COMENTÁRIO A TECNOLOGÍA Y TRANSPARENCIA

Evandro Smarieri Soares[1]

 

Tecnología y transparencia traz uma reflexão que conecta dois extremos: a gênese do ser humano enquanto ser social e a possibilidade da superação das capacidades humanas pelas máquinas. As conclusões que os autores alcançam, corroborando o trabalho de Lewis Mumford, apontam para uma leitura antropocentrada que, para se oporem à fascinação pelas máquinas, acaba, a meu ver, subestimando o papel dos objetos técnicos.

É certo que a tecnologia é um produto cultural dos humanos e que está atrelada às limitações destes. Logo, a ideia de uma superação das capacidades humanas pelas máquinas é fruto de uma compreensão parcial do modo de existência desses seres técnicos. Como pretendo mostrar, pressupor que a tecnologia é parte integrante da cultura não nos impede de considerar a hipótese do devir próprio das técnicas. De outro lado, negá-lo pode impedir de compreender de maneira justa a importância da tecnologia para um entendimento filosófico da realidade.

Pretendo introduzir a hipótese do devir técnico ao debate, a partir do conceito de objeto técnico, como encontrado em Du mode d’existence des objets techniques (SIMONDON, 1989). Ademais, ao nos debruçarmos sobre esse conceito, estamos corroborando a proposta de conhecer a “cara humana das máquinas” que, enquanto objetos técnicos, são portadoras de humanidade em sua essência, mas não se restringem a um simples “[...] reflexo de nossos desejos, pensamentos, inquietudes e capacidades”, como afirmam Ramos e Fuentes, neste texto.

A negação do devir técnico implica uma abordagem das máquinas que é conflitante com a de Simondon, porque privilegia o desígnio humano sobre os seres técnicos, incorrendo no que o autor descreve como hilemorfismo[2] (SIMONDON, 1989, p. 171-172). Simondon, ao contrário, parte de uma concepção processual das realidades física, biológica, psíquica e coletiva, para explicar a gênese dos objetos técnicos, pois “[é] preciso dirigir-se a uma interpretação genética generalizada das relações entre humano e mundo para apreender a importância filosófica da existência dos objetos técnicos.” (SIMONDON 1989, p. 155).

Essa “interpretação genética generalizada” corresponde ao princípio de individuação, modo através do qual a gênese dos seres é compreendida por Simondon. Tal como apresentado por esse autor, em l’Individuation à lumière des notions de forme et d’information, o processo de individuação é uma transdução: estruturação que se propaga, pouco a pouco, no interior de um campo. Partindo da mais simples delas, a transdução física, o autor aplica o mesmo princípio de individuação a outros três regimes: biológico, psíquico e coletivo, aos quais correspondem transduções biológica, psíquica e coletiva ou transindividual.

Cada uma delas resulta da resolução de tensões pré-individuais presentes num meio anterior. Desse modo, a transdução em um meio físico dá suporte à próxima operação em meio biológico, assim como esta para o meio psíquico, que, por sua vez, serve de base estruturante para a individuação coletiva. Contudo, não se trata de um esquema hierarquizado, pois uma individuação coletiva pode estruturar tensões físicas, biológicas, psíquicas e técnicas.

Esse processo se perpetua porque resulta da resolução de tensões entre cargas de potencial pré-individual, além das estruturações, uma carga de potenciais pré-individuais primordialmente no interior do indivíduo biológico ou ser vivente. No caso específico dos humanos, resta, nas individuações psíquicas, os potenciais que se atualizam através dele em relações transindividuais, colocando-o em relação com outros indivíduos, individuando coletivamente.

Simondon (1989) apresenta de fato suas considerações sobre a individuação técnica, a concretização dos objetos técnicos. Essa individuação específica ocorre por meio da “atividade técnica”, a relação desalienada[3] através da qual as necessidades do sistema (objeto técnico) são captadas no ato de invenção e de manutenção.

As reformas de estrutura que permitem ao objeto técnico se especificar constituem o que há de essencial no devir desse objeto; mesmo se as ciências não avancem por certo tempo, o progresso do objeto técnico em direção da especificidade poderá ocorrer; com efeito, o princípio desse progresso é a maneira pela qual, em seu funcionamento e nas reações de seu funcionamento sobre sua utilização, o objeto tem sua causa e condicionamento; o objeto técnico emerso de um trabalho abstrato de organização de subconjuntos é o teatro de relações de causalidades recíprocas. (SIMONDON, 1989, p. 27, tradução livre).

 

É nessa relação de atividade técnica cuja causa e condição constituem o funcionamento do objeto técnico que o ser humano precisa negociar com as causalidades recíprocas para manter o funcionamento e utilidade do objeto. Este é o esposamento de potenciais psíquicos e físicos que corresponde à estruturação de uma realidade humana e técnica. Porém, essa relação não pode ser restrita à ideia de uma relação individual com o objeto técnico.

Ainda que possam existir atos técnicos individuais, a atividade técnica é tão somente coletiva, porque a reticulação, a qual é a estruturação da realidade técnica, não pode ser produzida por um indivíduo isolado, porque o meio no qual se propaga a estruturação da realidade técnica é definido por seu caráter transcendente e imanente ao indivíduo, diz Simondon (2005); eles são o suporte e o símbolo da relação transindividual – individuação coletiva – (SIMONDON 1989). Assim, o objeto técnico deve ser entendido como uma relação de mediação entre o humano e o mundo, concretizada num artefato individualizado, que corresponde a um estágio genealógico da individuação técnica e coletiva.

A perspectiva relacional sobre o modo de existência dos objetos técnicos nos permite afirmar que “há algo de natureza humana” neles, utilizando um sentido para “natureza” que corresponde a “algo original, anterior à humanidade.” (SIMONDON, 1989). Tal passagem pouco intuitiva pode levar a compreensões confusas sobre a teoria de Simondon. Penso que esmiuçá-la poderá enriquecer a discussão levantada sobre esse trecho específico, na página 9 do texto de Ramos e Fuentes.

Para compreender a ideia referida acima, faz-se necessário considerar que Simondon busca recuperar o significado da palavra natureza como “[...] origem de todas as espécies de ser, [...] anterior a toda individuação” (SIMONDON 2005, p. 305), o que, em outros momentos da obra, é referido como pré-individual. Como já dito, a concretização técnica e a individuação coletiva conservam parte da carga pré-individual da tensão estruturante de seus meios. Assim, os objetos técnicos comportam também essa carga de “natureza”, ou “apeíron”, que é capaz de informar individuações.

Esse argumento auxilia a compreensão do referido trecho de Simondon, citado por Ramos e Fuentes, com o qual se embasa a afirmação de que, para o autor, “o ser humano surge da técnica”. Como vemos, na verdade, o objeto técnico é um suporte e símbolo da relação transindividual, da reticulação que informa um coletivo. Em outras palavras, seria antes a sociedade “que surge da técnica” do que o ser humano.

A importância atribuída à individuação técnica respalda o valor cultural da tecnologia, demonstra quão intrincada é a relação entre a humanidade e a tecnicidade, a ponto de não ser possível que compreendêssemos qualquer coletivo humano sem a existência de técnicas. Com isso, percebemos como, para Simondon, a existência de um devir técnico não exclui o humano de seu desígnio, embora – ao negar os pressupostos hilemorfistas – o papel diretivo do humano seja deslocado para uma participação relacional em um processo de individuação coletiva.

Em conclusão, ainda que a técnica tenha um devir próprio na filosofia de Simondon, isso não implica que ela seja capaz de gerar um mundo exterior ao humano. Ela participa da gênese do ser humano como ser social, antes de constituir uma ameaça.

 

REFERÊNCIAS

COMBES, Muriel. Simondon individu et collectivité: pour une philosophie du transindividuel. Paris: Presses Universitaires de France, 1999.

 

SIMONDON, Gilbert. L'individuation à lá lumière des notions de forme e et d'infomacion. Grenoble, França: Millon, 2005.

 

SIMONDON, Gilbert. Du mode d'existence des objects techniques. Paris: Aubier, 1989.

 



[1] Doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8699-4813. Email: esmasoares@gmail.com.

[2] “Formado a partir de hylê (matéria) e de morphê (forma), este termo designa a teoria, originalmente aristotélica, que explica a formação do indivíduo pela associação de uma forma e de uma matéria, a forma, ideal (traduzimos igualmente por forma o termo grego eidos), se imprime na matéria concebida como passiva.” (COMBES, 1999, p. 8, n.1, tradução livre).

[3] A alienação técnica é a condição humana causada pela “ausência [da técnica] do mundo das significações e por sua omissão no quadro dos valores e conceitos que participam da cultura”, escreve Simondon (1989, p. 9-10).