Comentário ao artigo de Evaniel Brás: A relação entre ciência natural e cosmologia EM Tomás de Aquino

 

Jakob Hans Josef Schneider [1]

 

            O tema do artigo aqui comentado atinge uma das perspectivas mais importantes na Idade Média, mas que é, ao mesmo tempo, apenas de um interesse histórico.[2] Trata-se do que se chama, em alemão, Weltbild (imagem do mundo) ou Weltanschauung (imaginação, ou seja, intuição do mundo), decisivamente e irreversivelmente revolucionada pela descoberta do telescópio que Galilei (Siderius Nuncius, Venecia, 1610) dirigiu à lua e apagou com essa ação a divisão aristotélica da toda realidade entre uma realidade acima da esfera da lua e abaixo da esfera da lua. A lua tornou-se a mesma sujeira como a da terra; melhor: dependendo da perspectiva, a terra virou uma das estrelas, entre outras. Pelo menos o telescópio mostrou que, no universo todo, dominam as mesmas leis naturais.

            Para mostrar o mérito do artigo de Brás, indicarei quatro pontos que podem esclarecer o fundo intelectual de Tomás de Aquino, que não é um expert em astronomia ou cosmologia. Ele depende, a esse respeito, das informações, sobretudo das traduções das obras de Aristóteles, dos comentadores dele e de outras fontes, como de Ptolomeu, por exemplo, e da filosofia árabe, a exemplo de Avicena.

            Um primeiro ponto é o seguinte: tanto na Antiguidade quanto na Idade Média, a divisão da realidade entre duas realidades bem diferentes é deveras significativa, aliás, tanto quanto na filosofia árabe (Avicena), judaica (Moises Maimônides) e cristã (Tomás de Aquino). Tal dualidade domina a divisão das ciências filosóficas também, como no sistema da formação escolar das septem artes liberales, no qual a astronomia faz parte do quadrivium junto com a aritmética, geometria e música. São scientiae reales, ao passo que o trivium representa as scientiae sermocinales, ciências da linguagem. As scientiae reales, ou seja, o quadrivium, são ciências matemáticas. Aliás, podemos definir a cosmologia como uma “geometria celeste”, pois mede as proporções entre os movimentos celestes. No século XIII, esse sistema da formação escolar mudou com a De divisione philosophiae de Dominicus Gundissalinus e com a tradução do Al-Farabi De scientiis (SCHNEIDER , 2011, p. 41-51) e, sobretudo, com a constituição das universidades medievais. Um resumo se encontra na Margarita philosophica, de Gregorius Reisch (Ex Heidelberga iij KP Januarias. 1496, Venecia, 1502, fol. 3). Gregorius divide a philosophia em a philosophia theorica siue speculativa e a philosophia pratica; a philosophia speculativa, ademais, em a philosophia rationalis e realis. As ciências matemáticas, o quadrivium, são situadas na parte da philosophia realis, como também a metaphysica. Nesse sentido, é importante mencionar que a metafísica pertence às ciências reais, como Tomás de Aquino a situa sempre nos seus proêmios aos seus comentários dos libri naturales de Aristóteles. Segundo Tomás, a metafísica é, em primeiro lugar, uma análise da substância e, nesse ponto, trata-se, então, da questão se temos que contar com substantiae separatae enquanto princípios dos movimentos celestes.

Nessa Margarita philosophica se encontra também a sistematização antiga das ciências naturais, ou seja, dos libri naturales de Aristóteles, na seguinte ordem: segundo Tomás, precisamos começar através de um princípio científico, a saber, da aplicação do universal ao particular, com a (1) Física (φυσικὴ ακρόασις), que trata do movimento em comum. (2) Em seguida, tratamos do movimento circular do céu (περὶ ουρανοῦ, De caelo et mundo). (3) Depois, do movimento substancial (De generatione et corruptione), (4) do movimento linear (Meteora) e (5) De mineralibus (um escrito pseudoaristotélico) até o (6) movimento da alma (De anima), o Sextus Liber de Naturalibus, como Avicena o nomeia. Isso quer dizer até, os princípios do ser que são, em primeiro lugar, princípios inteligíveis, ou seja, inteligências e, em segundo lugar, causas segundas; e nesse contexto, até o primeiro princípio das coisas naturais que deveria ser um intelecto: o primeiro motor imóvel, pois um movimento circular simboliza um movimento intelectual, tanto na alma intelectiva do ser humano (reflexão) quanto nas “almas motrizes celestes” que se chamam inteligências ou intelectos separados ou substâncias separadas ou anjos. Mas essa pesquisa do intelecto (νοῦς) não é um assunto das ciências naturais, mas da metafísica, pois o intelecto é imaterial e não pode ser, por causa disso, um objeto da filosofia natural.

Dado que o movimento circular é um símbolo de um movimento espiritual, preciso me referir a um trecho da Metafísica (XII. 7. 1072 b 18-31) de Aristóteles, onde ele caracteriza o primeiro motor imóvel que ele chama também “o primeiro princípio” (πρώτη ἀρχή 1072 b 11), cuja existência ele já mostrara no VIII. Livro da sua Física (cap. 7-9) de seguinte modo:

Ora, o pensar (νόησις) em si mesmo ocupa-se com aquilo que é em si mesmo o melhor, e o pensar no mais elevado sentido com aquilo que é no mais elevado sentido o melhor. E o pensamento pensa a si mesmo através da participação no objeto do pensamento. De fato, torna-se um objeto do pensamento graças ao ato (ἐνέργεια) de apreensão (αἴσθησις) e pensar (νόησις), de sorte que pensamento e objeto do pensamento são idênticos (τοιούτον), porque aquilo que é receptivo do objeto do pensamento, isto é, a substância (οὐσία), é pensada. E ele funciona em ato ao possuir esse objeto. Consequentemente, é o ato e não a potência o elemento divino que parece que o pensamento encerra, e o ato da especulação (θεωρία) é o mais prazeroso e melhor ( θεωρία τὁ ἥδιστον και ἄριστον). Se, então, Deus está naquele bom estado no qual as vezes estamos, isso suscita nosso maravilhamento (θαυμαστόν), e se num melhor ainda, experimentamos um maravilhamento ainda maior. E Deus está num estado melhor. Ademais, a vida (ζωή) também pertence a Deus, já que o ato de pensamento é vida, e Deus é este ato (ἐνέργεια). E o ato essencial de Deus é a vida maximamente boa e eterna (ἀρίστη καὶ ἀΐδιον). Afirmamos, portanto, que Deus é um ser vivo, eterno, maximamente bom, e portanto a vida e uma contínua existência eterna dizem respeito a Deus, pois isso é o que Deus é. (ARISTÓTELES, 2014).

 

A tese da identidade do pensamento e do objeto de pensar leva às seguintes reflexões, isto é, “dificuldades” (ἀπορίαι): se Deus é “um ser vivo, eterno, maximamente bom” e está pensando sempre em ato; e se pensar significa sempre pensar algo; o que é, então, que Deus pensa? Se ele, enquanto uma “inteligência” (νοῦς, ou seja, οὐσία νόησις), pense “algo”, esse algo deveria, enquanto um pensamento possível, limitar sua existência eterna e infinita de pensar, que contradiz sua essência de estar sempre em ato de pensar, a saber, uma contínua existência eterna, ou seja, uma “substância mais excelente” (ἀρίστη οὐσία). Se ele é, por outro lado, apenas uma potência (δύναμις) de pensar em “certas coisas”, isso significaria um movimento para o “pior”, que contradiz o fato de que ele pensa sempre num sentido mais elevado, o melhor. Mas a “vida maximamente boa e eterna” é sua própria vida. “A conclusão é que a inteligência pensa a si mesma, se é isto o melhor – e o seu pensar é um pensar do pensar (νόησις νοήσεως).” (Metaph. XII, 9. 1074 b 15-34). Aqui se encontra a identidade do pensar e do pensado e, então, num sentido mais alto, a autoidentidade e a autopresença do espírito. Uma teoria do intelecto e seus vários usos linguísticos é necessária, pois os movimentos celestes são relacionados, acerca dos princípios de seus movimentos, com os princípios inteligíveis que se chamam intelligentias.

            Quanto a uma teoria do intelecto, preciso acrescentar um segundo ponto: um dos usos linguísticos do intelecto, do νοῦς, isto é, da οὐσία νόησις surge de uma questão do Livro XII, cap. 8. 1073 a 15-1074 b 14 da Metafísica: quantos “princípios motrizes imóveis” precisamos assumir fora do primeiro motor imóvel, ou seja, do “primeiro amovido movendo” (τὸ πρώτον κινοῦν ἀκίνητον 1074 a 37), para uma explicação satisfatória da geração do céu e da natureza? Aristóteles deixa essa questão em aberto. Apenas Avicena preencherá essa falta de explicação.

            É bem claro que só há um único céu (οὐρανός, (1074 a 31)). No entanto, com quantas substâncias inteligíveis, que a tradição aristotélica chama também intelligentiae (os cristãos “anjos”), devemos contar, isso é um assunto da astronomia, ou da “geometria celeste”. Na realidade, é um assunto da metafísica. Trata-se do primeiro princípio do ser, de um intelecto puro estando sempre em ato de pensar, quer dizer, da relação entre a eternidade divina e a temporalidade do mundo, ou seja, da concepção filosófica da generatio do mundo ou da concepção teológica da creatio ex nihilo do mundo. No XII. Livro das Confessiones, Agostinho tenta dar uma resposta ao problema da eternidade do mundo, segundo a qual temos a ver com uma separação estrita entre eternidade divina e temporalidade do mundo. A esse respeito, e através da distinção entre aeternitas (sem início no tempo e sem fim) e sempiternitas (início no tempo e duração continua e infinita), Tomás se posiciona bem claro, no seu De aeternitate mundi: as duas proposições, “o mundo é criado”, a saber, tem um início no tempo, e “o mundo é eterno” são compatíveis e não se contradizem. Nisso concorda a posição de Moises Maimônides e, como mostrei (SCHNEIDER, 1999, p. 121-141), também a de Averróis.

            Ademais, é bem claro, o primeiro motor imóvel é eterno. Logo, o primeiro movimento gerado é também eterno. O assunto em questão é: como a pluralidade dos “mundos” dentro desse único céu pode ser gerada, no caso em que ex uno non fit nisi unum (a partir do Uno só se torna um Uno) é um princípio válido. Como podemos explicar, então, o fato da pluralidade das coisas, em face da unidade do primeiro princípio? Avicena oferece uma resposta, mais influente na Idade Média, na sua Metaphysica sive scientia divina. Ela é bem conhecida até pelo menos Girolamo Savonarola.[3]

            Um terceiro ponto, por conseguinte: a Idade Média conhece outras respostas à questão de como o mundo foi gerado, ou seja, foi criado: o Liber de causis, surgido da escola de Al-Kindi, o manual da metafísica medieval, a Theologia Aristotelis, também nascida na escola de Al-Kindi e, sobretudo, o pequeno tratado De intellectu et intellecto, de Al-Kindi com o qual ele iniciou um genre littéraire específico na Idade Média. Em seguida, aparecem o De intellectu et intellecto, de Al-Farabi (cf. SCHNEIDER, 2015, p. 224-246), De intelligentiis, de Avicena, e o comentário de Averróis ao De anima de Aristóteles. A partir do tratado de Al-Kindi sobre o intelecto, surgem muitos tratados e comentários na Idade Média latina: os anônimos De potentiae animae, Alberto Magno, De intellectu et intelligibili, Sigero de Brabant, De anima, entre outros, sempre com respeito ao capítulo 5 do III. De anima, de Aristóteles.

Os capítulos 4, 5 e 6 do III. Livro do De anima são de grande importância para a filosofia medieval. Brás cita, com toda razão, esse III. Livro do De anima. No capítulo 5 (430 a 10-19), Aristóteles repete, a propósito do νοῦς ποιητικός, chamado pelos latinos intellectus agens, todas as caraterísticas do XII. Livro da sua Metafísica capítulo 7. Ele é:[4]

χωριστός, separabilis; separado (da matéria);

ἀπαθής, non mistus passioneque vacat; impassível;

ἀμιγής; não misto (da forma e matéria);

τῇ οὐσία ὥν νέργεια, substantia sua actu; estando sempre em ato por (sua) natureza;

ἁθάνατον καὶ ἀΐδιον, immortale aeternumque; imortal e eterno;

τῷ πάντα ποιεῖ, omnia facit; que faz tudo;

τιμιώτερον τὸ ποιοῦν τοῦ πάσχοντος καὶ ἀρχὴ τῆς ὕλης, semper enim id quod agit, praestabilius est eo, quod patitur, et principium materia; sempre é aquela coisa mais nobre que age do que aquela que sofre, e o princípio do que a matéria.

Avicena, por exemplo, situa esse intelecto agente na esfera da lua, que, cheia das formas inteligíveis, dá para os homens as espécies inteligíveis, a saber, o conhecido. Essa tese é, para Tomás, inaceitável. No entanto, o que Tomás aceita é a reinterpretação das ideias platônicas enquanto pensamentos de um intelecto (intellectus agens) e não substâncias separadas e criadoras e, na base disso (Avicena), as ideias tornam-se razões eternas, isto é, ideias divinas (Santo Agostinho). Trata-se, aqui, daquilo que Gilson (1926, p. 5-127) chama “l’augustinisme avicennisant” (veja Summa theologiae I, 84, 4 e 5).

Na realidade, a tradição filosófica da filosofia árabe é um conjunto da cosmologia e metafísica (DAVIDSON, 1992) para uma explicação estritamente filosófica da geração do mundo, na base de um aristotelismo neoplatonizante, na base da Plotiniana arábica. Tomás, por seu turno, explica a geração do mundo no seu comentário do Liber de causis, na base da Elementatio theologica, de Proclo, que ele conheceu através da tradução de Guilherme de Moerbeke e corrigiu, por meio do Dionísio Areopagita. O que interessa a Tomás, na cosmologia, é que o mundo não surgiu por acaso. Ele é criado por uma inteligência divina; e isso, junto com Aristóteles, na sua Física (II, 6. 198a10-14): “antes de tudo o pensamento e a natureza são a causa de todo o ser.” (SCHNEIDER, 2013, p. 395-410).

            Um quarto ponto é o seguinte: conhecemos, na Idade Média, uma tradição que Clemens Baeumker chama, no seu Witelo (Vitelo),[5] “Lichtmetaphysik” (metafísica da luz), ou seja, “Perspektivwissenschaft” (ciência da perspectiva), surgida da ótica, a nova ciência na Idade Média latina do século XIII, vindo do árabe, a saber, do Al-Kindi.[6]

A esse respeito, Brás menciona Roberto Grosseteste (2012). Posso acrescentar outros, como Al-Kindi, De radiis. Mas há, também, textos de conteúdo teológico, por exemplo, as Regulæ caelestis iuris, de Alain de Lille, que usa o anônimo Liber viginti quattuor philosophorum (Livro dos vinte e quatro filósofos), particularmente sua primeira e segunda definições de Deus. Na primeira, “Deus est monas monadem gignens in se unum reflectens ardorem” (Deus é o monas (uno) que gera uma unidade, um uno (monas), refletindo em si mesmo o único ardente éter). A segunda definição de Deus, “Deus est sphaera infinita cuius centrum est ubique, circumferentia nusquam” (Deus é a esfera infinita, cujo centro está por toda a parte e cuja circunferência, em lado nenhum), queria expressar “per modum imaginandi” (pelo modo da imaginação), ou seja, pelo modo de uma imagem ou de um rascunho, o que a primeira definição pretendia dar a pensar. A formulação paradoxal: Deus é a “esfera infinita, cujo centro está em toda parte e cuja periferia em lado nenhum” é ilustrada pela metáfora da luz: a luz infinita cria um raio infinito a brilhar, refletindo sobre si mesmo. “Infinito”, porque o archetypus mundus é o “conteúdo” das ideias infinitas; “em toda parte”, na reflexão (in reflexione) do criando sobre o criado e vice-versa. A periferia simboliza a sabedoria gerada (sapientia genita); “em lado nenhum” porque a luz é elevada, isto é, superior sobre todo o infinito, sobre todas as infinitas coisas, e é incluída em nada, ou seja, em nenhuma coisa; não “quantitatiue”, mas segundo a “simplicidade de sua natureza” (sed simplicitate suae naturae). Assim, a infinita diversidade ou pluralidade do mundo inteligível, quer dizer, da “sphaera intelligibilis”, é fundada numa simples unidade, ou seja, na simplicidade única do uno. O mundo é imago dei, uma imagem de Deus, como diz o Asclepius (Esculápio); ou com as palavras do Liber viginti quattuor philosophorum: “uniuersum est templum diuinum” (O universo é o templo divino).[7] Talvez essa tese seja o centro da intelectualidade cristã e suas reflexões da cosmologia, astronomia, metafísica e teologia.

Para concluir, em relação ao primeiro ponto exposto acima gostaria de prestar atenção à divisão das ciências naturais enquanto ciências reais da qual a cosmologia faz parte, tanto quanto a metafísica, que não se ocupa de uma realidade fingida, mas, assim como a cosmologia, também de uma realidade real e verdadeira (trans physicam) e seus princípios motrizes. Conhecemos uma “lei natural” da Antiguidade e da Idade Média, ou seja, uma definição comum do movimento provindo de Aristóteles: omne quod movetur ab alio movetur. Contudo, isso não pode ir ao infinito; logo, deve haver um primeiro movendo, que não é movido por outro movido; que, então, só pode ser uma inteligência, pois é um automovimento, o qual é símbolo de uma inteligência. Por causa disso, a divisão da realidade entre uma realidade acima da esfera da lua e outra, embaixo dela. Essa definição aristotélica do movimento também acaba com Galilei e Descartes, para quem o movimento é um movimento contínuo até o repouso, ou seja, com I. Newton, um movimento para zero.[8]

O segundo ponto atinge a explicação da geração do mundo, caso o princípio ex uno non fit nisi unum seja um princípio verdadeiro. Na cosmologia, isso é um assunto da questão: quantos princípios motrizes precisamos assumir, para explicar os vários movimentos dos planetas? E. Brás explica essa questão, através da Cosmographia de Petrus Apianus, que arrolou quinze movimentos celestes não movidos. Aristóteles, se não me engano, cinquenta e três. A Idade Média conta com dez primeiros princípios motrizes: o primeiro é que se chama o céu cristalino (Dante Alighieri, Convívio II, xiv, 14) e que se chama também o firmamentum, o primum mobile e, em seguida, os movimentos dos planetas até o da lua.

A esse respeito, Avicena e o Liber de causis conhecem o seguinte modo da geração, isto é, criação do mundo: se o primeiro princípio, ou seja, o Uno é uma inteligência, um intelecto pensando sempre em ato, o que é que ele pensa? Se ele pensa sempre em ato, desse pensamento surge necessariamente uma segunda intelligentia; e se essa intelligentia pensa em sua origem enquanto uma possível intelligentia, surge daí o primeiro corpo celeste, o primum mobile e, assim, até a última intelligentia: a esfera da lua, onde é situado o intellectus agens ,que é cheio das formas inteligíveis e, a partir dele, efluem as espécies inteligíveis na alma intelectiva do homem, a saber, pelo qual o intellectus possibilis (intelecto possível), que é nosso intelecto, passa da potência ao ato de conhecer algo como tal coisa.

Também essa teoria de Avicena dos intelectos separados provindos de um conjunto da especulação metafísica, da cosmologia e do conhecimento não é aceitável para Tomás de Aquino (veja Suma de Teologia I, 79). A diferença entre intellectus agens e intellectus possibilis que Aristóteles faz, no III. Livro cap. 5 do De anima, Tomás interpreta de seguinte forma: a comparação aristotélica do sol enquanto princípio das coisas coloridas com o intelecto agente enquanto princípio das coisas conhecidas, Tomás reúne junto com Agostinho (Confissões X, 8: “Palácio da memória”), na metáfora da “luz intelectual”, isto é, da “luz natural da razão” (GUILLET, 1927, p. 79-88), uma das metáforas mais importantes na história da filosofia. A “luz intelectual” representa o intelecto agente em nós.

O terceiro e quarto pontos do meu comentário posso juntar. Acerca de uma hierarquia dos corpos celestes, deveria ser de grande interesse o tratado De coelesti hierarchia de ps.-Dionysius Areopagita, que trata sobre a hierarquia dos intelectos separados que Tomás chama, com Dionysio, de anjos e que são, na filosofia de Avicena, as inteligências. O quarto ponto é um acréscimo, pois, a meu ver, essa metafísica da luz, ou seja, a ciência da perspectiva, explica bem a importância da cosmologia para uma teoria medieval do conhecimento, para uma concepção metafísica e teológica de toda a realidade, nas condições do ser humano na vida presente.

A essa concepção pertence também o que se chama cosmographia, a questão da medida da terra através da interpretação dos sinais do céu e das constelações dos astros e do sol e da lua, por exemplo para a previsão do tempo,[9] muito importante para o sobreviver do ser humano, por exemplo na agricultura, na medida do tempo das estações do ano,[10] nas orientações nas viagens nas ruas e, sobretudo, na navegação no alto mar, por exemplo na época da descoberta da América no século XVI como a Cosmographiae Introductio de Martin Waldseemüller no ano de 1507 mostra.[11] Cosmografia então tem a ver com uma construção de uma mappa mundi, daquela a Peutingeriana deve ser a primeira, a mapa no Império Romano, depois a mapa da terra de Erbstorf (1236) na Idade Média, a famosa Ymago mundi de Pierre d’Ailly, e depois outras até os globos modernos da nossa terra.

Assim, o IV. Livro da Meteora de Aristóteles é intitulado De impressionibus superioribus, por exemplo: Tractatus Petri de Eliaco[12] Episcopi Cameracensis, Super libros Metheororum: de impressionibus aeris. Ac de hiis quae in prima, secunda, atque tertia regionibus aeris fiunt, sicut sunt Sydera cadentia, Stellae Cometae, Pluuia, Ros, Pruina, Nix, Grando, Ventus, Terraemotus, deque generatis infra terram. Conhecemos a influência da lua sobre a altura dos mares.[13] Gostaria de sublinhar a importância prática da cosmologia para a nossa vida cotidiana. Então, temos a tomar em consideração vários termos para o mesmo fenómeno: ‘astronomia’, ‘cosmologia’, ‘cosmografia’ e ‘astrologia’ que têm vários sentidos em vários contextos.

Agradeço ao autor, E. Brás, por um artigo estimulante, que provocou minhas observações e meu comentário.

 

Referências

ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2014.

 

DAVIDSON, H. A. Alfarabi, Avicenna, & Averroes, on Intellect. Their Cosmologies, Theories of the Active Intellect, and Theories of Human Intellect. Oxford: University Press, 1992.

 

GILSON, É. Pourquoi saint Thomas a critiqué saint Augustin? In: GILSON, É. Archives d'Histoire Doctrinale et Littéraire du Moyen Âge. Paris: J. Vrin, 1926. p. 5-127. t. I

 

GROSSETESTE, R. Tratado da luz e outros opúsculos sobre a cor e a luz. Latim –Português. Porto: Afrontamento, 2012.

 

GUILLET, J. O.P., La “lumière intellectuelle” d’après S. Thomas. “οἷον το φῶς” – De anima III, 5. 430 a 15. In: Archives d’Histoire Doctrinale et Littéraire du Moyen Âge. Paris: J. Vrin, 1927. p. 79-88. t. II.

 

LITT, T. Les corps célestes dans l’univers de saint Thomas d’Aquin. Louvain: Publications Universitaires; Paris: Béatrice Nauwelaerts, 1963 (Philosophes Médiévaux, 7).

 

NEWTON, I. Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, Julii 5. 1686, Londini Jussu Societatis Regiæ ac Typis Josephi Streater. Prostat apud plures Bibliopolas. Anno MDCLXXXVII, p. 8.

 

SAVONAROLA, G. De doctrina Platonicorum. In: Inter omnes Plato et Aristoteles: Gli Appunti Filosofici di Girolamo Savonarola, Introduzione, edizione critica e commento, Fédération Internationale des Instituts d'Études Médiévales, Textes et Études du Moyen Âge, 66, A cura di Lorenza Tromboni. Porto: Fédération Internationale des Instituts d'Études Médiévales, 2012. p. 239-262.

 

SCHNEIDER, J. H. J. The Eternity of the World. Thomas Aquinas and Boethius of Dacia. In: Archives d’Histoire Doctrinale et Littéraire du Moyen Âge. Paris: J. Vrin, 1999. p. 121-141. t. 66.

 

SCHNEIDER, J. H. J. Philosophy and Theology in the Islamic Culture: Al-Farabi’s. De scientiis. Philosophy Study, Netherlands, v. 1, n. 1, p. 41-51, 2011.

 

SCHEINDER, J. H. J. A Imagem de Platão em Tomás de Aquino. Observações a uma Controvérsia Medieval: Platão e/ou Aristóteles. Cultura e Fé Revista de Humanidades, Porto Alegre, ano 36, n. 143, p. 395-410, out./dez. 2013.

 

SCHNEIDER, J. H. J. A Teoria do Intelecto segundo Al-Farabi. Teologia e Filosofia no Mundo Árabe Latino Medieval. Poliética (PUC), São Paulo, v. 3 n. 2, p. 224-246, 2015.

 



[1] Docente na Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: jakob.schneider@ufu.b

[2] Litt (1963) trata do assunto de modo magistral e completo.

[3] Cf. SAVONAROLA (2012, p. 241): “quia ab uno non procedit nisi unum in quodam una, ut dicit Avicenna, qui hanc opinionem sequitur, tum quia ab una causa perfectissima non potest procedere nisi unus effectus perfectissimus […]”.

[4] Por causa dos termos latinos, cf. ARISTOTELES, Opera Omnia, Graece et Latine, cum Indice Nominum et Rerum. Paris: Ambrosio Firmin Didot, Instituti Imperialis Franciae Thypographo, Via Jacob 56, 1848-1854, v. III, p. 468. Ver também: Aristoteles Latine. Interpretibus variis edidit Academia Regia Borussica. Berlin, 1831, apud REIMERUM, Georgium. Nachdruck herausgegeben und eingeleitet von Eckhard Kessler. Humanistische Bibliothek. Texte und Abhandlungen, begründet von Ernesto Grassi, Reihe II, Texte Band 30. München. Wilhelm Fink, 1995; De anima, tradução de Johannes Argyropulos (1415-1487), p. 223.

[5] cf. BAEUMKER, C. Witelo. Ein Philosoph und Naturforscher des XIII. Jahrhunderts (Beiträge zur Geschichte der Philosophie und Theologie des Mittelalters, 3/2). Münster: Aschendorff, 1908, Repr. 1991. Witelonis Perspectivae liber primus: Book I of Witelo’s “Perspectiva”: An English Translation with Introduction and Commentary and Latin Edition of the Mathematical Book of Witelo’s “Perspectiva”, ed. and transl. S. Unguru, Studia Copernicana, Nr. 15, Wroclaw 1977; Witelonis Perspectivae liber quintus: Book V of Witelo’s Perspectiva: An English Translation with Introduction and Commentary and Latin Edition of the First Catoptrical Book of Witelo’s Perspectiva, ed. and transl. und A. Mark Smith, Studia Copernicana, Nr. 23, Wroclaw 1983.

[6] Cf. LINDBERG, David C. Auge und Licht im Mittelalter. Die Entwicklung der Optik von Alkindi bis Kepler, übers. v. M. Althoff. Frankfurt a. M.: 1987 (Orig.: Theories of Vision from Al-Kindi to Kepler, Chicago, 1976); idem, Roger Bacon and the origins of perspective in the West. In: GRANT, E.; MURDOCH, J. E. (Ed.). Mathematics and its applications to science and natural philosophy in the Middle Ages. Essays in honor of Marshall Clagett. Cambridge, 1987, p. 249-268; idem, Roger Bacon on Light, Vision, and the Universal Emanation of Force. In: HACKETT, J. (Ed.), Roger Bacon and the Sciences. Commemorative Essays. Leiden/New York/Köln, 1997, p. 243-275.

[7] Cf. ALANUS DE INSULIS. Magister Alanus de Insulis Regulae caelestis iuris. In: HÄRING, N. M. (ed.). Archives d’Histoire Doctrinale et Littéraire du Moyen Âge 48,1981, p. 97-226; LILLE, A. V. Regulae theologiae. Regeln der Theologie. Lateinisch –deutsch, übersetzt und eingeleitet von Andreas Niederberger und Miriam Pahlsmeier. Herders Bibliothek der Philosophie des Mittelalters, hrsg. v. Matthias Lutz-Bachmann, Alexander Fidora, Andreas Niederberger, Bd. 20. Freiburg, Basel, Wien: Herder, 2009, p. 56-64. Anônimo, Liber XXIV philosophorum. Das pseudohermenische Buch der vierundzwanzig Meister, In: BAEUMKER, C. Studien und Charakteristiken zur Geschichte der Philosophie insbesondere des Mittelalters. Gesammelte Vorträge und Aufsätze, ed. Martin Grabmann, Münster, Aschendorff, 1927, p. 194-214 (= Beiträge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters, v. XXV/2); Le livre des XXIV Philosophes, traduit du latin, édité et annoté par François Hudry, Grenoble, 1989.

[8] Def. III: Materiæ vis insita est potentia resistendi, qua corpus unumquodq;, quantum in se est, perseverat in statu suo vel quiescendi vel movendi uniformiter in directum. (NEWTON, 1686, p. 8).

[9] BOS, Gerrit; BURNET, Charles (orgs.). Scientific Weather Forcasting in the Middle Ages: The Writings of Al-Kindi, Studies, Editions, and Translations of the Arabic, Hebrew, and Latin Texts, New York, Routledge, 2000, 2016.

[10] Cf. por exemplo: STERN, Sacha; BURNETT, Charles (orgs.). Time, Astronomy, and Calendars in the Jewish Tradition. Leiden ; Boston: E. J. Brill, 2014.

[11] WALDSEEMÜLLER, Martin. Cosmographiae Introductio. New York: The United States Catholic Historical Society, 1907.

[12] Petrus de Alliaco, ou seja, Peter of Ailly ou Pierre d’Ailly (1350-1420): ymago mundi, e/ou a mappa mundi.

[13] Cf. por exemplo: MA’SAR, Abu. The Great Introduction to Astrology. Leiden; Boston, E. J. Brill, 2019, p. 262: “On the indication proper to the Moon for the ebb and flow”.