Apresentação
Com muito prazer apresentamos este novo
fascículo da Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp. Este número contém
dez artigos, apresentados em ordem alfabética dos autores, e uma tradução. Nove
deles estão em língua portuguesa, de autores de diversos locais e instituições
do Brasil, e um em língua espanhola, de autores da Espanha e México, além de
uma tradução para o Português. Embora o primeiro texto apresentado seja
referente ao período medieval, a grande maioria das publicações trata de
assuntos ou filósofos da contemporaneidade. Em especial, são retratados, em
diferentes questões filosóficas, pensadores como Heidegger, Kierkegaard,
Schopenhauer, Deleuze, Guattari, Latour, Schmidt, Rancière.
Conforme descrito em sua página, a revista adota como
objetivo a socialização do conhecimento, buscando promover o debate e a
interlocução de ideias. Em vista disso, a partir deste fascículo, inauguramos
uma nova modalidade de textos, a qual consiste de comentários de artigos
aprovados, consentidos previamente pelos autores destes. Eles são produzidos
pelos pareceristas do manuscrito submetido e anexados ao artigo original.
Trata-se de uma crítica construtiva, não mais da qualidade do artigo, uma vez
que o processo avaliativo já foi ultrapassado. O comentador pode expor
possíveis discordâncias de ideias, comparação de conceitos entre autores,
perspectivas ou sistemas filosóficos, diferenças hermenêuticas, metodológicas,
epistemológicas. É possível também construir uma ampliação, explicitação ou
mesmo a inserção de algum conceito importante para a compreensão da linha
argumentativa do artigo comentado, notas explicativas relevantes ou a posição
do comentador a respeito da tese exposta. Nesse sentido, procuramos promover um
diálogo entre ambos os textos, almejando o aprimoramento e a ampliação do
conhecimento.
Os comentários também são uma forma de valorizar
formalmente o trabalho dos avaliadores do periódico, oferecendo-lhes
oportunidade de publicação de suas ideias e reflexões que podem, inclusive, ter
tido origem a partir da análise do manuscrito avaliado. A política de avaliação
da revista, no entanto, continua sendo por pares duplo-cega. Apenas depois de o
artigo ser aprovado para publicação, conforme as normas da revista, revisado e
consentido pelos seus autores, solicitamos o comentário aos pareceristas,
sendo-lhes facultativo o aceite da atividade.
Considerando o tempo escasso para tal atividade neste
fascículo e sua natureza inovadora, foram publicados quatro comentários para
três artigos. Jakob Hans Josef Schneider comenta o texto escrito por Evaniel
Brás, intitulado “A relação entre ciência natural e cosmologia em Tomás de
Aquino.” Evandro Smarieri Soares comenta o artigo escrito em parceria por Iago
Ramos e Elías Fuentes Guillén, intitulado “Tecnología y transparencia”. O
artigo “Sobre Drones, imagem-tempo e o fim do poder soberano: a anomalia do
político em Carl Schmitt”, escrito Ulysses Pinheiro, é seguido de dois
comentários, um deles composto por Deyvison Rodrigues Lima e o outro por
Leonardo Monteiro Crespo de Almeida.
O primeiro texto apresentado é justamente um dos
comentados. Trata-se de “A relação entre ciência natural e cosmologia em Tomás
de Aquino”, escrito por Evaniel Brás dos Santos. O texto aborda a articulação
entre ciência natural e cosmologia em Tomás de Aquino. O autor explicita as
concepções da noção de cosmo, mediante a questão: o cosmo (mundo ou universo)
pode ser o assunto central da ciência natural em Tomás? No intuito de refletir
sobre essa questão, ele desenvolve três concepções de cosmo. A primeira é a da
metafísica, na qual o cosmo é uma hierarquia de entes. A segunda é a da
cosmografia segundo a qual o cosmo é a relação de esferas intercaladas. A
terceira, por fim, é a da cosmologia que entende o cosmo como o conjunto dos
corpos simples em perene locomoção natural.
O segundo artigo, “Sobre o juízo de Heidegger sobre
Kierkegaard em A hermenêutica da facticidade”, de Gabriel Ferreira da Silva,
visa a expor, analisar e avaliar as teses de Heidegger sobre a relação
Kierkegaard-Hegel, a fim de sopesá-las em sua correção. Segundo o autor do
artigo, o curso proferido por Heidegger, no semestre de verão de 1923,
publicado posteriormente, sob o título de Ontologia: a hermenêutica da
facticidade, é um dos importantes loci nos quais Heidegger deixa entrever tanto
a influência e a importância de Kierkegaard quanto algumas de suas avaliações
sobre o pensamento do filósofo dinamarquês. A questão investigada nesse artigo
é uma delas. Não obstante formule um interessante juízo sobre a relação entre
Kierkegaard e Hegel, a partir da figura de Trendelenburg, um dos temas mais
revisitados da literatura interpretativa sobre Kierkegaard, ela não tem sido
objeto frequente de avaliação por aqueles intérpretes. Para encerrar, Gabriel
desenvolve algumas reflexões metafilosóficas, avaliando o juízo de Heidegger
sobre Kierkegaard, quanto a não se ter “desprendido de Hegel”.
O terceiro artigo, escrito em espanhol, outro seguido de
comentário, é de autoria de Iago Ramos e Elías Fuentes Guillén, denominado
“Tecnología y transparência”. Conforme os autores, a concepção do ser humano
como animal tecnológico, juntamente com a ideia de progresso como meio de vida
da civilização, expõe várias questões que precisam ser consideradas em
detalhes, incluindo o que se entende por progresso e qual o sentido e o valor
da tecnologia. É este o objetivo desse artigo. O caso da realidade virtual de
fato patenteia a suposição usual da tecnologia como algo estranho à produção
cultural e humana. No entanto, a tecnologia compartilha nossos limites e está
sujeita ao nosso design, não importa o quanto queiramos assumir independente de
nós e o quanto tentemos substituir nossa interação com o espaço natural por um
relacionamento totalmente controlado em um ambiente virtual, enfatizam os
autores.
O quarto artigo, escrito por Larissa Drigo Agostinho,
intitulado “Guattari: máquinas e sujeitos políticos”, busca, a partir de uma
apresentação do contexto político e social no interior do qual a obra de Guattari
se insere, definir o debate político francês da década de 1960, no campo do
marxismo, sobretudo do materialismo histórico em torno da questão do sujeito da
história. A autora almeja explicitar as razões que levam Guattari a romper com
o estruturalismo, representado na psicanálise por Lacan e no marxismo por
Althusser. A relevância desse texto está na apresentação do conceito de
máquina, definido em oposição ao conceito de estrutura, o qual, unindo história
e inconsciente, busca traçar o espaço de emergência de um sujeito da história,
de um sujeito político.
Em seguida, o fascículo apresenta “O estádio estético,
interesses e política: um debate entre Kierkegaard e Rancière”, de autoria de
Lauro Ericksen. O artigo aborda a conjunção temática entre estética e política,
discutindo o pensamento de dois autores da filosofia contemporânea os quais
fazem essa conexão: Kierkegaard e Rancière. Lauro debate como o critério do
interesse no estádio estético kierkegaardiano pode ser comparativamente
analisado, no contexto estético-político de Rancière. O texto aborda os regimes
políticos de Rancière em alusão aos estádios da vida humana em Kierkegaard,
especificamente se relacionando ao estádio estético. Objetiva oferecer um
estudo atualizado da multiplicidade política contemporânea, através dos
diversos interesses estéticos que influenciam a formação social. Conforme o
autor, o trabalho resulta em uma abordagem estético-política despida de
inclinações ideológicas por si mesmas, mas que possibilita a indicação de vanguardas
e retaguardas no pensamento político hodierno.
A sexta produção, intitulada “A ciência pós-determinista,
supradisciplinar e transparadigmática: reacendendo o debate sobre teoria,
analogia e conceito”, é de Leo Peixoto Rodrigues. O artigo se inicia discutindo
um tema relativamente clássico na epistemologia, as relações entre analogia,
conceito e teoria, explorando uma perspectiva contemporânea do fazer científico
e, em alguma medida, da filosofia. A partir daí, procura reacender o debate
sobre os três elementos epigrafados à luz da produção do conhecimento
científico, destacando abordagens supradisciplinares e transparadigmáticas.
Para tanto, busca suporte em diferentes áreas do conhecimento científico, da
sociologia clássica e contemporânea, elementos da biologia, aspectos da
cibernética, objetivando mostrar que a ciência, de modo geral, considerando
suas múltiplas disciplinas, intercambia, de forma cada vez mais dinâmica,
raciocínios analógicos, com vistas a dar conta da crescente complexidade em que
se encontra.
No artigo seguinte, Luan Corrêa da Silva trata, em “Sobre a
negatividade conceitual do sentimento ou a filosofia schopenhauriana da
linguagem”, de algumas relações entre elementos cognitivos, conceito e
sentimento a partir de Schopenhauer. Conforme Luan, o filósofo em questão
possui uma concepção acerca da natureza do conceito que atravessa o seu
pensamento, desde o início de sua produção filosófica. Inicialmente abordado
através de sua acepção racional abstrata, em O mundo como vontade e como representação,
o conceito adquire traços mais profundos em função do sentimento (Gefühl). O
conceito “não-conceito” sentimento determinará os rumos da filosofia de
Schopenhauer, ao evidenciar os limites da linguagem. A linguagem filosófica,
por consequência, exprime um paradoxo, pois pretende expressar em linguagem
abstrata um conteúdo concreto cuja natureza não pode ser por ela determinado.
Por ser um construto conceitual abstrato, a linguagem filosófica possui um
estatuto ontológico secundário e, portanto, incompleto, em relação ao conteúdo
da realidade concreta. O autor visa a mostrar que os sentimentos são, nesse
sentido, o meio não conceitual o qual esclarece a própria natureza dos
conceitos e, por consequência, a via não-filosófica que paradoxalmente melhor
expressa o conteúdo da filosofia. No registro do sentimento, Schopenhauer
reconhece na linguagem musical o âmbito de justificação adequado da linguagem
filosófica.
O oitavo artigo, chamado “Conquistar o tertium datur:
Sloterdijk em defesa de uma “antropologia cibernética” (entre Heidegger, Günter
e Latour)” é de Maurício Fernando Pitta e José Fernandes Weber. Segundo os
autores, Martin Heidegger desenvolveu uma análise da metafísica e da tecnologia
que questionava radicalmente seus pressupostos ontológicos. Contudo, para
Sloterdijk, autor de uma revisão do motivo da clareira (Lichtung) heideggeriana
intitulada Domesticação do ser: clarificando a clareira, Heidegger padece
daquilo mesmo que ele critica: uma pendência para a ontologia clássica que, desde
pelo menos Platão e Aristóteles, separa o ser e o nada, fundamenta o princípio
de bivalência na lógica, excluindo qualquer terceira possibilidade, e permite
os dualismos constitutivos da metafísica. Seguindo Latour, o qual evidenciara
que “modernidade” não é senão uma crença na cisão entre os polos de forma e
matéria, sujeito e objeto, natureza e cultura, também Sloterdijk vai atribuir a
Heidegger a pendência à ontologia clássica, elevada ao nível da cisão entre o
ôntico e o ontológico. Diante disso, o que sugere Sloterdijk? Uma alternativa à
ontologia clássica na cibernética de Wiener e Günther, reatando os laços,
desfeitos por Heidegger, entre ontologia e antropologia. Nesse trabalho, os
autores almejam articular a crítica de Sloterdijk, a investigação de Latour e a
revisão ontológico-lógica de Günther, a fim de assentar bases para compreensão
do projeto sloterdijkiano de se pensar a antropologia com base em pressupostos
cibernéticos.
O penúltimo artigo, “Drones, imagem-tempo e o fim do poder
soberano”, de Ulysses Pinheiro, é seguido de dois comentários. O texto trata da
especificidade de um dos produtos tecnológicos de vigilância e de ataque aéreos
mais importantes em uso atualmente, os drones, mostrando em que sentido essa
nova tecnologia traça um marco decisivo na evolução do domínio dos ares e,
portanto, como sugere Carl Schmitt, na transformação do campo
teológico-político das sociedades contemporâneas. A imanência radical do campo
político proposta pelo liberalismo, diagnosticada por Schmitt, terá nos drones
um de seus instrumentos mais exemplares. Para caracterizar a especificidade dos
drones frente a outros aparelhos visuais e aéreos de guerra, o autor propõe uma
aproximação com o conceito de imagem-tempo de Gilles Deleuze, de tal modo a
determinar essa sua singularidade em função das propriedades intrínsecas da
imagem gerada. A principal característica da imagem-tempo deleuziana a ser
integrada à análise dos drones será seu aspecto tátil. Nesse momento, a
aproximação dos livros de Deleuze sobre o cinema, com sua obra escrita com
Félix Guattari (especialmente O anti-Édipo), será essencial para determinar a
dimensão política da imagem-drone.
Por fim, o décimo artigo, escrito por Wander Andrade de
Paula, é denominado “Ordenação moral de mundo e justificação da existência na
metafísica de Schopenhauer. Conforme lembra Wander, Schopenhauer ficou
conhecido como o pensador do “pessimismo filosófico”. Trata-se de uma doutrina
que, em linhas gerais, apresenta uma determinada interpretação acerca do valor
do mundo, mas que, em seu sentido ainda mais básico, questiona a possibilidade
de atribuição de valor ao todo da existência: há “justificação”
(Rechtfertigung) para a existência? A partir da resposta a essa pergunta, o
filósofo alemão desenvolve sua “metafísica da vontade” e, como seu
desdobramento, sua teoria da “redenção” (Erlösung), ou soteriologia.
Entretanto, o “filósofo do pessimismo” também afirma, em sua obra, haver uma
“ordenação moral de mundo” (moralische Weltordnung) e um “significado moral da
existência” (moralische Bedeutung des Daseyns), o que parece ir na direção
oposta ao “pessimismo”. Nesse artigo, o autor analisa o significado das noções
de ordenação moral de mundo e justificação da existência no pensamento de
Schopenhauer, a fim de demonstrar em que medida significado moral da existência
e pessimismo filosófico se relacionam no pensamento do autor.
Por fim, para fechar o número 1 do volume 43 da
Trans/Form/Ação, publicamos uma tradução para o português, feita por Pedro
Peixoto Ferreira e Evandro Smarieri, de um texto de Gilbert Simondon. Trata-se
de “L’amplification dans les processus d’information”, traduzida como “A
amplificação nos processo de informação”. O artigo é uma transcrição de uma
conferência ministrada por Simondon em 1962, no Colloque de Royaumont, sobre “o
conceito de informação na ciência contemporânea (Le concept d’information dans
la science contemporaine). Nela, Simondon apresenta, e correlaciona, três
“níveis do processo informacional de amplificação”: a amplificação transdutiva
“por recrutamento positivo”; a amplificação moduladora “por limitação”; e a
amplificação organizadora “por descoberta de um sistema de compatibilidade”.
Para cada um dos três níveis, Simondon apresenta exemplos dos mundos físico,
vivo, técnico e psicossocial.
Assim, encerramos a apresentação deste fascículo. Esperamos
que ele seja proveitoso aos seus leitores. Também desejamos que os comentários
aos artigos, essa nova modalidade de publicação inaugurada na revista, possam
ser profícuos para os objetivos do periódico, especialmente útil e prazerosa
para quem escreve e para quem lê. Obrigado por sua participação – e boa
leitura.
Marcos Antonio
Alves
Editor-responsável
da Trans/Form/Ação
Marília/SP,
março de 2020