosofia nem as ciências particulares experienciaram a coisa mesma, isto é, o ser sem reflexão e sem qualidade, sem lhe apor uma forma ou determinação qualitativa externa a ele. Se, em algum momento, uma experiência originária com a coisa mesma se mostrou o caso, este foi esquecido na medida mesma em que se lhe apusera um quale, mesmo sendo aquele a origem – ou, antes –, o Início propriamente dito deste.

Ora, desde seus inícios, a Psicanálise investiga os processos psíquicos inconscientes, logo, primários, que estruturam a experiência originária com a coisa mesma, sem lhe apor qualquer forma abstrata, mas antes, de modo a verificar a ruptura ou a dissociação da forma concreta do ser e do ser ele mesmo. Em vista disso, para se compreender algo como a capacidade de sentir, assim como até que ponto uma experiência se torna consciente, é necessário assumir como campo de investigação um âmbito ainda mais básico que o do sentir, esse que se mostra, ora como o âmbito dos afetos, ora como o âmbito das emoções, ora como o das experiências afetivas, ora o das experiências emocionais.

Os autores intuem esses âmbitos mais básicos que o do sentir, quando, no início da seção IV, intitulada “Da sentiência à consciência, e vice-versa”, afirmam:

Os padrões pré-conscientes dinâmicos (plano de fundo) e consciência experiencial (primeiro plano) podem mudar sua posição no processamento. O que está no fundo pré-consciente (e pertence à sentiência) pode vir para o primeiro plano e ser experimentado conscientemente, e vice-versa: o que é experienciado conscientemente pode ser retido em um engrama de memória inconsciente, que pode ou não ser lembrado no futuro.

 

O trecho acima traduz de maneira assaz adequada, embora tão só em um nível fenomenológico-formal, o funcionamento do aparelho psíquico formulado por Freud, na assim chamada Primeira Tópica. Essa descrição representa uma relação intrínseca de figura e fundo, respectivamente, entre a consciência experiencial e os padrões pré-conscientes dinâmicos; quando o “fundo pré-consciente” é corretamente identificado com a sentiência e o inconsciente é dado a conhecer apenas indiretamente, quando algo “[...] experienciado conscientemente pode ser retido [a saber, reprimido, recalcado ou ainda encravado][38] em um engrama de memória inconsciente, que pode ou não ser lembrado no futuro.”

Se isso é precisamente assim, se o inconsciente se forma por via de uma retenção do que, em princípio, seria experienciado conscientemente – mas retido de modo inconsciente –, dado que essa retenção não segue um padrão universal, não é adequado afirmar, sem mais, a “existência de padrões de informação universais inconscientes”. Porém, há que se descobrir como e por que ocorre tal retenção e em que medida ela implica um funcionamento distinto do aparelho psíquico em cada indivíduo humano, em especial, no concernente às suas respectivas experiências emocionais. Estas, uma vez que ainda não foram elaboradas e, portanto, ainda não passaram ao âmbito do pensamento, mesmo em seu nível mais elementar, sentiente, esse que os autores também designam o fundo pré-consciente.

Em vista do exposto até aqui, é possível conceder aos autores a “existência de padrões de informação universais pré-conscientes”, contudo, de modo algum, a “existência de padrões de informação universais inconscientes”. Isso devido à natureza mesma do sistema pré-consciente e do sistema inconsciente, respectivamente, em sua relação com o sistema consciente e em seu desligamento completo em relação a este último sistema, quando, o que vem à tona do inconsciente ao consciente, só o vem por intermédio do pré-consciente e, de certa forma, traduzido ou elaborado por este. Se o pré-consciente falha em seu trabalho de tradução, experiências emocionais são impossibilitadas de se transformarem em pensamentos, e pensamentos podem se cristalizar, o que interrompe justamente a fluidez da sentiência e a dinâmica entre os sistemas acima referidos.

 

III Padrões universais inconscientes versus emergência de seres conscientes

Do exposto na seção anterior resultaram duas conclusões. A primeira consiste no fato de a proposição que afirma a “existência de padrões de informação universais inconscientes” conter nela mesma uma contradição de termos; porque, se tais padrões são inconscientes, eles não podem ser universais. A segunda, acrescida a esta, mostrou que a proposição de padrões de informação universais inconscientes é incompatível com a afirmação segundo a qual tais padrões “[...] conferem ao cosmos a possibilidade de emergência de seres conscientes em qualquer lugar e tempo.” Isso porque, conforme assumido pelos próprios autores, no início da seção IV, intitulada “Da sentiência à consciência, e vice-versa”, “[...] o que é experienciado conscientemente pode ser retido em um engrama de memória inconsciente, que pode ou não ser lembrado no futuro.” Donde a comprovação de que a emergência de seres conscientes não está atrelada a padrões de informação universais inconscientes.

Se “[...] o que é experienciado conscientemente pode ser retido em um engrama de memória inconsciente, que pode ou não ser lembrado no futuro”, a proposição que sustenta a possibilidade de emergência de seres conscientes, a partir de padrões de informação universais inconscientes, não se constitui senão como um círculo vicioso. Da mesma forma, se a proposição que afirma a “existência de padrões de informação universais inconscientes” contém nela mesma uma contradição de termos – porque, se tais padrões são inconscientes, eles não podem ser universais –, então, além de um círculo vicioso, a proposição que pressupõe a possibilidade de emergência de seres conscientes, a partir de padrões de informação universais inconscientes, se baseia em um fundamento inconsistente. Porém, não há inconsistência em se afirmar a emergência de seres conscientes, a partir de séries paralelas de padrões de informação singulares inconscientes, o que é compatível tanto com as diversas teorias da consciência quanto com as teorias psicanalíticas do inconsciente.

Desde Kant (1798/2006, § 3), três elementos se mostram como os constituintes fundamentais da consciência, a saber: a atenção (attentio), a abstração (abstractio) e a universalização. Os dois últimos elementos, porém, se fundam eles mesmos no primeiro e, assim, se apresentam como sua formalização; daí a necessidade de uma consideração mais adequada da própria atenção, no tocante à sua natureza. Como não é possível estender-se aqui, devido aos limites deste trabalho, considere-se apenas o significado etimológico da palavra attentio, de attendere, literalmente “tender para”, formado por “ad”, que se assimila a “at”, e por “tendere”, que se associa à raiz “ten” (tender, esticar, tensionar), também presente no grego “tonos” (tensão, tono).

Nesse sentido, mais do que uma função da consciência ou do Eu, a atenção figura como o elemento mais fundamental destes, mas também como o da própria memória, a qual registra as “tensões” experimentadas pelo indivíduo e as aloca nos sistemas inconsciente, pré-consciente ou consciente, segundo a intensidade das tensões – ou dos conflitos psíquicos – em jogo e a suportabilidade do indivíduo em cada caso em questão. Em vista disso, há que se reconhecer, na chamada “capacidade de sentir”, não apenas a faculdade biologicamente determinada ou determinável da sentiência, mas, antes, também o poder suportar uma tensão psíquica extraordinária e, desse modo, organizá-la mediante as instâncias do inconsciente, do pré-consciente ou do consciente, bem como nos respectivos sistemas assim designados. Mas de onde vêm as tensões acima aludidas?

No que diz respeito aos organismos vivos complexos, quaisquer que sejam eles, toda tensão implica uma carga que, em dado momento, precisa ser descarregada. De outra forma, o indivíduo mostra-se incapaz de manter a constância de seu meio interno, o assim chamado equilíbrio homeostático; este é lembrado pelos autores, em pelo menos três momentos, todavia, não investigado em profundidade para além sua apresentação como um mecanismo de regulação biológica. Tanto o carregamento quanto o descarregamento de uma tensão consiste antes de tudo em eventos afetivos e emocionais que sempre se dão no contexto de uma “tempestade emocional”, para usar aqui um termo de Bion (1979/1987, p. 322), a qual, por sua vez, se evidencia quando do encontro de dois indivíduos igualmente incertos um em relação ao outro. No âmbito de uma tempestade emocional assim descrita, não há elaboração possível e, portanto, nem passagem à consciência; em rigor, à linguagem e ao pensamento.

No entanto, isso ainda não é tudo. Emoções e sentimentos consistem na interpretação de afetos, caso em que estes – em sentido próprio – dificilmente passam do inconsciente ao consciente, se não transformados em emoção, assim como esta também não passa, se não traduzida (via pré-consciente) em algum sentimento. Isso pode ser exemplificado na medida em que, quando alguém sente algo, geralmente se diz que sente alegria, tristeza, medo, raiva ou nojo etc. – estas, por exemplo, as chamadas cinco emoções básicas –, razão pela qual se pode afirmar que todo sentimento é, de algum modo, sentimento de uma emoção, por si mesma refratária à interpretação e à simbolização. O mesmo ocorre com os afetos – em especial a angústia, o amor e o ódio, o prazer e o desprazer, o gozo e a dor, o amparo e o desamparo etc. –, os quais só se dão a conhecer mediante a mudança de sua forma por intermédio das emoções, que, então, se lhes sobrepõem. Por isso, Green (1973/1975, p. 16) se perguntou se seria possível falar do afeto em sentido próprio, isto é, de seu centro, o qual, tal como o inconsciente, nos permanece de fato desconhecido.

Em contraste, o afeto também é reconhecido – pela Filosofia e pela Psicanálise – igualmente como memória. O que, tal como acontece com o inconsciente, permite sua investigação por si mesmo e sua distinção em relação à emoção e ao sentimento, de sorte a se poder chegar às suas camadas mais profundas, propriamente pulsionais, nas quais o psíquico e o somático permanecem indistintos, e, assim, fazer emergir uma ciência da capacidade de sentir fundada em um solo adequado e consistente com o que tal ciência se põe como fim. Nesse caso, porém, as pesquisas das mais diversas ciências, inclusas a Sentiômica e a Psicanálise, devem convergir para a memória, âmbito mais amplo que o da consciência e que, certamente, poderá contribuir de modo auspicioso na explicação de sua emergência. Sentiômica e Psicanálise têm aqui seu ponto de partida comum, o experienciado retido em um engrama de memória inconsciente.

 

Conclusão

A proposição da Sentiômica como ciência da “capacidade de sentir” e sua fundação no que os autores designam “genes do sentimento”, isto é, “[...] padrões dinâmicos inconscientes capazes de gerar sentimentos conscientes”, mostra-se um acontecimento alvissareiro. Embora os autores apresentem a Sentiômica nos limites da linguagem da concepção tradicional, moderna, da ciência – exemplificada na perspectiva da terceira pessoa –, ao buscarem a mediação entre essa perspectiva e a da primeira pessoa, a qual se volta para o estudo dos qualia, pressupõem um tipo novo de fundamento, que possa levar a termo a referida mediação. Se tal fundamento consiste nos “padrões dinâmicos inconscientes capazes de gerar sentimentos conscientes”, por conseguinte, a Psicanálise se constitui como um modelo epistêmico essencial para a fundamentação da ciência ora proposta.

Infelizmente, não há espaço, neste brevíssimo comentário para que se possa explicitar adequadamente a Psicanálise como modelo epistêmico da Sentiômica. Não obstante, assim como a Psicanálise já se mostrou como uma abertura para a proposição de uma metafísica pós-moderna, no caso, em Yannaras (1993/2004, 2004/2011) e Silva (2017; 2019), bem como se revela um elemento constitutivo fundamental para as mais diversas disciplinas – a exemplo da Antropologia –, a assunção dos chamados “genes do sentimento”, ou de “padrões dinâmicos inconscientes capazes de gerar sentimentos conscientes” pela Sentiômica, faz da Psicanálise e de seu regime epistêmico o modelo e o fundamento adequados daquela ciência. Para isso, entretanto, a Sentiômica tem que assumir, igualmente, não apenas o bônus, mas também o ônus de seu empreendimento.

Isso implica a necessidade de ocupar-se dos “genes do sentimento” – objeto da Sentiômica –, antes que se gerem sentimentos conscientes e que estes se mostrem na experiência consciente como qualia – objeto da Qualiômica –, os quais constituem tais sentimentos. É necessário, pois, ocupar-se de um âmbito do real – isto é, do ser, mas não já da realidade, que é sua representação ou qualidade – no qual os próprios qualia ainda não existem; o que só é possível, na medida em que se assume a existência de séries paralelas de padrões de informação singulares inconscientes, em suma, de afetos e de emoções, enquanto estes ainda não passaram por um processo de qualificação. Algo inteiramente compatível com a tarefa de “[...] identificação empírica e análise dos padrões temporais universais que caracterizam a sentiência” própria da Sentiômica.

 

Referências

BION, W. R. (1979). Making the best of a bad job. In: BION, W. R. Clinical seminars and others works. London: Karnac Books, 1987. p. 321-331.

GREEN, A. (1973). La concepción psicoanalítica del afecto. Mexico; Madrid; Buenos Aires: Siglo XXI, 1975.

HEGEL, G. W. F. (1807). Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: USF, 2002.

HEGEL, G. W. F. (1812). Ciência da Lógica. O Ser. Edição de 1812. Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Edição de Manuel Moreira da Silva. São Paulo: Loyola, 2021.

KANT, I. (1798). Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução de Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.

Pereira Jr., A.; Aguiar, V. J. de. Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 57- 86, 2023.

PEREIRA JÚNIOR, A.; VINÍCIUS, V. J. de. Fundamentos e aplicações da Sentiômica: a ciência da capacidade de sentir. Work in Progress. 2023. (Versão manuscrita).

SILVA, M. M. da. A Psicanálise como Abertura à Metafísica Pós-Moderna. Observações preliminares em torno da apropriação ontológico-relacional da psicanálise lacaniana pela metafísica pós-moderna de Christos Yannaras. In: COLÓQUIO ONTOLOGIA E PSICANÁLISE, 2017, Campinas. Caderno de resumos. Campinas: IBPW, 2017, v. 1, p. 52-53.

SILVA, M. M. da. Pensar em imagens, pensar no Abrangente. Introdução ao pensar na pós-modernidade, ao pensar do Abrangente, ao pensar pré-consciente. Eleuthería, v. 4, p. 112, 2019.

YANNARAS, C. (1993). Postmodern Metaphysics. Translated by Norman Russel. Massachusetts: Holy Cross Orthodox Press, 2004.

YANNARAS, C. (2004). Relational Ontology. Translated by Norman Russel. Massachusetts: Holy Cross Orthodox Press, 2011.

 

Recebido: 05/03/2023

Aprovado: 10/03/2023

Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético[39]

 

André J. Abath[40]

Resumo: Neste artigo, apresenta-se uma posição a que se chama de aprimoramento erotético, segundo a qual devemos avaliar e, eventualmente, aprimorar nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?”. O foco será em casos em que x captura uma categoria fortemente social, como o casamento. Tal posição é oferecida enquanto alternativa à ideia — por vezes denominada engenharia conceitual — de acordo com a qual devemos avaliar e, eventualmente, buscar uma melhoria de nossos conceitos. Uma vez introduzida a ideia de aprimoramento erotético, será buscado mostrar como pode ser mobilizada para lidar com o que se chama de desafio da preservação de tópico, e que vantagens possui em relação a uma posição semelhante disponível na literatura, nomeadamente, o Quadro Austero, defendido por Cappelen (2018).

Palavras-chave: Aprimoramento erotético. Engenharia conceitual. Conceitos. Projetos de melhoria.

 

Introdução

Nos últimos anos, várias pessoas na filosofia voltaram sua atenção para o estudo da avaliação e melhoria de nossos conceitos, à luz de certos objetivos. Haslanger (2000, p. 33) coloca bem a ideia:

Nessa abordagem, a tarefa não é explicar nossos conceitos comuns; nem é investigar o tipo (kind) que podemos ou não estar rastreando com nosso aparato conceitual cotidiano; em vez disso, começamos considerando mais amplamente a pragmática de nosso discurso que emprega os termos em questão. Qual é o sentido de ter esses conceitos? Que tarefa cognitiva ou prática eles nos capacitam (ou deveriam nos capacitar) a realizar? Eles são ferramentas eficazes para cumprir nossos propósitos (legítimos); se não, quais conceitos serviriam melhor a esses propósitos?[41]

 

A ideia, então, é que não devemos apenas compreender ou analisar os conceitos que possuímos. Devemos perguntar se esses conceitos são ferramentas eficazes para cumprir metas importantes que temos. Por exemplo, uma de nossas metas é ou pelo menos deveria ser a promoção da justiça social. Alguns de nossos conceitos, como o de raça ou o de gênero, devem servir como ferramentas que nos possam ser de auxílio no alcance desse objetivo. Mas, para isso, esses conceitos podem ter que ser melhorados. Assim, Haslanger (2000, 2006, 2012) defende a visão de que o conceito de mulher, por exemplo, deve ser aprimorado, para que possa ser uma ferramenta eficaz na luta contra o sexismo e a opressão.[42]

O campo de pesquisa em que questões nessa vizinhança vêm sendo debatidas aparece sob diferentes nomes: engenharia conceitual (SCHARP, 2013; EKLUND, 2017; CAPPELEN, 2018; CHALMERS, 2020), projetos de melhoria (HASLANGER, 2006, 2012; DIÁZ-LEON, 2020) ou ética conceitual (BURGESS; PLUNKETT, 2013a, 2013b). Neste artigo, busco introduzir uma nova posição nesse campo, a que chamarei de aprimoramento erotético.[43] Grosso modo, a ideia é oferecer uma posição na qual melhorias sejam pensadas não em termos da avaliação e aprimoramento de conceitos, mas em termos da avaliação e busca por aprimoramento de nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?”.

Meu foco neste artigo, no entanto, será no aprimoramento de respostas a um tipo específico de questões da forma “O que é x?”. Mais especificamente, meu interesse aqui é no aprimoramento erotético aplicado a questões da forma “O que é x?”, em que x captura uma categoria social e, mais especificamente, uma categoria fortemente social, como o casamento. Por uma categoria, entenderei não um conceito seja um conceito concebido como uma representação, ou como uma entidade de alguma outra espécie , mas um tipo de coisa no mundo. Assim, pressuporei que, no mundo, há categorias naturais, como gatos e pérolas, e também categorias sociais, como o casamento e o dinheiro. Em ambos os casos, pressuporei que categorias possuem instâncias específicas, como um gato de nome Belchior, ou um casamento particular, e que diversas instâncias de uma dada categoria c (gatos diversos, casamentos diversos) possuem semelhanças relevantes e suficientes, de maneira a pertencerem a c.

Para os meus propósitos, essa concepção mínima de categorias será o bastante, e permanecerei neutro em relação a inúmeros debates metafísicos (se categorias devem ser compreendidas enquanto universais ou enquanto conjuntos de particulares, por exemplo).[44] Ademais, tomarei uma categoria c como fortemente social se, e somente se, o que c é, em grande parte, é determinado pelas atitudes dos sujeitos em relação a c.[45] [AA1] O casamento parece ser uma categoria fortemente social, nesse sentido. O que é o casamento, em um determinado cenário institucional, é amplamente determinado por certas instituições. Particularmente, o que é o casamento, em um determinado ambiente institucional, é amplamente determinado pela lei.[46]

Por que voltar a nossa atenção, neste artigo, para categorias fortemente sociais? Na verdade, quando se trata de tais categorias, pode ser que as visões oferecidas pelas instituições relevantes sobre o que é uma determinada categoria estejam longe de ser consensuais. Na verdade, pode ser que as opiniões oferecidas pelas instituições relevantes sobre o que é uma determinada categoria nos pareçam simplesmente erradas. Tome-se o caso do casamento.[47] Se, em um determinado cenário institucional, o casamento é legalmente entendido em termos conservadores — como, por exemplo, a união legal ou formalmente reconhecida de um homem e uma mulher como parceiros em um relacionamento interpessoal —, tal visão do casamento pode (e deve) nos parecer claramente errada. Em tal caso, respostas à pergunta “O que é o casamento?” podem necessitar de uma urgente melhoria. O mesmo vale para categorias como raça e gênero, que têm sido objeto de intensa discussão na literatura sobre engenharia conceitual e áreas adjacentes. Assim, justifica-se o foco em tais casos.[48]

Feita essa introdução, a estrutura do artigo será como se segue. Na seção 1, apresento algumas das visões discutidas no campo da engenharia conceitual (projetos de melhoria ou ética conceitual). Na seção 2, enfatizo como essas visões variam em suas suposições básicas sobre o que conceitos são, e sugiro que a discordância aqui pode atrapalhar o progresso nesse campo de pesquisa. Na seção 3, faço uma caracterização inicial do aprimoramento erotético, a partir de ideias encontradas no trabalho de Haslanger (2006, 2012). Na seção 4, discuto como essa visão pode lidar com um desafio frequentemente levantado nesse campo, o da preservação de tópico. Na seção 5, reflito sobre o Quadro Austero de Cappelen (2018) e argumento que a visão exposta neste artigo tem uma vantagem importante em relação a essa posição.

 

1 Engenharia Conceitual

Um número considerável de filósofas e filósofos vêm desenvolvendo projetos semelhantes ao de Haslanger, mencionado acima, embora com rótulos distintos e, às vezes, com objetivos diferentes que aquele da justiça social em mente. Scharp (2013), por exemplo, argumenta que nosso conceito comum de verdade é defeituoso; envolve inconsistências, as quais, por sua vez, levam a paradoxos, como o paradoxo do mentiroso. Para evitar esses paradoxos e progredir na obtenção de uma semântica para a linguagem natural, devemos substituir o conceito comum de verdade por outros conceitos, de forma que tais inconsistências sejam dissipadas. Scharp considera seu projeto como sendo um de engenharia conceitual. Recentemente, ele apresentou o projeto da seguinte forma:

Acho que a engenharia conceitual está mudando ativamente alguns aspectos de nossos conceitos—eliminando os ruins, decidindo quais devemos usar e qual palavra deve expressá-los ... A ideia de engenharia conceitual é, realmente, a de termos um papel ativo em relação aos nosso esquema conceitual e mudá-lo quando se encontram defeitos nesses conceitos. (SCHARP, 2020, p. 396-397).

 

A partir desta breve apresentação, deve estar claro que Haslanger e Scharp têm objetivos diferentes em mente — Haslanger está engajada em um trabalho teórico que busca facilitar a justiça social, enquanto Sharp está empenhado em um projeto que visa a pavimentar o caminho de uma semântica para a linguagem natural —, mas há uma preocupação em comum aqui: ambos estão engajados em um projeto de avaliar e melhorar conceitos que são considerados defeituosos, atendendo a determinados objetivos. Essa preocupação envolve uma dimensão normativa: Haslanger e Scharp estão procurando encontrar os conceitos que devemos usar em nossas relações com o mundo. Assim, não é impróprio dizer que estão envolvidos em um projeto de ética conceitual, para usar a expressão introduzida por Burgess e Plunkett (2013a, 2013b).

A terminologia pode ser confusa nessa área, com as expressões "engenharia conceitual", "melhoria" (ou “projetos de melhoria”) e "ética conceitual", muitas vezes usadas de forma intercambiável[49]; por isso, para os propósitos desta seção, utilizarei apenas engenharia conceitual — mais adiante, ao expor minha própria posição, usarei aprimoramento erotético. Por engenharia conceitual, entenderei, grosso modo, o projeto de avaliação e eventual melhoria de nossos conceitos. Mas isso deve ser tomado de forma ampla, como envolvendo diferentes possibilidades de melhoria: substituir certos conceitos por outros, mudar o conteúdo dos conceitos, eliminar conceitos, e outras formas de “termos um papel ativo em relação ao nosso esquema conceitual”, como colocado por Scharp, na passagem acima. A ideia de engenharia é útil por sugerir que devemos nos preocupar não apenas em avaliar nossos conceitos e apresentar ideias para melhorá-los; como sugerido por pessoas como Cappelen (2018), Burgess e Plunkett (2020) e Chalmers (2020), devemos levar em conta a implementação desses projetos de melhoria — como na engenharia, onde a preocupação não deve ser somente com a elaboração e reelaboração de projetos, mas também com sua implementação no mundo real.[50] Conforme ressaltado por Burgess e Plunkett (2020, p. 5), a implementação conceitual

[...] envolve uma categoria da advocacia, na qual se tenta fazer com que algumas pessoas (variando de um indivíduo solitário a uma grande população) realmente adotem e usem os conceitos que alguém defende. Em outras palavras, isso envolve uma tentativa de implementação real das mudanças conceituais que se pensa que devem ser feitas [...]

 

Assim, se alguém pensa que os conceitos de gênero e raça devem ser aprimorados e propõe uma maneira de fazê-lo, como Haslanger (2000, 2006, 2012), é uma parte relevante do projeto que as pessoas — e aqui podemos pensar em um grande população e, talvez mais importante, em pessoas que ocupam certos papéis institucionais — possam chegar a usar esses conceitos em sua versão melhorada. Como fazer com que as pessoas façam isso é certamente uma questão complicada, mas o sucesso da engenharia conceitual parece depender, pelo menos até certo ponto, do sucesso de seu estágio de implementação. Portanto, as visões sobre como melhorar os conceitos devem abrir espaço para implementações bem-sucedidas.

 

2 Conceitos

Até o momento, introduzi a ideia de engenharia conceitual sem explicitar que conceitos são. Na verdade, não há consenso no campo da engenharia conceitual sobre o que são essas entidades (se é que conceitos são entidades) que devem ser melhoradas. Isso não é surpreendente. Conceitos são ferramentas filosóficas — e psicológicas — notoriamente elusivas. O desacordo na literatura no que tange à ontologia de conceitos, por exemplo, é generalizado: alguns consideram que conceitos são objetos abstratos (PEACOCKE, 1992; ZALTA, 2001), enquanto outros os tomam como representações mentais (a visão dominante na filosofia da psicologia e na própria psicologia), e outros ainda os tomam como habilidades de algum tipo (DUMMETT, 1993; MILLIKAN, 2000), ou itens linguísticos (JOHNSTON; LESLIE, 2012).[51] Em psicologia, onde os conceitos são tidos principalmente como representações mentais, também abunda a discordância sobre qual é a estrutura dessas representações — se são estruturadas, por exemplo, em termos de protótipos, exemplares ou teorias.[52]

Diante de tal desacordo, era de se esperar que várias posições acerca do que conceitos são estivessem disponíveis na literatura sobre engenharia conceitual. Isso é, de fato, o que ocorre. Ontologicamente, essas visões estão inseridas no leque de opções que acabamos de considerar: em tal literatura, ou conceitos são tomados como objetos abstratos de algum tipo (como significados), ou como representações mentais, ou como habilidades (ou capacidades), ou ainda como itens linguísticos. Mais especificamente, no campo da engenharia conceitual, os conceitos às vezes são tidos como: significados dos termos (PLUNKETT, 2015), representações mentais que são constituintes dos pensamentos (SAWYER, 2020), representações mentais com conteúdos duais (KOCH, 2020), corpos de informações sobre um referente armazenado na memória de longo prazo (ISAAC, 2020), entidades linguísticas (BRUN, 2016), capacidades para acessar partições do espaço lógico (HASLANGER, 2020a), para citar algumas das posições recentemente apresentadas na literatura.

Conforme colocado por Haslanger (2020b), essas diferentes suposições básicas sobre o que os conceitos são tornam o campo da engenharia conceitual confuso.[53] Penso que pelo menos parte da confusão decorre do fato de que, dadas essas várias visões sobre conceitos, não há acordo quando se trata do que, afinal, deve ser melhorado. Devemos melhorar significados, representações mentais, itens linguísticos ou capacidades para acessar partições do espaço lógico (para citar algumas das opções disponíveis)? Evidentemente, pode ser necessário melhorar vários desses itens de uma só vez, independentemente de serem chamados de “conceitos”, ou não. Isso significaria que o campo da engenharia conceitual não é unificado — no sentido de que quem trabalha na área não busca melhorar um único item, mas itens diferentes. Isso não precisa ser um problema. Temos um problema, se a falta de acordo quando se trata de suposições básicas —  especialmente no que diz respeito ao que conceitos são — venha a impedir o progresso que aqueles que trabalham na engenharia conceitual almejam, seja o progresso na justiça social, seja em fornecer uma semântica para a linguagem natural, seja ainda alguma outra forma de progresso. Uma maneira pela qual a discordância a esse respeito poderia levar a um resultado tão indesejado seria em caso de termos uma dificuldade de comunicação entre as pessoas envolvidas na pesquisa em engenharia conceitual, uma vez que as suas suposições de fundo podem diferir consideravelmente.

Essas são difíceis questões metateóricas, e não tentarei argumentar aqui que o campo da engenharia conceitual está em maus lençóis, devido a divergências sobre a noção de conceito. Com as observações acima, quero apenas enfatizar que essas divergências podem impedir o progresso na área. Se assim for, uma posição que evite se referir a conceitos e que aborde as principais preocupações que aqueles que trabalham na área possuem — e, assim, evite o desacordo generalizado sobre o que conceitos são — pode facilitar a comunicação entre aqueles que nela trabalham e permitir um maior progresso, quando se trata de atingir os objetivos da engenharia conceitual.[54] O que proponho fazer a seguir é expor uma tal posição, a que chamo de aprimoramento erotético.

Minha sugestão, por conseguinte, é de que o aprimoramento erotético, ao evitar lidar  com as elusivas entidades que são os conceitos, e ao se envolver com preocupações que movem aqueles trabalhando na área da engenharia conceitual — concebida como lidando, por vias que podem ser diversas, com a melhoria de nossos conceitos — pode ser visto como tendo vantagens em relação à engenharia conceitual e, portanto, como um possível substituto a esse programa de investigação. Isso não significa, contudo, que o aprimoramento erotético seja incompatível com a engenharia conceitual. Com efeito, é viável uma posição segundo a qual devemos melhorar tanto conceitos quanto respostas a certas perguntas. Por exemplo, é viável uma posição para a qual devemos melhorar tanto o conceito de casamento (entendido como uma representação mental, digamos), quanto nossas respostas à pergunta “O que é o casamento?”. Assim, aqueles que desejam manter-se comprometidos com conceitos enquanto entidades em suas teorias não precisam, necessariamente, rejeitar o aprimoramento erotético e podem, eventualmente, encontrar elementos, no que se segue, que seja de utilidade para suas próprias investigações.[55]

Em vista disso, começo discutindo algumas posições de Haslanger, pois a visão que defenderei aqui busca fazer justiça ao que considero ser alguns de seus importantes insights.

 

3 Aprimoramento Erotético

Haslanger (2000, 2006) distingue três formas diferentes de se responder a questões da forma “O que é x?”. A primeira é o que se toma mais tradicionalmente como sendo um projeto de análise conceitual. Aqui, em um primeiro momento, reformula-se uma questão com essa forma em termos dos nossos conceitos — “Qual é o nosso conceito de conhecimento?”, por exemplo. Em seguida, tenta-se responder à nova pergunta, a partir do uso de métodos a priori. Isso poderia ser uma questão de — verificadas nossas intuições a respeito de vários casos — desvendarmos as condições necessárias e suficientes para algo ser x — para termos um caso de conhecimento, por exemplo. Mas também poderia ser uma questão de buscarmos uma descrição do papel desempenhado pelo conceito em nossas teorias do senso comum sobre o assunto em questão — tal como uma descrição do papel desempenhado pelo conceito de conhecimento, em nossas teorias epistêmicas do senso comum.

A segunda maneira de se responder a perguntas da forma “O que é x?” — denominada por Haslanger como a abordagem descritiva, e exemplificada pelo trabalho de filósofos como Kripke (1980) e Putnam (1975) — sugere que uma resposta a tal questão deve apresentar uma propriedade P que é essencial de x, uma propriedade que x possui em todos os mundos possíveis, e que é identificada não pelo uso de métodos a priori, mas por pesquisas científicas sobre o assunto. Por exemplo, se a pergunta em causa for “O que é água?”, a resposta adequada é “Água é H20”.

A terceira maneira de se responder a perguntas da forma "O que é x?" — nomeada por Haslanger (2006) de projetos de melhoria (ameliorative projects) — é descrita por ela da seguinte forma:

Os projetos de melhoria, ao contrário, começam perguntando: Qual é o sentido de se ter o conceito em questão; por exemplo, por que temos um conceito de conhecimento ou um conceito de crença? Qual conceito (se houver) funcionaria melhor? No caso limite, um conceito teórico é introduzido pela estipulação do significado de um novo termo, e seu conteúdo é determinado inteiramente pelo papel que desempenha na teoria. Se permitirmos que nossos vocabulários cotidianos sirvam a propósitos cognitivos e práticos que podem ser bem servidos por nossa teorização, então aqueles que buscam uma abordagem de melhoria podem razoavelmente se apresentar como fornecendo uma explicação de nosso conceito—ou talvez do conceito que estamos buscando — melhorando nossos recursos conceituais para servir aos nossos propósitos (examinados criticamente) [...] (HASLANGER, 2006, p. 95-96).

 

Haslanger mudou um pouco sua compreensão dos projetos de melhoria, ao longo dos anos, e a passagem acima revela algumas dessas mudanças. Em um trabalho anterior — “Gender and Race: “(What) Are They? (What) Do We Want Them to Be?” (2000) —, sua abordagem dos projetos de melhoria (então chamada de abordagem analítica) é mais explicitamente revisionista: “Minha prioridade nesta investigação não é capturar o que queremos dizer, mas como podemos revisar de forma útil o que queremos dizer para certos propósitos teóricos e políticos.” (2000, p. 34). Em se tratando do conceito de mulher, por exemplo, a ideia seria que, ao introduzirmos uma definição melhorada do conceito, estaríamos revisando o conceito de mulher; ou, para ser mais preciso, estaríamos mudando o conteúdo do conceito, com o objetivo de combater o sexismo e a opressão.

A posição de Haslanger (2006) sobre a melhoria, no entanto, é menos revisionista, quando concerne ao conteúdo de conceitos como os de gênero e raça.[56] A ideia, nesse texto, é que as definições propostas em seus trabalhos anteriores são mais bem vistas como nos permitindo entender melhor o conteúdo de nossos conceitos. Deixe-me examinar essa posição em um pouco mais de detalhe, pois será importante para a visão que estou prestes a apresentar. A base teórica de Haslanger é o externismo semântico aplicado ao conteúdo dos conceitos. É bem sabido que, de acordo com o externismo semântico desenvolvido por Putnam (1975), um termo para uma categoria natural, como “água”, tem seu significado — ou valor semântico — parcialmente determinado por fatos relativos ao nosso ambiente. Dado que água é H20 — uma descoberta científica a respeito da natureza do categoria —, e que a referência de termos para categorias naturais é fixada pela ostensão de um paradigma, “água” se refere a H20. Aplicada a conceitos, a visão é que o conceito de água tem como extensão H2O, de forma que o conteúdo do conceito é, pelo menos parte, determinado por fatos relativos ao nosso meio ambiente.

Burge (1979) estende o externismo semântico ao domínio social, pois, de acordo com sua posição, o conteúdo de nossos conceitos pode ser determinado não apenas por fatos relativos ao nosso ambiente, mas também por fatos referentes à comunidade linguística de que fazemos parte. Mais especificamente, a ideia é que o conteúdo de um conceito, como o de artrite, é parcialmente determinado pelo uso linguístico padrão. Se, em nossa comunidade, “artrite” captura uma enfermidade que atinge apenas as articulações e não os músculos, faz parte do conteúdo expresso pelo termo — o conceito de artrite — que assim seja. O conteúdo dos conceitos é, pois, parcialmente determinado por fatos sobre como nossos termos são caracterizados — ou usados — em uma dada comunidade linguística.

De acordo com o externismo semântico, pode-se possuir o conceito de água, sem que se  saiba que água é H2O, ou pode-se possuir o conceito de artrite, sem que se saiba que é uma doença que aflige apenas as articulações — pode-se, portanto, possuir conceitos que são apenas parcialmente compreendidos (BURGE, 1979).[57] Suponha-se que Joaquim está nessa posição, sem saber que a água é H2O e que a artrite é uma doença que atinge apenas as articulações — apesar disso, ele pode possuir os conceitos de água e artrite, mas sua compreensão desses será, inevitavelmente, parcial. Quando Joaquim passa a saber que a água é H2O e que a artrite afeta apenas as articulações, ele passa a entender melhor o conteúdo dos conceitos de água e artrite. Ou seja, ele passa a ter um melhor entendimento de conceitos que já possuía.

Haslanger (2006, p.106) acredita que “[...] os insights externistas devem ser aplicados ao nosso pensamento e linguagem sobre o social, bem como o natural.” Teóricos sociais investigam o mundo social, e um tópico central de interesse é o estudo de categorias que podem ser plausivelmente consideradas como sociais, bem como conceitos que capturam essas categorias, como conceitos de gênero e o conceito de raça. Quando os teóricos sociais investigam esses conceitos, podem ajudar a esclarecer seu conteúdo (HASLANGER, 2012, p. 5). Assim como ocorre com conceitos para categorias naturais, podemos não apenas estar inconscientes de aspectos do conteúdo de nossos conceitos para categorias sociais, mas também podemos ter crenças equivocadas a respeito desses conteúdos. Segundo Haslanger, isso é de se esperar: “A falha de compreensão que o teórico social pretende corrigir não é uma falta que apenas alguns de nós temos; trata-se de parte do que é ser um agente comum, vivendo em uma cultura em cujas práticas nos engajamos, muitas vezes ‘sem pensar’, assim como falamos nossa língua nativa.” (HASLANGER, 2012, p. 16).

Portanto, a visão de Haslanger é de que as definições de raça e gênero por ela propostas podem ser vistas como parte de um projeto de teoria social que nos revela melhor o que a raça e os gêneros são. Essa investigação evidenciaria aspectos do conteúdo de nossos conceitos de raça e gênero. O foco aqui, portanto, não é tanto em mudar o conteúdo desses conceitos — como parece ser o caso, em Haslanger (2000) — mas em esclarecer (e assim nos ajudar a ter uma melhor compreensão) desses conteúdos. O paralelo com a investigação sobre categorias naturais e sobre os conceitos que as capturam é claro. Ao descobrir que a água é H2O, a investigação científica revela melhor o que a água é, e, ao fazê-lo, explicita aspectos do conteúdo do nosso conceito de água e, assim, nos ajuda a ter uma melhor compreensão do conteúdo do conceito. Obviamente, existem diferenças substanciais entre esses projetos. Que as categorias naturais sejam reais e as categorias sociais não o sejam, contudo, não é uma delas, pois “[...] as categorias sociais não são menos reais por serem sociais.” (HASLANGER, 2012, p.15). Existem diferenças que decorrem imediatamente de uma investigação ser focada em aspectos naturais do mundo, e outra ser focada em seus aspectos sociais. Essas diferenças não precisam ser listadas. Mas se deve notar que a investigação científica sobre as propriedades químicas subjacentes à água pode ser vista como não tendo nenhum objetivo além de revelar qual é a natureza física da água. A investigação na teoria social procura mostrar o que categorias sociais são, tendo a justiça social em mente (HASLANGER, 2012, p. 15).

Meu objetivo aqui não é discutir se a extensão de Haslanger do externismo semântico para o conteúdo de conceitos para categorias sociais é bem-sucedida ou não. Independentemente das mudanças nas visões de Haslanger, projetos de melhoria, segundo ela, devem ser vistos como uma maneira de responder a perguntas da forma "O que é x?" — uma maneira de fazê-lo que difere da análise conceitual tradicional e das abordagens descritivas. Acredito que ela está certa, nesse ponto, e que esse é um insight importante, o qual deve ser preservado. Suporei que ela também está certa, ao pensar que a teoria social desempenha um papel em relação às categorias sociais que é semelhante ao papel exercido pela ciência natural em relação às categorias naturais: o papel de fornecer uma melhor compreensão do que as categorias em jogo são.

Assim, a teoria social nos ajuda a entender melhor o que são categorias sociais, como categorias de gênero e raça, assim como a química e a física nos ajudam a entender melhor o que a água é. Esse também é um insight importante, o qual deve ser preservado. No entanto, ambos os insights de Haslanger podem ser preservados em uma teoria que não considera a melhoria como uma questão de melhorar conceitos — quer entendamos a melhoria conceitual como sendo mais ou menos revisionista. Uma maneira alternativa e natural de fazer justiça aos insights de Haslanger pode ser introduzida nos seguintes termos: em um projeto de melhoria, devemos avaliar e, eventualmente, buscar melhorar nossas respostas a perguntas da forma "O que é x?". Esse é um primeiro passo na introdução da visão que eu gostaria de chamar de aprimoramento erotético.

Na verdade, o que faz com que uma resposta a uma questão da forma “O que é x?” seja aprimorada em relação a uma resposta anterior? E como devemos proceder, para fornecer respostas aprimoradas a questões com tal forma?  No que se segue, buscarei lidar com tais questões, tendo como foco casos em que x, tal como ocorre em perguntas da forma “O que é x?”, captura uma categoria fortemente social.

Haslanger (2012) também está certa, creio, ao insistir que as investigações sobre categorias sociais — ela tem em mente investigações feitas por teóricos sociais — devem visar parcialmente a uma crítica social. Ela descreve a ideia de crítica social do seguinte modo:

A crítica social é um empreendimento interdisciplinar que toma muitas formas. Uma de suas formas centrais visa instituições, leis e práticas sociais existentes, por exemplo, políticas de saúde, distribuição de gênero do trabalho familiar, perfil racial, e argumenta que são ruins ou injustas. Vamos chamar isso de crítica institucional (permitindo que a noção de “instituição” seja muito ampla). É tentador ver essa crítica como envolvendo duas etapas. Um passo envolve descrever a prática social em questão de uma forma que destaque as características que são relevantes para a avaliação normativa. Outra etapa invoca conceitos explicitamente normativos para avaliar a prática como justa, razoável, útil, boa ou não. (HASLANGER, 2012, p. 16, grifos da autora).

 

Assim, uma investigação de um teórico social sobre uma categoria fortemente social como o casamento deve envolver uma descrição da prática do casamento, uma descrição que destaque características relevantes para a sua avaliação, assim como deve pressupor uma avaliação sobre se a prática – como ocorre em um determinado cenário institucional – é “justa, razoável, útil, boa ou não”. Se a investigação for mais específica, no sentido de que procura responder à questão do que é o casamento, podemos pensar o segundo passo da crítica social como incluindo uma avaliação de se as respostas dadas à pergunta “O que é o casamento?”, em um determinado cenário institucional, são tais que contribuem para a justiça social; se são razoáveis, úteis, boas ou não. Se não o forem, é parte do trabalho do teórico social apresentar uma resposta melhorada à questão em causa, uma que promova a justiça social, que seja razoável etc. De fato, este último passo é fundamental para a crítica social. Afinal, como coloca Haslanger (2012, p. 29), “[...] a tarefa é nos situarmos diferentemente no mundo, e não apenas descrevê-lo com mais precisão.”

Logo, uma resposta melhorada à questão do que é uma categoria fortemente social deve satisfazer três condições: (i) a resposta deve ser apoiada por um descrição da prática, em determinado cenário institucional; (ii) a resposta deve ser apoiada por uma avaliação adequada da prática, cujo resultado seja que respostas anteriores à pergunta são consideradas injustas, irrazoáveis etc.; (iii) a nova resposta proposta para a pergunta em causa deve corrigir as falhas de respostas anteriores, ou seja, deve promover a justiça social, ser razoável etc.

 Ilustremos a ideia com o exemplo do casamento. Teóricos sociais empenhados em uma investigação sobre o que é o casamento, em um determinado cenário institucional, devem começar descrevendo a prática tal como ocorre em tal cenário. Suponha-se que estamos diante de um cenário em que a resposta institucionalmente aceita para a pergunta “O que é o casamento?” é a seguinte (ou resposta semelhante):

 

(1)   O casamento é a união legal ou formalmente reconhecida de um homem e uma mulher como parceiros em um relacionamento pessoal.

 

Se este for o caso, uma descrição da prática deve destacar as características que nos permitem avaliá-la como injusta e irrazoável, por exemplo. Afinal, é uma resposta que, dadas suas implicações institucionais, impede que casais do mesmo sexo[58] possam participar da instituição do casamento. Dada tal avaliação, parte do trabalho do teórico social é experimentar “[...] novas respostas ao mundo no lugar das velhas respostas que vieram a parecer problemáticas.” (HASLANGER, 2012, p. 29). O que seria uma resposta melhorada para a questão “O que é o casamento?”, uma resposta que satisfaça as condições (i)-(iii)? Certamente, (2) pode funcionar em muitos cenários:[59]

 

(2)   O casamento é a união legal ou formalmente reconhecida de duas pessoas como parceiras em um relacionamento pessoal.

 

Essa é uma resposta que contribui para práticas mais justas, inclusivas e razoáveis. Tal como quero entendê-la, neste artigo, diz respeito não ao conceito de casamento. Diz respeito a uma nova, e melhorada, forma de compreender um tipo de coisa no mundo, um tipo social ou categoria social, a instituição do casamento. De maneira semelhante, respostas melhoradas a uma pergunta sobre o que é uma categoria natural, como respostas melhoradas à pergunta “O que é a luz?”, entendida como sendo acerca da constituição física da luz, dizem respeito a uma nova forma de compreender um tipo de coisa no mundo, um tipo ou categoria natural. Contudo, há uma diferença importante entre esses dois casos. Por certo, que tenhamos chegado a uma resposta melhorada acerca do que é a luz, compreendida como sendo acerca de sua constituição física e, portanto, a uma melhor compreensão da categoria, não implica que o que a luz é tenha sido modificado. Simplesmente, melhor compreendemos a constituição física da luz; constituição essa que, evidentemente, não é alterada por nossas respostas.[60]

Já quando se trata de respostas melhoradas a perguntas da forma “O que é x?”, em que x captura uma categoria fortemente social, como o casamento, tais respostas podem alterar o que a categoria é. Afinal, o que categorias fortemente sociais são é, em grande parte, determinado por nossas atitudes em relação a tais categorias. Ao modificarmos nossas respostas acerca do que o casamento é, a própria categoria do casamento é modificada. Ou, para colocar o ponto de outra maneira, a própria instituição do casamento é modificada.[61]

Quando da discussão da engenharia conceitual, salientei a importância da implementação no mundo das alterações conceituais propostas. Naturalmente, o mesmo vale para o aprimoramento erotético. Tais projetos terão sucesso apenas se as novas respostas propostas para perguntas da forma “O que é x?”, em que x captura uma categoria fortemente social, vierem a ser dadas por indivíduos, no cenário ou contexto que for relevante. Ademais, parece claro que só devemos supor que houve uma alteração na categoria ela própria caso um número suficiente de indivíduos e, possivelmente, um número suficiente de indivíduos em posições institucionais estratégicas, venha a adotar tais respostas. Mas de que número estamos tratando? E quais seriam essas posições institucionais estratégias? Sem dúvida, tais perguntas não precisam, e não podem, ser respondidas aqui. Apenas a discussão detalhada de casos particulares de aprimoramento erotético pode relevar as condições para uma implementação exitosa de tais projetos. Em casos como o do casamento, uma instituição regida legalmente, somente a discussão detalhada de tal caso, em suas várias dimensões, pode revelar as condições para uma modificação exitosa da lei, em cenários nos quais essa modificação até o momento não ocorreu.

            Esta é uma caracterização inicial de como o aprimoramento erotético poderia ser aplicado a uma pergunta da forma “O que é x?”, em que x captura uma categoria fortemente social.[62] O aprimoramento erotético pode ser visto como decorrente de uma crítica social, no sentido de Haslanger. Por ora, discuti o aprimoramento erotético, em linhas bastante gerais, aplicado ao caso do casamento. Mas a lista de categorias fortemente sociais que precisam de respostas aprimoradas em relação ao que são pode ser longa.[63]

Na sequência, passemos a detalhamentos da posição. Deixe-me começar considerando um desafio que muitas vezes é levantado contra projetos de engenharia conceitual, um desafio que concerne à suposta dificuldade que esses projetos têm — uma vez postos em prática — de preservar o tópico em discussão, de sorte que não haja um desacordo verbal generalizado entre os usuários da língua. Chamarei a esse desafio de desafio da preservação de tópico.

 

4 O Desafio da Preservação de Tópico

Tal desafio é frequentemente introduzido por meio da apresentação de uma objeção levantada por Strawson (1963, p. 506) ao projeto de explicação de Carnap (1962):[64]

Oferecer explicações formais de termos-chave de teorias científicas para quem busca iluminação filosófica de conceitos essenciais do discurso não-científico, é fazer algo totalmente irrelevante—é um puro mal-entendido, como oferecer um livro de fisiologia a alguém que diz (com um suspiro) que gostaria de entender o funcionamento do coração humano...problemas filosóficos típicos sobre os conceitos usados ​​no discurso não-científico não podem ser resolvidos estabelecendo as regras de conceitos exatos e frutíferos na ciência. Fazer isso não é resolver o problema filosófico típico, mas sim mudar de assunto.

 

A preocupação de Strawson é legítima. Conforme posta aqui, a questão é que a substituição de conceitos que têm sido o foco do trabalho filosófico por outros mais cientificamente respeitáveis não resolve os problemas com os quais os filósofos se preocupavam originalmente. Temos, simplesmente, uma mudança do assunto. Uma forma de desenvolver o ponto destacado por Strawson é através da ideia de continuidade da investigação. Cappelen (2018, p.101-102) escreve:

Suponha que alguém tente melhorar o significado de 'crença' ou 'mulher' e, como resultado, mude a extensão da palavra. Agora, suponha que tentemos responder às perguntas que formulamos usando essas palavras pré-melhoramento usando as palavras com novas extensões, ou seja, respondemos com frases como “mulheres são ...” e “crença é ...”. A objeção é que as respostas que empregam termos com as novas extensões não respondem às perguntas originais. Essas respostas dizem respeito a algo novo—não ao que estávamos falando originalmente quando usamos as expressões “mulher” e “crença”. Temos a ilusão de uma resposta, mas é uma ilusão puramente verbal. Há uma falta de continuidade da investigação: as velhas perguntas não estão sendo respondidas. Estamos respondendo a novas perguntas.

 

Deixe-me ilustrar o ponto que Cappelen está levantando aqui, de modo tal que claramente represente um desafio a projetos de aprimoramento erotético. Considere-se mais uma vez a questão do que é o casamento. A preocupação é que uma resposta a essa questão, em termos de (2) — uma resposta aprimorada — pode ser tomada como não respondendo, de maneira alguma, à questão original. A ideia é que (2) dá ao termo “casamento” um novo significado. Se for assim, então a pergunta original — o que é o casamento? — não está, de forma alguma, sendo respondida, pois, na velha pergunta, “casamento” tem um significado pré-aprimoramento. Com efeito, (2) responde a uma pergunta diferente, que usa a palavra “casamento” com seu novo significado. Há, portanto, a ilusão de que a velha questão está sendo respondida, mas se trata de uma ilusão verbal, conforme colocado por Cappelen. E, dado que a velha questão não está sendo respondida, não há continuidade da investigação. A pergunta “O que é o casamento?”, feita uma vez que o aprimoramento erotético tenha sido posto em ação, na verdade introduz uma nova indagação e um novo tópico ou assunto em discussão.

As respostas ao desafio da preservação de tópico apelam, muitas vezes, à metassemântica, e procuram fornecer posições segundo as quais o conteúdo dos conceitos pode mudar — ou a intensão e extensão das palavras, no caso de Cappelen (2018) — sem que haja uma mudança de tópico, de modo a permitir a continuidade da investigação.[65] Não me engajarei com tais posições, neste texto. Gostaria, ao invés, de enfrentar o desafio em termos da pragmática de perguntas e respostas.

Nós fazemos perguntas — sejam ou não da forma “O que é x?” — com certos propósitos em mente. Esses propósitos são o objetivo da investigação do inquisidor. Se meu propósito, ao fazer certas perguntas a João, é saber o paradeiro de José, então, saber o paradeiro de José é o objetivo de minha investigação. Minha sugestão é que o objetivo da investigação nos permite identificar o tópico em discussão. Mais precisamente, o tópico em discussão deve ser identificado com o que as partes engajadas em uma conversação procuram saber — caso ambas estejam buscando conhecimento —, ou com o que uma das partes procura saber, com base no testemunho de outrem. Assim, no presente exemplo, o tópico em discussão entre mim e João é o paradeiro de José.[66]

Se assim for, temos, pois, uma clara maneira de entender a preservação de tópico: preservar um tópico em discussão é preservar o objetivo da investigação. Contudo, é importante notar  que os objetivos da investigação, como aqui entendidos, podem ser preservados em casos de aprimoramento erotético. Considere-se, novamente, o aprimoramento erotético aplicado ao caso do casamento. A resposta melhorada à pergunta “O que é o casamento?” — expressa por (2) — pode ser claramente apresentada, dada uma investigação que possui o mesmo objetivo que aquela na qual (1) é posta como uma resposta à pergunta em causa: ou seja, ambas as investigações podem ter como objetivo a obtenção de conhecimento sobre a natureza de uma categoria social, a categoria do casamento. Assim, ambas as investigações podem ter como tópico em discussão a natureza social do casamento. Da mesma forma, a resposta melhorada proposta por Haslanger à questão do que é a mulher pode ser explicitada a partir de uma investigação que tem o mesmo objetivo de uma na qual uma resposta pré-aprimoramento é fornecida: ambas as investigações podem ter como objetivo a obtenção de conhecimento acerca do que a mulher é. Logo, ambas as investigações podem ter como tema em discussão o que a mulher é.

Mas isso ainda não nos livra completamente do problema da preservação de tópico. Por vezes, as partes envolvidas em discussões veem a si próprias como compartilhando um objetivo de investigação — e, por conseguinte, como discutindo o mesmo tópico — quando, na verdade, não o estão fazendo. Isso certamente pode também ocorrer quando o aprimoramento erotético é posto em prática. Deixe-me ilustrar a ideia, tendo em vista a definição aprimorada de Haslanger (2000, p. 44) para o conceito de raça:

Um grupo é racializado se e somente se seus membros são socialmente posicionados como subordinados ou privilegiados em alguma dimensão (econômica, política, legal, social, etc.), e o grupo é “marcado” como alvo para este tratamento por características corporais observadas ou imaginadas presumidas como sendo evidência de vínculos ancestrais com uma determinada região geográfica.

 

Agora, imagine-se que, após ler o trabalho de Haslanger, Liana esteja convencida de que essa é a maneira certa de se pensar sobre raças. Ela discute a questão com Marcela, cuja investigação visa a descobrir o que raças são, se biologicamente entendidas, e somente assim entendidas. Marcela imediatamente rejeita a posição fornecida por Haslanger. Mas imagine que, ao fazê-lo, ela ignore o objetivo da investigação de Liana, a qual é descobrir o que raças são se socialmente entendidas, e somente assim entendidas. Apesar das aparências em contrário — pois, se perguntadas sobre o que estão falando, Liana e Marcela diriam que estão falando sobre o que raças são — as investigações de Liana e Marcela possuem objetivos distintos. Portanto, não há um único tópico em discussão. Ou seja, em outras palavras, a conversa aqui sofre de uma descontinuidade de tópico.

Como podemos evitar que disputas de tal tipo ocorram, depois que o aprimoramento erotético for posto em prática? Certamente, há uma tentação neste ponto de introduzir conceitos em nosso arcabouço teórico — poder-se-ia dizer, por exemplo, que é preciso garantir que o aprimoramento erotético preserve o conteúdo dos conceitos. Mas aqui resistirei a essa tentação, pois não precisamos bloquear a possibilidade de que o aprimoramento erotético leve à descontinuidade de tópico. Afinal, a descontinuidade de tópico é um fenômeno comum na linguagem. Se mudarmos um pouco o caso envolvendo a conversa entre mim e João, podemos dar um exemplo cotidiano de descontinuidade de tópico, um caso que não envolve aprimoramento erotético. Posso perguntar a João onde José está, tendo como objetivo descobrir sua localização na cidade de São Paulo. João pode responder que não tem certeza, mas que acha que, ou bem José está em São Paulo, ou bem José está em Salvador, e que tentará descobrir exatamente onde ele está. Naturalmente, João e eu diferimos em nossos objetivos de investigação. O objetivo da investigação de João é descobrir em que cidade está José. Mas isso eu já sei: José está em São Paulo. Meu objetivo é descobrir onde ele está na cidade em que está — São Paulo. Portanto, não há um único tópico em discussão. Ainda assim, tanto eu quanto João podemos erroneamente pensar que nossa conversa tem um único tópico, embora essa confusão tenha vida curta.

Mal-entendidos como esse são muito comuns, e não há necessidade de evitar que aconteçam. O que precisamos são maneiras de identificar e dissipar mal-entendidos — tenham esses origem na descontinuidade de tópico, ou não. Nos campos da engenharia conceitual e da metafilosofia, maneiras de identificar e dissipar mal-entendidos relacionados ao significado linguístico já foram discutidos. Chalmers (2011), por exemplo, apresenta um método para identificar mal-entendidos dessa natureza — disputas verbais —, que podem surgir quando as partes tentam responder a perguntas da forma “O que é x?”.[67] Ele chama tal método de “gambito da subscrição” (subscript gambit), e o explica da seguinte forma:

Suponha que duas partes estejam discutindo sobre a resposta para “O que é X?”. Um diz 'X é tal e tal', enquanto a outra diz 'X é assim e assado'. Para aplicar o gambito da subscrição, barramos o termo X e introduzimos dois novos termos, X1 e X2, que são estipulados como equivalentes aos dois lados direitos. Podemos então perguntar: as partes têm desacordos não-verbais envolvendo X1 e X2, de uma categoria tal que a resolução desses desacordos resolverá, pelo menos parcialmente, a disputa original? Se sim, então a disputa original não é verbal e a divergência residual pode servir como o foco de uma disputa esclarecida. Se não, isso sugere que a disputa original foi verbal [...] (CHALMERS, 2011, p. 532).

 

O gambito da subscrição de Chalmers é, certamente, um bom método para identificar disputas verbais que surgem, quando as partes envolvidas respondem a perguntas da forma “O que é x?” e, possivelmente sem sabê-lo, atribuem significados diferentes ao termo x. Assim, conforme ilustrado pelo próprio Chalmers, uma disputa filosófica sobre como responder a uma pergunta como “O que é liberdade?” pode ser simplesmente verbal. Suponha-se que uma parte diz que "liberdade é tal e tal", enquanto a outra parte diz que "liberdade é assim e assado”. Será verbal a disputa entre as partes? Isso pode ser descoberto pelo uso do gambito da subscrição. Proibimos o termo “liberdade” e, em vez disso, usamos os termos “liberdade1” e “liberdade2”. Esses termos são estipulados de sorte a tomarem como seus significados os dois lados direitos das respostas anteriormente dadas à questão em causa. Em seguida, avaliamos se as partes têm desacordos não verbais envolvendo liberdade1 e liberdade2. Em caso afirmativo, a disputa original era não verbal, e está agora esclarecida. Em caso negativo, isso sugere que a disputa era verbal desde o início.

Neste ponto, tendo em mente o aprimoramento erotético, o que sugiro é que mal-entendidos podem surgir em um estágio anterior, quando, ao fazer perguntas da forma “O que é x?”, as partes envolvidas na conversação — que pode ou não ser uma disputa — possuem objetivos diferentes de investigação. Contudo, como podemos identificar esses diferentes objetivos? Uma maneira de fazê-lo é propor, simplesmente, que, por terem diferentes objetivos de investigação, as partes podem ser consideradas como tendo diferentes questões em mente. Essas questões podem, por conseguinte, ser trazidas à tona e distinguidas, de modo a deixar claro que os objetivos da investigação de fato diferem. Obviamente, podemos assim proceder não apenas no que tange a perguntas da forma “O que é x?” — que são o foco do aprimoramento erotético —, mas no que concerne a perguntas em geral. Veja-se, por exemplo, o caso acima, no qual João e eu estamos interessados ​​em descobrir onde José está, mas em que temos distintas questões em mente. (Q1) abaixo captura o que eu tenho em mente, quando questiono sobre o paradeiro de José, e (Q2) captura o que João tem em mente:

 

(Q1) Onde está José, na cidade de São Paulo?

(Q2) Em que cidade está José, São Paulo ou Salvador?

 

Uma vez que distingamos as questões dessa maneira, torna-se claro que as partes têm objetivos diferentes em suas investigações e que, de fato, não há um único tópico em discussão. Caso acreditássemos que estávamos falando sobre a mesma coisa — no sentido de haver um único tópico em discussão —, João e eu estaríamos envolvidos em um mal-entendido linguístico, um mal-entendido que poderia ser remediado a partir da distinção feita em (Q1) e (Q2).

Vejamos como a ideia pode ser aplicada, em um caso de aprimoramento erotético. No caso apresentado acima, Liana e Marcela estão envolvidas em uma disputa sobre o que raças são. Liana está convencida de que a definição do conceito de raça fornecida por Haslanger é correta. Marcela nega tal definição. Contudo, embora ambas estejam interessadas em descobrir o que raças são, o objetivo de Liana é descobrir o que raças são, se entendidas socialmente, e somente assim entendidas, enquanto o objetivo de Marcela é descobrir o que raças são, se biologicamente entendidas, e somente assim entendidas. Logo, Liana e Marcela podem ser consideradas como tendo diferentes questões em mente, a saber:

 

(Q3) O que são raças, socialmente falando?

(Q4) O que são raças, biologicamente falando?

 

Novamente, uma vez distinguidas as questões dessa maneira, fica evidente que Liana e Marcela possuem objetivos diferentes, em suas investigações, e que não há um único tópico em discussão. Por acreditarem que estavam falando sobre a mesma coisa, elas estiveram envolvidas em um mal-entendido. A proposta aqui é que esse mal-entendido pode ser remediado, se fizermos a distinção entre (Q3) e (Q4), abrindo caminho para uma disputa mais frutífera. Sem dúvida, Marcela pode não ser convencida pela definição de Haslanger, mesmo que agora compartilhe o objetivo de Liana de descobrir o que raças são, se socialmente compreendidas, e Liana pode pensar que (Q4) não é uma boa pergunta, pois ela pode pensar que há não tal coisa como raças, em um sentido biológico.[68] Seja como for, a disputa entre elas não mais será baseada em um mal-entendido.

Devemos, portanto, concluir que, embora haja um risco de descontinuidade de tópico, à medida que o aprimoramento erotético é colocado em prática — um risco que, de fato, está presente, dada qualquer interação linguística, pois as partes envolvidas na interação podem ter diferentes objetivos de investigação —, o importante é que existam maneiras de identificar tais descontinuidades, caso ocorram. Aqui, fiz uma sugestão de uma maneira de fazê-lo, com base em questões distintas que os sujeitos podem ter em mente. Outras maneiras podem estar disponíveis. Minimizar as consequências da descontinuidade de tópico, identificando-a, caso aconteça, é necessário para que possamos aplicar o aprimoramento erotético com sucesso.

 

5 O Quadro Austero de Cappelen

Os leitores familiarizados com a literatura sobre engenharia conceitual terão notado que o aprimoramento erotético está, até certo ponto, de acordo com o Quadro Austero (Austerity Framework), posição defendida por Cappelen (2018), na medida em que ambas as posições discutem questões de aprimoramento, sem introduzir conceitos em seu arcabouço teórico. Ademais, como salientado acima (nota 18), ambas as posições estão de acordo com a ideia de que melhoramentos direcionados a categorias podem alterar o que as categorias elas próprias são, ao menos em certos casos, ou no que tange a certas categorias. Nesta última seção, compararei brevemente as duas visões, enfatizando que o aprimoramento erotético não sofre de um resultado indesejável da visão de Cappelen, a saber, que a perspectiva de projetos de aprimoramento ou melhoria serem implementados com sucesso não é das melhores.

Conforme o Quadro Austero de Cappelen, a melhoria (ou engenharia) opera no significado das expressões linguísticas; mais especificamente, opera nas intensões e extensões das expressões linguísticas (CAPPELEN, 2018, p.61). Assim, enquanto alguns consideram que a  engenharia, tal como concebida nessa área, trata da avaliação e melhoria de conceitos, Cappelen a toma como se referindo, fundamentalmente, à avaliação e à alteração, caso necessário, da intensão e extensão de uma expressão linguística, tal como “casamento”.

O Quadro Austero adota uma visão sobre intensões e extensões de expressões que é amplamente aceita. As intensões são compreendidas em termos de uma função de circunstâncias de avaliação (mundo, ou pares mundo/tempo) para extensões, em que as últimas são entendidas em termos das coisas no mundo que a expressão seleciona em cada circunstância. Além disso, Cappelen adota o externismo semântico enquanto metassemântica — enquanto uma teoria que explica por que as expressões linguísticas têm os significados que têm. Desse modo, as intensões e extensões de expressões linguísticas são consideradas como parcialmente determinadas por aspectos do ambiente externo, sendo que, como colocado por Cappelen (2018, p. 63), “[...] os elementos relevantes do ambiente externo incluem especialistas na comunidade, a história de uso retornando até à introdução de um termo, padrões complexos de uso ao longo tempo, e como o mundo é (independentemente de como os falantes acreditem que o mundo é).”

Se assim for, como a melhoria deve ser posta em ação? Bem, o externismo semântico certamente permite mudanças no que diz respeito à intensão e extensão de uma expressão. Mudanças desse tipo podem ocorrer de diferentes maneiras. Por exemplo, especialistas podem começar a usar um termo T em seu campo de atuação, de uma maneira diferente, e isso pode levar a uma mudança na intensão e extensão de T. Mas, para Cappelen, isso é certamente uma simplificação, pois os mecanismos subjacentes à mudança no significado de uma expressão são, de fato, “[...] muito complexos, confusos, não-sistemáticos, amorfos e instáveis para serem completamente apreendidos ou compreendidos.” (CAPPELEN, 2018, p.72). O problema não é apenas epistêmico, porque temos pouco controle sobre os mecanismos aqui em causa. Mesmo que fossem devidamente compreendidos, isso não significaria que seríamos capazes de controlar o processo de mudança de significado. No entanto, nada disso significa, é claro, que não possamos tentar mudar e melhorar as intensões e extensões das expressões linguísticas. Para Cappelen, devemos, sim, continuar tentando. Se esses projetos terão sucesso, contudo, é algo que não pode ser previsto.

Conforme realçado por Nado (2020, p.7), as implicações do Quadro Austero “[...] para a nossa capacidade de realmente fazer engenharia são, com certeza, deprimentes.” Afinal, os mecanismos de mudança de significado são amplamente desconhecidos, de sorte que não há muito a se fazer para interferir positivamente neles. Isso não significa, evidentemente, que a visão seja um fracasso. Significa apenas que tem um resultado indesejável — pelo menos para aqueles que esperam construir uma sociedade mais justa, com a ajuda (não importa quão pequena) da engenharia conceitual.

Já o aprimoramento erotético possui uma perspectiva menos pessimista, quando se trata do sucesso de seus projetos. Lembre-se de que o aprimoramento erotético concerne à avaliação e eventual busca por melhoria de nossas respostas a questões da forma “O que é x?”. Os mecanismos subjacentes a melhorias desse tipo são muito menos misteriosos do que os envolvidos na mudança da intensão e extensão das expressões linguísticas, dado o externismo semântico. Estamos dispostos a dar certas respostas a perguntas da forma “O que é x?”.  Contudo, talvez essas respostas não funcionem mais; talvez não mais sejam boas respostas (ou talvez jamais o tenham sido). Ao colocar o aprimoramento erotético em ação, melhores respostas são propostas, as quais possam combater a injustiça social, por exemplo. Em seguida, temos a fase de implementação. Essas respostas melhoradas são apresentadas de modo a serem fornecidas em contextos de conversação no mundo real.

Evidentemente, se estaremos dispostos a dar essas respostas nos contextos em que se propõe que sejam dadas não é uma questão simples. Todavia, os mecanismos em jogo aqui não são semânticos, mas sim epistêmicos/psicológicos, e não são particularmente misteriosos. Mudar as respostas que as pessoas estão dispostas a dar a certas perguntas requer, no caso típico, convencê-las de que as presentes respostas não mais são boas, ou mesmo que jamais o tenham sido. Sem dúvida, as pessoas podem se recusar a alterar o rumo de suas respostas. Podem, por exemplo, não estar convencidas, devido à ideologia ou preconceito. Ou, então, podem mesmo ser convencidas de que deveriam alterar suas respostas, estar dispostas a fazê-lo, mas, de fato, não chegarem a tal ponto, dado que as velhas respostas ainda são dominantes em sua comunidade, e que novas respostas não são bem-vindas. Todas essas questões são interessantes — e imensamente importantes — e precisam ser discutidas tanto na literatura especializada quanto em fóruns públicos. Porém, novamente, os mecanismos em jogo aqui não são particularmente misteriosos. O que leva as pessoas a alterarem suas respostas a perguntas da forma "O que é x?", ou a deixar de fazê-lo, pode estar ao alcance de nossa compreensão.[69]

Ao contrário do Quadro Austero, isso significa que, de fato, sabemos como colocar o aprimoramento erotético em prática: devemos operar em pelo menos alguns dos mecanismos conhecidos, por estarem subjacentes às disposições das pessoas para darem certas respostas. Dado que o convencimento é um importante fator para provocar mudanças nessas disposições, convencer as pessoas de que as respostas propostas pelo aprimoramento erotético são, de fato, melhores do que as anteriores é uma parte importante do estágio de implementação de tais projetos. Certamente, não temos completo controle sobre o resultado final dessas tentativas. No entanto, podemos prever que as propostas segundo as quais as pessoas devem mudar suas respostas em relação a uma pergunta da forma “O que é x?” podem ser de mais fácil implementação, em certos contextos do que em outros. Assim, pode ser mais fácil levar as pessoas a alterarem suas respostas a uma pergunta como “O que é raça?” em certos contextos institucionais e políticos, por exemplo, do que em contextos cotidianos. Isso não significa, porém, que uma mudança mais abrangente esteja fora do alcance.

Deixe-me considerar uma última objeção. Ao mudar as nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?”, não estamos mudando o significado dos termos, sua intensão e extensão? Por exemplo, ao propor (2) como a melhor resposta à questão do que é o casamento, e supondo que a proposta seja aceita por um número suficientemente grande de pessoas, não estamos mudando o significado do termo “casamento”? Permanecendo o mais neutro possível em questões acerca do significado de expressões linguísticas, podemos dizer que o aprimoramento erotético, se bem-sucedido, pode de fato levar a uma mudança no significado de certas expressões — no presente exemplo, a extensão de “casamento” certamente mudaria. Mas isso não quer dizer que o aprimoramento deva ser entendido como operando em significados de expressões. A mudança nos significados das expressões pode ser uma consequência do aprimoramento erotético. Como sugerido por Cappelen, dado o externismo semântico, há uma série de fatores em ação na produção da mudança de significados. A mudança de nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?” pode ser considerada como sendo um desses fatores.

 

Considerações Finais

Neste artigo, apresentei a posição a que chamo de aprimoramento erotético, segundo a qual devemos buscar avaliar e, eventualmente, aprimorar nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?”, em que x captura uma categoria fortemente social. Argumentei que a posição tem sucesso em lidar com o desafio da preservação de tópico — que, compreensivelmente, preocupa pessoas engajadas em projetos de engenharia conceitual —, e que possui vantagens em relação ao Quadro Austero de Cappelen (2018), uma posição com a qual compartilha uma rejeição de um aparato teórico que faça apelo a conceitos. Naturalmente, ainda há muito a ser dito. Não discuti o aprimoramento erotético, quando aplicado a perguntas e respostas que dizem respeito a categorias não sociais, por exemplo. E mesmo para categorias fortemente sociais, que foram o foco deste artigo, o trabalho mais árduo está em identificar, para casos específicos de perguntas da forma “O que é x?”, quais são as melhores respostas a serem dadas, e como podem ser implementadas de maneira exitosa. Esse trabalho é, em grande parte, uma crítica social, no sentido de Haslanger, e exige a cuidadosa consideração e avaliação de práticas relacionadas à categoria que estiver em jogo.[70]

 

For Old Questions, New and Better Answers: From Conceptual Engineering to Erotetic Amelioration

Abstract: In this paper, I present a position that I call erotetic amelioration, according to which we must evaluate and, eventually, improve our answers to questions of the form “What is x?”. My focus will be on cases where x stands for a strongly social kind, such as marriage. Such a position is offered as an alternative to the ideasometimes called conceptual engineering—according to which we should evaluate and, eventually, seek to improve our concepts. After introducing the idea of erotetic amelioration, I will show how it can be put into work to deal with what I call the topic preservation challenge, and what advantages it has in relation to a similar position available in the literature, namely, Cappelen’s (2018) Austerity Framework.

Keywords: Erotetic amelioration. Conceptual engineering. Concepts. Projects of amelioration.

 

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Recebido: 22/08/2022

Aceito: 16/01/2023


Comentário a “Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético”

 

Felipe G. A. Moreira[71]

 

Referência do artigo comentado: ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023.

 

Como abordar questões da forma “O que é x?”, e.g., “O que é o casamento”? Violência “sutil” pseudo-não dogmática é como pode ser chamada a ação de x de lidar com disputas, feito essa, como se x não tivesse nenhum outro.[72] Um outro de x, pressuponhamos, é uma pessoa que tem uma visão diferente e uma sensibilidade radicalmente distinta da de x acerca de uma disputa. Isso ocorre, por exemplo, quando esse outro desafia o logos de x, ao rejeitar, ignorar, violar ou interpretar diferentemente os pressupostos ou os critérios de x para lidar com uma disputa. Eu sou menos simpático do que André J. Abath (2023) em relação à bibliografia da assim chamada “engenharia conceitual” que ele considera, no seu artigo. A razão é que eu tendo a achar que os autores – sobretudo, anglo-americanos – que constituem essa bibliografia recorrentemente expressam a violência “sutil” pseudo-não dogmática, ao abordar disputas.

Consideremos uma das representantes dessa bibliografia, Sally Haslanger, uma autora em relação à qual Abath não exatamente tem uma motivação conflitual, mas apenas aquela de “fazer justiça” ao que ele acredita serem “alguns de seus importantes insights” (ABATH, 2023, p. 111).[73] “Para começo de conversa”, Haslanger (2000a, p.108, tradução nossa) explicitamente disse uma vez: “[...] eu devo deixar claro que a minha discussão vai focar exclusivamente na metafísica anglo-americana e no feminismo anglo-americano.” Esse foco restrito também é o de Abath (2023) e o de praticamente todos os trabalhos de Haslanger.

Imaginemos, então, um outro de Haslanger: Hasloutro, uma pessoa de qualquer gênero, sexo, cor de pele ou inclinação sexual que não nasceu e presentemente não estuda ou trabalha nas universidades de países como os EUA, a Inglaterra, a Austrália, a Nova Zelândia e o Canadá, onde a metafísica e o feminismo anglo-americano têm sido articulados. Suponhamos que Hasloutro tem outras trezes características, C-1 a C-13:

C-1: Hasloutro considera a presença do mencionado foco restrito uma indicação de que Haslanger expressa a violência “sutil” pseudo-não dogmática.

C-2: Hasloutro acha relevante enfatizar que não começou no nosso século, mas, ao menos, há mais de 2500 anos, atrás a disputa sobre como abordar questões da forma “O que é x?”.

C-3: Hasloutro sabe que como Gilles Deleuze (1962, p. 86-88) indica já os sofistas apontavam para a tese que Abath (2023, p. 104) considera característica da “engenharia conceitual”; a tese de que devemos perguntar se certos conceitos, como o de “casamento”, são “ferramentas eficazes para cumprir metas importantes” (ABATH, 2023, p. 104).[74]

C-4: Hasloutro crê que aqueles que não enfatizam esse ponto correm o risco de fazer a posição de Haslanger parecer mais nova do que ela realmente é.

C-5: Hasloutro não acha interessante dizer que “[...] uma das nossas metas é — ou pelo menos deveria ser — a promoção da justiça social” (ABATH, 2023, p. 104), porque falar assim é excessivamente impreciso, quando não se determina explicitamente quem seria a referência desse nós implícito que teria tais metas.

C-6: Hasloutro sabe que uma plausível referência desse nós são aqueles que estudam ou trabalham nas nomeadas universidades e/ou os que, de modo mais ou menos direto, se beneficiam do que pode ser chamado de imperialismo de vanguarda.

C-7: Hasloutro entende que esse imperialismo, promovido pelos EUA, com a ajuda dos demais nomeados países, é caracterizado tanto por intervenções militares (e.g., a guerra do Afeganistão), quanto por intervenções mais “sutis”, tipo a de financiar golpes de Estado, como os que ocorreram no Brasil, em 1964 e, provavelmente, em 2016. O que faz esse imperialismo ser de vanguarda, Hasloutro crê, é o fato de que alguns de seus líderes promoveram o uso de toda sorte de violência não “sutil” e, ainda assim, se descreverem como defensores de “minorias”.

C-8: Hasloutro acha importante enfatizar que esse parece ser o caso do atual presidente dos EUA, Joe Biden. No dia 4 de maio de 2012, ele concedeu uma entrevista para o programa da NBC, “Meet the Press”, quando ele problematizou uma resposta tradicional e sugeriu uma resposta alternativa para a questão, “O que é o casamento?” A resposta tradicional é que o casamento é “[...] a união legal ou formalmente reconhecida de um homem e uma mulher como parceiros em um relacionamento interpessoal.” (ABATH, 2023, p. 106). A resposta alternativa é que “[...] o casamento é a união legal ou formalmente reconhecida de duas pessoas como parceiras em um relacionamento pessoal.” (ABATH, 2023, p. 118).[75]

C-9: Hasloutro é antipático à resposta tradicional e simpático à resposta alternativa, mas crê que, para que uma defesa persuasiva dessa última seja feita, é preciso reconhecer o seguinte: embora a rejeição da resposta tradicional e a aceitação da resposta alternativa possam beneficiar certas pessoas (e.g., a nomeada plausível referência do nomeado nós), não é claro como essa atitude seria pertinente em relação a outras pessoas. Tipo: as do Afeganistão ou mesmo certas pessoas do Brasil que se engajam em práticas sexuais não majoritárias e não estão interessadas em “casamento”, mas em não sofrer violência.[76]

C-10: Hasloutro concorda com Abath quando esse diz que existem “sociedades (reais ou possíveis)”, onde a resposta alternativa falha “em promover justiça social”. Mas Hasloutro acredita que sociedades reais são conflituais, no sentido que, para todo x tal que x é um membro dessa sociedade, existe um y tal que y é um outro de x.

C-11: Hasloutro, então, não acredita que “progresso” filosófico possa ser medido em termos de criação de consenso (ABATH, 2023). Mais: Hasloutro não acha interessante a sugestão de que, ao pensar o casamento, não como um conceito, mas como uma “categoria fortemente social”, alguma espécie de consenso possa ser atingido (ABATH, 2023). Isso, diz Hasloutro, é improvável. Também é improvável que o consenso seja atingido acerca do “aprimoramento erotético” (ABATH, 2023). Logo, Hasloutro não acha interessante a sugestão de que essa visão traria consenso, ao satisfazer dois critérios que não poderão ser debatidos em detalhe, aqui: poder de lidar com o desafio da “preservação de tópico” e vantagem em relação ao “Quadro Austero” de Herman Cappelen (2018), outro filósofo que possui o mencionado foco restrito (ABATH, 2023).

C-12: Hasloutro concede que as sugestões acima podem até apelar para o nomeado nós.

C-13: Hasloutro, porém, não faz parte da referência desse nós e gostaria que sua existência fosse reconhecida por esses autores da “engenharia conceitual”, cujos trabalhos, Hasloutro está convencido, expressam a violência “sutil” pseudo-não dogmática.

Não tenho muita fé que o apelo de Hasloutro será ouvido por autores como Haslanger ou Cappelen. Afinal, tendo a crer que as obras desses autores estão alicerçadas na violência “sutil” de não reconhecer a existência desse tipo de pessoa. Na verdade, tendo mesmo a achar que muita dessa bibliografia da “engenharia conceitual” ecoa “sutilmente” os discursos dos líderes do imperialismo de vanguarda, esses que sugerem que as formas de vida dos mencionados países são um parâmetro que todas as outras pessoas devem procurar satisfazer e que as que assim não o fazem são “homofóbicas”, “sexistas” etc.

Mas eu tenho, no entanto, outra fé: a de que, ao reconhecer a existência de Hasloutro, André J. Abath se coloque uma motivação mais explicitamente conflitual em relação a Haslanger, no futuro. Caso ele esteja disposto a assim o fazer, penso que ele poderia articular uma perspectiva mais interessante em relação à disputa que abre esse texto: como abordar questões da forma “O que é x?”, e.g., “O que é o casamento”?

 

Referências

ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023.

BUTTERMAN, S. Queering and Querying the Paradise of Paradox: LGBT Language, New Media, and Visual Cultures in Modern-Day Brazil. Maryland: The Rowman & Littlefield Publishing Group, 2021.

CAPPELEN, H. Fixing language: An essay on conceptual engineering. New York: Oxford University Press, 2018.

DELEUZE, G. Nietzsche et la Philosophie. Paris: Presses Universitaires de France, 1962.

HASLANGER, S. Feminism in Metaphysics: Negotiating the Natural. In: MIRANDA, F.; HORNSBY, J. (ed.). The Cambridge Companion to Feminism in Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2000a. p. 107-126.

Moreira, F. G. A. The Politics of Metaphysics. Cham: Palgrave MacMillan, 2022a.

Moreira, F. G. A. To be or not to be ‘Subtly’ Philosophically Colonized. Kriterion: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, n. 151, p. 121-142, abr. 2022b.

 

Recebido: 12/02/2023

Aprovado: 20/02/2023


 

Comentário a “Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético”: de conceitos a perguntas, de perguntas a conceitos[77]

 

Cesar Schirmer dos Santos[78]

 

Referência do artigo comentado: ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023.

 

Em “Para Velhas Perguntas, Novas e Melhores Respostas: da Engenharia Conceitual ao Aprimoramento Erotético”, André J. Abath propõe que devemos melhorar nossas respostas a questões do tipo “O que é um F?” Com tal proposta, Abath busca “[i]ntroduzir uma nova proposta no campo de pesquisa da ética conceitual.” A ética conceitual, enquanto campo de pesquisa, diz respeito às maneiras de os filósofos irem além da mera exposição daquilo que Goldman (1989) chama de ontologia folk, rumo a maneiras de avaliar e melhorar nossas representações do mundo e de nós mesmos – aquilo que Goldman denomina metafísica prescritiva, um campo de pesquisa que tem florescido nos últimos anos (THOMASSON, 2020). Nas propostas usuais desse campo de pesquisa, os objetos a serem aprimorados são nossos dispositivos representacionais, sejam estes tomados por conceitos ou por palavras. Na proposta de Abath, são nossas respostas a perguntas do tipo o-que-é.

Abath focaliza o campo de pesquisa da ética conceitual, o qual envolve a avaliação dos nossos dispositivos representacionais (as palavras e os conceitos), mas também a intervenção, quando esses dispositivos não se adequam a nossos objetivos (coletivos e individuais) legítimos. Essa apresentação é valiosa, pois introduz os novatos ao tema, e está em conformidade com a compreensão-padrão e correta das pesquisas sobre ética conceitual e engenharia conceitual.

Abath motiva sua proposta de focar na melhoria de respostas a perguntas do tipo o-que-é no fato de que não há consenso, entre os pesquisadores da área da ética conceitual, sobre o que são conceitos. São abstracta? São significados? Representações mentais? Palavras? Essa falta de consenso é uma ameaça à área de pesquisa da avaliação e melhoria de dispositivos representacionais (a ética conceitual), pois não deixa claro o que é para ser melhorado.

Proponho, aqui, algumas questões:

 

  Sobre a metafísica dos conceitos. Sem dúvida, há divergências nítidas e notáveis sobre a natureza dos conceitos. No entanto, é de se admitir que divergências sobre a metafísica dos conceitos não têm impedido os pesquisadores do campo da ética conceitual de ter conversas substantivas uns com os outros. Isso indica, creio, que a área de pesquisa da avaliação e melhoria de dispositivos representacionais lida bem com o pluralismo sobre a natureza dos conceitos.

  Mudança de assunto? Além disso, poderia se objetar que trocar conceitos por respostas a perguntas do tipo o-que-é piora a situação, pois não diminui a babel em torno do conceito de conceito, mas diminui o foco nos dispositivos representacionais, o que pode vir a ser um risco para a área. Não seria interessante endereçar essa objeção para não enfraquecer a motivação para a proposta?

  Uma questão verbal? Por fim, se a proposta de Abath está certa, então, a “ética conceitual” é misnamed, dado que não diz respeito a conceitos. Esta é uma dificuldade substantiva ou meramente verbal?

 

Outra questão é que o elemento reflexivo, ao se pensar sobre as respostas possíveis a perguntas do tipo o-que-é, naturalmente passa por conversas sobre conceitos. O próprio apelo de Abath à jogada da subscrição (CHALMERS, 2017) revela isso. Logo, considere-se o seguinte diálogo:

“Onde fica o banco?”

“Fica na praça.”

“Mas, peraí, o que você quer dizer com ‘banco’? De sentar ou de pagar boleto?”

 

No exemplo acima, a melhoria da resposta à pergunta “Onde fica o banco?” passa pela questão do conceito empregado. Não creio que a conversa acima seja atípica. Meu ponto é que o aprimoramento erotético é uma alternativa, no sentido não exclusivo, à avaliação e melhoria de conceitos.

Abath compara a facilidade de mudar significados à facilidade de mudar respostas. Sem dúvida alguma, é mais claro o que é mudar (e melhorar) uma resposta do que mudar (e melhorar!) um conceito. Por um lado, não é claro como se faria para mudar o significado (extensão ou intensão) de um conceito, pois mecanismos semânticos são complexos. Por outro lado, é relativamente fácil detectar quando uma resposta deixa de responder a uma pergunta, quiçá porque mecanismos epistêmicos e psicológicos são mais fáceis de entender e manipular do que mecanismos semânticos. Este é, sem dúvida, um ponto a favor do aprimoramento erotético. Contudo, não se poderia usar melhores respostas para aprimorar conceitos? Pense-se no caso das baleias:

 

A pergunta. O que é uma baleia?

A melhor resposta. Uma baleia é um mamífero.

 

Essa resposta melhora o conceito de baleia. 

De qualquer forma, o foco no jogo do perguntar e do responder é o elemento mais original e mais frutífero da proposta de Abath. Abath se propõe resgatar o projeto clássico de investigar o que as coisas são. Este é um projeto de Sócrates, o qual não cansava de pedir que as pessoas que têm posições firmes sobre algum F (a justiça, a virtude etc.) explicitassem o que elas entendiam sobre F. Esse projeto, que para Sócrates se limitava às coisas da moral, foi estendido por Platão para tudo, inclusive o ser. Não é claro, no entanto, de que tipo de projeto se trata. Qual o foco do aprimoramento erotético? Creio que é possível focar:

 

      Em questões metafísicas, como “O que é um F?”

      Em questões ontológicas, como “Como os Fs são conceitualizados na ontologia da população S?” (metafísica descritiva), ou “Como deveríamos conceitualizar os Fs (as baleias, por exemplo), à luz da biologia?” (metafísica prescritiva, como diria Goldman) 

      Em questões cognitivas, como “Como a população S conceitua os Fs?”

      Em questões epistêmicas, como “Como um indivíduo da população S pode vir a saber o que é um F?”

 

No livro, Abath explora, antes de tudo, a via epistêmica. Abath (2022, p. 3) afirma que saber o que um tipo de coisa é saber responder (habilmente, legitimamente) à questão “O que é um F?” O foco no epistêmico tem sua razão de ser na importância de saber o que as coisas são. Nossa geração viu de perto as consequências de se ignorar o que é a COVID – e o quanto a negação do pouco que se sabia foi mortal. Este é um caso extremo, mas, mesmo para interagir bem com um gato, você tem que saber o que é um gato (ABATH, 2022, p. 1).

No livro, Abath defende que a proposta do aprimoramento erotético só funciona para os conceitos sociais não disputados, pois não é claro o que é conhecer um ente social, tal como o casamento, não é saber responder à pergunta “O que é o casamento?” apenas dizendo “Casamento é…” (ABATH, 2022, p. 77).  Aqui se revela o ponto fraco da proposta do aprimoramento erotético. Eis minha crítica:

 

Por se apoiar no conhecimento (epistemologia), em vez de se apoiar no esquema conceitual que usamos para lidar com a realidade (ontologia), o aprimoramento não dá conta de uma parte significativa das perguntas do tipo o-que-é. 

 

Aqui se mostra mais aguda a proposta de Thomasson (2020), o qual propõe que se faça metafísica prescritiva sobre os aspectos da realidade que nos interessam, incluindo os aspectos sociais. Nessa proposta, o importante é avaliar se nossos conceitos estão de acordo com nossos interesses legítimos. A partir daí, avaliam-se as respostas às perguntas do tipo o-que-é.

Minha crítica, aqui, é que restringir a aplicação do esquema explicativo do aprimoramento erotético a espécies naturais é ad hoc. Abath sustenta que, no caso de certos entes sociais, as respostas às perguntas do tipo o-que-é podem nos parecer muitíssimo erradas (ABATH, 2022, p. 98). No entanto, este é o caso também para espécies naturais. A tese de que um átomo pode ser partido pareceu totalmente errada a vários cientistas de primeira linha, assim como a tese de que baleias são mamíferos.

A proposta de aprimoramento erotético para respostas a perguntas do tipo o-que-é relacionadas a entes sociais parece desmotivada, portanto. Melhor seria seguir o caminho de Thomasson e de tantos que reconhecem que o trabalho do metafísico prescritivo se dá no envolvimento em negociações metalinguísticas.

 

Referências

ABATH, A. J. Knowing what things are: an inquiry-based approach. Cham: Springer, 2022.

ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103 - 134, 2023.

BELLERI, D. Ontological disputes and the phenomenon of metalinguistic negotiation: Charting the territory. Philosophy Compass, v. 15, n. 7, jul. 2020.

CHALMERS, D. J. Disputas verbais. Sképsis, v. 15, p. 57, 2017.

GOLDMAN, A. I. Metaphysics, Mind, and Mental Science. Philosophical Topics, v. 17, n. 1, p. 131-145, 1989.

THOMASSON, A. L. A pragmatic method for normative conceptual work. In: BURGESS, A.; CAPPELEN, H.; PLUNKETT, D. (ed.). Conceptual engineering and conceptual ethics. Oxford: Oxford University Press, 2020. p. 435-458.

 

Recebido: 19/04/2023

Aprovado: 22/04/2023


 

O disjuntivismo ecológico e o argumento causal[79]

 

Eros Moreira de Carvalho[80]

 

Resumo: Neste artigo, argumenta-se que a abordagem ecológica da percepção oferece recursos para desarmar o argumento causal contra o disjuntivismo. Segundo o argumento causal, como os estados cerebrais que proximamente antecedem a experiência perceptiva e a experiência alucinatória correspondente podem ser do mesmo tipo, não haveria, portanto, uma boa razão para rejeitar que a experiência perceptiva e a experiência alucinatória correspondente tenham fundamentalmente a mesma natureza. O disjuntivismo com respeito à natureza da experiência seria, assim, falso. Identificam-se três suposições que apoiam o argumento causal: a suposição da indistinguibilidade, a suposição da linearidade e a suposição da duplicação. De acordo com a abordagem ecológica da percepção, essas suposições não se sustentam, abrindo espaço para a defesa de uma versão ecológica do disjuntivismo. Episódios perceptivos se estendem ao longo do tempo e são supervenientes ao sistema organismo-ambiente. Eles também podem ser distinguidos dos “correspondentes” episódios de alucinação, por serem o resultado de um processo controlado de sintonização, ao passo que as alucinações são passivas e refratárias às atividades de exploração e sintonização. Por fim, o disjuntivismo ecológico, na medida em que é imune ao argumento causal, se mostra vantajoso em relação aos disjuntivismos negativo e positivo.

Palavras-chave: Disjuntivismo ecológico. Argumento causal. Indistinguibilidade. Retroalimentação dinâmica. Psicologia ecológica.

 

Introdução

O argumento causal é um argumento célebre a favor da concepção conjuntiva da percepção. Segundo essa concepção, episódios perceptivos e os correspondentes episódios de alucinação comungam fundamentalmente o mesmo tipo de experiência. O argumento causal justifica essa tese a partir de considerações sobre o processo causal que subjaz à produção desses episódios. Basicamente, se os eventos cerebrais que antecedem os episódios de percepção e de alucinação são do mesmo tipo, e há razões para pensar que poderiam ser, então, o episódio de percepção e o correspondente episódio de alucinação devem compartilhar um elemento psicológico comum. De causas similares, esperam-se efeitos similares. A suposição, normalmente aceita, de que esses episódios possam ser indistinguíveis reforça essa conclusão.

Na literatura, disjuntivistas resistem a essa conclusão. Disjuntivistas caracterizados como “positivos” sustentam que há espaço para introduzir um evento psicológico adicional, a consciência direta do objeto distal, para introduzir uma diferença fundamental entre episódios perceptivos e alucinatórios, ainda que indistinguíveis introspectivamente. Disjuntivistas caracterizados como “negativos” sustentam que a indistinguibilidade entre os episódios perceptivos e os correspondentes episódios de alucinação não deve ser explicada pela suposição de um elemento psicológico comum. A indistinguibilidade é um fenômeno epistêmico básico e não carece de explicação ulterior. Esse movimento abre espaço para tratar a alucinação negativamente, a partir da indistinguibilidade; na verdade, essa é a sua única característica: ela é introspectivamente indistinguível do episódio perceptivo correspondente. Ambas as respostas são instáveis, no entanto. Por um lado, tornamos a alucinação misteriosa, se a sua única característica é epistêmica; por outro, a consciência direta do objeto distal não parece ter um papel na explicação da fenomenologia do episódio perceptivo.

Para contornar essas dificuldades, proponho a formulação de uma posição disjuntivista que desarma o argumento causal. Chamo essa posição de disjuntivismo ecológico, pois ela se apoia na abordagem ecológica da percepção. Identifico três suposições subjacentes ao argumento causal e que são aceitas pelos disjuntivistas positivos e negativos: a suposição da indistinguibilidade, a suposição da linearidade e a suposição da duplicação. Argumento que não há razões para sustentar essas suposições, se adotamos a abordagem ecológica da percepção. Dessa maneira, o argumento causal é desarmado e a versão do disjuntivismo defendida se mostra mais fecunda que os disjuntivismos positivo e negativo.

Este artigo está estruturado da seguinte maneira. Na Seção 2, apresento o argumento causal e saliento as dificuldades que ele coloca para o disjuntivismo. Deixo claras também as suposições implícitas do argumento. Na Seção 3, discuto as reações do disjuntivismo positivo e negativo ao argumento causal. Essa discussão propicia também um contexto para a introdução do disjuntivismo ecológico. Na Seção 4, articulo o disjuntivismo ecológico e explico como ele distingue percepção de alucinação. Na Seção 5, retomo as suposições do argumento causal e argumento que, se a abordagem ecológica da percepção estiver correta, essas suposições não se sustentam. Concluo que o argumento causal não é uma ameaça para o disjuntivismo ecológico.

 

1 O argumento causal

As teorias conjuntivas da percepção afirmam que casos de percepção verídica e os correspondentes casos de alucinação envolvem fundamentalmente[81] um mesmo tipo de experiência, independentemente de como esse tipo de experiência venha a ser caracterizado, seja por um conteúdo intencional, no caso das teorias representacionalistas, seja por dados dos sentidos, no caso das teorias dos dados dos sentidos. Assim, ver a adaga de Macbeth e alucinar a adaga de Macbeth envolvem o mesmo tipo de experiência, o qual responde pelas qualidades fenomenológicas do episódio de visão e do episódio de alucinação, explicando, assim, por que esses episódios parecem indistinguíveis para o percebedor. A diferença entre um episódio de percepção e o seu correspondente episódio de alucinação é externa ou extrínseca ao tipo comum de experiência que constitui esses episódios. No episódio perceptivo, há um objeto externo com o qual o percebedor está relacionado causalmente, de modo apropriado, mas não no episódio alucinatório. Um argumento célebre para as teorias conjuntivas é o da alucinação[82]. Basicamente, argumenta-se primeiro que um caso de alucinação requer a introdução de um tipo de experiência cujas qualidades são dependentes apenas do sujeito, para explicar como é que algo aparece para um sujeito como sendo de uma determinada maneira. Em seguida, a partir da concessão de pares de casos de percepção e alucinação indistinguíveis, argumenta-se que a melhor explicação para a indistinguibilidade é que o caso de percepção envolve o mesmo tipo de experiência que constitui a alucinação. O argumento causal, o qual será o foco da nossa discussão, tem uma estrutura um pouco diferente. No lugar de uma inferência pela melhor explicação, ele busca tirar proveito da concepção linear de causação que parece ser assumida pela absoluta maioria das teorias da percepção. Ele tem a vantagem de parecer ser um argumento perfeitamente compatível e até apoiado por teorias empíricas da percepção.O argumento causal[83] parte da consideração de que, em uma situação normal de percepção, digamos, a percepção do objeto O, o processo causal relevante para a ocorrência desse episódio perceptivo é o seguinte: o objeto distal O e as condições ambientais de fundo C impactam os nossos órgãos sensoriais, os quais, por sua vez, disparam uma série de eventos cerebrais, no caso da visão, eventos no córtex visual primário, eventos estes que se propagam até gerar o evento E proximal, que, por fim, causa a experiência perceptiva consciente do objeto O. Como se vê, o processo causal que começa com o objeto distal O e termina com a percepção do objeto O é linear. A próxima alegação é a de que a experiência alucinatória correspondente poderia ser produzida na ausência do objeto distal O, bastando produzir o evento proximal E, por meio de alguma intervenção direta sobre o cérebro do agente. Como as causas distais externas estão ausentes, nesse caso, é razoável afirmar também que o episódio alucinatório é superveniente ao evento proximal E. Assim, o evento E é suficiente para a produção do estado experiencial que constitui o episódio alucinatório. Como o evento E também é a causa proximal da percepção do objeto O, devemos concluir que, no episódio de percepção, o evento E é igualmente suficiente para a produção de um estado experiencial que constitui o episódio perceptivo e que em nada difere do estado experiencial que o estado E produz, na situação de alucinação. Desse modo, a percepção e a alucinação têm um estado experiencial fundamentalmente comum.

Para negar que haja esse estado experiencial comum, teríamos que sustentar que o estado E, de alguma maneira, rastreia os seus antecedentes causais, para produzir diferentes estados experienciais. Se, na cadeia causal, há o objeto distal O, então, o estado cerebral E produz um tipo de experiência. Se o objeto distal O está ausente, logo, o estado cerebral E produz um outro tipo de experiência. Mas isso significa que haveria uma espécie de ação à distância do objeto distal O sobre o estado E ou que E “olha para trás” e detecta os seus antecedentes causais (JOHNSTON, 2004, p. 116). Essas suposições são muito contraintuitivas para serem aceitáveis.

Contudo, mesmo que não se possa negar que haja um estado experiencial comum entre o episódio perceptivo e a alucinação correspondente, há espaço para rejeitar que esse estado comum seja fundamental para o episódio perceptivo, no sentido de constituí-lo por completo. Em um caso normal de percepção, o objeto distal O e as condições ambientais de fundo C podem causar não apenas o estado comum E, mas também um outro estado cerebral F, o qual, por sua vez, causa o estado psicológico de estar perceptivamente ciente do objeto O. Assim, o episódio perceptivo é constituído não só pelo estado experiencial que ele compartilha com a alucinação correspondente, mas também pela consciência perceptiva do objeto O, em que essa consciência é uma relação direta entre o percebedor e o objeto O. Essa qualificação é importante, para que se tenha uma posição que se afasta da concepção conjuntiva, já que, como vimos, esta última acomoda a diferença entre percepção e alucinação em termos de relações causais que são extrínsecas aos estados experienciais, os quais, fundamentalmente, constituem episódios de percepção e de alucinação.

O defensor da concepção conjuntiva, contudo, tem ainda uma carta na manga. Ele ou ela poderá argumentar que a possibilidade que acabamos de levantar é instável. Essa instabilidade pode ser apreciada, ao se considerar a seguinte pergunta: no caso do episódio perceptivo, o que explica a sua fenomenologia? Por um lado, se se supuser que a consciência perceptiva do objeto O responde preponderantemente pela fenomenologia do episódio perceptivo, então, o estado experiencial que o episódio perceptivo comunga com a alucinação correspondente terá um papel secundário ou nenhum papel, na explicação da fenomenologia do episódio perceptivo. Por conseguinte, também não será suficiente para explicar a fenomenologia do episódio alucinatório. O problema é que a alucinação não é constituída por outro estado psicológico além deste que ela comunga com o episódio perceptivo.

Desse modo, a fenomenologia da alucinação ficará sem explicação, o que é inusitado, uma vez que os episódios perceptivo e alucinatório são, como foi concedido, introspectivamente indistinguíveis. Por outro lado, se se supuser que o estado experiencial que o episódio perceptivo comunga com o episódio alucinatório é suficiente para explicar a fenomenologia da alucinação, logo, será forçoso reconhecer que ele tem um papel preponderante na explicação da fenomenologia do episódio perceptivo também, já que estes episódios são indistinguíveis. O problema, então, é que parecerá que a consciência perceptiva do objeto O desempenha um papel secundário ou nenhum papel, na explicação da fenomenologia do episódio perceptivo.

Em comparação com a concepção conjuntiva, a suposição desse estado psicológico extra no episódio perceptivo parecerá gratuita. Além disso, é estranho que a consciência do objeto O não venha ela mesma acompanhada de uma rica fenomenologia. Mas é o que se deve concluir, se todo ou quase todo o trabalho explicativo é realizado pelo estado experiencial que o episódio perceptivo comunga com o episódio alucinatório. Dessa maneira, o oponente da concepção conjuntiva ou tem uma motivação para introduzir a consciência perceptiva do objeto O, porém, não explica a fenomenologia da alucinação, ou explica a fenomenologia da alucinação, mas não tem justificativa para introduzir esse estado psicológico extra. Dialeticamente, parece que o defensor da concepção conjuntiva se encontra mais bem posicionado.

O argumento causal, como acabamos de ver, apoia-se em uma série de suposições que podem ser contestadas: (1) a causação subjacente ao episódio perceptivo é linear; (2) episódios perceptivos são supervenientes a estados cerebrais apenas — na nossa discussão, o episódio de visão é superveniente aos estados cerebrais E e F —, o que implica que os episódios perceptivos poderiam ser duplicados em diferentes ambientes, desde que as causas cerebrais internas permanecessem as mesmas, e (3) o episódio perceptivo e o correspondente episódio alucinatório são introspectivamente indistinguíveis. Chamo essas suposições respectivamente de “suposição da linearidade”, “suposição da duplicação” e “suposição da indistinguibilidade”. Irei questionar cada uma dessas suposições. Todavia, para ter uma base para esses questionamentos, eu vou antes apresentar algumas posições disjuntivistas e introduzir e situar o disjuntivismo ecológico.

 

2 Disjuntivismos

O disjuntivismo pode ser entendido como a negação da visão conjuntiva. Assim, ele nega que haja um estado experiencial fundamentalmente comum a um episódio de percepção e ao seu correspondente episódio de alucinação. Suponha-se que Macbeth esteja vendo uma adaga num certo momento e, em outro, esteja a alucinar uma adaga. Embora ambos os episódios possam ser descritos por uma frase como “é como se Macbeth estivesse vendo uma adaga adiante”, essa frase, para o disjuntivista, não captura um estado experiencial fundamentalmente comum e, portanto, ela deve ser lida disjuntivamente: ou Macbeth vê uma adaga adiante, ou Macbeth alucina como se houvesse uma adaga adiante. A estratégia de negar que episódios experienciais alegadamente indistinguíveis podem, no entanto, ser fundamentalmente distintos foi explicitamente introduzida por Hinton (1967), embora se possa dizer que foi preconizada implicitamente por Austin (1962, p. 52).

Há vários tipos de disjuntivismo. O que acabamos de mencionar abarca uma família de posições que pode ser qualificada como disjuntivismo metafísico ou experiencial (HADDOCK; MACPHERSON, 2008, p. 2-4; PRITCHARD, 2012, p. 23). Essa família de posições deve ser distinguida de uma outra, que é normalmente rotulada de “disjuntivismo epistemológico”. Nesse caso, a visão conjuntiva que serve de contraste é a que afirma que o episódio de percepção e o correspondente episódio de alucinação oferecem para o agente a mesma evidência experiencial. Assim, a evidência disponível a um sujeito encubado e cujas experiências são manipuladas para serem indistinguíveis das que ele teria se não estivesse encubado é exatamente a mesma que ele teria se não estivesse encubado. O disjuntivismo epistemológico nega que a evidência disponível seja a mesma em ambos os casos (MCDOWELL, 1983, p. 475-476; PRITCHARD, 2012, p. 15). O suporte epistêmico que o sujeito tem na situação em que está encubado é pior do que na situação em que ele não está encubado. Consequentemente, as suas crenças empíricas não estão igualmente justificadas em ambas as situações. Embora o disjuntivismo epistemológico possa se apoiar no disjuntivismo metafísico, ele não depende deste último e pode ser defendido de modo independente. Neste artigo, estou interessado no disjuntivismo metafísico ou experiencial.

O disjuntivismo experiencial, como já dito, compreende uma família de posições. Vou destacar duas que podem ser encaradas como diferentes reações ao argumento causal: o disjuntivismo positivo e o disjuntivismo negativo. O primeiro parte da consideração de que duas coisas qualitativamente idênticas possam ser, no entanto, genericamente distintas. Um limão e um pedaço de sabão podem parecer qualitativamente idênticos, ainda que sejam genericamente distintos (AUSTIN, 1962, p. 50). Ao aplicar essa ideia ao episódio perceptivo e ao correspondente episódio alucinatório, temos o seguinte: embora sejam qualitativamente idênticos, o que explica a fenomenologia de um episódio não é o que explica a fenomenologia do outro. A fenomenologia do episódio de ilusão pode ser explicada por uma relação direta com dados dos sentidos ou por características intrínsecas do veículo representacional, conforme se defenda uma visão relacional ou representacional da experiência, enquanto a fenomenologia do episódio perceptivo é explicada pela relação direta com objetos externos. Esse disjuntivismo é caracterizado como positivo, pois oferece uma explicação positiva da fenomenologia do episódio de alucinação.

Entretanto, como já vimos, o argumento causal coloca um problema genuíno para essa posição na medida em que o estado cerebral proximal E, o qual antecede tanto o episódio de percepção quanto o seu correspondente episódio de alucinação, torna implausível a ideia de que dois estados psicológicos genericamente distintos resultem do mesmo tipo de estado cerebral. A comparação com o caso do limão e o pedaço de sabão é inadequada, pois eles têm estruturas internas muito distintas, ainda que possam ter aparências semelhantes ou, em certas condições, até mesmo idênticas. Porém, é de se esperar que duas coisas com estruturas internas idênticas tenham a mesma aparência, todo o resto permanecendo o mesmo. De causas similares, esperam-se efeitos similares. Assim, o argumento causal força o reconhecimento de um efeito psicológico comum que constitui, pelo menos em parte, tanto o episódio de percepção quanto o correspondente episódio de alucinação. Por conseguinte, a afirmação de que a fenomenologia do episódio verídico é explicada por uma suposta relação direta com objetos externos fica comprometida.

O disjuntivismo negativo tenta se esquivar dessa consequência do argumento causal, negando que a indistinguibilidade entre o episódio perceptivo e o correspondente episódio de alucinação deva ser explicada pela posse de uma propriedade comum. Como Michael Martin (2008, p. 91) argumenta, o princípio de que “[...] se duas experiências perceptivas são indistinguíveis para o sujeito delas, então as duas experiências têm o mesmo caráter consciente” não é mandatório e que podemos obter um tipo de disjuntivismo pela negação desse princípio. A ideia central é que alucinações não têm uma caracterização positiva. Elas são negativamente caracterizadas como um tipo de experiência que é indistinguível da sua correspondente experiência verídica. Assim, a única afirmação substantiva que podemos fazer acerca de uma alucinação é que o sujeito que a tem é incapaz de discriminá-la da sua correspondente experiência verídica. Além disso, a propriedade epistêmica da indistinguibilidade é o que explica a fenomenologia da alucinação. Martin, dessa maneira, inverte a ordem explicativa habitual: em vez de dizer que um episódio de alucinação e o correspondente episódio verídico são indistinguíveis, porque têm a mesma fenomenologia, ele afirma que o episódio de alucinação tem a mesma fenomenologia do episódio verídico, porque é indistinguível deste último.

O episódio verídico, por sua vez, tem a fenomenologia que tem em virtude dos objetos com os quais ele nos coloca em contato. Por fim, o fato de a alucinação ser indistinguível do correspondente episódio verídico deve ser tomado como um fato epistemológico bruto, o qual não carece de explicação ulterior (MARTIN, 2004, p. 72). Esse passo atenua a pressão pelo reconhecimento de um evento psicológico comum em virtude apenas do estado cerebral comum E, afinal, a não ser que se adote uma teoria da identidade tipo-tipo, diferentes estados psicológicos podem estar associados a uma mesma base neuronal. Contudo, a posição como um todo é sensível à acusação de que é misterioso como a propriedade epistemológica de ser incapaz de distinguir a alucinação do correspondente episódio verídico explica a fenomenologia da alucinação.

Como já havia anunciado, o disjuntivismo anda em um campo minado: ou, como no caso do disjuntivismo negativo, ele tem uma motivação para introduzir a consciência perceptiva do objeto O, mas não explica a fenomenologia da alucinação, ou, como no caso do disjuntivismo positivo, ele explica a fenomenologia da alucinação, todavia, não tem justificativa para introduzir esse estado psicológico extra. Para evitar essa funesta disjunção, é preciso que o disjuntivismo seja erguido sobre uma base bem diferente.

 

3 O disjuntivismo ecológico

O disjuntivismo ecológico, tal como eu o articulei (CARVALHO, 2021), recebe esse nome por se apoiar na abordagem ecológica da percepção. Embora James Gibson não tenha se envolvido diretamente com as querelas filosóficas em torno do realismo ingênuo e do disjuntivismo[84], ele claramente desenvolveu uma abordagem da percepção com muitas afinidades com essas posições. A tese de que percebemos affordances diretamente ao capturar informação ambiental é muito difundida, e Gibson foi bastante explícito sobre o seu realismo (GIBSON, 1967). Eu irei ainda mais longe e vou sustentar que a abordagem de Gibson oferece as bases científicas para uma versão do disjuntivismo que é imune ao argumento causal. Na passagem seguinte, nota-se o aceno para algo que pode ser muito bem incorporado em uma versão do disjuntivismo:Há consciência direta ou imediata de objetos ou eventos quando os sistemas perceptivos ressoam para capturar informação e pode haver um tipo de consciência direta ou imediata de estados psicológicos dos nossos órgãos dos sentidos quando os nervos sensórios estão excitados. Mas estes dois tipos de experiência não podem ser confundidos, pois eles estão em polos opostos, objetivo e subjetivo. Apenas a primeira deve ser chamada experiência perceptiva. (GIBSON, 1967, p. 168).

 

Gibson não está apenas a fazer a distinção nominal entre experiência perceptiva e alucinação, o que é trivial e aceito por todos; ele está sobretudo afirmando que essas experiências têm naturezas distintas e que os tipos de consciência que as constituem também são diferentes. Na sua visão, não há um elemento fundamentalmente comum entre percepções e alucinações. Para entender melhor por que a psicologia ecológica é oportuna para a articulação de uma versão do disjuntivismo, precisamos introduzir as suas principais ideias.

Segundo Chemero, a psicologia ecológica pode ser articulada em torno de três princípios: (1) a percepção é ativa e direta; (2) a percepção é para guiar a ação e (3) a percepção é de affordances (CHEMERO, 2009, p. 98). O primeiro princípio deixa bem clara a oposição da abordagem ecológica em relação às teorias que Gibson chamou de teorias instantâneas da percepção (2015, xiii). Essas teorias supõem que o estímulo para a percepção é pobre, proximal e pontual. Por conseguinte, para obter a percepção de um objeto no espaço tridimensional, esse estímulo precisa ser enriquecido pela mediação de representações, inferências e possivelmente conhecimento de fundo. Também se supõe que esse processamento ocorre de modo automático. A abordagem ecológica rejeita essas suposições. Para os psicólogos ecológicos, há rica informação ecológica no ambiente. Esse tipo de informação é constituído por padrões de energia no espaço e/ou no tempo que estão correlacionados nomicamente com as suas fontes distais. O organismo percebe, ao se sintonizar e capturar ativamente essa informação. Como a informação se encontra espalhada no espaço e no tempo, o organismo precisa mover os olhos, a cabeça ou o corpo para capturá-la.

Além disso, informação sobre o próprio organismo e a sua relação com o ambiente só se torna disponível pela sua locomoção no ambiente. Assim, a percepção é ativa, porque o organismo procura ativamente informação ecológica no ambiente. A metáfora mais adequada para compreender o processo perceptivo é a do rádio (GIBSON, 1968, p. 269-271). O organismo se sintoniza à informação ecológica, ao modular o seu fluxo de estimulação ao padrão de energia que constitui essa informação. Esse processo dispensa representações e inferências e, por isso, a percepção é também direta. O organismo fica diretamente consciente de objetos ou eventos distais, ao se sintonizar e capturar a informação ambiental que especifica unicamente estes objetos ou eventos.[85]O segundo princípio, em conformidade com a teoria da seleção natural, avança a hipótese de que os sistemas perceptivos foram selecionados pela sua utilidade em guiar a ação. Por fim, o terceiro princípio da abordagem ecológica afirma que percebemos affordances ou possibilidades de ações. Como a função da percepção é guiar a ação, é desejável que percebamos diretamente o que podemos fazer com as coisas, em vez de propriedades categoriais dos objetos, tais como cor e forma. Por exemplo, não percebemos uma maçã ou um tomate maduros primeiramente como tendo a propriedade de ser vermelho e depois raciocinamos que ele é comestível. Já os percebemos diretamente como comestíveis. Caso contrário, precisaríamos ainda de um passo intermediário que transformasse a percepção de propriedades categoriais em algo que sirva para guiar a ação. A hipótese de Gibson é que percebemos primeira e diretamente possibilidades de ações (GIBSON, 2015, p. 126).

A percepção é, assim, uma atividade dinâmica e contínua, por meio da qual o organismo “[...] mantém contato com o mundo.” (GIBSON, 2015, p. 228). Ela ocorre ao longo do tempo, incessantemente, e envolve atividades exploratórias e ajustes dos órgãos sensoriais. A percepção não busca representar o mundo, mas nos manter sintonizados a ele, para cumprir a sua função de guiar a ação. Por meio de movimentos, o agente controla o fluxo sensorial, de sorte que ele ressoe a informação ambiental que especifica as affordances do ambiente. Segundo essa concepção de percepção, o ato de perceber não é algo que ocorre entre o estímulo e a ação, como é suposto pelas concepções lineares, mas resulta de um processo dinâmico de sintonização entre o organismo e o ambiente. Os estados de um organismo sintonizado ao seu ambiente exibem um grau elevado de simetria aos estados do seu ambiente, pois o organismo controla o seu fluxo sensorial para que ele ressoe a estrutura da informação ambiental.[86] Pela mesma razão, o ato de perceber não é superveniente aos estados cerebrais apenas: ele é, antes, um evento do sistema organismo-ambiente como um todo, concernente à sintonização do organismo ao seu ambiente. Quando o organismo é bem-sucedido nessa tarefa de sintonização, diz-se que ele capturou a informação ambiental.Nessa perspectiva, percepção e alucinação são episódios fundamentalmente distintos, segundo a abordagem ecológica. Um episódio de percepção envolve o ambiente, ele é um ato de captura de informação ambiental, ao passo que um episódio de alucinação, embora seja acompanhado de sensações, não envolve a captura de informação ambiental. O disjuntivismo ecológico funda-se sobre essa diferença. O próprio Gibson, em linha com essa diferença fundamental entre episódios perceptivos e episódios não perceptivos, a alucinação aí englobada, afirma que os episódios não perceptivos devem ser explicados por princípios próprios, diferentes daqueles que são empregados para explicar a percepção: “[...] uma teoria da percepção deve certamente permitir o erro perceptivo, mas ela dificilmente pode ser ao mesmo tempo uma teoria do erro perceptivo.” (GIBSON, 1968, p. 287). O erro perceptivo ocorre justamente quando o organismo não captura informação ambiental, e isto pode se dar ou porque a informação disponível é inadequada, ou porque o organismo falha em capturar a informação adequada.[87] Em qualquer caso, temos um episódio que não pode ser caracterizado pela consciência de algo que é especificado por informação ambiental, nem que resultou de um processo de sintonização entre organismo e ambiente, que permite a captura de informação ambiental. A natureza desse episódio é, portanto, diferente da natureza do episódio perceptivo.

 

4 Desarmando o argumento causal

Eu disse que o argumento causal faz uma série de suposições que podem ser questionadas. Com base no disjuntivismo ecológico, vou questionar agora cada uma dessas suposições.

 

5 A suposição da indistinguibilidade

A maioria dos disjuntivistas concedem a possibilidade da indistinguibilidade. Como vimos, tanto o disjuntivismo negativo quanto o positivo fazem essa concessão e se enredam em dificuldades. Por causa dela, o disjuntivismo positivo não consegue explicar como a consciência do objeto contribui para a fenomenologia da experiência perceptiva, tornando aquela dispensável, e o disjuntivismo negativo se vê forçado a dar uma caracterização puramente epistemológica da alucinação, tornando esta misteriosa. Ambos teriam mais espaço de manobra, se rejeitassem a suposição da indistinguibilidade. Normalmente, essa suposição é defendida com base na afirmação de que ela é muito barata, pois se requer apenas que se conceda que a alucinação indistinguível a um episódio perceptivo seja possível, não que ela de fato ocorra.

No entanto, precisamos distinguir a possibilidade conceitual ou metafísica da natural. A primeira é normalmente constrangida apenas pela ausência de contradição, de modo que as leis físicas, biológicas e psicológicas conhecidas não colocam uma limitação para o que se pode conceber como possível. De fato, se entendemos a possibilidade, nesses termos, parece difícil negar que, para qualquer experiência perceptiva, possamos conceber uma experiência alucinatória que é indistinguível da primeira. Nenhuma contradição parece estar envolvida na concepção dessa possibilidade. Porém, se temos no horizonte a possibilidade natural, isto é, aquela que é constrangida pelas leis naturais que prevalecem no nosso mundo atual, então, não é tão claro que a concessão de indistinguibilidade seja tão barata. Na verdade, pode muito bem ser o caso que ela não seja viável em função das leis psicológicas, biológicas e fisiológicas que regem o funcionamento do nosso sistema perceptivo. Ao trabalhar com a possibilidade natural, temos de ter em mente que podemos nos enganar mais facilmente ao julgar o que é possível ou não, pois o nosso conhecimento de quais leis naturais prevalecem no nosso mundo atual é passível de revisão. De toda forma, neste texto, eu me comprometo com a possibilidade natural, não com a conceitual ou metafísica. Como o argumento causal normalmente é apresentado em contextos não céticos, exigindo do interlocutor o comprometimento com a coerência com a ciência, parece-me razoável que o que esteja em discussão seja a possibilidade natural.

O disjuntivismo ecológico, ao se basear na psicologia ecológica, abre espaço para a recusa da indistinguibilidade. Como vimos, episódios de percepção e episódios de alucinação têm naturezas distintas. Teoricamente, são distinguíveis. Claro que a questão é se são distinguíveis na perspectiva da primeira pessoa, não na perspectiva da terceira pessoa. Antes de avançar nesse ponto, gostaria de fazer um comentário sobre a possível acusação de que cometo petição de princípio, ao rejeitar a indistinguibilidade com base na psicologia ecológica, já que não vou e não me cabe sustentar empiricamente a cogência desse programa de pesquisa. Sim, estou supondo a psicologia ecológica e refletindo quão longe podemos ir com o disjuntivismo a partir dela. Se cometo petição de princípio, eu o faço tanto quanto os demais disjuntivistas, positivos ou negativos, os quais supõem concepções lineares da percepção.[88] Como não estamos em terreno cético, essas suposições são inofensivas, embora obviamente eu não espere convencer o meu interlocutor da verdade da psicologia ecológica, apenas que uma versão interessante do disjuntivismo pode ser erguida com base nela.Quando avaliamos se uma experiência alucinatória é indistinguível da experiência perceptiva correspondente, temos de levar em consideração toda a informação disponível ao agente. A respeito do bastão que parece torto, quando imerso na água, Austin enfaticamente salienta que, se se negligencia a água, a mudança de um meio para outro etc., o bastão imerso na água parecerá indistinguível de um bastão realmente torto (AUSTIN, 1962, p. 42), mas não há qualquer razão para o percebedor negligenciar esses aspectos, que estão inclusive presentes em sua experiência.

Na perspectiva ecológica, os recursos disponíveis ao sujeito são ainda mais ricos e amplos que na concepção passiva e linear da percepção. Supõe-se um agente que move os olhos, a cabeça e o corpo, na busca de informação ambiental. Normalmente, a percepção ocorre ao longo do tempo, pois depende das atividades exploratórias do agente ou porque a própria informação ambiental está espalhada temporalmente, como tipicamente é o caso da informação sobre eventos. A informação sobre o tamanho de um objeto em relação ao terreno, por exemplo, é capturada aproximando-se ou afastando-se do objeto (GIBSON, 2015, p. 154). Trivialmente, muitas alucinações que seriam indistinguíveis das suas correspondentes experiências perceptivas para sujeitos imóveis não o serão para sujeitos que se locomovem e podem explorar o seu ambiente. Pelo movimento, trarão à tona diferenças que não estavam salientes e que poderão distinguir uma experiência perceptiva de uma alucinatória. Conforme salienta Gibson, “[...] pode-se enganar um olho imóvel, mas não um sistema visual ativo.” (GIBSON, 1970, p. 427).

Pode-se argumentar que essas considerações são insuficientes para bloquear a possibilidade natural de alucinações indistinguíveis. O defensor da concepção linear não precisa defender que a percepção tem de ser instantânea. Os módulos perceptivos podem muito bem receber uma série de estímulos proximais, ao longo de um intervalo de tempo, antes de processar uma percepção resultante. O processo não deixaria de ser linear por isso. E a consideração central do defensor da concepção linear continuaria a mesma: a causa proximal que antecede a percepção resultante poderia ser simulada por intervenção direta sobre o sistema perceptivo, produzindo uma alucinação indistinguível da percepção que teríamos, em condições normais.

Além disso, ainda que em situações normais possamos distinguir uma experiência como perceptiva ou verossímil, em função da sua coerência com uma série de experiências sucessivas, nada impede que essa série de experiências seja obtida por uma série de intervenções diretas sobre o sistema perceptivo. Assim, embora pareça à primeira vista que eu possa perceber um celeiro real ao me locomover lateralmente a ele, para detectar que não se trata de uma fachada de celeiro, a alucinação indistinguível de um celeiro poderia ser produzida ao longo do tempo por uma sequência de intervenções diretas sobre o sistema perceptivo. Se a locomoção e o movimento significam apenas se submeter a mais estímulos, não é claro que a concepção linear da percepção não possa acomodá-los e manter aberta a possibilidade da indistinguibilidade natural.

 

6 A suposição da linearidade

Para contornar essa dificuldade, temos de deixar mais claro como a psicologia ecológica deixa de lado a suposição da linearidade. A concepção linear, recordemos, é a de que a percepção resulta de uma entrada sensorial e, sozinha ou em conjunto com operações cognitivas adicionais, pode ser a causa de saídas motoras. Se, no entanto, aceitamos que a saída motora retroalimenta o sistema perceptivo, não apenas porque ela indiretamente afeta os estímulos que chegam do ambiente, mas principalmente porque ela traz informação motora que poderá compor em conjunto com as entradas sensoriais informação relevante para o sistema perceptivo, então, a suposição da linearidade foi abandonada. A causalidade por trás da percepção assim entendida dinamicamente é circular. A saída motora é tanto efeito quanto causa da percepção (HURLEY, 2002, p. 419). A concepção ecológica da percepção é francamente dinâmica. Isso fica ainda mais explícito na discussão de Gibson sobre o critério para distinguir percepções de alucinações.

De acordo com Gibson, as experiências que são insensíveis à locomoção ou ao movimento dos olhos não são perceptivas, pois, nesses casos, não estamos diante de algo que pode ser explorado, focado, determinado mais precisamente etc. É o caso, por exemplo, das imagens residuais: para onde quer que olhemos, elas permanecem na mesma região do nosso campo visual, de sorte que não conseguimos nos aproximar ou nos afastar delas, nem focar ou ampliar os seus detalhes. Simplesmente não há, nesse caso, informação ambiental para ser explorada, e as saídas motoras não retroalimentam a percepção, não tendo qualquer efeito sobre a experiência da imagem residual. Essas considerações apontam para um bom critério para distinguir experiências perceptivas de experiências não perceptivas:

Sempre que o ajuste dos órgãos perceptivos produz uma mudança correspondente na estimulação, há uma fonte externa de estimulação e o agente está percebendo. Sempre que o ajuste dos órgãos perceptivos não produz nenhuma mudança correspondente na estimulação, não há uma fonte externa de estimulação e o agente está imaginando, sonhando ou alucinando. (GIBSON, 1970, p. 426).

 

Note-se que a afirmação de Gibson não é que o ajuste dos órgãos perceptivos tenha algum impacto na estimulação. Isso a concepção linear pode acomodar, já que qualquer ajuste dos órgãos perceptivos implicará que o agente assume uma nova perspectiva em relação ao ambiente e, portanto, receberá estímulos diferentes. A sua afirmação é que os ajustes produzem mudanças correspondentes na estimulação, que as variações serão equivalentes. As variações podem inclusive ser revertidas, se os ajustes ou movimentos são revertidos (1970, p. 426). Essa variação concomitante ou não é de grande importância. A variação motora junto com a variação da entrada visual, ou de outra modalidade, fornece a informação de complexidade elevada de que a variação da entrada visual se deve à variação motora, e não, por exemplo, a mudanças no ambiente.

Essa informação é vital, por exemplo, para distinguir um objeto que se move em direção do agente do movimento do agente em direção ao objeto, bem como para a percepção da localização dos objetos no espaço egocêntrico. Nesse sentido, a retroalimentação motora pode constituir em parte a percepção de um objeto se movendo ou a percepção de onde se encontra um objeto. A retroalimentação não precisa ser apenas motora e de índole proprioceptiva – ela pode ser e, em muitos casos, ela é visual, isto é, a visão dos próprios movimentos retroalimenta o sistema perceptivo (GIBSON, 2015, p. 173), e relações complexas entre ela e outras entradas podem constituir novas percepções. Em virtude dessa retroalimentação dinâmica entre diversos sistemas perceptivos e proprioceptivos, Gibson (2015, p. 133) assevera que perceber o mundo envolve perceber a si mesmo.

Se voltarmos ao caso do celeiro, podemos ver agora que há uma diferença, discriminável pelo agente, entre perceber um celeiro enquanto se se locomove ao redor de um e simplesmente receber uma sucessão de estímulos visuais que poderiam dar a impressão de um celeiro que se move. No primeiro caso, temos um fluxo de estimulação que é controlado pelo agente, enquanto ele se sintoniza à informação ambiental, um processo, o qual, como acabamos de explicar, envolve a retroalimentação motora e/ou visual. Ademais, o celeiro pode ser explorado de diferentes maneiras pelo agente, gerando alterações correspondentes no fluxo de estimulação. No segundo caso, temos um fluxo de estimulação passivo, não controlado e, por conseguinte, na melhor das hipóteses, uma imagem mental de um celeiro que não responde aos movimentos do agente. A experiência perceptiva e a experiência alucinatória “correspondente” podem ser similares em vários aspectos, entretanto, além de terem naturezas distintas, elas são perfeitamente distinguíveis.

A contrapartida fenomenológica da retroalimentação dinâmica e da causalidade circular que esta última implica, como já mencionado quando falamos do processo de sintonização para a captura de informação ecológica, é que o ato perceptivo não é instantâneo, ele não se limita ao instante presente mas ocorre ao longo do tempo. Na verdade, a percepção é um ato contínuo (GIBSON, 2015, p. 229), uma atividade incessante para a manutenção do contato do organismo com o mundo. Isto é ainda mais saliente na percepção de eventos, em diferentes escalas temporais, como a percepção de um objeto saindo do campo de visão, das folhas de uma árvore caindo ou até mesmo da mudança do clima no planeta Terra (WITHAGEN, 2022, p. 37). Em todos esses casos, o organismo controladamente se sintoniza à informação ecológica que está espalhada no tempo, e se abre perceptivamente ao passado. Contrariamente ao que é suposto pela concepção linear, a percepção não está confinada a um instante (GIBSON, 2015, p. 300), ela pode se estender retrospectiva e prospectivamente. A sensação normalmente cessa quando a estimulação cessa, mas a percepção não se interrompe por isso (2015, p. 242), pois ela é a detecção de padrões ou invariantes ao longo do tempo através de um processo de sintonização que envolve ciclos de ação e estimulação, isto é, contínuo ajuste dos órgãos sensoriais e exploração do ambiente. Percepção envolve uma causalidade circular, ela não é o efeito instantâneo de estimulações ou de sensações instantâneas.

Por fim, a rejeição da suposição da linearidade torna mais difícil a defesa da tese de que a percepção é superveniente a processos cerebrais apenas, uma vez que saídas motoras e visuais podem constituir novos episódios perceptivos. Os ciclos de percepção-ação envolvem o corpo e o ambiente do agente. Como a psicologia ecológica procura deixar claro, um episódio perceptivo, na medida em que resulta de um processo ativo e dinâmico de sintonização do agente à informação ambiental — informação que, em muitos casos, só emerge através da locomoção e da retroalimentação motora —, não é um evento do cérebro apenas, mas do sistema organismo-ambiente.

 

7 A suposição da duplicação

Se supomos que a percepção é um processo de sintonização entre organismo e ambiente em que o primeiro controla o fluxo de estimulação para capturar informação ambiental, então, organismo e ambiente estão acoplados e, como já mencionado, há uma simetria entre os estados físicos do organismo e do ambiente. Em outras palavras, organismo e ambiente não são separáveis, sem drásticas consequências para os estados físicos internos do organismo. Segundo enfatiza Costall (1984, p. 113), Gibson esforçou-se para negar “[...] a ideia de que o organismo pode ser tomado como se ele pudesse existir fora de qualquer tipo de coordenação com um ambiente.” Se alterarmos o ambiente, alteramos os estados físicos do organismo e, por conseguinte, os estados perceptivos que, na abordagem ecológica, são supervenientes ao sistema organismo-ambiente.

A concepção linear, contudo, dá suporte à suposição de que os estados físicos internos do organismo poderiam ser os mesmos, embora em ambientes bem distintos, bastando manter as causas proximais as mesmas. Susan Hurley chama essa suposição de “suposição da duplicação” (HURLEY, 2002, p. 294). Trata-se de uma suposição comum nos debates entre externistas e internistas acerca do conteúdo mental. Nos experimentos de pensamento envolvendo Terras Gêmeas, somos convidados a imaginar um mundo que, na aparência, é idêntico ou muito semelhante ao nosso, contudo, que possui alguma substância, como o equivalente deles para a água, cuja estrutura física ou química mais profunda é diferente da estrutura da substância correspondente no nosso mundo.

Supõe-se ainda que um humano na Terra e o seu doppelgänger nesse mundo imaginário têm os mesmos estados físicos internos. A disputa é sobre se as diferenças ambientais importam para a fixação do conteúdo dos estados mentais desses indivíduos. Internistas sustentam que não, enquanto externistas sustentam que sim. Curiosamente, conjuntivistas e disjuntivistas, tanto negativos quanto positivos, na medida em que aceitam a suposição da indistinguibilidade e a da linearidade, parecem acatar também algo muito próximo da suposição da duplicação: desde que as causas proximais sejam as mesmas, os estados físicos internos do percebedor serão os mesmos. A disputa é sobre se as diferenças ambientais — a presença e a ausência do objeto distal O, em diferentes situações — importam constitutivamente para a natureza do estado experiencial do percebedor. Conjuntivistas sustentam que não e disjuntivistas (não ecológicos) sustentam que sim. O disjuntivista ecológico rejeita a suposição da duplicação e, portanto, rejeita a questão colocada nesses termos, embora concorde com os disjuntivistas não ecológicos em que a percepção envolve o mundo. A rejeição da suposição da duplicação é um caminho alternativo para negar a concepção da mente como interna (HURLEY, 2002, p. 297).

A suposição da duplicação até parece trivial, quando consideramos um percebedor parado, recebendo estímulos num instante particular. Mas já vimos que o percebedor típico, segundo a psicologia ecológica, é um que se move e cujo sistema perceptivo é equipado com retroalimentação dinâmica. Segundo Susan Hurley, a retroalimentação dinâmica coloca um desafio difícil para a suposição da duplicação, o que já era de se esperar, visto que ela ataca também a suposição da linearidade. Hurley nos convida a imaginar em detalhes alguns casos de inversão, para explicitar as dificuldades de duplicação que normalmente são ignoradas em muitos experimentos de pensamento do tipo Terra Gêmea. Uma inversão mais simples seria o caso da Terra Invertida Verde-Vermelho, onde tudo que é verde na Terra é vermelho na Terra Invertida e vice-versa (HURLEY, 2002, p. 299).

Além disso, os habitantes da Terra Invertida chamam as coisas verdes de “vermelhas” e as coisas vermelhas de “verdes”. Imaginemos agora a Maria e a Maria Invertida e que elas interagem normalmente com os seus ambientes, em uma série de atividades cotidianas. O caso de “agentes” estáticos não nos interessa. Poderão Maria e Maria Invertida ter os mesmos estados físicos internos? Certamente que não. Quando Maria estiver olhando para algo vermelho na Terra, Maria Invertida estará olhando para algo verde na Terra Invertida. Ondas eletromagnéticas de diferentes comprimentos atingirão as retinas de Maria e Maria Invertida e, por conta disso, elas terão estados físicos internos distintos. Contudo, nesse caso, não é difícil conceber um dispositivo para viabilizar a duplicação. Maria Invertida poderia ser equipada com lentes que revertem a luz verde para a vermelha e vice-versa. Desde que se suponha que os estados físicos da lente não façam parte dos estados internos da Maria Invertida, os estados físicos internos de Maria e Maria Invertida podem ser duplicados, ao longo de suas interações com os seus respectivos ambientes.

Outros mundos invertidos geram dificuldades maiores, como é o caso da Terra Invertida Esquerda-Direita (HURLEY, 2002, p. 302). Para diferenciá-lo do caso anterior, chamemos esse mundo de “Terra Espelho”. Imagine-se que tudo que está à esquerda de Maria está à direita da Maria Espelho e vice-versa. O que precisaríamos fazer para tornar a duplicação possível? Certamente, Maria Espelho precisaria usar lentes que revertem raios luminosos que vêm da esquerda, para que alcancem a sua retina, como se viessem da direita e vice-versa. Todavia, isso só vai funcionar enquanto Maria e Maria Espelho estiverem com os olhos fixos e não se moverem. Imagine-se que haja uma bola à esquerda de Maria e que ela mova a sua mão para a esquerda, na direção da bola. Como a bola na Terra Espelho está à direita de Maria Espelho, ela vai mover a sua mão esquerda para uma direção onde não há bola alguma. Além disso, devido às lentes inversoras, ela verá a sua mão esquerda do lado direito e movendo-se para a direita. As relações normais, em relação a Maria, entre saída motora e retroalimentação visual, foram alteradas.

De modo semelhante, as relações entre a retroalimentação visual e a retroalimentação proprioceptiva foram igualmente alteradas. Maria Espelho vê sua mão se movendo para a direita, mas sente que ela se move para a esquerda. Para contornar essas dificuldades e tornar a duplicação possível, precisamos de mais dois dispositivos. Maria Espelho tem de ser equipada com um reversor motor, o qual reverta os sinais acerca de qual mão Maria Espelho vai mover, mas também em que direção. Assim, o mesmo sinal motor que acompanha a mão esquerda de Maria se movendo para a esquerda deverá acompanhar a mão direita de Maria Espelho se movendo para a direita.

Mas isso ainda não é suficiente: também precisamos de um reversor proprioceptivo. Maria Espelho, devido ao reversor motor, estará movendo a sua mão direita para a direita, enquanto Maria estará movendo a sua mão esquerda para a esquerda. Os sinais proprioceptivos de Maria e Maria Espelho serão, portanto, distintos. O reversor proprioceptivo deve reverter esses sinais. Ao mover a sua mão direita para a direita, Maria precisa sentir que a mão que ela vê à sua esquerda (devido às lentes reversoras) se move para a esquerda também. Parece que agora obtivemos a duplicação.

No entanto, a introdução destes dois últimos dispositivos, sem entrar nos detalhes de como seriam realmente viáveis, força um recuo quanto ao que constitui os limites internos de Maria e Maria Espelho. Os músculos e nervos motores terão de ficar de fora, já que seus estados serão diferentes em Maria e em Maria Espelho. Para manter a possibilidade da duplicação, será preciso, na melhor das hipóteses, recuar até o sistema nervoso central, supondo que os dispositivos mencionados possam ser implementados alterando apenas os sistemas neuronais periféricos, o que não é óbvio (HURLEY, 2002, p. 312).

Susan Hurley concebe em detalhes mais um caso de mundo adulterado, a Terra Esticada, em que os objetos nesse mundo sofrem uma distorção na vertical, isto é, eles são esticados para ter o dobro da altura dos seus correspondentes na Terra (2002, p. 314-318). Apenas o sistema nervoso central dos seus habitantes não sofre essa distorção. Deixo os detalhes acerca dos ajustes necessários para a duplicação para o leitor; o ponto central de Hurley é que, nesse caso e em muitos outros, fica cada vez mais difícil preservar mesmo o sistema nervoso central para fazer justiça às complexas relações entre saídas motoras, sinais visuais e proprioceptivos, em um sistema perceptivo dinâmico. A parcela de estados físicos internos que podem ser preservados como os mesmos é cada vez menor, o que levanta a forte suspeita de que a mente não deve ser superveniente aos limites do corpo, ao sistema nervoso central ou a um conjunto ainda mais estreito de neurônios, para não mencionar o caráter cada vez mais artificial de como vamos, nesses recuos, traçando os limites entre o interno e o externo. Assim, a estratégia de recuo parece fadada ao fracasso.

Ao contrário, devemos ir na direção oposta. A mente, como preconiza a abordagem ecológica, é superveniente ao sistema organismo-ambiente, no qual ambos são vistos como complementares.[89] Na mesma linha, Susan Hurley sugere que a mente esteja centrada no que ela chama de singularidade dinâmica: “[...] um sistema dinâmico contínuo e complexo centrado em um organismo ativo, com ciclos de retroalimentação que podem ter órbitas tanto externas quanto internas.” (2002, p. 333). A fronteira do que é interno e externo à mente pode, assim, envolver elementos que estão fora do corpo, na medida em que a retroalimentação dinâmica envolve porções do ambiente. Essa fronteira é também fluida, podendo se alterar com o tempo. De acordo com a abordagem ecológica, os elementos fora do corpo que compõem o ambiente do organismo e que, por conseguinte, fazem parte da base material da sua mente são aquelas parcelas do mundo físico ao qual o organismo está sintonizado. Como vimos, há uma estreita simetria entre os estados do organismo e os estados do ambiente ao qual o primeiro está sintonizado. Não é à toa, portanto, que seja inviável desacoplar uma organismo do seu ambiente para acoplá-lo a um outro bem diferente e mantê-lo como tendo a mesma mente ou como tendo os mesmos estados internos que teria, no ambiente original. E, se é assim, não parece haver razões para se pensar que os episódios de percepção e as alucinações “correspondentes” sejam indistinguíveis, pois elas terão dinâmicas e marcas motoras e proprioceptivas bem distintas, embora possam ter alguns elementos sensoriais em comum.

 

8 E o cérebro numa cuba?

A possibilidade de sermos cérebros encubados não vai de encontro a tudo o que eu disse até agora? Não parece perfeitamente concebível que um cérebro encubado fosse estimulado para ter as mesmas experiências que temos, vindicando, assim, as suposições da indistinguibilidade, da linearidade e da duplicação? Como afirmei na Seção 5.1, estou interessado em possibilidades naturais, não em possibilidades conceptuais ou metafísicas. Logo, o que temos de avaliar é se poderíamos mesmo encubar um cérebro ou em que circunstâncias ele poderia ser encubado. Novamente, os detalhes fazem toda a diferença.

Essa questão foi abordada por Evan Thompson e Diego Cosmelli (2011), cuja conclusão é que dificilmente podemos encubar um cérebro, a não ser que o façamos através de um corpo substituto o qual emule a intrincada dinâmica de interações que o cérebro tem com o nosso corpo habitual. Para início de conversa, precisamos de um líquido que envolva o cérebro e que possa absorver os subprodutos das suas reações químicas. Precisamos também de sangue e um sistema vascular por meio do qual nutrientes chegam a diversas partes do cérebro. Não há como fazer circular o sangue sem alguma bomba, algo que cumpra o papel do coração. Além disso, é necessário acoplar um sistema de reciclagem para manter o nível de oxigênio e açúcar no sangue e para eliminar outros resíduos. O próprio sistema circulatório deve estar acoplado ao cérebro, já que a quantidade de sangue a ser enviada para diferentes regiões do cérebro depende da própria atividade intrínseca do cérebro, isto é, do que ele está fazendo no momento.

Essas são as condições mínimas para manter o cérebro vivo. Ademais, queremos que ele tenha uma atividade normal. Sabemos que o cérebro é um sistema dinâmico autônomo, isto é, ele tem atividade intrínseca. O cérebro não age apenas em resposta a estímulos, ele está continuamente ativo. Para manter a sua atividade interna intrínseca e a sua homeostase, as conexões com os demais sistemas precisam ser finas. O cérebro precisa ter mapas desses sistemas, a fim de regular a sua atividade, e também deve poder ter algum controle sobre esses sistemas, conforme já vimos, no caso do sistema vascular. Em conjunto, esses sistemas formam um emaranhado dinâmico.

Quanto aos estímulos sensoriais, eles têm de ser do mesmo tipo e da mesma complexidade dos estímulos que o nosso cérebro tem, em virtude da sua fina conexão com o nosso corpo. Imagine-se a variedade de configurações que o nosso corpo assume e como elas afetam continuamente o cérebro. Tudo isso precisa ser emulado pela cuba, por meio de encaixes neuroquímicos perfeitos. Não só essas entradas, mas, como vimos, as saídas do cérebro que retroalimentam os sistemas perceptivos também têm de ser contempladas. Visto que o sistema responsável pelos estímulos afeta a atividade do cérebro, ele precisa estar bem integrado ao cérebro e aos demais sistemas, para não atrapalhar ou até mesmo inviabilizar o cérebro, na manutenção da sua atividade interna. A sobrecarga de estímulo pode ser fatal para o cérebro. Como nos demais casos, o cérebro precisa controlar como será estimulado. Ou seja, a cuba deverá ser equipada com sistemas sensoriomotores. Assim, o nosso cérebro numa cuba se parece agora com um agente sensoriomotor autônomo e que interage com o seu entorno.

Essas considerações levaram os autores a concluir que “[...] qualquer ‘cuba’ adequadamente funcional será um corpo substituto. Não queremos dizer que será um corpo como o nosso na sua composição material, mas um suficientemente semelhante ao nosso na sua organização funcional.” (THOMPSON; COSMELLI, 2011, p. 172). Dessa maneira, o mínimo para se ter uma criatura consciente não é apenas o cérebro, porém, um organismo, compreendido como um sistema que se autorregula e que é composto por subsistemas neurais e extraneurais fortemente entrelaçados. E, retomando a minha conclusão da seção anterior, para continuar a ter os mesmos estados mentais que tinha antes, esse novo organismo terá de habitar o mesmo ambiente que era habitado pelo corpo anterior ou um muito semelhante a ele.

 

Considerações Finais

O argumento causal depende de uma série de suposições que não parecem resistir a um exame mais detalhado. Os sistemas perceptivos são dinâmicos, especialmente se supomos um percebedor que se move no seu ambiente. Ao considerar a retroalimentação dinâmica, somos levados à conclusão de que os estados perceptivos envolvem o ambiente. Essa conclusão também é apoiada pela abordagem ecológica. Organismo e ambiente são complementares. A imagem que emerge da mente é a de uma singularidade dinâmica centrada no organismo e permeada pelo ambiente no qual ele habita. Estados mentais são estados do sistema organismo-ambiente e, portanto, têm uma base material mais ampla que a do corpo ou a do cérebro apenas. Um cérebro encubado e mentalmente vivo é uma quimera.

O argumento causal é um problema para disjuntivistas que assumem a concepção linear da percepção. Esses disjuntivistas, por aceitarem a suposição da indistinguibilidade, se veem pressionados ou a fornecer uma explicação misteriosa para a alucinação, ou a assumir uma relação de contato direto que não parece ter qualquer papel na explicação da fenomenologia da experiência perceptiva. O disjuntivismo ecológico está livre dessas dificuldades, pois rejeita a concepção linear da percepção. Episódios de percepção são distintos dos “correspondentes” episódios de alucinação: os primeiros, mas não os segundos, envolvem a captura de informação ambiental. Percepção e alucinação podem ser distinguidos pelo percebedor. A percepção é uma experiência controlada de sintonização à informação, enquanto a alucinação é passiva e refratária às atividades de exploração e sintonização. A abordagem ecológica se limita à possibilidade natural. Para além desse limiar, o que encontramos é uma intensa neblina conceitual. Nessas condições, ainda que despertos e alertas, não há nada que consigamos ver com clareza.

 

Ecological disjunctivism and the causal argument

Abstract: In this paper, I argue that the ecological approach to perception provides resources to overcome the causal argument against disjunctivism. According to the causal argument, since the brain states that proximally cause the perceptual experience and the corresponding hallucinatory one can be of the same type, there would be no good reason to reject that the perceptual experience and the corresponding hallucinatory experience have fundamentally the same nature. Disjunctivism concerning the nature of the experience would then be false. I identify three assumptions that support the causal argument: the indistinguishability assumption, the linearity assumption, and the duplication assumption. According to the ecological approach to disjunctivism, these assumptions should be rejected, opening up room for a version of disjunctivism that I call 'Ecological Disjunctivism'. Perceptual episodes are extended over time and are supervenient to the organism-environment system. They can be distinguished from the 'corresponding' hallucinations because the former results from a controlled process of attunement to the environment, whereas hallucinations are passive and insensible to the exploratory activities of the perceptual system. Finally, ecological disjunctivism, since it is immune to the causal argument, is more advantageous than negative and positive disjunctivism.

Keywords: Ecological disjunctivism. Causal argument. Indistinguishability. Dynamical feedback. Ecological psychology.

 

Referências

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Recebido: 15/08/2022

Aceito: 07/02/2023


Comentário a “O disjuntivismo ecológico e o argumento causal”

 

Sabrina Balthazar Ramos Ferreira[90]

 

Referência do artigo comentado: CARVALHO, E. M. O disjuntivismo ecológico e o argumento causal. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 147- 174 2023.

 

Em meio aos debates na Filosofia Ecológica, concebida por James Jerome Gibson (1979), estão presentes divergências pontuais quanto ao conceito mais apropriado de affordance. Todavia, as convergências teóricas superam possíveis desacordos, sobretudo quando abordagens ecológicas compartilham o interesse em desenvolver seus pressupostos. É a esse intuito que os últimos esforços do professor Eros Moreira de Carvalho têm se dedicado. Seus trabalhos mais recentes têm transitado por vários aspectos da filosofia ecológica, desde affordances afetivas (CARVALHO, 2022a), passando pela relação entre psicologia ecológica e cognição social (CARVALHO, 2022b, p. 367-393), até, principalmente para o que nos interessa no momento, sobre um espinhoso aspecto das teorias da percepção – o disjuntivismo.

De fato, o problema do disjuntivismo impõe significativo desafio para qualquer teoria que busque explicar amplamente a constituição dos processos perceptivos. No entanto, para aqueles que se debruçam sobre pesquisas ecológicas, tal desafio é mais do que esperado, devido a um dos pontos mais questionados da abordagem ecológica da percepção – o problema do erro perceptual. Se o problema do erro perceptual discute a natureza de percepções equivocadas, ou até mesmo suas condições de existência, o problema do disjuntivismo se detém na diferenciação entre estas e percepções verídicas. Tanto o problema do erro perceptual quanto o problema do disjuntivismo acabam por impor os mesmos desafios ao caráter direto da percepção: se a percepção é direta, sem processos inferenciais, em casos de erro perceptual, o equívoco estaria no mundo? Ou nos órgãos perceptuais daquele que percebe? Se o percebedor capta diretamente informação significativa no mundo, pela percepção, como ele consegue diferenciar tal experiência de episódios de alucinação, cuja característica marcante é sua aparente indistinguibilidade dos episódios perceptivos correspondentes?

Ao longo do tempo, algumas saídas interessantes foram propostas, sobretudo com relação ao problema do erro perceptual (Turvey et al., 1981). Quanto ao disjuntivismo, Carvalho (2023) se lança em sua abordagem denominada disjuntivismo ecológico, proposta no artigo em questão. Anteriormente, no artigo “An ecological approach to disjunctivism”, Carvalho (2021) já flertava com o assunto, analisando o disjuntivismo ancorado em alguns pressupostos da filosofia ecológica, apontando para uma frutífera compatibilidade entre Filosofia ecológica e disjuntivismo. Na ocasião, sua ênfase recaiu sobre a atividade exploratória dos organismos no ambiente, no processo perceptivo, a sintonização organismo-ambiente que se efetiva por habilidades discriminatórias (CARVALHO, 2021, p. 290) desenvolvidas no decorrer do tempo, invariantes e, não menos importante, em alguns dos possíveis entendimentos sobre possibilidades de ação. Na oportunidade, Carvalho (2021) acenara para o problema da distinguibilidade e o desafio em acomodá-lo em uma teoria da percepção robusta.

Prosseguindo em sua empreitada de oferecer camadas de inteligibilidade à abordagem ecológica da percepção, observa-se, no artigo atual, uma alteração do alvo investigativo por parte de Carvalho (2023), ao se deter, dessa vez, nos argumentos que fundamentam teorias tradicionais da percepção que se contrapõem à abordagem ecológica. Nesse sentido, críticas bem-fundamentadas são tecidas a alguns dos pressupostos das abordagens inferenciais e representacionalistas da percepção, e às saídas propostas por teorias disjuntivistas que buscam refutar uma indistinguibilidade entre percepção e alucinação. Conforme Carvalho (2023) bem salienta, os caminhos tentados pelos disjuntivistas (tanto positivos, quanto negativos) recaem em comprometimentos problemáticos, os quais, conforme defendido, não afetam o disjuntivismo ecológico proposto.

Ainda que os dois textos de Carvalho (2021, 2023) visem a uma defesa do disjuntivismo ecológico, cada um envolve uma estratégia argumentativa distinta, o que me leva a sugerir a leitura de ambos, para uma visão mais completa da proposta do autor. Não obstante, vale destacar o ganho teórico do artigo presente com respeito ao anterior, devido à introdução de novos elementos em sua argumentação.

Conforme o próprio título ressalta, é na articulação entre abordagem ecológica da percepção e argumento causal que o presente artigo se destaca, cuja estrutura corresponde à defesa do primeiro, ao identificar as problemáticas do segundo. Não obstante, é bem salientado no artigo que a indistinguibilidade entre percepção e alucinação, defendida por teorias conjuntivas, pode residir no fato de ambas corresponderem a um mesmo tipo de experiência (seja um conteúdo intencional, sejam dados dos sentidos). Para tanto, conjuntivistas, além dos disjuntivistas, recorrem ao argumento causal para sustentar sua posição, pois, tanto alucinação quanto percepção envolveriam os mesmos antecedentes causais, a saber, eventos cerebrais. Nesse sentido, Carvalho (2023) destrincha a estrutura do argumento causal, identificando e discutindo suas principais suposições: indistinguibilidade, linearidade e duplicação, intrinsecamente conectadas entre si.

De fato, o tipo de causalidade implicada em cada teoria perceptual esboça o modo como é entendida a relação indivíduo-ambiente. E é justamente fundamentada nesse entendimento que a teoria ecológica ganha força, ao revelar uma visão sistêmica de mundo que, logo de início, pode desbancar a linearidade envolvida no argumento causal, sustentada por teorias tradicionais da percepção. Quero salientar que a sustentação teórica do artigo atual esboça uma avanço, o qual reside no papel fundamental que a atividade exploratória exerce nos processos perceptuais, segundo a filosofia ecológica.

Nesse sentido, o papel ativo do agente corresponde a um componente significativo da percepção, podendo contribuir para que o agente diferencie percepção e alucinação. Nas palavras de Carvalho (2021, p. 305): “Essa diferença motora também pode ser a base para uma habilidade introspectiva de discriminar entre recursos de episódios de percepção e recursos de episódios de alucinação.” Ou seja, as ações motoras do agente atuam de maneira efetiva na percepção, esboçando um processo retroalimentativo que contribui para a diferenciação entre percepção e alucinação. A consciência de sua movimentação e exploração do ambiente colabora para que o agente se veja em meio a um processo perceptivo e não de alucinação, cuja habilidade exploratória não é possibilitada do mesmo modo como na percepção. Dessa forma, a habilidade exploratória, para captura de informação significativa para ação, envolve sintonização do sistema organismo-ambiente, contrapondo-se à linearidade – uma das suposições do argumento causal – e ao caráter estático/receptivo do agente na percepção, segundo teorias tradicionais que se fundamentam em dinâmicas perceptivas de estímulo-resposta.

Dito isto, proponho-me discutir brevemente, devido ao espaço que me cabe, a efetividade da habilidade exploratória para o caráter direto da percepção e para o disjuntivismo, bem como para manutenção dos pressupostos ecológicos, ao longo do tempo. Essa discussão decorre da acentuada transformação sociocultural que as sociedades vivenciam com a introdução (e ampliação) massiva da tecnologia no cotidiano das pessoas – com a qual Gibson, quando da concepção dos principais pressupostos da filosofia ecológica, nos anos finais do século XX, não se deparava. Desse modo, minha proposta serve mais como uma provocação filosófica, a qual objetiva instigar, repensar e atualizar a abordagem ecológica da percepção para os novos cenários sociais que se apresentam, do que propriamente uma crítica à percepção direta ecológica.

A tecnologia faz parte do cotidiano de grande parte das pessoas, impelindo gerações de distintas faixas etárias a lidarem, cada qual a sua maneira, com os avanços tecnológicos que constantemente se atualizam. Gerações mais novas já nascem e crescem em meio a ambientes informacionais que são descritos como nichos tecnológicos, constituídos coevolutivamente por dinâmicas de percepção-ação que englobam a presença de tecnologias. Nas dinâmicas de percepção-ação, agentes captam informação significativa que, nesse caso, corresponde às affordances tecnológicas.[91] Em nichos tecnológicos, agentes interagem com diversos tipos de dispositivos, para além de interagirem entre si. A própria interação entre os agentes é, a depender do nicho tecnológico, mediada por TIC’s (Tecnologias informacionais de comunicação).[92] Nesse sentido, empresas de tecnologia têm se esforçado para aprimorar seus produtos, atentas às interações sociais esboçadas por dinâmicas de percepção-ação.

Um exemplo de avanço tecnológico é a criação de jogos de realidade virtual 3D.[93] Visando a oferecer ao usuário uma experiência fenomenológica cada vez mais próxima da realidade, esses jogos incorporam dispositivos que propiciam ao jogador se movimentar com o uso de equipamentos que, juntamente com capacetes de estímulos visuais e sonoros, propiciam uma experiência de realidade que imita a realidade. Com os avanços tecnológicos, esses jogos ampliaram a possibilidade de movimentação do jogador, bem como melhoraram a sincronização entre os movimentos realizados pelo jogador e as imagens projetadas em seu capacete sensorial. Tal sincronização propicia situações nas quais o jogador, isolado dos estímulos do ambiente em que se encontra e recebendo apenas estímulos gerados no jogo, experiencia episódios emocionais que envolvem alterações fisiológicas marcantes, tais como aceleração dos batimentos cardíacos, decorrentes das experiências virtuais vivenciadas no jogo. O usuário pode vivenciar uma experiência fenomenológica que cada vez mais se aproxima da realidade, embora se trate de imagens fabricadas, ou seja, percepções ilusórias.

Nesse sentido, podemos questionar: em que medida a habilidade exploratória, o papel ativo da percepção em conexão com a ação e a captação de possibilidades de ação via percepção direta ainda podem se sustentar em situações de jogos como esse? Pode ser argumentado que os usuários estão cientes de sua condição enquanto jogadores e que, dessa maneira, podem distinguir percepções e ilusões. No entanto, é importante considerar o papel que as emoções desempenham nessas situações, pois, ainda que os usuários tenham consciência de sua condição de jogadores, as alterações fisiológicas vivenciadas esboçam uma proximidade com o real até então não cogitada.

O ponto em questão reside no caráter ativo da percepção do jogador, a possibilidade de explorar o ambiente virtual com relativo grau de liberdade e a reprodução cada vez mais fiel da realidade, por parte da tecnologia, que ainda se limita, em grande medida, ao âmbito do entretenimento. Afinal, o que caracteriza uma ilusão/alucinação é o grau elevado de similaridade que estas possuem com seus episódios perceptivos correspondentes, seja devido à cadeia causal envolvida, seja pela existência de algum elemento em comum compartilhado.

No entanto, ao salientar que “[...] uma experiência alucinatória duradoura é distinguível de uma experiência perceptiva correspondente porque a primeira não resulta de um fluxo controlado de estimulação, ao passo que a segunda sim” (CARVALHO, 2021, p. 305), voltamos novamente para a evolução da tecnologia que cada vez mais considera a habilidade exploratória dos jogadores na concepção dos dispositivos. Conforme salienta Carvalho (2021), se “[a] percepção é uma experiência controlada de sintonização à informação, enquanto a alucinação é passiva e refratária às atividades de exploração e sintonização”, como podemos vislumbrar o futuro da filosofia ecológica em meio ao contínuo avanço tecnológico com o qual as gerações futuras coevoluirão? Nesse cenário, a percepção direta sobreviverá? O disjuntivismo ecológico ainda se sustentará sobre as bases aqui formuladas?

Sim, é possível que estejamos extrapolando a experiência dos jogos para outros âmbitos de nossa experiência. Contudo, tal exemplo esboça um movimento pervasivo da tecnologia em nossas dinâmicas de percepção-ação, possivelmente não imaginado no passado por Gibson. Para além de entretenimento, a tecnologia já faz parte de nossas vidas, em diversas áreas (casas inteligentes, carros autômatos etc.), propiciando novas formas de relação com o ambiente. Dessa maneira, a discussão sobre disjuntivismo se torna cada vez mais relevante para os dias atuais, não somente em função dos casos alucinatórios, mas pela presença cada vez mais massiva de tecnologias em nosso cotidiano e a coevolução de gerações mais novas com elas.

Nesse sentido, como ficariam as discussões sobre disjuntivismo, nesse novo cenário? Pressupostos ecológicos ainda se sustentariam? Tais questões assinalam desafios que ainda fomentarão muitas investigações filosóficas, as quais, por sua vez, terão um papel significativo para o desenvolvimento da Filosofia ecológica.

 

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Recebido: 11/01/2023

Aprovado: 21/01/2023

Qual o papel das experiências subjetivas na crítica social? Distinguindo entre justiça de primeira e de segunda ordem[94]

 

Filipe Campello[95]

 

Resumo: Nas últimas décadas, diferentes abordagens ligadas à tradição de(s)colonial têm movido o pêndulo da crítica de pretensões de universalidade para relatos e experiências particulares. Contudo, nisso que podemos chamar de virada narrativa, não são sempre evidentes as justificativas morais de perspectivas em primeira pessoa. A questão que se gostaria de explorar neste artigo é se seria possível encontrar relevância epistêmica de relatos e experiências subjetivas na crítica de injustiça. Começa-se por inverter a questão, partindo do problema da objetividade na crítica, diante da particularidade das experiências. A questão, nesse caso, é de onde fala o filósofo ou a filósofa, na sua intenção de descrever experiências de sofrimento de outras pessoas. Se falamos sempre em primeira pessoa, e se existe algum limite cognitivo ou epistêmico de experiências, de onde viria a capacidade de criticar experiências que não são as nossas? Afinal, como podemos compartilhar experiências de injustiça? Em seguida, defende-se que podemos avançar, se distinguirmos duas dimensões de justiça. Seguindo distinções conhecidas de teorias de primeira e segunda ordem, defende-se que reivindicações ligadas à virada narrativa se referem a demandas de justiça de primeira ordem: trata-se de reconhecer moralmente a pretensão epistêmica dos sujeitos, vendo-se ali a possibilidade de confrontar noções falhas de universalidade e pontos cegos em teorias da justiça. Contudo, essas pretensões não possuem em si próprias critérios de justificação, requerendo dependências normativas, as quais são externas às próprias experiências – essas, sim, situadas em justiça de segunda ordem. Propõe-se que esse modelo tem a vantagem de incorporar as vantagens teóricas de teorias de(s)coloniais, sem negligenciar os potenciais da crítica da injustiça.

Palavras-chave: Narrativas. Experiências. Crítica. De(s)colonialidade.

 

Mas como não ia ter pena? O que demasia na gente é a força feia do sofrimento, própria, não é a qualidade do sofrente. […]

Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá [...]

O mais bonito do mundo é isso: as pessoas não são sempre iguais, elas ‘inda não foram terminadas.

(Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas).

 

Introdução

Quando tentamos encontrar uma característica que liga diferentes teorias associadas à tradição liberal, vemos a de propor critérios de justiça que, ao invés de obstruir a pluralidade de visões de mundo, permitissem conciliá-los. Diante da tensão entre preferências particulares, a solução encontrada por teorias liberais foi a aparentemente mais simples: abster-se de criticá-las, porque, se a crítica se orientasse por imperativos morais vinculados a noções como autenticidade ou vida boa, ela acabaria por colocar em risco uma suposta objetividade e imparcialidade pretendida por critérios de justiça. Seguindo de perto o sentido do que, na clássica formulação de Isaiah Berlin, ficou conhecido por liberdade negativa, não caberia a teorias normativas se aventurar na seara de definições particulares, devendo abster-se de determinar os conteúdos de preferências individuais. Teorias políticas alinhadas a esse raciocínio deveriam, então, focar apenas naquilo que supostamente lhe cabem: a universalidade de demandas da justiça, voltando seus esforços, de um modo ou de outro, a critérios que transcendam a parcialidade e contingência de visões particulares de mundo. O espectador imparcial de Adam Smith ou o véu da ignorância de John Rawls são soluções teóricas que tentam desobstruir teorias de toda particularidade que, por assim dizer, atrapalharia encontrar critérios imparciais para a justiça.

Ao se pôr uma clara linha divisória entre o que concerne à razão pública e o que se delimita à esfera privada, experiências subjetivas enquanto autodescrição e narrativas singulares passaram a ser restritas a esta última esfera. A consequência dessa separação mais rígida entre público e privado foi a tendência por escamotear a relevância que relatos e narrativas singulares poderiam assumir, na elaboração de uma teoria da justiça. Enquanto particulares, experiências seriam como peças que não mais conseguem se encaixar no quebra-cabeça de uma suposta universalidade, o que faz com que aquela noção de razão que subjaz a esse potencial de universalização acabe por revelar-se restritivo ou mesmo excludente.

Diante desse contexto, a questão que gostaria de explorar, neste artigo, é se seria possível encontrar relevância epistêmica de relatos e experiências subjetivas na crítica de injustiça. Antes de enfrentar essa questão, contudo, gostaria de inverter o problema da objetividade na crítica em face da particularidade das experiências. A questão, nesse caso, seria de onde fala o filósofo ou a filósofa, na sua intenção de descrever experiências de sofrimento de outras pessoas. Também aqui nos movemos em um plano sobretudo epistêmico, isto é, sobre em que medida podemos falar a respeito de experiências que não são nossas. Significa perguntar como podemos transferir uma perspectiva de primeira pessoa para a de terceira pessoa (como em teorias e suas pretensões normativas), ou, em um sentido mais próximo do que estou discutindo, em acessar experiências particulares de outra pessoa – o que é chamado de second-person standpoint. Se falamos sempre em primeira pessoa e se existe algum limite cognitivo ou epistêmico de experiências, de onde viria a capacidade de criticar desejos, escolhas ou experiências que não os nossos? Afinal, como podemos compartilhar experiências de injustiça?

 

1 O pêndulo entre particular e universal: compartilhando experiências de injustiça

Pode ser útil, em um primeiro momento, lembrarmos a distinção que Peter Strawson propôs entre ressentimento e indignação moral: enquanto o ressentimento seria uma reação à ofensa ou indiferença direcionada a si mesmo, a indignação moral seria uma atitude compreensiva, impessoal e desinteressada. Ao contrário do ressentimento, atitudes de indignação seriam “[...] reações à qualidade das vontades dos demais, não a nós mesmos.” (STRAWSON, 2016, p. 258). Strawson distingue, então, atitudes reativas pessoais do que ele chama de atitudes vicárias:  aquelas em que, apesar de a ofensa não ser dirigida a mim mesmo, eu me coloco lugar do outro. Em outras palavras, posso ser tomado por um sentimento de indignação diante de uma experiência de injustiça, independentemente de ela ser dirigida a mim. Afirma Strawson:

O que temos aqui, por assim dizer, é o ressentimento em nome de outro, onde nem o interesse próprio nem a própria dignidade estão implicados; e é esse caráter impessoal ou recíproco da atitude, somado aos demais, o que lhe outorga a qualificação de “moral”. (Strawson, 2016, p. 258).

 

Não está claro, contudo, quais critérios nos permitem identificar uma atitude vicária (ou indireta) como sendo moral. Apesar de Strawson contribuir para distinguirmos entre, por um lado, o ressentimento enquanto atitude reativa direta, e, por outro, a indignação como sentimento de quem observa e percebe uma experiência de injustiça, isso não deve nos levar a assumir que todo sentimento de indignação seja per se moralmente legítimo. Posso me indignar com uma atitude dirigida a alguém próximo a mim ou com o qual eu tenha algum vínculo afetivo, sem que esse sentimento possa discernir sobre a legitimidade moral da ação. Também nesses casos as emoções são sobretudo ambivalentes: neles, eu posso tomar parte apenas motivado pelo laço de proximidade afetiva que tenho, não sendo suficientemente neutro para oferecer um juízo moral adequado.

Tal dificuldade pode ser em parte explicada pelo fato de que o esforço teórico de Strawson já assume como ponto de partida a intenção de trazer a discussão sobre emoções para o debate de viés analítico – mais especificamente, em torno do problema do determinismo moral (como ele reconhece, “[...] é uma pena que falar em sentimentos morais tenha caído em desuso.” (2016, p. 268).[96] Mais do que o estranhamento que esse desuso poderia causar, gostaria de me deter na questão em torno da relevância da perspectiva em primeira pessoa. Qual é exatamente a diferença entre as experiências que sinto em primeira pessoa e a que me é oferecida sob a forma de relato? Mais precisamente: a experiência é uma condição para a crítica de injustiça?

Vejamos este relato de Joaquim Nabuco. Nascido no Engenho Massangana, próximo ao Recife, em uma família branca e abastada da aristocracia rural pernambucana, Nabuco narra suas memórias da infância passada no Engenho. Uma de suas lembranças mais marcantes desse período é a ruptura de quando a condição de escravidão deixa de ser algo familiar, sentida através de um acrítico laço afetivo, e passa a ser questionada:

Eu estava em uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi esse o traço inesperado que me descobriu a natureza a instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava. Nada mostra melhor do que a própria escravidão o poder das primeiras vibrações do sentimento. [...] Assim eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência. (Nabuco, 2012, p. 190).

 

A questão epistêmica da percepção de injustiça de Nabuco, que evidentemente não sente a mesma experiência do escravo que vai ao seu encontro, é um caso de passagem entre primeira e segunda pessoa. Qual é a diferença entre os dois relatos? O que permite compartilhar essa experiência, senão enquanto sofrimento, como percepção de injustiça?

Um primeiro modo de abordar essa questão, e mais recorrente no debate, consiste no que podemos chamar de privilégio epistêmico da experiência. A posição crítica e reativa de Joaquim Nabuco não resulta de sentir em primeira pessoa a condição de escravidão, senão de uma experiência de um relato: ao deparar-se com o jovem negro, na condição de escravo clamando por ser comprado, Nabuco narra “sentir” a dor que o afligia. Sentir, nesse caso, não significa, e isso é claro, uma experiência em primeira pessoa (como veremos mais adiante, em relação ao conceito de experiência vivida), mas perceber, ou seja, poder compartilhar em segunda pessoa experiências que intersubjetivamente podem ser criticadas como injustas.

As questões que vemos nesse relato não são, contudo, inerentes apenas ao lugar das experiências vividas como critério de crítica a injustiças. Em um passo anterior, devemos nos perguntar por um significado da injustiça que não se refira aos problemas epistêmicos de sua percepção, pois a posição privilegiada de Nabuco, que é de onde ele narra a sua percepção ainda criança da injustiça intrínseca à condição de escravidão, não apenas torna sua narrativa um exemplo do problema da perspectiva em segunda pessoa, mas faz com que seu relato seja relevante enquanto relato. Ainda que também tivesse destaque na luta abolicionista o papel de intelectuais negros, como Luiz Gama, ou de personagens importantes na resistência quilombola, como Tereza de Benguela, o relato de Nabuco é o que é ouvido e resiste ao tempo.[97]

Do ponto de vista da injustiça epistêmica, a questão da injustiça não se refere apenas à capacidade reflexiva da injustiça. Mais do que sua percepção em segunda pessoa (ou seja, a percepção por um outro que não sofre diretamente a experiência da injustiça), o que é injusto aqui é o fato de que a perspectiva em primeira pessoa não possua relevância.[98] A narrativa da experiência vivida em primeira pessoa – ouvir o que têm a dizer aqueles que sentem a experiência de injustiça – adquire pesos distintos no recorte da justiça, quando ela já distingue de antemão quais delas importam. Essa ausência ou desequilíbrio entre a percepção da injustiça de quem fala em nome desse outro e os próprios relatos em primeira pessoa, e sobretudo o seu apagamento, são problemas de justiça: Enquanto uns têm voz, outros têm silenciada sua capacidade de oferecer relatos; uns são lembrados, outros esquecidos.

Quando Frantz Fanon escreve Pele negra, máscaras brancas, ele alerta para o que está por trás das pretensões de universalidade epistêmica – intimamente ligadas, nesse caso, ao discurso colonial. Fanon articula, ali, uma densa conexão entre sua experiência como médico psiquiatra e sua prática em um contexto de dissonâncias culturais que tem lugar na Argélia, sob o domínio colonial francês. Do ponto de vista da prática psiquiátrica, as pretensões de universalidade da subjetividade tornam-se ainda mais latentes, pois assumem um modelo totalizante da categoria de sujeito e seus sintomas. Esse tipo de resistência tinha como motivação certas questões, como: quem pode falar em nome do universal? Qual universalismo? E por que alguns discursos valem como universais, enquanto outros, apenas como particulares?

Essas foram questões que, de um modo ou de outro, mobilizaram diferentes vertentes do pensamento decolonial. Fanon argumenta que, por trás do que nomeamos como “universal”, se escondem disputas de narrativas que excluem perspectivas impedidas de serem reconhecidas, em sua pretensão epistêmica. Ao trazer luz para essa questão, o que é válido e consolidado como centro do discurso canônico contrasta com o que Fanon chama de “a experiência vivida do negro”, que dá título a um dos capítulos da obra. Ao narrá-la em primeira pessoa, ele descreve a experiência de não se reconhecer naquela suposta universalidade do conhecimento no colonizador francês, na Argélia: um tipo de recorte racial e colonial que provoca um estranhamento vertiginoso – uma espécie de desidentificação epistemológica. A escolha de Fanon pela narrativa em primeira pessoa traz uma força epistêmica enquanto luta por reconhecimento de uma subjetividade vetada à categoria do universal. Enquanto se dirige à teoria, a crítica não é particular, tampouco quer afirmar sua visão como “outro universal”, mas reivindica que sua experiência vivida não está incluída naquele discurso colonizador que, como tal, quer valer como universal. Ele está dizendo, de maneira contundente: “eu não me reconheço nessa teoria”.

É o caso da categoria “homem”, especialmente enquanto ligada aos seus desejos – questão que Fanon elabora, a partir de sua vivência profissional como psiquiatra. “Que quer o homem? Que quer o homem negro?” – pergunta, deslocando a ênfase da universalidade da categoria “homem” para uma particularidade identitária que não se reconhece nela. O desejo do homem negro é questionado como uma esfera volitiva que não adentra a categoria “desejos do homem”, pois o padrão “universal” de reconhecimento do homem negro martinicano – segue Fanon – é o do francês branco. O particular torna-se, então, refratário a seu encapsulamento por uma categoria estranha a ele, mas ela só lhe é estranha na medida em que exclui de si outros particulares. É o universal, não o particular, que é alienado de si, reduzindo-se a uma razão autorreferencial e, portanto, excludente. A conclusão de Fanon é taxativa: “O negro não é um homem” (FANON, 2008, p. 26).

O mesmo vale para a linguagem: ao se perguntar sobre a construção de identidade do negro, Fanon traz o exemplo do uso do petit-nègre como incorporação da linguagem colonial: enquanto indica apenas uma versão simplificada do francês, o falante de petit-nègre se “autossubalterniza” frente ao linguajar colonialista, de modo que “[...] responder em petit-nègre é enclausurar o negro com corpos estranhos extremamente tóxicos.” (FANON, 2008, p.48). Isso significa sobretudo que a sujeição colonial é também uma sujeição psíquica. Dessa ideia decorre que, para Fanon, os modos de vida coloniais e racializados são formas específicas de sofrimento, que, como tais, devem ser enfrentadas sob modelos reativos de ação política.

Um sentido análogo de estranhamento da linguagem é relatado por Kwame Appiah, em Na casa de meu pai. No que chama de “a invenção da África”, Appiah menciona os subterfúgios de violência semântica do discurso de Alexander Cummel, padre episcopal norte-americano, que defende a ideia de que, apesar da escravidão, com a colonização, a “divina providência” tinha deixado como herança a posse da língua anglo-saxônica, “[...] uma língua superior tanto em eufonia como em recursos conceituais para expressar as ‘verdades mais elevadas’ do cristianismo.” (APPIAH, 1997, p. 19). O tipo de violência epistêmica que Appiah relata é resultado de um sentido excludente de universal que só consegue lidar com a diferença, eliminando-a. Nesse recorte entre universal e particular, a questão permanece sendo quais discursos valem como universais, e, principalmente, quem pode falar em nome do universal. Appiah conclui, em tom irônico:

Agora, decorrido mais de um século, mais de metade da população da África negra vive em países em que o inglês é língua oficial; e a mesma providência decretou que quase todo o restante da África fosse governado em francês, árabe ou português. (Appiah, 1997, p. 19).

 

2 Razão de quem? Entre relato particular e pretensões de universalidade

Ao confrontar o lugar de fala da razão, críticas decoloniais abriram o caminho para o descolamento do pêndulo do universal para o particular, questionando o que passa a ser visto como modelos defectíveis e excludentes de racionalidade. Acontece que, se as críticas antes estavam voltadas para uma ampliação epistêmica daqueles discursos que importavam para a legitimação de teorias e visões de mundo, elas passaram a assumir um lugar de autovalidação em que não mais ficava claro em que medida suas pretensões de validade iam além de sua dimensão particular. O resultado disso foi que, da centralidade da luta por reconhecimento de diferentes narrativas, essas abordagens deslocaram seu foco do que seria uma crítica epistêmica para uma espécie de autovalidação normativa baseada na experiência. Narrativas em primeira pessoa que poderiam ter um potencial de crítica passaram a ser autorreferenciais, ou seja, ao invés de pressionar e corrigir pretensões teóricas, permaneceriam apenas como relatos singulares.

No entanto, o potencial de ampliação das narrativas encontrava seu significado epistêmico justamente enquanto estava em condições de transcender o caráter particular dos relatos em primeira pessoa. Ou seja, o problema da falta de reconhecimento epistêmico se dá enquanto, embora relatos fossem ouvidos, eles não eram vistos em seu potencial de contribuição epistêmica para além de uma mera história particular. Em Memórias da plantação, Grada Kilomba se queixa de ser criticada por um excesso de emotivismo, de um descrédito, pois sua análise seria carregada de sentimentalismo, pouco objetiva, pouco científica (“você interpreta demais”), em que se encontram maneiras de descreditar seu discurso ou de a tentar calar – o “[...] controle interminável sobre a voz do sujeito negro e o anseio de governar e comandar como nós nos aproximamos e interpretamos a realidade.” (KILOMBA, 2019, p. 34).

Como acadêmica, por exemplo, é comum dizerem que meu trabalho acerca do racismo cotidiano é muito interessante, porém não muito científico. Tal observação ilustra a ordem colonial na qual intelectuais negras/os residem: “Você tem uma perspectiva demasiado subjetiva”, “muito pessoal”; “muito emocional”; “muito específica”; “Esses são fatos objetivos?”. Tais comentários funcionam como uma máscara que silencia nossas vozes assim que falamos. Eles permitem que o sujeito branco posicione nossos discursos de volta nas margens, como conhecimento desviante, enquanto seus discursos se conservam no centro, como a norma. Quando elas/eles falam é científico, quando nós falamos é acientífico.

universal / específico;

objetivo / subjetivo;

neutro / pessoal;

racional / emocional;

imparcial / parcial;

elas/eles têm fatos / nós temos opiniões;

elas/eles têm conhecimento / nós temos experiências.

Essas não são simples categorizações semânticas; elas possuem uma dimensão de poder que mantém posições hierárquicas e preservam a supremacia branca. Não estamos lidando aqui com uma “coexistência pacífica de palavras”, como Jacques Derrida (1981, p. 41) enfatiza, mas sim com uma hierarquia violenta que determina quem pode falar. (KILOMBA, 2019, p. 51-52).[99]

 

A reivindicação de Kilomba é a de que seu discurso não deve valer apenas como meramente particular, mas que pode ser reconhecido em suas pretensões de legitimidade teórica que justamente transcendam o sentido exclusivamente subjetivo de suas experiências singulares. Ou seja, quando ela reivindica reconhecimento da perspectiva de pessoas e grupos identitários cujos discursos são epistemicamente invisibilizados, isso não se restringe às suas experiências particulares. Pelo contrário, ela quer dizer que suas posições devem também valer como discursos com pretensões de ganhos teóricos que transcendam a particularidade de suas narrativas. Não se trata apenas da experiência particular, porém, novamente, de uma questão de justiça: a exclusão ou invisibilização no modo de tratamento epistemicamente distinto desses discursos é injusta. Reivindicações desse tipo se referem, portanto, não a uma pretensão de particularidade (característica da pluralidade de formas de vida), mas a um universalismo concernente a demandas de justiça. Elas trazem, em suma, o potencial moral de luta por igualdade de reconhecimento epistêmico.

Como vemos, a reivindicação de Grada Kiloma é por ter seus discursos reconhecidos como atinentes a conteúdos que falam mais do que as próprias experiências, isto é, cujas pretensões de validade transcendam a mera particularidade, e que faz com que alguns discursos valham como particulares enquanto outros universais, alguns centrais e outros periféricos; trata-se do recorte de validação epistêmica que, em si, pode ser considerado como um problema de justiça. Entretanto, o alcance teórico dessas narrativas deve justamente estar em condições de ultrapassar sua relevância enquanto restritas a seu caráter particular: se não trouxerem a pretensão epistêmica de transcender a particularidade, relatos em primeira pessoa continuarão sendo apenas relatos.

Os potenciais normativos de relatos orientados por uma lógica identitária não são imunes a essas mesmas ambiguidades. No exemplo mencionado por Appiah, ele argumenta que o que leva Alexander Crummel a se ver autorizado a fazer a declaração de superioridade semântica da língua inglesa é sua condição de afro-americano. Ele não fala – assim acredita – da perspectiva de um branco colonizador, mas enquanto negro – um recorte identitário que, para Appiah, pode também levar a distorções em suas pretensões de legitimidade discursiva. Essa mesma opção por uma análise focada na vivência subjetiva – todavia, que pretende ser ao mesmo tempo compartilhada identitariamente – leva Fanon a, por vezes, reduzir a complexidade de uma cultura a uma construção quase que arquetípica do homem pós-colonial. Significa perguntar se Fanon, ao reivindicar uma posição identitária no seu discurso, pode falar em nome de todos os sujeitos negros, ou, ainda, se homens negros nascidos em Martinica podem falar por mulheres negras estudantes em Paris, o que é compartilhado e o que não é entre negros retintos do subúrbio de Paris de origem senegalesa recém-imigrados e negros de pele clara de origem diaspórica no Rio de Janeiro, e assim por diante. No limite: quem pode falar em nome da “negritude”?

A questão posta por Fanon, no início de seu livro – o que quer o homem negro – se demarca então por um tipo de constituição do desejo que não se encaixa no discurso “o que quer o homem?” (o que acaba por significar “o que quer o homem branco”), tampouco demarca necessariamente uma constituição válida para todos os homens negros. Ainda mais por se voltar para um objeto de reflexão fortemente contingente e particular, como é o caso do desejo, qualquer discurso com pretensão de universalidade pode se revelar paradoxal. Embora o discurso de Fanon em primeira pessoa, que fala a partir da experiência vivida do negro, traga o potencial de cissura e tensionamento, ele não pode ser dissociado de sua experiência, a qual pode possuir traços compartilhados com outras experiências vividas, mas que não consegue facilmente transcender o pêndulo entre experiência particular e uma categoria identitária que se pretende mais alargada. Em suma, qualquer discurso que se assuma falando em nome de experiências compartilhadas pode se revelar paradoxal.

Além disso, o potencial das experiências na constituição do sujeito não se refere apenas a um ponto de partida como que estático – de onde fala o sujeito – mas da possibilidade de refletir sobre esse lugar e de questioná-lo, ou seja, de se viver outras experiências. Isso faz com que experiências sejam um horizonte de aprendizado. Mais do que isso: como sujeitos, não nos situamos somente no limiar das experiências já vividas, mas também na abertura do que ainda podemos viver. Experiências que ainda podem ser vividas, outros desejos que ainda podem ser desejados.

            Como se vê, deslocar o pêndulo da crítica para a experiência não nos leva a romper tão facilmente com os problemas anteriores que a virada narrativa pretendia confrontar. A tensão entre particular e universal como o horizonte de constituição do sujeito, a partir de uma noção de afetos como propriedade, persiste de maneira paradoxal: o particular assume o lugar do universal, depositando na experiência do indivíduo o que antes poderia ser encontrado no horizonte do vocabulário social que a antecede.

Entretanto, a reflexão de Fanon traz uma importante contribuição para questionar a colonização do discurso supostamente baseado em uma racionalidade universal, cuja pretensão de universalidade se sustenta apenas enquanto exclui. Embora a contribuição epistêmica da experiência vivida não conceda automaticamente o critério moral que transcenda sua imanência fenomenológica, ela tem uma força de pressão e correção de noções falhas da justiça. Nesses casos, falar em primeira pessoa é relevante, porque demonstra que a suposta impessoalidade da razão universal é, na verdade, igualmente concreta e particular, com a diferença de que uma se impõe mais coercitivamente do que a outra.

Nem toda tradução de diferentes narrativas significa falar pelo outro como negação da diferença, nem toda representação deve assumir a forma de substituição. Representações podem significar, como propôs Spivak, em referência ao seu significado, no vocábulo alemão, não somente a substituição de um outro (Vertretung), mas uma exibição, apresentação (Darstellung) – um outro que fala por si mesmo, mitigando formas de violência epistêmica.[100] O diálogo entre o Xamã Yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert, cujas intensas conversas resultaram na obra monumental A Queda do céu, é exemplo desses esforços de tradução na qual a disposição teórica sai de um falar por para um deixar ouvir. Sem negar o risco de um confronto reducionista de perspectivas, inerente à própria linguagem, Albert passou quatro décadas convivendo com Davi Kopenawa, numa postura de mediador que tece um laço de confiança mútua.

Somente a partir desse compromisso se tornou possível ir ao encontro de novas ferramentas conceituais e de tradução de visões de mundo(s) (ou mundos de visões, para usar uma expressão de Viveiros de Castro), apoiada em ontologias radicalmente distintas. Um encontro que ecoa de algum modo o potencial de tradução assumido pela própria entidade xamânica.[101] “Gosto de explicar essas coisas para os brancos, para eles poderem saber.”[102] Os verbos que Kopenawa usa nessa declaração têm força própria: explicar e saber trazem uma inquietante e consciente pretensão de verdade, que arroga, aliás, uma superioridade epistêmica. Como Kopenawa tem consciência de para quem está falando, a frase é menos arrogante e mais irônica. O tom é desconcertante, provocador. E Kopenawa sabe disso.

Relatos como os de Kilomba, Fanon, Appiah e Kopenawa reivindicam, de maneiras distintas, um processo de luta por reconhecimento epistêmico, não só enquanto representatividade – ao se fazerem ver e ouvir –, mas ao dizerem que a maneira como se constitui a construção “universal” de categorias epistêmicas exclui outros relatos invisibilizados nesse processo. Sua pressão é sobretudo metacrítica, uma vez que essas reivindicações não estão propriamente disputando o conteúdo da crítica, porém, o reconhecimento de que suas pretensões de crítica sejam igualmente ouvidas. Quando essas reivindicações pressionam o cânone, elas não o fazem apenas com base em um estatuto de particularidade – uma experiência vivida em particular –, mas a partir de um processo de retificação de injustiça epistêmica. Ao dizer “eu não me reconheço no seu universal”, perspectivas particulares não se reduzem nem à sua particularidade, nem se impõem como novo universal, contudo, pressionam teorias em direção à correção e ampliação. Enfatiza Spivak:

Não se trata de uma descrição de “como as coisas realmente eram” ou de privilegiar a narrativa da história como imperialismo como a melhor versão da história. Trata-se, ao contrário, de oferecer um relato de como uma explicação e uma narrativa da realidade foram estabelecidas como normativas. (Spivak, 2010, p. 48).

 

3 Reconhecimento epistêmico e justificação moral: distinguindo injustiça de primeira e segunda ordem

Se, por um lado, a inclusão dessas perspectivas permite criar um vocabulário teórico já disposto de maneira imanente nas demandas por justiça, seus critérios de justificação dependem, contudo, de uma constante tensão entre perspectivas particulares e normas sociais. Nenhuma delas reúne critérios de justificação a priori, mas expressam uma função sobretudo negativa de crítica e correção, de questionar a suposta neutralidade normativa da “narrativa da realidade”. Na medida em que essas narrativas se dirigem a pretensões descritivas, a questão epistêmica consiste em trabalhos de tradução etnográficos ou culturais, isto é, dos limites e esforços em se debruçar sobre uma cultura diferente da do teórico ou teórica.[103] Sem perder de vista esse conjunto de críticas em torno dessa questão do etnocentrismo, o problema que particularmente me interessa é, contudo, o impacto que elas têm no âmbito de teorias normativas. A disputa por critérios para questões de justiça não estão, certamente, no mesmo plano de narrar perspectivas antropológicas, e, no caso de teorias normativas, tais critérios se referem, como tenho insistido, ao potencial que relatos particulares baseados na experiência oferecem para essas teorias.

Em vista do que vimos até aqui, gostaria de sugerir que a força normativa dos relatos singulares se liga sobretudo a duas questões distintas. A primeira delas concerne à injustiça epistêmica. Teorias hermeticamente enclausuradas em seu próprio discurso, ouvindo apenas sua própria voz, falham ao tomar seus pressupostos de universalidade como incorrigíveis. Em nome da racionalidade que dizem assumir, alguns discursos validam a si próprios como universais, enquanto outros foram considerados periféricos, por supostamente não assumirem o lugar de fala da razão. Falar pelo outro significa, às vezes de maneira sutil, em outras mais explicitamente violenta, assumir que a outra pessoa não pode falar por si e que não teria boas razões – ou, no extremo, “razão” – que merecessem ser ouvidas.

Nesses casos, estamos diante de relações de injustiça que não são derivadas de disputas por critérios racionais em torno da justiça, mas de quem é reconhecido como falando em nome da razão, cujas razões merecem ser ouvidas. Nesse deslocamento de perspectiva de o que se anuncia para quem anuncia, a crítica deixa de ser balizada por bons argumentos – e no seu potencial de universalização – e passa a ter maior ou menor relevância, dependendo de quem fala. O problema epistêmico não se refere, em suma, ao acesso privilegiado a um conjunto de experiências, senão ao fato de que tais demandas não tenham sido historicamente contempladas de maneira equitativamente justa.

Denomino esse problema de justiça de primeira ordem.[104] Nesses casos, não temos ainda a disputa pelos conteúdos que devem ou não encontrar boas razões para serem justificados, contudo, a possibilidade de assegurar que as pessoas afetadas possam ser reconhecidas em suas pretensões epistêmicas, em um discurso livre de coerção.[105] Além de trazer atenção para problemas de injustiça epistêmica, relatos têm o potencial de tornar visíveis falhas nas teorias normativas com pretensões de universalidade. Essa segunda dimensão normativa dos relatos, que podemos chamar de pretensões de legitimidade, consiste na sua pressão em face de supostos saberes universais, mostrando que são defectíveis, ou seja, que o vocabulário que utilizamos para delimitar noções como universalidade e racionalidade é falho. Experiências, relatos e narrativas possuem, por conseguinte, relevância crítica não somente porque contam outras histórias, senão também porque essas histórias nos oferecem novos conceitos e imagens, permitindo que o sujeito possa ampliar seu vocabulário, fazendo ver o que antes não tinha razão para ser visto.[106]

O fato de algumas narrativas terem sido chamadas de “grandes” decorre de apostas e pretensões assumidamente indefectíveis de universalização. Entretanto, outras narrativas também ofereciam historicamente o potencial de serem “grandes”. Tal grau de relevância dependia não apenas do seu potencial de universalização – se conseguem explicar melhor fenômenos estruturais, ideologias etc. (o que, do ponto de vista teórico, poder ser justificável) –, mas de outros critérios alheios ao seu potencial semântico, como nos casos anteriormente mencionados de injustiça de primeira ordem. Esses critérios que estão além de uma teoria, digamos, moralmente neutra, definem quem está dentro e quem está fora, quais narrativas contam como sendo universais e quais como periféricas. E não é por acaso que esse recorte universal vs. particular coincida com teorias que historicamente se situavam no centro e na periferia do espectro geopolítico. Além disso, narrativas passadas são irretrocedíveis enquanto estruturalmente constituem nosso atual horizonte de visões de mundo. Ainda que seja possível criticar retroativamente as razões que as fizeram ser credenciadas como canônicas, seu efeito performático constitui o vocabulário a partir do qual pensamos e agimos, no presente.

É devido a essa falsa simetria que teorias da justiça devem ser sensíveis a relatos que historicamente conseguiram encontrar pouco espaço na constituição dos modos canônicos de compreensão da justiça, abrindo-se constantemente à corrigibilidade e revisão de seus princípios. Enquanto o trabalho teórico se situa em uma constante tensão entre diferentes pretensões de legitimidade de visões de mundo(s) particulares, narrativas e experiências subjetivas continuam a confrontar pretensões de universalidade que passam a ser continuamente retificadas.[107] As críticas latentes servem, então, como termômetros e como formas de pressão entre o particular e o universal. A depender dos pressupostos – e, em última análise, dos sentidos de razão assumidos –, tais críticas indicam que pretensões de universalidade são falhas enquanto não conseguem incorporar outras narrativas. É o que assevera Judith Shklar (1998, p. 17), autora que se insere na tradição liberal, quando se refere ao que chama de “justiça normal”:

[...] justiça normal é um conjunto de regras e princípios básicos que governam a distribuição de benefícios e responsabilidades dentro de uma comunidade, e isso demanda o estabelecimento de instituições efetivas e imparciais para garantir a aplicação destas regras e princípios básicos. Esta abordagem geral e regida por regras é necessária para a justiça ser institucionalizada como leis e práticas organizacionais. Mas como resultado, a “justiça normal” frequentemente possui pontos cegos, lacunas e consequências não intencionais.[108]

 

Tendo em vista esses pontos cegos do sistema da justiça, Shklar propõe que a filosofia política deveria considerar seriamente a perspectiva das vítimas de injustiça. Ela defende que o “sentimento de injustiça” das vítimas, enquanto perspectiva do diretamente afetado, pode contribuir para corrigir teorias e instituições, permitindo que o filósofo ou a filósofa possa igualmente rever suas posições teóricas. Para mostrar as falhas e ruídos na percepção de injustiça, Shklar descreve como relações que historicamente eram descritas como meros infortúnios (misfortunes) passaram a ser percebidas e descritas como injustas. Muito dessa ampliação da percepção da injustiça se deveu, conclui Shklar, às contribuições trazidas pelas narrativas e relatos de sofrimento por parte das vítimas de injustiça.

Em resumo: injustiça de primeira ordem refere-se a práticas desiguais de reconhecimento epistêmico. Isso significa que narrativas e experiências podem exercer um papel de ampliação e correção no alcance epistêmico de teorias normativas, contudo, ainda não está claro como experiências vividas podem fornecer os critérios de crítica de injustiça. Embora reconheçamos o potencial normativo dos discursos, no que concerne à injustiça de primeira ordem, disso não decorre que esses discursos revelam em si o conteúdo da justiça. Em outras palavras, ainda que todos os discursos possam ser normativamente justificados, não significa que devam ser justificados.

É em relação a essas disputas sobre critérios de justificação moral dos discursos que encontramos o que entendo por justiça de segunda ordem, porque a maneira como nos referimos às nossas próprias experiências, especialmente em sua dimensão afetiva, é ambígua: não há tradução imediata entre o que sentimos e o que se sejam boas razões para justificarmos essas experiências. Em meio a um amplo leque de ambivalências em que se situam nossos afetos, sobretudo quando aludimos a experiências de sofrimento, nem sempre temos boas razões para encontrar nelas critérios de justificação.

Desde as contribuições teóricas da psicanálise, não apenas o controle e a reflexão do sujeito sobre o que sente e deseja foram postos sob suspeita, como também a contingência e a vulnerabilidade constitutivas do processo de subjetivação passaram a ser analisadas como uma forma de sofrimento que escapa ao escopo de teorias normativas da sociedade. Tal sentido de sofrimento pretende indicar que, independentemente dos arranjos conquistados socialmente, sempre haverá fissuras inerentes à constituição da subjetividade.[109] Diferentes desse tipo de sofrimento – que podemos entender como mais radicalmente contingente e idiossincrático –, as tarefas de teorias normativas devem ser dirigidas ao que chamamos de sofrimento social, isto é, a instituições e práticas sociais que poderiam oferecer um significado terapêutico, diante de causas sociais do sofrimento.

Gostaria de sugerir que sofrimentos podem ser sociais não somente no sentido mais estrito de como podem ser confrontados, no âmbito de uma teoria das instituições, mas também em dois sentidos mais imanentes à normatividade social: por um lado, em relação às normas que constituem os imperativos de realização dos sujeitos; e, por outro, nos limites dados pela gramática social, impedindo que as formas de vida disponíveis ao sujeito possam ser ampliadas. Nos dois casos, o horizonte de realização da liberdade – em outras palavras, de como a liberdade pode ser efetivada – precede o próprio sujeito. Diferentemente de sofrimentos resultantes de contingências da subjetivação, esse horizonte socialmente compartilhado pode ser objeto da crítica social. Nesse sentido, trazer narrativas ao âmbito da crítica não significa criticá-las de maneira isolada, como escolhas individuais, mas inseri-las em um horizonte semântico compartilhado.

Contudo, quando a crítica toma os afetos como propriedades individuais, ela perde de vista os padrões normativos que antecedem o horizonte no qual se inscreve a fenomenologia das experiências subjetivas. Com isso, ele deixa de oferecer um potencial crítico ao vocabulário que antecede o modo como experiências subjetivas são articuladas. Mais do que isso: se experiências e relatos são propriedades individuais intangíveis, eles deixam de ser um problema de justiça. A partir dessa perspectiva unilateral dos relatos, experiências singulares de sofrimento não mais podem ser enfrentadas naquilo que poderiam ser suas causas sociais. Se digo “[...] isto que eu sinto é propriedade exclusivamente minha”, esses sentimentos não mais teriam qualquer relevância do ponto de vista da crítica social. O resultado seria um conjunto de escafandros epistêmicos: mônadas que não mais poderiam se comunicar, bloqueando o conflito inerente ao próprio pluralismo democrático sobre o grau de relevância normativa dos afetos para questões de justiça.

Na perspectiva pública de acomodar a pluralidade de visões de mundo, percepções particulares sempre encontrarão divergências e eventualmente estarão em conflito com outras narrativas, as quais poderão ou não ser legítimas, do ponto de vista de seu valor moral. Na perspectiva de teorias procedimentais ou mais próximas ao construtivismo moral, cabe ao próprio discurso entre as pessoas diretamente afetadas, e não ao filósofo moral, encontrar a validade de suas demandas. Apesar de seu aparente deflacionamento normativo, por trás de pressupostos de racionalidade e universalidade podem esconder-se categorias pouco abrangentes, nas quais, por conta dos critérios que são tomados de antemão como racionalmente válidos, acabam por excluir a relevância epistêmica de outras narrativas. A teoria empobrece-se, reduzindo-se a um ventrículo que apenas repete a si própria. Para sair desse imbróglio autorreferencial, a teoria precisa continuamente abrir-se à revisão do que toma como critérios abrangentes. Se reduzimos a crítica ao potencial epistêmico dos relatos, enredamo-nos em dificuldades de legitimação, uma vez que tais perspectivas singulares integram um quadro plural de visões de mundo.

O conteúdo semântico das experiências refere-se, em suma, às próprias experiências; relatos permanecem apenas como relatos, se neles não é reconhecido o potencial epistêmico de transcender seu horizonte narrativo. Enquanto fala a partir da sua própria experiência particular, não concerne ao sujeito a autoridade epistêmica para, com base nela, discernir entre o horizonte de justificações de suas preferências a ponto de pô-las como régua moral alargada à sociedade. Nesses casos, a reinvindicação por justiça não deriva apenas de um conjunto privilegiado de experiências exclusivamente particulares, porém, é compartilhada por outros sujeitos. O rol de nossas experiências, por mais particulares que possam ser, inscrevem-se em um vocabulário que transcende a nossa singularidade. Abdicar disso nos faria recair no que podemos chamar de escafandro epistêmico: relatos e experiências particulares aos quais ninguém pode ter acesso. Teorias normativas, portanto, não podem se arrogar o direito de conceder aos relatos subjetivos, pelo fato de eles tenham autoridade sobre suas próprias visões de mundo, a autoridade epistêmica da crítica. Assim como pretensões de universalidade são permanentemente retificadas, pouco avançamos, se assumimos que teorias normativas concernem apenas ao particular.

Nem sempre temos à disposição o vocabulário necessário para justificarmos nossas escolhas. Quando não temos o espaço de razões, para usar a expressão de Willfried Sellars, não temos à disposição a distância semântica necessária para criticar o rol singular do que sentimos. Logo, podemos chamar o esforço de imparcialidade de perspectiva da teoria: ela consiste na contínua tradução em critérios normativos de um quadro plural e frequentemente conflituoso de narrativas singulares. Teorias normativas e o próprio sentido epistêmico atribuído à filosofia – naquilo que lhe resta, enquanto tentativa de crítica – não podem se reduzir a biografias. Se bastassem relatos, não precisaríamos mais do que literatura.

Contudo, nem a filosofia nem a literatura se restringem a relatos biográficos. A força imagética de novos vocabulários constitui-se como heterônoma enquanto tenciona relatar um outro de si. Se seguirmos de perto e mais atentamente relatos autobiográficos, veremos que raramente conseguem ser encapsulados em identidades rígidas; são como câmaras escuras da identidade, invertendo imagens.

Quando teorias se reduzem a experiências, elas assumem a premissa de autorreferencialidade dos relatos, os quais, encerrados em si próprios, acabam por obstruir a percepção de outras formas de injustiça. Inversamente, é o descentramento da perspectiva particular que permite ampliar sua capacidade de ouvir e incorporar continuamente outros relatos. O que se percebe é uma mudança de perspectiva de onde fala o filósofo ou a filósofa: ao invés de tomar como norte sua própria teoria, toma-se a posição de ouvinte, ou seja, alguém que não somente fala, como também escuta narrativas e percepções de injustiça. Significa assumir que a visão do teórico ou teórica é enraizada em um determinado contexto. Reconhecer essa situabilidade da teoria nos coloca numa posição de escuta: ser sensível a narrativas que antes não encontravam razão para serem ouvidas; ouvir como discurso o que antes era ouvido como ruído. Esse pêndulo da cooperação recíproca se mostra num esquema simples, como este a seguir:

 

Teoria                    Narrativas

 

Além desse pêndulo entre narrativa e teoria, o qual nos leva a buscar critérios da crítica além das narrativas, perspectivas ligadas à virada narrativa reduzem-se a um horizonte semântico de vocabulários que aparentemente são propriedades nossas. Trata-se, aqui, de perguntar quais afetos são possíveis, o que podemos (e devemos) sentir? É por isso que, mais do que continuar insistindo na tensão entre perspectiva em primeira pessoa e teoria, devemos nos perguntar como afetos são vividos e narrados, não apenas singularmente, mas sobretudo no horizonte de uma gramática socialmente partilhada.

What is the role of subjective experiences in social criticism? Distinguishing between first and second order justice

Abstract: Over the last decades, different approaches linked to decolonial tradition have shifted the pendulum of critique from claims of universality towards individual accounts and experiences. However, in what we can call “narrative turn”, the moral justifications for first-person perspectives are not always evident. In this paper, I explore the boundaries of epistemic relevance regarding the role that subjective accounts and experiences play in the critique of injustice. For that, I start by inverting the question of objectivity in the critique considering the particularity of different experiences. The issue, in this case, is the position from where philosophers speak in their attempts to describe experiences of suffering. With regards to first-person standpoint, the question that is at stake is whether philosophers are capable of describing others’ experiences. In these terms, how can we share experiences of injustice after all? Next, I argue that there ought to be, in the debate, a distinction between two dimensions of justice. According to usual distinctions of “first- and second-order” approaches, I insist that theoretical claims related to the narrative turn refer to demands of first-order justice: it is about moral recognition of individuals’ epistemic claims, opening to the possibility to confront defective notions of universality and blind spots in theories of justice. However, these claims do not have justification criteria themselves, requiring, thus, normative dependencies which are external to experiences – these are situated in second-order justice. I argue, then, that this model has the advantage of incorporating the insights of decolonial theories without neglecting the potential for the critique of injustice.

 

Keywords: Narratives. Experience. Critique. Decoloniality.

 

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Recebido: 01/09/2022

Aceito: 16/01/2023


 

Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo

 

Giovanni Rolla[110]

 

Resumo: No artigo “Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão” (neste volume), Pereira e colaboradores levantam uma bateria de críticas ao enativismo, que é uma família de abordagens nas ciências cognitivas que confere centralidade ao corpo e à ação autônoma dos organismos nas explicações dos seus processos cognitivos. As investidas dos autores miram alguns conceitos centrais da proposta enativista, como conhecimento prático, corporificação (ou corporeidade) e regularidades sensório-motoras. Eu argumento que as críticas de Pereira et al. não procedem por razões diversas: algumas assumem o que querem provar, outras conferem peso excessivo a intuições sobre cenários ficcionais e, por fim, outras atacam espantalhos que não representam as posições enativistas. Nenhum dos pontos que levanto em defesa o enativismo são novos, mas considero importantes explicitá-los para tornar o debate sobre filosofia das ciências cognitivas mais claro.

Palavras-chave: Enativismo. Cognitivismo. Representações Mentais. Falácias.

 

 

Introdução

O artigo “Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão”, escrito por Roberto Horácio Sá Pereira, Sérgio Farias de Souza Filho e Victor Machado Barcellos, traz uma bateria de críticas à concepção enativa de cognição apresentada originalmente por Varela et al. (1991/2016). Algumas das críticas são totalmente novas, outras ecoam problemas já enfrentados por enativistas e por outros teóricos da cognição corporificada. De qualquer modo, são pontos que merecem esclarecimento, por parte dos próprios enativistas — os quais, por estarem preocupados em avançar sua tradição de pesquisa, às vezes perdem de vista questões mais básicas. O artigo de Pereira et al. é, portanto, absolutamente meritório em levantar essas questões, e eu considero essa uma excelente ocasião para fazer os devidos esclarecimentos.

No entanto, as críticas apresentadas no artigo alvo são muito menos contundentes do que a retórica dos autores faz parecer. Com efeito, eu mostrarei aqui que todas elas são absoluta e inequivocamente improcedentes. Entre os problemas que eu identifico nos argumentos do artigo de Pereira et al., estão sobretudo petições de princípio, confusões metodológicas e argumentos comprometedoramente entimemáticos. O meu ponto fundamental será reiterar que não é garantida a suposição, da qual se valem os autores, de que as conexões básicas entre mente mundo forjadas biologicamente devam ser caracterizadas em termos semânticos, isto é, envolvendo conteúdo representacional—o assim chamado Problema Duro do Conteúdo.[111] Para mostrar as falhas do artigo-alvo, eu comentarei cada seção separadamente. Desse modo, este texto espelhará em estrutura o texto dos autores (embora eu acrescente algumas subseções). Meu objetivo principal aqui é apenas desfazer confusões e desmontar os espantalhos ardilosamente levantados pelos autores. Assim, eu defenderei o enativismo—mas farei isso de um modo minimamente propositivo, pois eu não apresentarei aqui nenhuma tese positiva que já não tenha sido exposta e mais bem fundamentada em outros lugares.

 

1 Enativismo: uma breve desintrodução

 

1.1 Que enativismo?

Na seção introdutória do artigo-alvo, a caracterização do enativismo é feita a partir do trabalho recente de Gallagher e Bower (2014), o qual divide o enativismo em três fases: o enativismo precoce de Varela et al. (1991/2016), o suposto enativismo sobre consciência perceptual de Alva Noë (2004) e o enativismo radical de Hutto e Myin (2013). Os autores estão corretos na compreensão de que todos os enativistas sustentam que “[...] a percepção seria constituída por forma de agir corporificado [ou incorporado] de um organismo” e que isto “[...] dispensaria por completo a noção de representação”, o que, por sua vez, consiste na rejeição da tese segundo a qual “[...] percepção é uma mera recepção passiva do mundo”. Ademais, é consenso entre enativistas que fenômenos cognitivos, como a consciência (mas não apenas) não residem no cérebro, pois envolvem o acoplamento entre sujeito e ambiente. Assim, explicações desses fenômenos exigem considerar a “[...] interação do organismo com os aspectos ambientais.” (PEREIRA et al., p. 519). É a partir desse consenso que os autores apresentam suas malfadadas críticas.

Antes de respondê-las, notemos que um ponto que os autores deveriam destacar—e que Hutto e Myin (2013), Chemero (2009) e Di Paolo et al. (2017) deixam abundantemente claro—é que teóricos da cognição radicalmente corporificada modelam a cognição a partir de técnicas que dispensam conteúdos representacionais. Nesse contexto, ‘conteúdos representacionais’ ou simplesmente ‘representações mentais’ são entendidas como estados internos com condições de acurácia, portadores de informação semântica sobre fontes distais de estímulo (voltaremos a isso na subseção 1.3). Uma ferramenta usada para mostrar a dispensabilidade de conteúdos representacionais é a teoria de sistemas dinâmicos. De acordo com essa teoria, a descrição diacrônica do comportamento de um agente cognitivo através dos seus estados possíveis é complementada pela descrição das variações do ambiente que constituem atratores e repelentes para as variações de estados do agente. Por isso, a situação do agente, ou contexto ambiental, é indispensável para o entendimento de como ação e percepção dão origem a estados cognitivos não representacionais. Além disso, modelos dessa natureza não atribuem um processador central de informação que seria responsável por interpretar estímulos e oferecer respostas motoras de acordo com regras simbólicas (GELDER, 1995). Portanto, não é necessário postular conteúdo representacional para explicar toda cognição—ou seja, a representação mental não é a marca da cognição. É possível, ainda assim, que haja cognição com conteúdo? Sim. Mas toda cognição seria carregada de conteúdo—isto é, seria a cognição necessariamente representacional? Veementemente não.[112] Um exemplo de cognição sem conteúdo representacional é o nosso acesso ao ambiente imediato, a chamada cognição básica. De acordo com o enativismo, estados cognitivos básicos (como ação e percepção) emergem de exercícios de habilidades sensório-motoras, isto é, habilidades que correlacionam padrões de movimento com padrões de sensação. Enquanto movimento e sensação não possuem intencionalidade, ação e percepção possuem, de modo que as características que emergem na dinâmica sensório-motora não podem ser reduzidas às suas bases emergenciais (sensação e movimento separadamente).

 

1.2 Que construtivismo?

Ainda na seção de apresentação do enativismo, os autores comentam como essa teoria parece ‘abraçar um antirrealismo ingênuo [pois] sujeito e mundo se constituiriam pelas ações incorporadas do primeiro (sujeito) sobre o segundo (mundo)’ (PEREIRA et al.). Ou seja, ao rejeitar que a cognição envolva o acesso a um mundo pré-dado (‘pregiven’, na expressão de Varela et al. (2016), ou simplesmente dado, o enativismo estaria apenas repetindo o construtitivismo antirrealista presente na fenomenologia de Merleau-Ponty. Isso é falso.

Esse erro do artigo alvo é parcialmente justificado, pois o trabalho inovador de Varela e colaboradores em The Embodied Mind por vezes é demasiado programático. Leitores de primeira viagem podem não perceber o vínculo entre alguns posicionamentos que tipicamente são considerados completamente independentes na filosofia analítica tradicional. Um exemplo é a relação entre os frameworks cognitivista e adaptacionista nas ciências cognitivas e biologia evolutiva, respectivamente. Com efeito, a ideia enativista de codeterminação entre organismo e ambiente só é adequadamente explorada em conjunção com a discussão sobre biologia evolutiva que toma por base os trabalhos de Susan Oyama (2000) e de Stephen Jay Gould e Richard Lewontin (1979) contra a ortodoxia daquela disciplina. Recentemente, essa discussão foi extensivamente mais bem elaborada por Evan Thompson (2007), que aprofunda a relação entre a visão enativista de evolução e a teoria dos sistemas desenvolvimentais. A ausência desse debate no artigo de Pereira et al., refletida no modo como os autores descartam o suposto construtivismo enativista, é sintomática de um atalho que, ao invés de levar à terra prometida da “refutação cabal do enativismo”, conduz à total inocuidade dessa crítica pelos autores.

Para desfazer esse engano temerário, consideremos o seguinte. Caso a proposta enativista fosse apenas de avançar uma codeterminação mental (em que o conceito de mente é interpretado internalisticamente) entre agente e mundo, então os enativistas estariam comprometidos com a tese excêntrica de que um sujeito constrói um mundo internamente ao percebê-lo. Ou seja, se aquele fosse ocaso, o enativismo seria de fato uma variação de construtivismo antirrealista. Isso, no entanto, violaria a própria proposta de Varela et al. (1991/2016, capítulo 8) de evitar tanto o realismo quanto o antirrealismo. Ambas as visões exerciam certo repuxo na primeira geração das ciências cognitivas. O realismo estaria presente na ideia de que a cognição é o acesso parcial a um mundo externamente dado, e o antirrealismo estaria presente na ideia de que a cognição consiste na projeção de operações cognitivas internamente dadas. Ambas ideias, de viés realista e antirrealista, eram (e ainda são) persuasivas a muitos cientistas cognitivos do lado de fora da tradição enativa.

Para entender como o enativismo de Varela et al. se distancia tanto do realismo quanto do antirrealismo, é imprescindível interpretar o argumento contra o acesso a um mundo dado em conjunção com as observações dos autores de The Embodied Mind a respeito de biologia evolutiva. Como Nara Figueiredo e eu demonstramos recentemente (ROLLA; FIGUEIREDO, 2021), a ideia de que organismos realizam seu mundo (no original, ‘bring forth their world’) deve ser lida literalmente. Em resumo, as relações metabólicas entre organismo e ambiente causam mudanças em ambos os sistemas e, se as mudanças ambientais são estáveis o suficiente, elas se configuram como heranças ecológicas (não-genéticas) para as gerações seguintes. Nesse caso, a atividade organísmica contínua gera novas pressões ambientais e dirige (indireta e não-teleologicamente) o curso evolutivo dos organismos na medida em que estes realizam seus mundos.

O ponto acima é melhor entendido se atentarmos que, em The Embodied Mind (capítulo 9), os autores argumentam extensivamente contra a teoria então predominante na biologia evolutiva, o adaptacionismo. Segundo essa teoria, o único fator capaz de direcionar a evolução é a adaptação do organismo a pressões externas. (Notemos que essa concepção é análoga ao mantra cognitivista segundo o qual a cognição consiste no ajuste das representações de um organismo a um mundo externamente dado.) Juntos, adaptacionismo e genética mendeliana configuram as bases da assim chamada síntese evolucionária moderna. Embora a síntese evolucionária moderna tenha se tornado predominante na biologia evolutiva, a partir de 1930, atualmente, o fértil programa de pesquisa conhecido como síntese evolucionária estendida (REIS; ARAÚJO, 2020; LALAND et al., 2015) é uma alternativa de maior relevância no panorama teórico.

Como Figueiredo e eu demostramos (2021), a concepção enativista de evolução é perfeitamente contemplada por uma das vertentes mais produtivas da síntese evolucionária estendida, a teoria da construção de nicho (LALAND; MATTHEWS; FELDMAN, 2016; LALAND; ODLING-SMEE; FELDMAN, 2000; LEWONTIN, 1983, 2000; ODLING-SMEE; LALAND; FELDMAN, 2003; STERELNY, 2011). Nessa perspectiva, há uma codeterminação em escala filogenética entre organismo e ambiente. Ou seja, não há mundo externamente dado (tampouco há capacidades cognitivas internamente dadas), pois organismos literalmente constroem seus mundos através de gerações. Basta olhar para a janela para notar que todo o nosso ambiente é construído pela ação de outros seres. Até mesmo a atmosfera terrestre só possui as propriedades que possui por causa de uma longa história de interações biológicas na Terra que antecede o surgimento dos H. sapiens em bilhões de anos. É sem dúvidas um curioso devaneio filosófico pensar o contrário—que o mundo existe lá fora, isto é, dado, antes de qualquer coisa.

 

1.3 Representações mentais: o planeta Vulcano das ciências cognitivas[113]

Em seguida, os autores discutem a crítica enativista ao conceito de representação mental. Eles apontam que Varela et al. (1991/2016) cometem uma ambiguidade ao interpretar a representação ora como uma imagem mental (análogo ao sense data), ora como um conteúdo que transmite informação. Se essa ambiguidade existe, então o apelo ao representacionalismo (como um dos pilares do cognitivismo junto ao computacionalismo) seria vindicado diante das críticas enativistas.

Enquanto pode muito bem ser o caso que o enativismo precoce de Varela e colaboradores (1991/2016) vale-se de uma ambiguidade sobre o conceito de representação para tecer suas críticas, há uma objeção muito mais contundente no mercado que é devida ao enativismo radical de Dan Hutto e Erik Myin (HUTTO; MYIN, 2013, capítulo 4). Embora Pereira e colegas citem diversas vezes o trabalho de Hutto e Myin, os autores do artigo alvo convenientemente esquecem de endereçar a crítica do enativismo radical contra a possibilidade de naturalização de representações mentais. É importante notar que, de acordo com essa crítica, representações são entendidas exatamente ao modo do cognitivismo corrente—sem, portanto, aproximar indevidamente as representações mentais dos sense data. O fato de que, no artigo alvo, não encontramos nenhuma resposta ao problema levantado por Hutto e Myin (porque provavelmente não é possível respondê-lo, como mostro nos parágrafos seguintes), evidencia que qualquer explicação representacionalista oferecida por Pereira e colaboradores saiu suspeitamente barata demais.

O argumento de Hutto e Myin, conhecido como Problema Duro do Conteúdo, é simples: de acordo com cognitivistas, representações mentais são portadoras de informação semanticamente carregada, isto é, informação sobre as fontes distais de estímulos sensoriais. Porém, o único tipo de informação encontrada na natureza é a covariação. Estados naturais covariam confiável ou nomicamente. Pensemos na relação de covariação entre a idade da árvore e o número de anéis no seu tronco, ou entre a presença de fumaça e a presença de fogo etc. Não podemos inferir que um dos termos em uma relação de covariação representa o outro. Números de anéis no tronco da árvore não representam a sua idade—a representação aqui é imputada por nós uma vez que estamos situados em um contexto sociocultural amplo. Por si só, estados naturais são piamente quietistas e não dizem nada sobre ninguém. Ou seja, covariação não implica conteúdo semântico. Agora: por que seriam os estados cerebrais diferentes dos demais estados naturais? Por que um padrão de atividade neuronal seria a representação (ou o veículo de uma representação) sobre uma fonte distal de estímulo, e não simplesmente a covariação confiável (dada uma longa história evolutiva) entre performance cognitiva e objeto de cognição?  Ou o cognitivista aceita que existe cognição sem conteúdo (acarretando o enativismo) ou ele nos passa um cheque sem fundo com a promessa de que um dia a física do futuro vai descobrir conteúdos semânticos em estados naturais. A segunda via é naturalisticamente temerosa. Donde se segue que o cognitivista deve dar o braço a torcer e abdicar da representação como a marca da cognição.

Notemos que os enativistas radicais não estão sozinhos nessa objeção: um ponto semelhante foi feito, de dentro do campo cognitivista, por William Ramsey (2007), segundo o qual o que se chama hoje de ‘representação’ nas ciências cognitivas não satisfaz a tarefa de descrição do trabalho, isto é, não desempenha a função explanatória desejada. Um exemplo de como o conceito de representação mental não executa uma função explanatoriamente imprescindível pode ser encontrado no trabalho do aclamado neurocientista Stanislas Dehaene sobre leitura. Ao contrapor o modelo de processamento paralelo massivo do cérebro ao modelo clássico de processamento linear de informação (duas ideias de fundamento cognitivista), ele escreve que:

Hoje, a visão “arbustosa” [bushy] do cérebro, com várias funções operando em paralelo, substituiu o antigo modelo serial. Pois nós hoje sabemos, depois de termos tentado programar o reconhecimento de formas visuais em computadores, que a visão é complexa e que não pode ser reduzida a uma simples cadeia de “imagens” cerebrais. Várias operações intrincadas são necessárias para o reconhecimento de um único caractere. A análise visual é apenas o primeiro passo da leitura. Subsequentemente, uma variedade de representações distintas deve ser posta em contato: as raízes das palavras, os seus significados, os seus padrões de som, a articulação dos seus esquemas motores. Cada uma dessas operações tipicamente demanda a ativação de simultânea de várias áreas corticais separadas em que as conexões não são organizadas em cadeias lineares. (DEHAENE, 2009, p. 64, grifo nosso).

 

Agora: o que quer dizer “representações”, na passagem acima? A frase seguinte dá a entender que seriam operações do cérebro. Mas, se esse for o caso, não passam de sinais em covariação, isto é, padrões de atividade neuronal ocorrendo de modo ordenado. Isso é insuficiente para caracterizar um estado como representacional. Tendo isso em mente, podemos responder aos autores, quando eles escrevem que “[...] não entendemos como poderíamos prescindir do conceito de conteúdo representacional uma vez que temos que assumir como um fato a possibilidade de erros anti-predicativos se quisermos entender o fracasso das nossas ações.” (PEREIRA et al., p. 521).

Se a colocação em questão não for interpretada como uma falácia de apelo à ignorância, o modo óbvio de respondê-la é que a falta de uma covariação entre estados internos, ações do organismo e disposições ambientais (ou “erro anti-predicativo”, para usar o vocabulário dos autores) não é suficiente para estabelecer conteúdo representacional—assim como a existência de uma covariação também não o é. O ponto é que a possibilidade de erro, que é um desencontro entre sistema cognitivo e mundo, pode ser explicado pela falta de covariação, não necessitando a introdução de capacidades representacionais (para um aprofundamento nessa questão, veja KIRCHHOFF; ROBERTSON, 2018)[114].

Importantemente, nada disso quer dizer que o enativista deveria se desfazer de todas as magníficas descobertas das ciências cognitivas e da neurociência. Isso seria jogar o bebê proverbial fora junto com a água do banho. O que o enativismo sucede em fazer é rejeitar que essas descobertas impliquem conteúdo representacional, apesar do vocabulário representacionalista herdado da primeira geração das ciências cognitivas. Ou seja, mesmo que as nossas técnicas de modelagem envolvam uma linguagem computacional, não podemos projetar a linguagem dessas técnicas para o objeto-alvo dos nossos modelos. Posto de outro modo, o cérebro não é um cientista homuncular fazendo cálculos e previsões sobre o mundo (BRUINEBERG; KIVERSTEIN; RIETVELD, 2018), mas uma parte de um sistema que opera, quando tudo vai bem, em sintonia com o resto do corpo e com o ambiente distal. Em relação a isso, a crítica enativista mostra a inviabilidade do projeto de naturalizar representações mentais (a não ser, é claro, que aquela física do futuro se concretize, de modo a mostrar-nos como um estado natural possa vir a ter propriedades semânticas).

Esse último ponto pode ser pensado nos termos da seguinte analogia: representações mentais são como o planeta hipotético Vulcano. Como se sabe, a observação de perturbações na órbita de Urano por Urbain Le Verrier levou-o a postular a presença do planeta Netuno, cuja existência só foi observada posteriormente. Mais tarde, a constatação da precessão do periélio de Mercúrio promoveu o mesmo tipo de reação nos astrônomos. Sob a suposição de que as perturbações observadas só poderiam ser causadas por um planeta até então não observado e situado entre Mercúrio e o Sol, deu-se início a uma caçada por um planeta hipotético, Vulcano. Essa caçada acabou quando Einstein mostrou que as distorções observadas deviam-se a um corpo massivo (o Sol) cuja magnitude seria capaz de curvar ondas eletromagnéticas viajando no espaço. De modo semelhante, a primeira geração das ciências cognitivas modelou a cognição de cima para baixo, começando com performances típicas da cognição superior, como a linguagem e o raciocínio. Esse ponto de partida parece autorizar a suposição de que toda cognição é marcada por representações, o que ensejou a busca pela representação mental dentro do paradigma naturalista. Mas assim como a busca por Vulcano acabou com a descoberta de Einstein, a busca pela naturalização das representações mentais deveria ter acabado quando foi demonstrado que não é preciso postular representações para explicar toda a qualquer cognição.[115]

 

2 Se minha vó tivesse rodas, ela seria uma bicicleta

 

2.1 Por que “não cognitivo”?

Ao fim da primeira seção, os autores fazem um anúncio da crítica a ser desenvolvida na seção seguinte. O alvo é a epistemologia enativista, que é centrada na noção de know-how (MYIN; VAN DEN HERIK, 2020; ROLLA; HUFFERMANN, 2021)[116]. Segundo o enativismo, o comportamento de um agente na exploração ativa do ambiente em que está inserido pode ser entendido como um saber fazer ou um saber como. Esse tipo de conhecimento é inteiramente prático e envolve apenas o exercício de habilidades sensório-motoras. Portanto, não envolve representar como o ambiente está disposto, tampouco ter crenças verdadeiras justificadas sobre o ambiente. Pereira et al. tratam esse tipo de conhecimento como ‘destituído de sentido cognitivo’ (minha ênfase). Mas isto é interessante: qual o sentido de ‘cognitivo’ está em jogo aqui? Neste ponto os autores cometem uma flagrante petição de princípio. Vejamos.

Um ponto fundamental que não é explicitado em nenhum momento no artigo alvo é que o conceito de cognição para enativistas é diferente do conceito de cognição para cognitivistas, dado que o enativismo rejeita que representações sejam a marca do mental.  Enquanto cognitivistas defendem que a cognição é o processamento de informações pela articulação de representações, enativistas entendem que a cognição é uma ação exploratória autônoma do organismo acerca do seu ambiente. Essa ideia pode ser interpretada através do conceito de meta-metabolismo (MORENO; UMEREZ; IBAÑEZ, 1997; WERNER, 2020). A ideia é que organismos com sistema nervoso suficientemente desenvolvidos são capazes de ajustar, adaptar e facilitar seus processos metabólicos pela exploração ativa do ambiente, e por isso a cognição é evolutivamente adaptativa. Desse modo, percepção e ação são performances inegavelmente cognitivas, pois sem elas o organismo ficaria a mercê de recursos ambientais (como as criaturas da biota Ediacarana antes da explosão Cambriana).

Então por que o know-how (saber fazer) seria de “desprovido de sentido cognitivo”? Não seria cognitivo, é claro, se estivéssemos pensando a cognição como exclusivamente o que hoje se chama de ‘cognição superior’: pensar, raciocinar, descrever etc., pois todas essas performances envolvem a manipulação de símbolos. Mas é perfeitamente cabível tratar a interação de um agente com o mundo em termos de cognição básica, isto é, a exploração ativa do ambiente imediato sem o intermédio de conteúdo representacional. Tratar o conhecimento prático (sem representações e proposições) como nãocognitivo é pressupor resolvida, a favor do cognitivismo, a questão sobre o que é ou não cognição. Mas isso é exatamente que está em disputa, e por isso os autores cometem uma petição de princípio.

 

2.2 Quanto vale uma intuição?

Mas isso não vem ao caso, até porque Pereira e colaboradores provavelmente sustentariam que, por ‘cognitivo’, devemos entender ‘proposicional’—e que talvez percepção e ação sejam cognitivas apenas em um sentido menos interessante do termo. Ainda assim, há problemas notáveis nessa segunda bateria de argumentos. Eu identifico, em especial, um grave erro metodológico: os autores insistem que as nossas ‘intuições pré-teóricas’ (PEREIRA et al.) sobre casos ficcionais ou parcialmente ficcionais nos mostrariam que as teses enativistas são, nas palavras dos autores, ‘nonsense’ (PEREIRA et al.

Antes de apresentar esses argumentos e respondê-los detalhadamente, eu gostaria de discutir algo que os autores colocam para debaixo do tapete: qual o valor das nossas “intuições pré-teóricas” sobre casos contrafactuais quando elas são aplicadas para o mundo real? Nossas intuições podem nos dizer uma coisa ou outra sobre conceitos que habitam o reino cristalino do a priori. Mas elas são de pouco valor na decisão acerca da plausibilidade de teses empíricas, como as que estão em jogo. Como uma analogia, consideremos o que dizem nossas intuições sobre a constituição de objetos físicos, como a mesa em que me apoio enquanto escrevo ou a tela em que você está lendo este paper, ou até você mesmo, em toda sua beleza. Todas essas coisas parecem majoritariamente objetos sólidos e impenetráveis, não é? Aliás, seria sem dúvidas “intuitivo” do ponto de vista “pré-teórico” dizer que esses objetos são compostos mais de matéria do que de qualquer outra coisa. Mas isso está errado, pois todos os objetos são compostos majoritariamente de espaços vazios entre átomos—malgrado nossas intuições do contrário.

Meu ponto aqui é que, do ponto de vista empírico, o que nós diríamos se as coisas fossem radicalmente diferentes do que são não é evidência a favor (nem contra) nada. Os autores ignoram isso ao seguirem uma tradição argumentativa distintiva de maior parte da epistemologia pós-Gettier. Tipicamente, nessa tradição, um filósofo A propõe uma teoria T para cobrir alguns casos de atribuição de conhecimento (ou outros estados epistêmicos), ao que um filósofo B rebate que T não dá a resposta intuitivamente correta sobre outros casos contrafactuais remotos, ao que A responde com T*, ao que B responde com uma objeção de que T* não dá a resposta intuitivamente correta sobre ainda outros casos contrafactuais remotos, e assim por diante. O problema é que nossas intuições—aqui entendidas como disposições para reconhecer a presença de certos conceitos—têm sua confiabilidade ancorada às condições normais em que conceitos ocorrem (para um argumento mais cuidadoso sobre esses pontos, ver ROLLA, 2021b). Se sairmos do reino das condições normais e adentramos as especulações características da filosofia de poltrona, em que os únicos limites são as possibilidades lógicas e a nossa criatividade, nossas intuições apontam para qualquer lado como um ponteiro maluco. Por isso, eu chamo argumentos que se baseiam em especulações selvagens de argumentos do tipo “se minha vó tivesse rodas, ela seria uma bicicleta”. Como veremos, esse é precisamente o tipo de argumento que os autores mobilizam contra o enativismo.

 

2.3. Sobre pianistas e conhecimentos

Parte importante da primeira seção do artigo consiste em recontar a história trágica do pianista João Carlos Martins.[117] Resumidamente, Martins é um renomado pianista brasileiro que perdeu a capacidade de tocar piano por conta de lesões (algumas relacionadas à prática do piano). O ponto com essa narrativa é que, mesmo com todas as dificuldades e todos os acidentes que impedem a João Carlos o comportamento motor mais fino necessário para de fato tocar piano, o músico ainda saberia como tocar piano. Essa conclusão seria reforçada pelo fato de que, se um dia um tratamento milagroso lhe restituísse a capacidade motora, ele seria capaz de fazer o que há muito tempo já sabia como fazer. De fato, embora os autores não contem a parte mais recente da história, a capacidade de João Carlos para tocar piano foi ao menos parcialmente restituída em 2020 pelo uso de luvas biônicas feitas sob medida pelo designer Ubiratã Bizarro Costa. Isso supostamente mostraria que o pianista voltou a ser capaz de fazer algo que ele sempre soube como fazer.

Em resposta, devemos notar que, em condições normais, a atribuição de conhecimento prático depende da execução bem-sucedida de uma tarefa de modo regular e constante. É nesse sentido que enativistas enfatizam o conhecimento prático, por exemplo, na navegação bem-sucedida do ambiente sem representar a disposição desse ambiente e os seus objetos. Nesse tipo de cenário, só faz sentido dizer que o agente possui conhecimento prático se a tarefa é realizada com sucesso e estabilidade (ROLLA; HUFFERMANN, 2021). A ideia de fundo aqui é que saber como fazer algo (possuir um determinado conhecimento prático) mobiliza uma rede de capacidades que foram recorrentemente treinadas para serem executadas em condições específicas. Isso significa que uma pessoa sabe como fazer algo porque é capaz de fazer algo em condições ambientais favoráveis. Mesmo que eventuais erros sejam possíveis, ela ainda saberia como realizar a performance se normalmente o exercício das capacidades pertinentes obtém sucesso.[118] Posto de outro modo, em condições normais, se o sujeito não é capaz de (não possui as habilidades relevantes para) executar uma tarefa, não faz sentido dizer que ele sabe como fazer a tarefa em questão. Eu não sei como cozinhar um boeuf bourguignon, como escalar uma montanha, como desmontar o motor de um fusca nem como manejar um submarino. Se você me pedir para fazer qualquer uma dessas coisas, eu não serei capaz de fazê-las—mesmo que em um sentido filosoficamente muito desinteressante eu poderia fazê-las (com muito incentivo e esforço). Mas o fato é que eu não tenho o saber prático relevante porque não tenho as habilidades relevantes suficientemente bem treinadas.  Semelhantemente, eu sei como andar de bicicleta, e em condições ambientais favoráveis continuo sabendo. Se o pneu da minha bicicleta furar ou se ela for furtada, eu não perco o meu conhecimento prático—pois esses cenários são desfavoráveis para o exercício das habilidades em questão. Só faz sentido dizer que eu não sei como andar de bicicleta se, em condições ambientais favoráveis (e sem outras interferências, como lesões ou embriaguez), eu não consiga me manter equilibrado e me deslocar de um ponto a outro.[119]

Voltando ao caso do pianista. Pensar que João Carlos Martins (quando ainda era incapaz de movimentar ambas as mãos) sabia tocar mesmo que não pudesse tocar piano é uma visão por demasiado ingênua sobre como funciona uma performance. Qualquer um que se preste para estudar um instrumento musical sabe que, para saber tocar determinada peça, o treino deve ser diário, exaustivo e repetitivo. Esta pode ser considerada uma evidência anedótica, mas eu considero o caso da minha companheira bastante ilustrativo: ela é uma pianista amadora talentosa e já tocou peças de alta dificuldade, como Liebestraum n. 3 de Franz Liszt. Sem praticar essa obra há muitos anos (sua preferência atualmente é pelos chorinhos de Ernesto Nazareth), ela não hesita em dizer que não sabe como tocar Liebestraum n. 3, embora reconheça que, com um pouco de atenção à partitura e bastante prática, reaprenda a tocar mais rapidamente do que da primeira vez. A explicação enativista é que as muitas horas de prática modificaram suas capacidades motoras (este é o aprendizado corporificado adquirido pela repetição) e, embora essas capacidades tenham sido majoritariamente perdidas, a plasticidade humana garante a sua re-aquisição com treino e esforço.

De um modo geral, o ponto aqui é: sem a execução de fato da peça em questão, o sujeito não sabe como tocá-la, mesmo que tenha decorado cada compasso da partitura. Ou seja, João Carlos Martins talvez ainda soubesse que se toca uma composição pressionando uma sequência de notas específica em determinado tempo, com um dedilhado específico, mas (enquanto estava lesionado ou impedido) não sabia como pressionar essa sequência de notas, pelo simples fato de que não podia fazê-lo. Seguramente ele sabia que se toca piano assim-e-assado, mas não sabia mais como tocar. Confundir esses dois tipos de atribuição de conhecimento representa supor, circularmente, que o conhecimento prático é uma variedade de conhecimento proposicional. É justamente isso que está em disputa, e é isso que os autores ainda não provaram.

Consideremos agora a reabilitação real de Martins com o auxílio das luvas extensoras biônicas. As especulações sobre se ele sempre soube como tocar piano ou se teve de readquirir seu conhecimento prático poderiam ganhar mais corpo e relevância empírica nesse cenário. Contudo, sem estudos controlados, não podemos dizer se o pianista agora tem a mesma proficiência de outrora e, por conseguinte, se possui o mesmo saber prático. Será o caso que ele tem mais facilidade para tocar uma peça de Bach hoje (com as luvas) do que tinha antes de todas as enfermidades? Ele poderia, por exemplo, tocar la Campanella de Franz Liszt–uma peça notória pela sua dificuldade—desde o primeiro segundo em que colocou as luvas, ou teve de reaprender como se toca essa peça? Ou quem sabe João Carlos saberia apenas como tocar composições mais simples e de menor abertura entre os dedos? Parece-me inteiramente aberta a questão sobre se o autor sempre soube como tocar ou se teve de adquirir um novo saber prático adaptado às novas circunstâncias.

Mas o que diríamos se imaginarmos um cenário em que Martins recupera milagrosamente a capacidade motora fina das mãos por completo? Talvez aí então disséssemos que ele sempre sabia como tocar piano, mesmo quando não podia tocar, porque sua habilidade foi inteiramente restituída pelo milagre. Mas talvez disséssemos (o que me parece mais plausível) que ele teria de reaprender a tocar algumas peças. Poderíamos dizer que ele não seria mais o mesmo pianista, ou que não teria mais a mesma capacidade. Talvez até mesmo diríamos, quem sabe, que ele passaria a ter uma capacidade ainda maior do que antes do milagre. O ponto é que, quando os casos contrafactuais são muito remotos, como os que envolvem curas milagrosas e intervenções divinas, não sabemos o que dizer—como quando o pintassilgo de Austin (1970) explode ou recita Virginia Woolf. Por isso, eu acho que esse tipo de cenário não deveria receber tanto peso nas considerações a favor ou contra uma teoria, sobretudo quando a questão é largamente empírica. Trata-se de um caso notável de “se minha vó tivesse rodas, seria uma bicicleta”. Pode ser interessante como um exercício de criatividade filosófica, mas não prova nada substancial.

Então, mesmo que os autores acreditem terem reduzido ao absurdo a concepção não-intelectualista de conhecimento prático endossada por enativistas, nenhum dos seus argumentos é exitoso. [120]

 

3 Sobre cérebros e corpos

3.1. O cérebro também faz parte do corpo

Pereira et al. abrem a segunda seção do seu artigo enunciando o fato de que, para o enativismo, “[...] a percepção é essencialmente uma atividade incorporada [ou corporificada] de um organismo” (PEREIRA et al., p. 530), para, então, discutir a tese de Gallagher (2005), segundo a qual o corpo dá forma à mente. A partir daí, Pereira e colaboradores se empenham em defender a tese contrária, segundo a qual “[...] cabe ao cérebro moldar o corpo biológico ou físico (Körper) como corpo vivo (Leib).” (PEREIRA et al., p. 530).

Uma primeira objeção que podemos apresentar é: se o cérebro fosse exclusivamente responsável a conferir a forma ao corpo vivo e ao corpo biológico, então como poderia o cérebro de seres humanos ser formado apenas na sexta para sétima semana de gestação, e não antes? Esse é um conhecido fato biológico que falseia a tese de que o cérebro dá forma ao corpo biológico. Embora a questão mais interessante diga respeito à relação entre cérebro e corpo vivo, a alegação de Pereira e colaboradores é sobre a primazia do cérebro com respeito à forma do corpo, tanto vivo quanto biológico, por isso é importante destacar a falsidade empírica daquela afirmação.[121] Além disso, um dos tratamentos contemporâneos para casos extremos de epilepsia é a hemisferectomia, isto é, a remoção de um hemisfério do cérebro—pois pacientes epilépticos possuem uma maior conectividade (anômala) entre os dois hemisférios (KLIEMANN et al., 2019). Se a afirmação dos autores acerca da relação cérebro-corpo biológico fosse correta, então um paciente que passa por uma hemisferectomia perderia metade do seu corpo biológico. Naturalmente, isso é absurdo e descabido. Mas mais interessante do que isso é que as pessoas podem levar uma vida moderadamente normal mesmo depois de um procedimento tão invasivo.

Mesmo ignorando as dificuldades acima, que eu acredito de qualquer forma serem menores, há algo interessante a ser dito sobre o que os autores pensam serem teses contrárias, sejam elas: que o corpo dá forma à mente e que o cérebro dá forma ao corpo vivo. Notemos primeiro que o conceito de corpo vivo remete a um corpo animado, imbuído de mentalidade, por oposição ao corpo como objeto ou corpo biológico (conjunto de veias, músculos, vísceras etc.). Agora, dado que o corpo vivo é um corpo imbuído de mente, é possível destacar uma suposição curiosa que subjaz ao argumento entimemático dos autores. As teses de que o corpo dá forma à mente e de que o cérebro dá forma ao corpo vivo só são contrárias—no sentido de que não podem ser ambas verdadeiras—sob a suposição de que o cérebro não faz parte do corpo! Vejamos: se o cérebro é parte do corpo, então a tese de que o cérebro é responsável pela mentalidade implica também que o corpo é responsável pela mentalidade.[122] Mesmo que o resto dessa seção seja empiricamente bem-informado, trazendo discussões interessantes sobre esquemas corporais (que eu comentarei em seguir), parece-me uma trivialidade biológica que o cérebro faz parte do corpo tanto quanto mãos, pés, pulmões, intestino etc.

Talvez, no entanto, o que os autores queiram dizer com a premissa oculta de que o cérebro não é parte do corpo é que ‘cérebro’, nesse contexto, significa somatório de representações mentais. ‘Cérebro’ não se referiria, desse modo, à massa cinzenta dentro das nossas cabeças, mas àquilo de que essa massa é veículo, isto é, as representações mentais e as operações sobre elas. Em uma analogia (sem dúvida confortável ao cognitivismo dos autores), ‘cérebro’ parece referir-se ao software, enquanto a massa cinzenta seria apenas o hardware. Mas, além de tratar-se de uma escolha semântica curiosa, isso me soa vagamente dualista, porque, afinal de contas, as representações mentais estariam estocadas e seriam computadas em outro plano que não o cérebro de fato (no nosso sentido biologicamente incontroverso do termo). Mas o real problema dessa concepção, se eu estiver interpretando os autores corretamente, é que ela apela à distinção entre veículo e conteúdo. Se, no entanto, há excelentes razões para duvidar da possibilidade de naturalizar conteúdo (isto é, representações mentais), então não há uma razão de ser da distinção entre veículo e conteúdo. Assim sendo—a não ser que os autores realmente queiram dizer que o cérebro não faz parte do corpo—a motivação de Pereira et al. nessa seção só faz sentido se a crítica dos enativistas radicais contra a possibilidade do conteúdo representacional já estivesse sido respondida. Como eu mostrei em 1.3 acima, ela não foi respondida, e o apelo ao representacionalismo aqui acaba saindo, como em outras passagens, suspeitamente barato.

 

3.2.           Ratos, primatas e membros fantasmas

Como eu disse, essa seção é empiricamente bem-informada, pois nela os autores discutem alguns experimentos que supostamente acarretariam, de uma vez por todas, a falsidade do enativismo. Vejamos.

O primeiro experimento comentado é de Pais-Vieira e colegas (2013), que mostram que uma interface cérebro-a-cérebro entre dois roedores permitiu que a atividade cortical envolvida na realização de uma tarefa por um roedor seja transmitida pela interface a outro roedor. O cérebro do receptor recebe esses estímulos e aprende a desempenhar os padrões sensório-motoros relevantes para a tarefa (sem nunca ter feito a tarefa). Pereira e colaboradores parecem pensar que esse experimento refuta o enativismo porque supostamente refutaria a tese de que as constantes perceptuais são individuadas relativa e exclusivamente a cada corpo. Essa interpretação da intenção dos autores é clara quando eles escrevem ‘pouco importa qual corpo (qual organismo vivo) ao fim e ao cabo irá realizar a tarefa. O que importa é aquilo que o enativista quer negar: a rede neuronal intracraniana’ (PEREIRA et al.).

Será? Enativistas enfatizam que a morfologia corpórea de um organismo é constitutiva das suas atividades cognitivas, e por morfologia corpórea entende-se também como a rede neuronal é implementada nesse organismo. É um bem conhecido fato biológico que as estruturas neuronais transcendem a caixa craniana, conectando o cérebro ao resto do organismo, então a escolha pelo cérebro como locus da cognição (porque seria onde fica a rede neuronal) parece mais como um erro empírico. Ademais, no experimento comentado, temos dois (ou mais) agentes covariando seus estados de modo sincronizado, caracterizando um sistema complexo pelo acoplamento entre dois organismos—exatamente como a passagem de Pais-Vieira et al. (2013) citada pelos autores indica. Longe de ser uma refutação do enativismo, fenômenos de sincronização são conhecidos de longa data da ciência cognitiva radicalmente corporificada, tendo sido estudados por psicólogos ecológicos (ver o modelo HKB em CHEMERO, 2009 capítulo 5) assim como por enativistas (DE JAEGHER; DI PAOLO; GALLAGHER, 2010).

Portanto, quando os autores formalizam o seu argumento e escrevem que ‘3. Assim, primeiro, perceber é uma atividade no cérebro (rede neuronal), e a ação realizada é contingente para a percepção’ (PEREIRA et al.), a resposta óbvia é que os ratos estão de fato acoplados pela interface, e que há corpos agindo em ação conjunta—nenhum mistério até aqui. Em seguida, os autores escrevem que ‘6. Ora, segundo [a interface de cérebro-a-cérebro], o rato que aciona a alavanca só o faz na medida em que “recupera um conteúdo informativo” sensório-motor do primeiro rato’ (PEREIRA et al.). O problema, dessa vez, é que o “conteúdo informativo” mencionado é a covariação de estados. Como eu mencionei acima (1.3), covariação é insuficiente para o conteúdo. Longe de ser, portanto, uma refutação do enativismo, o experimento comentado pelos autores é perfeitamente acomodável no paradigma enativista, feitas as ressalvas sobre o vocabulário representacionalista.

O segundo experimento comentado na terceira seção é retirado de Ramakrishnan et al. (2015) e configura o mesmo tipo de caso, porém dessa vez com primatas utilizando uma interface cérebro-máquina ao invés de cérebro-a-cérebro. Nesse experimento, nota-se um acoplamento entre agentes através de um avatar virtual, o que permitiu o desenvolvimento de padrões sensório-motores comuns e a sincronia de estados intraneurais entre os primatas. Os autores alegam que ‘um mesmo corpo não é necessário para a experiência tátil’ (PEREIRA et al.). Mas isso não é controverso. De fato, é perfeitamente possível no panorama enativista que indivíduos morfologicamente semelhantes e com características ontogenéticas congruentes tenham experiências semelhantes, ou até mesmo idênticas, e que, com o acoplamento adequado, entrem em sincronia. Mas Pereira et al. continuam e afirmam que ‘o que é necessário é aquilo que o enativista quer negar: a existência de uma rede neuronal instanciada em uma série indefinida de corpos em espaços distintos’ (PEREIRA et al.).

A resposta enativista, para qualquer um familiarizado com a literatura, é que não há compromisso com a tese de que “um mesmo corpo” é necessário para determinar a qualidade da experiência. Enativistas têm compromisso centralmente com duas teses: em primeiro lugar, de que é necessário ter um corpo para ter experiências (anti-dualismo) e, em segundo lugar, de que a morfologia corpórea é um parâmetro crucial para determinar o tipo de experiências a serem tidas (corporificação). Ou seja, que dois ou mais organismos com morfologia corpórea semelhante possam transmitir sinais táteis através de conexões adequadas, e que dessa transmissão eles refinem e coordenem suas habilidades sensório-motoras, não é nem um pouco contrário ao enativismo. Seria surpreendente se o experimento mostrasse a transmissão de um sinal tátil entre organismos radicalmente diferentes e que ainda assim preservasse a qualidade da experiência. Por exemplo, se o primata pudesse ter o tato aderente de uma lagartixa ou a sensibilidade à corrente elétrica de um tubarão. Isso, eu acredito, ainda não foi demonstrado.

O terceiro experimento comentado nesta seção diz respeito ao famoso caso da ilusão da mão de borracha, e para isso os autores usam o trabalho de Shokur et al. (2013). Essa ilusão é interessante porque mostra que um objeto não corpóreo (a mão de borracha) pode facilmente ser incorporado no esquema e na imagem corporal do sujeito pelo cruzamento de informações visuais e táteis. Segundo os autores, disso se seguiria que

[...] esse corpo vivo é constituído metafisicamente pela representação subliminar e/ou não-conceitual do corpo biológico ou de substitutos, como avatares e membros mecânicos, que têm a forma de um esquema corporal gerado pelo próprio cérebro de forma sub-pessoal e subliminar (PEREIRA et al., p. 16).

 

Contudo, essa consequência se seguiria apenas sob a suposição de que esse fenômeno é uma ilusão de fato, em que a deriva proprioceptiva constatada no experimento é uma anomalia genuína, e não uma característica da nossa plasticidade adaptativa. Pois, sob a suposição de que existe um acoplamento momentâneo entre sujeito e órgão postiço—semelhante ao uso de uma ferramenta, como quando o martelo é percebido como a extensão do nosso corpo durante o ato de martelar um prego na parede (SCHETTLER; RAJA; ANDERSON, 2019)—, então não há nada de ameaçador ao enativismo no experimento da mão de borracha. Claro, o enativista ainda teria a dificuldade adicional de explicar por que a deriva proprioceptiva acontece. Talvez o caminho aqui seja explorar nossa virtude adaptativa que decorre do uso de ferramentas, como as tecnologias líticas que antecedem até mesmo o surgimento do sapiens. De acordo com essa explicação, nós temos a facilidade de incorporar objetos ao nosso corpo, e não há nada de misterioso com isso, sobretudo considerando que nós somos os únicos primatas que se realizam pela confecção e uso de ferramentas (IHDE; MALAFOURIS, 2019). A ideia, portanto, é que apenas sob a suposição de que a explicação enativista da “ilusão” da mão de borracha está a priori errada, a objeção pode proceder. Trata-se de mais uma petição de princípios.

Esta seção conclui com um comentário interessante sobre uma terapia usada para aliviar a dor do membro fantasma, que é comumente relatada por pessoas que tiveram um membro amputado. Os autores perguntam: ‘como entendermos o tal membro fantasma sem supormos um conteúdo representacional?’. Eu respondo: hoje sabemos que a dor do membro fantasma é causada pelo trauma da amputação, que rompe conexões nervosas eferentes e aferentes. Os danos às terminações nervosas causam tumores benignos onde elas foram rompidas, deixando os nervos superexcitáveis e emitindo descargas súbitas que causam dor (HANYU-DEUTMEYER; CASCELLA; VARACALLO, 2021). Mas a descoberta interessante relatada por Pereira et al. é que pessoas que fizeram o tratamento de movimentar o membro normal e “movimentar” o membro amputado na frente do espelho relataram uma diminuição considerável de dor, diferente de outros grupos que usaram outras técnicas. Como os autores mesmo reconhecem, não há uma explicação óbvia para o êxito dessa terapia. Mas por isso mesmo é importante ter cautela ao asserir que o cérebro (ou o homúnculo lá dentro) está ajustando a sua representação do corpo pelo espelho. É igualmente provável que a observação dos movimentos no espelho diminua a dor por facilitar o ajuste das habilidades sensório-motoras às novas condições do sujeito, precisamente pelo reforço sensorial da imagem especular.

 

4 Onde fica a consciência perceptual

4.1. Fogo amigo nas trincheiras cognitivistas

Na terceira seção do seu artigo, os autores atacam o que acreditam ser a quintessência do enativismo, o externismo fenomenal. Essa é a tese de que o caráter fenomenal da experiência é constituído pelo ambiente com o qual o agente interage. Que isso seja uma das consequências de abolir a ubiquidade das representações mentais nas ciências cognitivas é uma coisa—mas tratar aquela tese como quintessência pode ser uma novidade para maior parte dos enativistas. De qualquer forma, aqui o argumento foca na teoria da consciência perceptual de Alva Noë.

Apesar do trabalho de Alva Noë (2004, 2012) ser caracterizado como pertencente à fase intermediária desse programa de pesquisa, um peso exagerado é atribuído às suas contribuições, pois, inobstante aparências do contrário, Noë é um cognitivista. No entanto, esse equívoco por Pereira e colaboradores é parcialmente justificadao pois o próprio Noë — em conjunção com outros autores (HURLEY; NOË, 2003; O’REGAN; NOË, 2001a, 2001b) — foi um dos responsáveis por ampliar o alcance do enativismo na filosofia analítica no começo dos anos 2000. Porém, o exame do seu trabalho revela um compromisso velado com o cognitivismo que é veementemente rejeitado pelas variedades mais desenvolvidas de enativismo disponíveis (DI PAOLO; BUHRMANN; BARANDIARAN, 2017; HUTTO; MYIN, 2013). É importante ter isso com clareza em mente, pois as críticas dirigidas a Noë são, na verdade, críticas a um companheiro dos próprios autores nas trincheiras cognitivistas—trincheiras essas que há pelo menos 30 anos entraram em irreversível recuo na disputa pelo terreno das ciências cognitivas.

Em resumo, as razões pelas quais a teoria de Alva Noë sobre a consciência perceptual não deve ser tomada como exemplo de enativismo são as seguintes. Noë argumenta que a consciência perceptual de um sujeito é constituída pelo entendimento prático de padrões sensório-motores. Isto significa que o caráter fenomênico de estados perceptuais é determinado pelo conhecimento de quais exercícios sensório-motores oferecem as variações perceptuais esperadas pelo indivíduo. A acusação consensual é justamente que Noë contrabandeia uma tese cognitivista na sua explicação da consciência perceptual, pois “entendimento prático”, no uso que Noë faz, é simplesmente conhecimento proposicional. Isso ocorre porque o sujeito sabe que determinados exercícios sensório-motores terão determinadas respostas esperadas por ele. Por implicar conhecimento proposicional, a fortiori, a explicação de Noë implica conteúdo representacional (HUTTO, 2005; HUTTO; MYIN, 2013; ROWLANDS, 2010). Notemos que nenhum enativista deve comprometer-se com essa teoria, dada a ênfase do enativismo na rejeição do conteúdo representacional como a marca da cognição (1.3 acima). O fato de que Noë combina veladamente conteúdo representacional com coordenação sensório-motora apenas o afasta do cognitivismo clássico como de Fodor (1983), mas não dá o passo necessário para caracterizá-lo como enativista, pois ele não explica o fenômeno da consciência sem recorrer (nem implicitamente!) a conteúdo representacional.

Qualquer que seja o caso, essa seção tem dois argumentos que merecem atenção: primeiro a observação de que alguns estados anômalos, como alucinações, podem ser indiscrimináveis de percepções genuínas—e que, uma vez que ocorrem na ausência de uma interação entre sujeito e mundo, falsificariam o externismo fenomenal do enativismo. Em segundo lugar, os autores relatam uma história pessoal em que um dos autores falhou em distinguir particulares, apesar da diferença numérica entre esses particulares, o que supostamente convidaria interações sensório-motoras diferentes. Veremos cada argumento por vez.

 

4.2.                     Das alucinações e percepções

Como suporte ao fato de que algumas alucinações são qualitativamente indiscrimináveis de percepções genuínas, os autores invocam a Síndrome de Charles Bonnet (SCB). Pessoas com SCB desenvolvem padrões sui generis de alucinação conforme lhes faltam estímulos no córtex visual (mais especificamente, no lobo occipital ventral), e geralmente os sintomas pioram conforme a sua idade avança. Porém é bem conhecido que pessoas afetadas por essa condição são capazes de discriminar alucinações de percepções verídicas e de levar uma vida quase normal (SACKS, 2012). Segue-se que essas alucinações não são indiscrimináveis de experiências normais, pois é possível discriminá-las. Ou seja, segue-se que os dois tipos de estados—percepção genuína e alucinação—possuem qualidades fenomênicas potencialmente diferentes. Pode não ser um caso “universalizável”, como os autores colocam, mas isso é uma inversão de ônus da prova. Para que o argumento dos autores funcione, o que precisaria ser universalizável aqui é a tese de que toda alucinação para pessoas afetadas pela SCB é indistinguível de percepção genuína, pois apenas assim Pereira e colaboradores teriam suporte para afirmar que não há diferença fenomênica entre percepção e alucinação (ou delírio).

Depois de comentar o caso de um idoso acometido com SCB que alucina plantas com cores vibrantes, os autores se perguntam se ‘haveria alguma ação incorporada que os organismos pudessem realizar que tornasse o caráter fenomenal das suas experiências alucinatórias distinto das suas percepções genuínas?’ E eles mesmos respondem que não há nenhuma evidência na literatura. Mas me parece gritantemente falso que você possa interagir do mesmo modo com o mundo real e com uma alucinação. Até onde eu sei, não é possível regar uma alucinação! Ou seja: há óbvias diferenças entre o aspecto fenomênico de uma percepção genuína, o que envolve o acesso sensório-motor ao mundo, e o aspecto fenomênico de uma alucinação (sem o exercício sensório-motor adequado). Em condições normais, você pode interagir fluentemente com o mundo, mas não é o mesmo com uma alucinação—sobretudo se ainda estivermos falando dos casos de SCB, porque essa é uma afecção do córtex visual apenas. Mas se estivermos falando sobre uma pessoa acometida por outros impedimentos cognitivos—digamos que ela esteja em um caso de delírio permanente—então não há nenhuma tendência a atribuir-lhe estados cognitivos normais ou mesmo análogos aos que uma pessoa neurotípica em condições normais executaria. Isso é tudo que precisamos para barrar um argumento pelo internismo fenomenal avançado pelos autores.

Isso posto, os autores desafiam os enativistas a provar que ‘duplicatas cerebrais, interagindo de forma incorporada com diferentes particulares e diferentes propriedades distantes [ou distais], realizariam experiências fenomenalmente distintas, ainda que expostos aos mesmos estímulos próximos [ou proximais]’. Isso, eu acredito, é um equívoco. Enativistas não precisam responder a esse desafio porque ele não é empiricamente plausível. Isso é trabalho de filósofos que se encantam com possibilidades lógicas que, por mais divertidas que sejam, ainda são cientificamente irrelevantes. Do mesmo modo, os autores se perguntam sobre ‘por que temos que supor que cérebros em tanques de nutrientes não possam compartilhar dos mesmos processos metabólicos de cérebros encarnadas quando devidamente estimulados?’. Aqui me parece haver novamente uma confusão acerca de fatos biológicos básicos (ver também THOMPSON; COSMELLI, 2011). Se fosse possível separar o metabolismo do corpo dos funcionamentos cerebrais, toda vez em que eu tivesse que trabalhar, mas estivesse muito cansado, eu removeria o cérebro do corpo e colocaria meu corpo em stand by enquanto meu cérebro escreve, estuda ou prepara uma aula.

 

4.3. Da discriminação de particulares

Antes de apresentar o argumento interessante contra a concepção enativista de experiência fenomênica, os autores ainda ensaiam mais um argumento do tipo “se minha vó tivesse rodas, ela seria uma bicicleta” ao enunciar que a tese enativista é contraintutivia e que ‘supor que a consciência não esteja em nossas cabeças, mas antes “nas atividades orgânicas amplas” em um ambiente é difícil de se engolir’ (PEREIRA et al.), chamando por causa disso a teoria enativa de ‘wishful thinking’ (PEREIRA et al.) ou autoengano em bom português. Se fizesse sentido entrar no mérito sobre os estados psicológicos dos autores, neste ponto estaríamos lidando com um caso clássico de projeção.

Mas seja como for, os autores prosseguem com um relato pessoal, em que um sujeito inebriado em uma festa consome várias taças de vinho inadvertidamente sob a impressão de que havia bebido muito menos. Ocorre que, sem que ele soubesse, toda vez em que colocava sua taça na bancada, alguém a enchia. Na medida em que ele interagiu com vários particulares diferentes (taças 1 a 10) — prossegue o argumento dos autores—se o enativismo estivesse correto, o sujeito seria capaz de perceber, ao beber cada taça, que se tratava de uma taça com conteúdo diferente da anterior.

Se assim fosse, o enativismo teria de enfrentar uma forte objeção. Mas não é isso que o enativismo prevê. Vamos supor que o sujeito estivesse bebendo vinho tinto seco. Se alguém coloca um mesmo tipo de vinho na sua taça quando ele não está olhando, a resposta sensório-motora é amplamente semelhante às anteriores. Ou seja, não há variação ambiental significativa o suficiente para interferir no exercício dos seus padrões sensório-motores nesse caso. Assim, mesmo ignorando que as capacidades discriminatórias do sujeito seriam progressivamente afetadas a cada nova taça, a conclusão enativista é que não há como discriminar uma taça da outra porque o ambiente se ofereceu de modo suficientemente semelhante. Isso é o que de fato aconteceu no exemplo original. Mas e se os responsáveis por manter a bebida rolando trocassem a taça de vinho tinto seco por um vinho tinto doce? Ou por um copo de uísque? Ou por uma taça alongada de espumante? Ou por um copo de suco de laranja com gelo? Ou uma taça de mamma jamma?[123] Todos esses casos, naturalmente, convidam interações sensório-motoras mais ou menos diferentes daquelas envolvidas com as taças de vinho, a começar pelo próprio formato ideal de cada copo para cada bebida. Apenas nesse tipo de caso, em que as variações ambientais são significativas o suficiente, o enativismo prevê que as ações do sujeito dariam origem a estados perceptuais substancialmente diferentes, porque seriam necessários exercícios sensório-motores diferentes.[124]

 

Conclusão

O enativismo segue firme e forte.

 

Agradecimentos

Eu agradeço muito enfaticamente a Marcos Antonio Alves pelo convite para participar de um número tão prestigioso da revista Trans/Form/Ação e também pela paciência na editoração deste artigo. Agradeço mais uma vez aos pareceristas anônimos que ofereceram sugestões importantes para a melhoria deste texto. Agradeço a Nara Figueiredo, Guilherme de Vasconcelos, Lucas Argolo por lerem e comentarem este texto comigo. O retorno positivo de muitos amigos e colegas, entre eles (mas não apenas) Ralph Ings Bannell, Thales Silva e Roberto Alexandre Levy, representou uma importante força motivadora para o meu trabalho como um todo.

 

Why we are not only our brain: in defense of enactivism

Abstract: In the article “Why are we our brain: enactivism put into question” (this volume), Pereira and collaborators raise a battery of criticisms of enactivism, which is a family of approaches in the cognitive sciences that gives centrality to the body and to the autonomous action of organisms in explanations of their cognitive processes. The authors’ attacks target some central concepts of the enactivist proposal, such as practical knowledge, embodiment (or corporeity) and sensory-motor regularities. I argue that the criticisms by Pereira et al. do not proceed for different reasons: some assume what they want to prove, others give excessive weight to intuitions about fictional scenarios and, finally, others attack scarecrows that do not represent the enactivist positions. None of the points I raise in defense of enactivism are new, but I consider it important to make them explicit in order to make the debate on the philosophy of cognitive sciences clearer.

 

Key-words: Enactivism. Cognitivism. Mental Representations. Fallacies.

 

Referências

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Recebido: 11/09/2022

Aceito: 03/01/2023


Comentário a “Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo”: representações situadas como um terreno comum entre o cognitivismo e o enativismo

 

Felipe Nogueira de Carvalho[125]

 

Referência do artigo comentado: ROLLA, G. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 207- 236, 2023.

 

Qualquer estudante ou pesquisador(a) que se interesse pela filosofia da cognição e da percepção, no Brasil, sem dúvida percebeu que o programa de pesquisa enativista tem passado por uma crescente popularização no país, nos últimos anos. Livros, artigos, conferências etc. atestam como muitos filósofos e filósofas já se valem desse quadro teórico, para explorar temas caros à filosofia, não apenas dentro da filosofia da cognição, como também na ética e na epistemologia.

            No entanto, o enativismo ainda enfrenta resistências de parte da comunidade filosófica brasileira. Em círculos mais informais, é comum ouvir acusações de que o enativismo entrega pouco mais do que uma série de slogans envolvendo um punhado de letras “E” (em inglês, embodied, embedded, enactive e extended, ou, em português, corporificada, situada, enativa e estendida, todos predicados aplicados à cognição), os quais, na melhor das hipóteses, são vagos e obscuros e, na pior, são falsos ou carecem de sentido. Essas suspeições foram sintetizadas por Horácio, Filho e Barcellos (2022) – que representam aqui a posição cognitivista – em um texto que coloca pressão no enativismo, para que se explique e fundamente seus argumentos e prescrições metodológicas. Esse desafio foi encarado por Giovanni Rolla, atualmente um dos expoentes desse programa de pesquisa, não apenas no Brasil, mas internacionalmente, no texto que será objeto do presente comentário

            O texto de Rolla possui grande mérito, ao responder dúvidas e dissipar os principais mal-entendidos que assolam o enativismo, apresentando-se como uma boa introdução a um programa de pesquisa que ainda é pouco compreendido por filósofos e filósofas de tendência mais cognitivista. Apesar das doses ocasionalmente excessivas de ironia que perpassam seus argumentos, a dialética de Rolla é suficientemente clara, para que até mesmo um leitor pouco familiarizado com esse campo de estudos possa acompanhar o debate. No entanto, alguns pontos ainda permanecem obscuros e merecem atenção especial, a fim de que o texto possa, de fato, cumprir seu objetivo de aliviar as preocupações de quem ainda se vê incapaz de conceber uma filosofia da cognição não cognitivista.

            Um ponto em especial me parece nevrálgico, no debate entre cognitivistas e enativistas: as representações mentais. Enquanto o abandono da linguagem representacional é uma das bases do enativismo, sobre a qual todo o seu arcabouço teórico é construído, certos cognitivistas, como Horácio, Filho e Barcellos, se mostram profundamente perplexos com tal sugestão. Como podemos explicar as percepções e ações de um organismo, em seu ambiente, sem fazer menção a estados neurocognitivos que representem aspectos desse ambiente? O enativismo, claro, tem uma (ou mais de uma) resposta, fortemente apoiada sobre noções como habilidades práticas (know-how), acoplamentos sensório-motores e enações (enactments), mas, mesmo após esses esclarecimentos, o cognitivista ainda insiste que tais conceitos devem, de uma forma ou de outra, ser baseados em representações mentais.

            A este ponto, corre-se o risco de o diálogo entrar em colapso, sem um chão comum onde um debate genuíno possa ocorrer. Meu objetivo, neste breve comentário, será especular sobre a possível existência desse chão comum, o qual redesenhe o mapa do espaço teórico do debate de modo a incluir uma Suíça entre a França e a Alemanha do enativismo e do cognitivismo. Mas, como esse terreno envolve uma reabilitação de (uma certa noção de) representações mentais, não é claro que esta será uma fronteira que o enativista terá interesse em cruzar. Todavia, enquanto ele se reforça em seu território, podemos levantar a seguinte questão, não só ao texto de Rolla, porém a todos os simpatizantes desse programa de pesquisa: por que tamanha resistência a qualquer tipo de linguagem representacional?

            Há duas resposta imediatas a essa questão que podem ser facilmente encontradas no texto de Rolla. A primeira delas diz respeito aos 4 “E” do enativismo. Ora, se a cognição é corporificada, situada, enativa e estendida, faz pouco sentido conferir uma atenção excessiva ao que acontece dentro do cérebro de agentes cognitivos, como faz o cognitivismo clássico. Essa resposta é mais metodológica do que argumentativa, e concerne a uma mudança de vocabulário na construção de teorias sobre a cognição. Já a segunda resposta é mais argumentativa, e se refere ao “problema duro do conteúdo” articulado por Hutto e Myin (2013) e citado com aprovação por Rolla, como o prego definitivo no caixão do representacionalismo. Embora questões de espaço não nos permitam examinar esse problema em maiores detalhes, a ideia básica pode ser extraída da seguinte passagem de Rolla:

[…] de acordo com cognitivistas, representações mentais são portadoras de informação semanticamente carregada [...]. Porém, o único tipo de informação encontrada na natureza é a covariação. Estados naturais covariam confiável ou nomicamente. Pensemos na relação de covariação entre a idade da árvore e o número de anéis no seu tronco [...]. Não podemos inferir que um dos termos em uma relação de covariação representa o outro. Números de anéis no tronco da árvore não representam a sua idade—a representação aqui é imputada por nós uma vez que estamos situados em um contexto sociocultural amplo. Por si só, estados naturais são piamente quietistas e não dizem nada sobre ninguém. (Rolla, 2023, p. 213)

 

            Ora, contudo, se este é o problema, podemos fazer a seguinte pergunta. Caso haja uma noção de representação que responda ao mesmo tempo a motivação metodológica expressa pelos 4 “E” do enativismo e a argumentação levantada pelo problema duro do conteúdo, essa noção poderia ser aceitável ao enativista? Se não, por que não?

            Por sorte, já existe uma noção desse tipo que pode nos ser útil: o conceito de “representações situadas”, de Gualtiero Piccinini (2022), o qual visa, justamente, resolver o problema duro do conteúdo, através da corporificação e situacionalidade da cognição, resultando em uma linguagem representacional que pode aliviar as preocupações do cognitivismo, ao mesmo tempo que os 4 “E” do enativismo são mantidos e respeitados. Como tal, esse conceito pode se apresentar como um terreno comum onde ambos os lados poderiam dialogar de forma colaborativa sobre os diversos papéis do corpo e do ambiente, na cognição.

            Na proposta de Piccinini, sistemas cognitivos empregam, em sua interação com o meio, representações neurais estruturais que possuem uma certa similaridade (homomorfismo) parcial com seus alvos, e que possuem a função de rastrear e prever a evolução de aspectos do ambiente com os quais o organismo está interagindo e pelo qual se interessa (2022, p. 5). Essas representações são constantemente atualizadas de forma dinâmica por informações do ambiente e de outros estados internos do organismo que carregam informação sobre o ambiente e sobre o corpo, incluindo sinais afetivo-avaliativos e estados passados do organismo.

            Como em teorias teleossemânticas, o conteúdo semântico de tais representações é explicado por funções biológicas, exceto que, para Piccinini, tais funções não são compreendidas apenas em termos de efeitos selecionados pela evolução, mas sim em termos de contribuições estáveis que estados neurocognitivos fazem para os objetivos situados do organismo (2022, p. 5). Além disso, diferentemente do cognitivismo clássico, o conteúdo de tais representações não possui estrutura proposicional e, portanto, não entra em relações inferenciais típicas de representações linguísticas. Se o organismo percebe um gato em cima do tapete, o conteúdo semântico dessa representação seria algo como “gato no tapete agora irá provavelmente evoluir de tal-e-tal forma”, de acordo com a função biológica do estado neurocognitivo que lhe confere esse conteúdo, em que “tal-e-tal forma” é atualizado dinamicamente, de acordo com informações do ambiente e das ações do organismo sobre este (2022, p. 6).

Ou seja, representações mentais e as computações que operam sobre elas emergem de maneira coordenada em padrões neurais homomórficos, através da interação dinâmica do organismo com seu ambiente, a qual depende constitutivamente de informações do corpo e do ambiente, sem as quais não poderiam cumprir a função biológica que lhes confere conteúdo semântico. A relação de homomorfismo entre uma representação e um aspecto do mundo, segundo Piccinini, também é uma relação informacional natural e real, portanto, não seria verdadeiro dizer, como afirma o “problema duro do conteúdo”, que a única relação informacional que existe na natureza é a covariação.

            Talvez aqui Rolla diga que a linguagem representacional de Piccinini vale somente para o ponto de vista do cientista cognitivo interessado em modelar a cognição desse organismo, mas que não devemos projetar essa linguagem para o objeto-alvo do modelo, i.e., o organismo em si (2023, p. xx). No entanto, aqui devemos nos perguntar o que é que perdemos, teoricamente falando, ao empregar essa linguagem representacional na própria descrição das capacidades cognitivas e perceptuais de organismos vivos em interação com seus ambientes, através de seus corpos, e não apenas na modelagem dessas capacidades, em termos neurocomputacionais. O que foi perdido com essa linguagem que apenas o enativismo seria capaz de explicar? Se as representações de Piccinini são situadas, corporificadas e enativas[126], o enativista ainda deve resistir a essa linguagem a qualquer custo? Por quê?

Se o problema, como diz Rolla (2023, p. 215), é que “[...] o cérebro não é um cientista homuncular fazendo cálculos e previsões sobre o mundo […], mas uma parte de um sistema que opera, quando tudo vai bem, em sintonia com o resto do corpo e com o ambiente distal”, ora, não há nada nessa descrição de que Piccinini discordaria. Tampouco seria preciso uma “física do futuro” para mostrar como uma representação situada desse tipo poderia ter propriedades semânticas, visto que tais propriedades são conferidas por sua função biológica de rastrear e prever a evolução de partes do ambiente em que o organismo está interessado, por meio de processos de aprendizagem ativa calibrados pela interação contínua do organismo com seu meio, através de propriedades morfológicas de seu corpo. Talvez aqui Rolla diga que funções biológicas só conferem conteúdo semântico de forma derivada, por intermédio de teóricos que se valem desse conceito em teorias teleossemânticas. Essa manobra, no entanto, removeria funções biológicas do mundo natural, e não sei se Rolla estaria disposto a seguir esse caminho.

            Para concluir, enquanto o enativismo se populariza, no Brasil, é natural que haja suspeições em relação às suas principais propostas. Nesse sentido, o texto de Rolla sucede em dissipar uma série de mal-entendidos que assolam os 4 “E” do enativismo, e deve ser reconhecido como um avanço inequívoco de nosso conhecimento, nessa área de estudos. Entretanto, alguns pontos ainda permanecem obscuros, em particular, porque o enativismo ainda resiste a qualquer tipo de linguagem representacional. Isto é, caso haja uma noção de representação que atenda às questões metodológicas e argumentativas aceitas por Rolla , essa noção poderia servir de terreno comum para que enativistas e cognitivistas dialogassem sobre o papel do corpo e do ambiente na cognição? Se não, por que não?

            Neste comentário, pergunto se o conceito de representação situada de Piccinini pode ser esse terreno comum. Embora muitos detalhes dessa teoria tenham sido deixados de lado por questões de espaço, ela serve ao menos para levantar questões importantes ao texto de Rolla e ao enativismo, de modo geral. Se tais questões forem respondidas com a mesma seriedade e meticulosidade que já aparece nos trabalhos de Rolla, toda a comunidade filosófica brasileira, sem dúvida, se beneficiará de tal debate.

 

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ROLLA, G. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 207- 236, 2023.

Recebido: 12/03/2023

Aprovado: 15/03/2023


 

Comentário a “Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo

 

Marcos Silva[127]

 

Referência do artigo comentado: ROLLA, G. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 207- 236, 2023.

 

Vários filósofos contemporâneos têm desenvolvido teorias a partir do pragmatismo (amplamente interpretado), para motivá-lo como um fundamento filosófico alternativo a uma compreensão abrangente da cognição, oposta a uma tradição representacionalista de longa data. Essa tradição, há muito estabelecida na filosofia da mente e na ciência cognitiva, defende que a cognição envolve fundamentalmente alguma noção de conteúdo veritativo, pois seria essencialmente constituída por manipulações intelectuais (muitas vezes, internas ao cérebro) de representações que impõem condições de satisfação ao mundo.

Por outro lado, alguns contendores radicais defendem que a cognição não é inerentemente representacional nem pressupõe, como nas visões internalistas usuais, processamento ou manipulação de conteúdos informacionais no cérebro. Dentre eles, há os que chamam atenção para a importância das práticas herdadas e incorporadas e das interações sociais, a fim de compreender tópicos relevantes na percepção, na linguagem e na natureza da intencionalidade. Em especial, enativistas levam bastante a sério os sistemas biológicos em evolução e os indivíduos situados interagindo em comunidades, ao longo do tempo, como pré-condições de nossas atividades cognitivas, características muitas vezes negligenciadas como não centrais, na tradição representacionalista e internalista.

No contexto dessa discussão sobre a natureza da mente, do pensamento, da cognição e da racionalidade, as últimas décadas, de fato, testemunharam o surgimento da E-cognição como uma alternativa a uma maneira intelectualista, internalista e individualista de ver a cognição. A primeira é interativa, relacional e dinâmica, fornecendo ferramentas originais para nossa compreensão do que somos. Essa abordagem, portanto, incorpora mais insights biológicos ao debate sobre cognição, chamando a atenção para fatos básicos sobre os organismos vivos, como sua atividade perpétua de autoconstrução (autopoiese), sua necessidade de estar em constante adaptação às condições mutáveis do ambiente, a adaptabilidade e sua capacidade de resposta seletiva a aspectos específicos do ambiente, criando seu próprio mundo de significado (ação). Assim, a visão conservadora de que o conteúdo é a marca do cognitivo deveria ser rejeitada.

O recente texto “Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo”, de Giovanni Rolla, está inserido nessa disputa contemporaneamente quente, discutindo, de forma direta, com o artigo “Por que somos nossos cérebros”, de Pereira et al., publicado em 2022, no qual há uma batelada de argumentos contra a tradição enativista.

Rolla defende a tradição enativista com rigor conceitual e argumentativo, em uma tentativa de analisar um a um os argumentos novos e antigos contra ela, usando cada ataque presente no trabalho de Pereira et al. como fio condutor para as defesas do enativismo. O artigo de Rolla  é bem-vindo também, porque esse tipo de polêmica em português entre artigos diametralmente opostos não é tão comum como deveria ser, na comunidade filosófica do Brasil.

O trabalho funciona ainda como uma boa revisão da literatura sobre enativismo e das produções recentes de seus principais autores, incluindo as do próprio Rolla.

A ênfase na réplica de Rolla aos cognitivistas Pereira et al. foi dada prioritariamente à falta de discussão, no artigo dos últimos, sobre a assunção primordial a respeito do seu representacionalismo de base, a saber: “Toda cognição envolve representação”. Essa assunção parece estar na estrutura entimemática dos argumentos de Pereira et al., apontada por Rolla. Ele destaca que o projeto enativista é um projeto naturalista que deseja dar uma explicação para a cognição aqui e agora, completa e sem lacunas. Em outras palavras, defende o oposto contraditório dos cognitivistas: nem toda cognição envolve representação, e, se envolver, é porque usa algum tipo de scaffolding social. Caso Rolla esteja certo nessa visão, ainda resta a grande questão de como as práticas socioculturais evoluíram de mentes sem conteúdo.

A alternativa propriamente cognitivista de Pereira et al. à tese enativista explica a cognição superior, mas parece ter dificuldade de naturalizar conteúdo semântico para casos básicos, como os movimentos corporais e a sensação. Se olharmos de um ponto de vista puramente biológico, não parece haver um argumento imbatível para acreditar, e nenhum fundamento definitivo para supor, que as conexões forjadas entre organismos e partes de seus mundos devam ser mais bem entendidas como instâncias de relações semânticas intracranianas envolvendo referência e verdade, por exemplo. Por que experiência, percepção e pensamento deveriam envolver condições de satisfação?

De fato, se olharmos fenômenos cognitivos sob uma perspectiva puramente biológica, esse tipo de tese cognitivista parece ser supérflua, do ponto de vista explanatório, e extravagante, do ponto de vista filosófico. Pensando de uma maneira simples, não há uma razão óbvia, como Rolla também defende, para que conexões básicas entre mente e mundo forjadas biologicamente devessem ser caracterizadas em termos semânticos, a partir de manipulações representacionais no cérebro. Acredito que esse seja o principal contra-argumento enativista contra as investidas cognitivistas feitas por Pereira et al. É importante notar que o uso liberal da noção de conteúdo ou representação não deve mascarar o fato de que muitos argumentos seriam necessários para estabelecer que todos os atos de experiência, percepção ou pensamento concernentes ao mundo abrangem conteúdos com condições de satisfação. Aqueles persuadidos por esse critério cognitivista considerariam simplesmente impensável que a ciência cognitiva pudesse abandonar a ideia de que os estados mentais básicos são representativos e envolvem conteúdo.

De acordo com o conhecido relato cognitivista, supõe-se que a informação seja captada pelos sentidos, através de múltiplos canais, codificada e depois processada e integrada de várias maneiras pelo cérebro, permitindo sua recuperação posterior. Mas, nessa visão, há uma incompatibilidade de raiz entre o erro de representação e a falha da função biológica. Expressando vários autores influentes, eles sustentam que somos avisados de que “[...] a evolução não lhe dará mais intencionalidade do que você carrega nela” (PUTNAM, 1992, p. 33); que existe uma distinção crucial entre “[...] funcionar adequadamente (sob as condições apropriadas) como um portador de informações e fazer as coisas corretamente (correção objetiva ou verdade)” (HAUGELAND 1998, p. 309); que “[...] a seleção natural não se importa com a verdade; ela se preocupa com o sucesso reprodutivo” (STICH, 1990, p. 62). E, por exemplo, como nos lembra Burge (2010, p. 303): “A evolução não se importa com a veracidade. Ele não seleciona a veracidade per se.”

Contudo, a pergunta permanece aberta: como naturalizar o conteúdo? Como explicar a origem natural do conteúdo? Foi nesse ponto que senti falta de uma discussão mais detalhada de Rolla sobre a duplex account apresentada por Hutto e Myin, em 2017, como alternativa ao problema aparentemente negligenciado por Pereira et al.

Com efeito, uma solução direta para a plena naturalização dos conceitos de conteúdo e de representações mentais requer, inter alia, explicar como é possível passar de fundamentos informacionais, os quais supostamente não possuem conteúdos, para uma teoria completa do conteúdo mental, usando apenas recursos naturalistas. A questão é como fornecer uma explicação naturalista completa e sem lacunas da cognição. Adicionalmente, críticas à possibilidade de um programa enativista de pleno direito têm sido colocadas, como a chamada “objeção scale-up”, ou seja, o desafio de se mostrar relevante para a investigação de problemas tradicionais relacionados à cognição de nível superior, englobando conceitos como conteúdos informacionais, estados representacionais, conhecimento matemático, raciocínios contrafactuais, pensamento simbólico, inferências lógicas etc. (SILVA, 2022). Conforme testemunham os desenvolvimentos recentes, a questão ainda não foi resolvida e os debates estão atingindo um ponto crítico.

Nesse horizonte, uma questão que deveria ser mais bem desenvolvida por enativistas, como Rolla, me parece ser o ponto fundamental da crítica de Pereira e et al. e de outros cognitivistas, como Papineau, a saber, o caso do erro. A possibilidade do erro em atividades cognitivas diversas parece ser fundamental para a defesa da representação no cérebro, segundo autores cognitivistas. Por isso, a noção de representação também ganha tanta centralidade, em seus trabalhos. Acredito que Rolla deva aos seus leitores cognitivistas uma explicação enativista para o caso da falha na cognição. Como a sensação falha? Ou como explicamos a falha do juízo ou da memória, sem apelarmos para a noção de representação? Há uma abordagem integrada da tradição enativista que explique tanto a falha em juízos, a partir de sensações, ou da imaginação ou da memória? Como a percepção pode ser falsa se não tem conteúdo? Vale notar que agimos de acordo com uma falsa percepção; tomamos decisões baseadas em falsas representações.

Cognitivistas podem explicar esses casos sem muitos problemas, inclusive em nossas ações, porque usam o poderoso conceito de representação sem muitas restrições. Afinal, nós cometemos erros, porque tomamos decisões sobre representações falsas, pensa um cognitivista. Essa visão parece ser replicada para casos mais básicos, como o do sapo que erra o alvo, ao lançar a língua para pegar uma mosca. Esse é um problema emblemático para a discussão cognitivista, e acredito que o projeto enativista de Rolla poderia se beneficiar muito, ao tratar diretamente dessa discussão e desse argumento. Quanto de informação proposicional deve ser posto para o sapo pegar a mosca? Nenhuma? Mas, se não houver informação proposicional, o que um enativista poderia colocar no lugar do conceito de representação, a fim de explicar o erro, nesse caso de cognição básica? Covariação seria suficiente? Qual é o alcance dessa proposta? A tese da covariação pode funcionar para a imaginação? E para a memória? E para a matemática? E para a lógica? E para raciocínios contrafactuais? Um cognitivista defenderia que não. Será impossível, de fato, ter um argumento representacional e naturalisticamente bem-informado para abordar o problema do erro, nesses casos mais básicos, assim como nos casos mais sofisticados de raciocínio, de maneira integrada?

Embora Rolla faça um trabalho muito bom, ao destacar os problemas com o conceito de conteúdo representacional usado como ferramenta explicativa na ciência cognitiva, ele não fornece uma proposta alternativa da intencionalidade, apenas uma sugestão de uma forma socialmente orientada. Com efeito, Rolla não fornece um modelo explicativo detalhado de como a cognição social e os sistemas de símbolos públicos dão origem a conteúdos em conexão com a cognição básica. Ele não explica, por exemplo, como a cognição social e os sistemas de símbolos públicos podem surgir sem a existência prévia de conteúdos mentais veritativos. As conexões com inferencialismo, ontologia social, intencionalidade compartilhada, reconhecimento mútuo e (neo)pragmatismo devem ser desenvolvidas para resgatar o enativismo dessas críticas, eu acredito (SILVA et al., 2020).

Aqui também vale salientar que há um quebra-cabeça kantiano sobre a conexão entre percepção e julgamento usando noções sociais e normativas. O problema kantiano pode ser assim enunciado: como passamos da percepção à crença e ao juízo? A percepção parece dever ser conceitual, porque nossos julgamentos se aplicam sistematicamente a ela. Contra essa visão, Hutto e Myin (2017, p. 122), por exemplo, sustentam que “[...] é possível, em princípio, explicar as origens da cognição envolvendo conteúdo de uma maneira cientificamente respeitável e sem lacunas. Os RECers, enativistas radicais, pretendem fazê-lo, aludindo especialmente ao importante papel desempenhado pelos andaimes socioculturais.” O trabalho é, então, tentar explicar como os estados mentais repletos de conteúdo realmente surgem, por meio de um processo de domínio de tipos especiais de práticas socioculturais.

Embora rejeitar críticas e teorias rivais com argumentos filosóficos não forneça uma teoria detalhada da ciência cognitiva, pode-se dizer que os trabalhos de Rolla discutem a perene questão filosófica sobre a natureza de nossas atividades cognitivas, desvelando uma visão impossível de negligenciar: a contribuição enativista para o atual estado da arte na discussão.

 

Referências

BURGE, T. The Origins of Objectivity. Oxford: Oxford University Press, 2010.

HAUGELAND, J. Truth and rule-following. In: HAUGELAND, J. (ed.). Having Thought: Essays in the Metaphysics of Mind. Harvard: Harvard University Press, 1998.

HUTTO, D.; MYIN, E. Evolving Enactivism: Basic Minds Meet Content. Cambridge: The MIT Press, 2017.

PAPINEAU, D. Sensory Experience and Representational Properties. Proceedings of the Aristotelian Society, v. 114, p. 1-33, 2014.

PUTNAM, H. Renewing Philosophy. Harvard: Harvard University Press, 1992.

ROLLA, G. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 207- 236, 2023.

SILVA, M. Notes on the nature of logic: an enactivist proposal. O que nos faz pensar, [S.l.], v. 29, n. 49, p. 38-56, jan. 2022. ISSN 0104-6675. Disponível em: http://oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp/article/view/810. Acesso em: 17 fev. 2023. doi: https://doi.org/10.32334/oqnfp.2021n49a810.

SILVA, M.; CAVALCANTI, I.;  MOTA, H. Linguagem e Enativismo: uma Resposta Normativa para a Objeção de Escopo e o Problema Difícil do Conteúdo. Revista Prometheus, n. 33, maio/ago. 2020.

STICH, S. The Fragmentation of Reason: Preface to a Pragmatic Theory of Cognitive Evaluation. Cambridge: MIT Press, 1990.

 

Recebido: 16/02/2023

Aprovado: 20/02/2023


 

A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos

 

Ivan Domingues[128]

 

Resumo: O artigo versa sobre a filosofia contemporânea brasileira e tem como objetivo  introduzir [i] os operadores conceituais no plano teórico-filosófico, com foco no problema da natureza da filosofia brasileira, tomando como ponto de arranque as ideias de autoralidade/originalidade; [ii] as ferramentas analíticas no plano epistêmico-metodológico, ao associar os métodos da metafilosofia, ao operar e dar expressão à ratio filosófica, e os métodos da história intelectual, ao operar e dar expressão à realização histórica da filosofia e da intelligentsia filosófica. O campo das discussões é a metafilosofia, na acepção de filosofia da filosofia, ao desenhar um percurso argumentativo onde metafilosofia, história da filosofia e história intelectual caminham juntas.  Serão considerados, na vertente da história intelectual, a título de hipóteses para operar os processos históricos, os paradigmas da formação e pós-formação; na vertente metafilosófica, com foco no ethos, para tipificar os diferentes posicionamentos da intelligentsia filosófica brasileira frente à matriz europeia, nos séculos XX-XXI, as atitudes de alinhamento e reverência; autonomia e assimilação crítica; instrumentalização ideológica e política; suspeição e defenestração.

Palavras-chave: Filosofia contemporânea brasileira. Metafilosofia. História Intelectual. Paradigmas da formação e da pós-formação. Atitudes frente à matriz europeia da filosofia. 

 

INTRODUÇÃO

          O artigo versa sobre a filosofia contemporânea brasileira e se divide em duas partes.

Na primeira, a título de considerações preliminares e, não obstante, algo extensas, vou tratar, como foi proposto, da ideia de “autoralidade na filosofia” in abstracto, em escala mundial, e mais especialmente da questão da “Filosofia Autoral Brasileira”.

Na segunda parte, de natureza metodológica, ao encaminhar as discussões e, no entanto, sem poder desenvolvê-las, vou tratar dos “Paradigmas e métodos para a filosofia contemporânea brasileira”, como está no título, com a questão da filosofia autoral e outras a ela associadas, como a da originalidade, no centro das considerações, tendo por contexto os séculos XX-XXI e como foco as estratégias de análise.

O campo das discussões é a metafilosofia, aplicada à filosofia brasileira, tendo como núcleo duro a pergunta pela natureza da filosofia –  brasileira, no caso –, levando ao questionamento sobre o logos ou a ratio filosófica, em sua diversidade, senão acerca dos logoi ou das ratios, pois se a razão é a mesma, seus métodos e ferramentais são diversos e mais de um (lógica, retórica, dialética  e a própria matemática), e tendo em vista a razão filosófica como um grande arco que abriga diferentes elementos ou componentes, tais como as technai e os gêneros literários (tratados, ensaios, livros e artigos), passando pelo ethos e os ethei do filosofar como atitude, ideia e convicção, vazados numa cultura de um agrupamento intelectual (intelligentsia). E, paralelamente, como eu venho insistindo em minhas pesquisas, mais além do logos e da ratio como ato intelectual e associado ao pensamento, ao focalizar a práxis coextensiva ao ethos, levando ao questionamento ou à consideração da diversidade de sua expressão e realização históricas nesta parte do globo.

E desde logo, como eu vejo, ao serem consideradas, importando na distinção de fases ou etapas, bem como dos elementos do devir historial que permanecem e não mudam e daqueles que se modificam e se transformam, sem alterar, no entanto, a natureza da filosofia como logos e experiência intelectual. Concluindo, é aqui que fica justificada – nessas duas vertentes da filosofia como pensamento e como práxis, resultando em obras e ações – a pergunta pelo kanon da filosofia, em seus aspectos estático e dinâmico, e em cuja consideração, assim como na descrição e análise dos outros elementos ou componentes do filosofar, como o ethos e a techne, [i] metafilosofia e [ii] história da filosofia andam juntas e são o avesso e o direito de uma mesma realidade