ENTREVISTA COM ZELJKO LOPARIC

A revista Trans/Form/Ação publica neste número a entrevista com o filósofo Zeljko Loparic, professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Atualmente é professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, colaborador do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp e coordenador do Centro Winnicott de São Paulo. Nascido na Croácia, em 1939, Loparic é autor de obras como “Heidegger réu: um ensaio sobre a periculosidade da filosofia” (1990), “Kant heurístico”(1997), “Ética e finitude”(2004), “A semântica transcendental de Kant”(2005) “Escola de Kyoto e o perigo da técnica”(2009), entre outras.

A entrevista foi concedida aos professores Arlenice Almeida da Silva e Ubirajara Rancan de Azevedo Marques, no Centro Winnicott, em maio de 2009.

Arlenice Almeida da Silva Inicialmente, gostaríamos de saber como foi o seu caminho até a filosofia, sua formação intelectual. E, também um pouco sobre sua chegada e relação intelectual com o Brasil. Enfim, sua formação biográfica e intelectual.

Zeljko Loparic Eu nasci em 1939 na Croácia, em Cvetkovic, onde também nasceu meu pai. Essa cidadezinha fica perto de Zagreb, capital da Croácia, situada na beira da planície panônica, região de onde, no inverno, sopram ventos frios do norte e nordeste e de onde, no passado, chegavam invasões inimigas. Para mim, também foram muito importantes os meses de férias que eu passava com a minha mãe, num lugarejo onde ela nasceu, à beira do mar da Croácia, no Adriático. De lá, sim, via-se as montanhas poderosas que fazem parte dos Alpes Dináricos. Mais do que a planície donorte, estas montanhas faziam parte das minhas paisagens de infância, determinando de modo significativo a maneira de me situar no espaço.

Ubirajara Rancan de Azevedo Marques E você fazia caminhadas lá?

ZL Eu subia nestas montanhas, mas eu não era alpinista, eu fazia apenas caminhadas. Tanto nestas, como, mais tarde, nos Alpes da Eslovênia. Quando jovem, fiz várias excursões, era uma coisa fascinante. Fazíamos pequenos grupos e saíamos.

URAM Era uma tradição?

ZL Havia o movimento de se fazer montanhas. Era uma postura, apoiada até oficialmente; havia grupos que se organizavam e ficavam vários dias, uma semana, dez dias, nas montanhas; percorria-se uma atrás da outra, planejavam-se trajetos, ficava-se em refúgios. Mas eu sempre continuei sendo alguém de beira-mar. Tanto é que, quando cheguei ao Brasil, na Paraíba, eu refiz um forte contato com o mar, só que agora não era o Adriático, mas o oceano.

URAM Foi um reencontro, antes de vir para João Pessoa, você estava mais na Bélgica e na Alemanha.

ZL – Sim. Passei na Bélgica três anos, depois dois anos na França, de 1964 a 1966. Em 1966, fui para Alemanha, para Freiburg, atrás de Heidegger. Tive contato no início apenas com Eugen Fink. Por sorte, então, em 1966/ 67, Heidegger resolveu fazer um seminário sobre Heráclito com Fink, a quatro mãos. Eu conhecia Victor Farias, éramos próximos – eu até ficava às vezes como babysister dos filhos dele. Victor soube do seminário por um assistente de Fink, um argentino, e me falou: “Sabe que Heidegger e Fink vão oferecer um seminário, você não quer participar?”. Eu disse: “Claro!” Eu trouxe também um amigo português, José de Souza e Brito, que se tornou depois um jurista famoso em Portugal, fez parte do Supremo Tribunal da Justiça de Portugal e teve uma carreira universitária e profissional expressiva. Pois bem, isso foi um evento que me marcou. O seminário de Heidegger sobre Heráclito.

AAS Seus primeiros estudos em filosofia foram na Croácia?

ZL Não me recordo exatamente como tudo isso começou, mas eu sei que me sentia, desde pequeno, atraído por questões mais gerais. Eu me lembro que ainda na escola primária, quando o regime comunista iugoslavo começava a implantar as cooperativas agrícolas, contra as quais estava todo mundo, eu defendia essas cooperativas diante dos meus colegas. Eu tinha nove anos.

URAM – Mas você era uma espécie de ovelha negra, o único filósofo da família, ou havia antecedentes também ligados às humanidades?

ZL – Não havia antecedentes. Eu estudei no colégio clássico, que era a versão laicizada do colégio jesuíta fundado no século XVII, em 1608, em Zagreb. Os jesuítas fundaram esse colégio como parte da Contra-Reforma. A Croácia sempre foi uma terra de fronteira entre civilizações. Os jesuítas se estabeleceram lá, numa colina de Zagreb, e do outro lado da fronteira estavam os ortodoxos e os muçulmanos.

URAM – Mas a maioria era católica?

ZL – Sim. Mas logo do outro lado de um rio que fazia a fronteira da Croácia, a religião era outra. A Contra-Reforma chegou até lá para segurar essa fronteira. Depois, o colégio foi laicizado, mas preservou o latim e o grego. Estudei oito anos de latim, seis anos de grego, oito anos de francês. Por conta própria, comecei a estudar alemão. A mãe de um amigo meu começou a me dar aulas de inglês. Por conta própria comecei a estudar italiano. No final do colegial, lia Pirandello.

URAM – Teria vindo daí o interesse que te levou à Filologia, ainda na Croácia?

ZL – Estudar as línguas e gostar de livros: isso foi meu dia-a-dia desde o secundário. Mas devo dizer que eu tinha também um grande fascínio pela matemática. Tanto é que tempos depois, quando cheguei a João Pessoa e, mesmo antes, na França frequentei cursos regulares de matemática. Na França, em 1965/66, eu ficava sobrando, porque o nível de ensino era muito superior àquilo que eu podia acompanhar. Mas na Paraíba, durante três anos, eu fiz o curso regular de graduação em matemática, fiz provas, fiz tudo que um aluno comum faz. Isso foi o resgate do meu primeiro interesse pelas ciências exatas, em particular, a matemática, que data do colegial. Então, eu sou “filólogo” de formação, mas tenho também um lado voltado às “exatas”.

URAM – Mas nem por isso você, como filósofo, foi alguém ligado à análise filológica.

ZL – Para mim, a filologia é apenas um meio. É absolutamente essencial saber as línguas, saber ler o texto no original, saber ler os comentários, mas isso nunca se transformou para mim em um objetivo principal, ou ocupação central, sempre era algo prévio ou vinha depois. Isso porque, desde muito pequeno, eu tinha aquelas questões de gerais que me tocavam. Isso se tornou muito cedo um traço do meu modo de ser e de lidar com as coisas. Depois, quando eu saí da pequena cidadezinha de Cvetkovic para Zagreb, para fazer o colégio, logo entrei em um grupo de estudantes do secundário, mas velhos que eu e também dados a discussões teóricas, que frequentavam um mosteiro jesuíta.

URAM – A sua formação religiosa foi significativa, deixou-lhe marcas positivas?

ZL – Ela foi certamente importante. O nosso grupo recebia dos jesuítas uma instrução religiosa sofisticada, dirigida para a fundamentação filosófica da religião. Como sempre, os jesuítas acentuavam o intelecto. Ainda me lembro que, quando tinha doze ou treze anos, eu pegava amigos meus do ginasial e explicava a eles as provas da existência de Deus de São Tomás de Aquino. O meu primeiro contato com a Filosofia foi via uma certa escolástica, aquela que, na mesma época, era ensinada na faculdade de teologia de Zagreb. Isso foi o começo. No último ano do colegial, nós tínhamos aulas de Filosofia. Pelo que eu sei o meu professor de filosofia, Boris Kalin, ainda está vivo. Agora deve ter mais de 90 anos. Ele dava história da Filosofia. Com ele, sob influência dele, enfim, por incentivo e impulso dele, eu comecei a ler Platão, no colegial ainda, e comecei a ler também Kant, claro, em tradução para o croata. Eu li vários diálogos de Platão, Banquete, Fedro, Fedon. Depois li os Prolegômenos. De repente, eu vi posta em questão toda teologia possível, sem apelo. Devido a Kant, a Filosofia passou para o primeiro plano na minha vida intelectual. Kant desafiava as tradições pessoal, religiosa e filosófica, nas quais eu crescera. E, como eu levei Kant a sério, a Filosofia se tornou uma questão pessoalmente incontornável. Então, com 18 anos, eu decidi estudar Filosofia.

URAM – Mas você fez primeiro filologia.

ZL – Fiz filologia porque também era uma coisa que eu sabia e gostava de fazer; francês, inglês, letras, eu era bom nisso. E, sobretudo, porque a filosofia acadêmica ensinada naquela época na Universidade de Zagreb era um marxismo que chamei “requentado” – um marxismo misturado com Heidegger que eu detestava como formação filosófica, como modo de encaminhar questões filosóficas.

AAS – Estamos em que ano, professor?

ZL – Em 1957, 1958.

AAS – E quando você entra para a faculdade?

ZL – Em 1958.

AAS – Então é um regime soviético.

ZL – Soviético é modo de falar.

AAS – Modo de falar, porque ali, sob Tito, havia certa autonomia.

ZL – Em 1956 a Rússia invade a Hungria, e a Iugoslávia dá claros sinais de que resistirá a qualquer tentativa de Stálin de ampliar a influência soviética sobre os Bálcãs. Isso em 1956 e 1957. Foi quando eu li Kant e decidi fazer Filosofia. Eu vivia na tensão entre o meu modo habitual de ver, sentir e pensar as coisas; entre o meu mundo ginasial e colegial – que a convivência com os jesuítas, em termos de ensino, tinha possibilitado – e Kant. Kant era um obstáculo, era uma pedra no caminho. Eu tinha de dar conta disso. O marxismo oficial não me dizia nada. Ele era a linha de frente do Partido Comunista. Os filósofos da academia faziam uma filosofia acomodada, soft, por trás da qual se escondia a pesada prática do partido.

URAM – E havia algum movimento mais organizado, crítico, ainda que oculto, contra essa união rapsódica da Iugoslávia, do qual você participasse ou que você conhecesse naquele momento?

ZL – Sim, digamos que sim, de dois pontos de vista. Primeiro, na minha tradição familiar e grupal, considerava-se que a Croácia era dominada pela hegemonia Sérvia, o que significava então dominação e exploração econômica.

AAS – Isso já era claro na época? Dominação e imperialismo sérvio?

ZL – Absolutamente claro. Dominação tanto política quanto econômica. Esse imperialismo sérvio era uma ditadura que visava a controlar e assimilar a Croácia. Nas guerras dos anos 1990, ficou claro para o mundo inteiro que o establishment sérvio queria transformar em uma Grande Sérvia boa parte da Croácia, da Bósnia e também da Macedônia. Imperialismo político e exploração econômica da Croácia. Isso doía no dia-a-dia, nas gerações antigas e novas, e grande parte da Croácia estava em um estado de profunda insatisfação. Não de revolta, mas de oposição ao regime praticado pelo Partido Comunista. Por outro lado, se quando tinha nove anos eu defendia as cooperativas agrícolas, nem por isso acabei aceitando o comunismo real, porque o comunismo real dizia uma coisa e fazia o oposto; era uma ditadura de uma nova classe. Radovan Djilas, quando escreveu A nova classe, disse coisas que eram óbvias para nós. Eu não podia aceitar nem a ditadura sérvia na Iugoslávia, nem o quadro ideológico sob o qual ela se escondia, o do comunismo. Desde então, eu buscava alternativas. Achei-as no movimento de esquerda católico-cristã da Europa ocidental. Eu era entusiasmado pelo movimento dos prêtres-ouvriers, padres-operários, e por toda uma linha de pensamento social católico que ia na direção da socialdemocracia. De fato, para mim, a primeira formulação da alternativa à ditadura comunista, era um regime do tipo social-democrata. Não sei se vocês sabem disso: em 1954, em Bad Godesberg a social-democracia alemã abandonou o marxismo como referência teórica central, o que permitiu a participação dos cristãos na social-democracia alemã. Esta deixou de ser um partido ateu marxista. Não empurrava mais os cristãos de esquerda para a democracia cristã. Eu recebia pelos canais da Igreja documentos relativos a esse assunto. Foi assim que encontrei minha primeira posição política: tornar-me um social-democrata cristão.

URAM – Mas a filosofia você começou a cursá-la em nível universitário na Croácia ou na Bélgica?

ZL – Foi na Bélgica, em 1959-1960.

URAM – E qual a orientação desse curso na Bélgica?

ZL – Era um curso no qual se estudava a neo-escolástica e o São Tomás de Aquino, onde se estudava a ontologia aristotélica, mas não só. Estudavase Heidegger, estudava-se Hegel. Como eu tinha interesse pela matemática, aproximei-me de Jean Ladrière, matemático de formação, que fazia Filosofia da Ciência e que se tornou meu orientador de doutorado. Foi o homem quem mais me inspirou intelectualmente durante meu tempo de estudante na Bélgica. Eu o cito no meu livro, A semântica transcendental de Kant (Campinas: Unicamp, 2000) em uma nota de rodapé na qual eu agradeço a ele a inspiração.

URAM – Ainda recuando um pouco na sua época de infância na Croácia, havia alguma atividade musical, alguma coisa que fosse ou tradicional ou especial da sua formação? Por exemplo, algum coro de igreja? Essas coisas são comuns, são tradicionais.

ZL – São tradicionais, existem coisas desse tipo. Eu me lembro de que minha mãe queria que eu participasse de uma banda de música do lugar, mas acabei não entrando. O que me aproximou da música foi outra coisa. Na época do ginásio e, depois do colégio, eu morava perto da principal sala de concertos em Zagreb e, sempre que passava diante dessa sala, via anúncios de concertos com os nomes de artista famosos. Eu ficava fascinado, queria assistir, mas raramente tinha dinheiro para pagar. Eu tinha um colega do ginásio, cujo pai era bombeiro e trabalhava na mesma sala de concertos, na brigada da sala. Então, um belo dia, esse colega me disse: “Você gosta de ouvir música, meu pai pode nos passar para dentro da sala, se houver lugar”. Foi assim que eu comecei a frequentar esta sala de concerto com alguma assiduidade, em condições financeiras digamos facilitadas, mas sem poder contar com as poltronas mais confortáveis. Inclusive, eu pude participar dos ensaios. Lembro-me que – essa foi uma grande experiência – eu assisti com grande emoção o ensaio da 9ª sinfonia de Beethoven, o 4º movimento, o ensaio com os solistas e o coro. No ensaio você vê claramente o que o regente quer e o que não quer. Lá ouvi David Oistrakh e Nathan Milstein tocarem; Leopold Stokowski regeu lá. São nomes hoje antigos.

Uma outra coisa foi muito importante: em 1958 teve início em Zagreb a Bienal de Música, um festival de música contemporânea. Foram convidados vários doas mais importantes compositores daquela época; um deles era Karlheinz Stockhausen (1928-2007). John Cage estava lá também. Foi nessa Bienal que eu ouvi pela primeira vez Pierrot Lunaire de Arnold Schoenberg, a música dodecafônica, peças de Pierre Boulez, a música eletrônica. Isto me marcou sobremaneira. Desde então sou fascinado pela música contemporânea. Para nós, ouvir Stockhausen, mesmo sem saber se aquilo que ele fazia era música ou não, era ideologicamente inovador; gerou uma comoção na cidade toda. Isso não significava que o ocidente capitalista chegara a Zagreb, mas que formas de fazer arte ideologicamente livres eram agora toleradas. Tudo isso aconteceu antes de eu ir à Bélgica.

AAS – Você localiza algum grupo artístico de resistência na Croácia, alguns nomes que conseguiam um espaço no teatro ou no cinema; escritores que resistiam pela via da arte?

ZL – Para dizer a verdade, o teatro não era muito alternativo. E havia as óperas, eu assisti muitas óperas, tinha uma Casa de Ópera em Zagreb, com bons cantores. Eu ficava lá em cima, na galeria. Talvez porque minha mãe gostasse de ópera, pode ter sido por influência dela. Mas eu apreciava mais a música de concerto. O que também acho que me impulsionou para a música foi o fato de eu morar um andar abaixo de Antonio Janigro, um violoncelista famoso de origem italiana que criou os Solistas de Zagreb, um conjunto de música barroca conhecido internacionalmente, com apresentações pelo mundo todo. Mais tarde, Janigro deixou Zagreb e foi para Köln, onde se tornou professor de violoncelo. Ele morava no meu prédio, às vezes ele subia a escada e eu descia a escada, e essa proximidade física com Janigro me fazia pensar “eu vou assistir aos concertos dele”.

URAM – E havia, digamos, a música soviética de Dmitri Shostakovich, que nessa época sofria perseguições?


 – Certamente. Mas Zagreb é uma cidade da Europa central. As óperas eram basicamente italianas. Wagner pouquíssimo, pois era de difícil execução. A música clássica era alemã e russa. Até 1958, quando apareceram Stockhausen, Cage e outros contemporâneos. Mas, como disse, a Bienal era mais que um evento musical, era um ar fresco que soprava na cidade. Não que houvesse antes uma forte repressão cultural, pois Tito nesse ponto era liberal. Não impunham a arte do realismo socialista. Nós tínhamos arte abstrata na pintura, Edo Murtic, por exemplo. Mas nada foi tão significativo para mim, na abertura para o mundo contemporâneo, como esse festival.

URAM – Fale-me, como foi essa ida à Bélgica? Por que a Bélgica e como se deu essa passagem? Você já havia saído da Croácia ou foi primeiramente para lá?

ZL – Fui primeiramente para lá. Com a ajuda de vários amigos.

URAM – Por meio da Igreja também ou não?

ZL – Não foi a Igreja como tal. Eu estava estudando francês, queria aprender a falar melhor e quis ir a Paris. Eu tinha uns amigos franceses, um casal que não tinha filhos, com orientação católica, e, em 1959, eles me arrumaram um emprego. O segundo emprego. O meu primeiro emprego foi o de guia turístico na antiga Iugoslávia, em 1958, que consegui porque sabia várias línguas, eu sabia bem francês, me virava com alemão e tinha algumas noções do inglês. Os turistas eram franceses, entre eles o casal de amigos, e alemães. Naquela época não havia cheques de bancos na Iugoslávia e não tinha vouchers. Eu tinha de pagar os hotéis e outras despesas com o dinheiro vivo. Eu levava dinheiro todo no bolso da calça. Minha tia fez um bolso “oculto” pra mim. Lá eu colocava dinheiro e grampeava. O meu segundo emprego, já em Paris, foi o de sacristão. Era na Igreja Notre-Dame... Atenção, não se trata da catedral de Paris, mas de Notre-Dame du Rosaire, Nossa Senhora do Rosário, situada perto do metrô Garibaldi. Você desce do metrô e está em frente à igreja. Era uma igreja nova, insignificante, de um bairro comunista. Ali, naquela época, 93% da população votavam nos comunistas. No entanto, tinha uma comunidade portuguesa cristã ali. Aos sábados e domingos eles iam lá participar de festas na casa paroquial.

URAM – E você teve algum contato com a língua portuguesa?

ZL – Não tive, e a música era uma música “gritada”, aquela música de aldeia. Eu era um sacristão e o outro era um português.

AAS – E o contato com a Bélgica?

 – Um belo dia, no verão de 1959, chegou a minha sacristia um estudante belga. Ele tinha feito contatos com meus amigos na Croácia, procurou por mim lá em Paris e perguntou se eu estava interessado em ter uma bolsa do Centro Universitário de Louvain. Eu disse que sim, que estava interessado. Então, depois de três meses, eu deixei de ser sacristão de Notredame para me tornar estudante de Filosofia em Louvain. Em Zagreb, eu suspendi o curso de letras, eu o continuei depois, mas não o terminei. Fiz quatro anos de letras, mas não fiz as provas finais. No outono de 1959, comecei Filosofia em Louvain. No verão de 1960 eu voltei para Zagreb e a polícia apreendeu o meu passaporte, não me deixou sair do país. Em 1962, uma tia minha, que conhecia o ministro da agricultura da Croácia, um parente longínquo nosso, procurou esse ministro, explicou o caso e ele me conseguiu o passaporte de volta. À Croácia voltei, vários anos depois, já casado. Casei na Bélgica com a Andréa (Andréa Maria Altino de Campos Loparic). Nos conhecemos em Louvain, como estudantes. Ela também fazia graduação e participava do grupo de estudantes latino-americanos de esquerda. Discutíamos muito. Eu queria convencê-los da minha social-democracia cristã, a qual eles achavam uma traição à sua causa.

AAS – Mas o movimento de esquerda latino-americano era em boa parte cristão.

ZL – Sim, era cristão; eles todos faziam parte da JUC (Juventude Universitária Católica) e eu ia nessa direção; isso para mim era familiar. Mas eu recusava o marxismo, enquanto eles não.

URAM – E a Bélgica, como foi?

ZL – A Bélgica é um país extremamente agradável para um estudante jovem estrangeiro, pois os belgas são um povo muito hospitaleiro. Louvain (Leuven) ficava em Flandres, terra flamenga. Era bilíngue, a universidade era bilíngue (francês e flamengo). A convivência com os colegas em uma cidade pequena era ótima, havia muita interação. A universidade era conhecida como aberta, eu não diria que era de esquerda, mas ela aceitava muito bem om movimentos estudantis de esquerda, mesmo os de tendência marxista. Eu me lembro de Camilo Torres, padre colombiano, que depois morreu como guerrilheiro; fui amigo de vários colombianos do grupo dele que depois foram para a guerrilha. Havia uma convivência tolerante entre as várias direções da esquerda estudantil e as diversas posições de esquerda da igreja, não havia confronto.

URAM – E o casamento com uma brasileira não era chocante, para uma família croata? Você não estava “prometido” para alguma croata?

 – Havia várias histórias anteriores, mas promessas não. O que na verdade eu pus em risco, casando com uma brasileira, foi a minha volta à Croácia, meu engajamento na Croácia, a minha tentativa de atuar na esquerda cristã dali.

URAM – Ou seja, ao casar-se com ela você já previa vir ao Brasil?

ZL – Ao casar com ela eu previa não poder mais voltar para a Croácia. Num certo sentido, eu estava achando bom, pois eu sabia das dificuldades de inserção na volta para a Croácia.

URAM – Ou seja, não se cogitou a possibilidade de vocês formarem um casal na Croácia?

ZL – Isso era difícil tanto por motivos políticos, quanto por motivos pessoais. Uma brasileira de Recife, mesmo de esquerda, não se acomodaria na Croácia. O regime ditatorial comunista não admitia alternativas de esquerda, era ele e nada mais. Nem politicamente, nem culturalmente, nem climaticamente, uma pessoa de Recife poderia facilmente se acomodar.

URAM – Nesse período, no início dos anos 1960, até sua chegada no carnaval de 1969 em Recife, vocês viveram na Europa?

ZL – Passamos alguns anos na Bélgica, até 1964, depois fomos para Paris, onde eu terminei de escrever o meu mestrado, sob a orientação de Alphonse de Waelhens, um heideggeriano de Louvain, que era amigo de Merleau-Ponty – este tinha acabado de morrer – e de Lacan. O tema era Heidegger e Hegel. Também estudei um pouco de matemática. Conheci e fui aluno de Paul Ricoeur, Henri Birault, Jules Vuilleman e outros.

AAS – Você poderia falar um pouco desta dissertação?

ZL – Antes disso, quero acrescentar que, em 1965/66, também fui aluno de Jacques Lacan. A primeira coisa que ele deu em 1965 foi o texto “La science et la vérité”, que é o último artigo de Écrits, publicado em 1966. Quem me deu uma carta de recomendação para eu entrar no seminário de Lacan na Rue d´Ulm foi Alphonse de Waelhens. Ao mesmo tempo que seguia os seminários de Lacan sem entender praticamente nada, eu passava por meu segundo abalo filosófico: o causado pelo encontro com Heidegger, pela sua pergunta sobre o ser. Eu comecei a pensar que aí estava a essência da Filosofia, e que o que eu tinha mesmo que fazer era entender o Ser e Tempo. URAM – E você o lia em alemão?

ZL – Sim, eu já sabia alemão, eu tinha aprendido alemão por conta própria na Croácia, o suficiente. Houve um momento importante nesse cami


nho para Heidegger: a leitura de Husserl. Eu fazia seminários particulares nos arquivos Husserl de Louvain com Rudolf Böhm, aluno de Gadamer na Alemanha Oriental, que trabalhava na edição da Husserliana, mas que não tinha um posto universitário. Semanalmente, nos arquivos, que ficavam no 4º andar do Instituto de Filosofia, nós líamos maravilhados os manuscritos de Husserl. Mas o fascínio mesmo era com Heidegger. Eu comprei um exemplar de Ser e Tempo e logo que comecei a ler deparei-me com um pensamento totalmente novo, diferente do de Kant, diferente de tudo. Pareciame que eu achara o cerne da Filosofia. Eu precisava situar esse Heidegger, que eu não entendia bem. Isso me levou a remeter, seguindo o próprio Heidegger, a questão do ser e tempo à história da Filosofia. Foi assim que cheguei a pensar que o interlocutor principal de Heidegger seria Hegel, tese que, com novos argumentos, sustento até hoje. Quando discute a história da filosofia, aquilo que dela resultou, Heidegger não se dirige em primeiro lugar a Nietzsche ou Kant, mas a Hegel. Tentei mostrar isso na minha dissertação de mestrado, abordando três fases principais a discussão entre Heidegger e Hegel: a de Ser e tempo relativa ao problema da relação entre o Espírito e Tempo; a segunda, centrada no conceito hegeliano de experiência posado por em oposição ao conceito heideggeriano de experiência, que se encontra nos textos de Heidegger dos anos 1930; e, finalmente, a terceira, dominada pelo diálogo de Heidegger com Hegel contido nos textos tais como “Identidade e diferença”, e, ainda, “Hegel e os gregos”, centrada na temática da história do Ser.

URAM – Você não foi atraído nessa época pelo Kant-Buch de Heidegger?

ZL – Não, era o Ser e tempo mesmo que eu realmente queria entender. URAM– E isso já o levava para Freiburg ?

ZL – Era um ato meio esquizofrênico, pois Heidegger não era propriamente um filósofo da Ciência. Hoje eu penso que, no fundo, o que eu estava procurando era me expor àquilo que eu chamei depois de “pluralidade dos dizeres”. Heidegger sustentava a tese de que o discurso fundante do ocidente é a metafísica. Já naquela época, em 1966, eu não estava convencido disso. E hoje menos ainda. Não penso que haja um único discurso fundante do ocidente, mas que existem vários discursos co-originários, entre eles os das matemáticas e das ciências exatas. Recentemente, escrevi vários artigos sobre a origem da ciência e da técnica ocidentais, onde mostro que nenhuma das duas é uma herança metafísica, como sustenta Heidegger. A ciência exata grega é muito anterior à metafísica grega e a metafísica aristotélica só embaralhou as cartas. A ciência moderna nasce contra Aristóteles, contra a sua metafísica, voltada para os pré-socráticos, não os pré-socráticos de Heidegger, mas os pré-socráticos anteriores aos pré-socráticos de Heidegger, que são Pitágoras e Tales.

URAM – Em que ano Andréa e você vieram para o Brasil? Já havia perspectiva de trabalho na UFPB para os dois?

ZL – Em 1969 viemos para Recife. Tínhamos uma promessa de trabalho que nos foi feita, em 1968, por Newton Sucupira. Ele era professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Pernambuco, posteriormente membro do Conselho Federal de Educação. Ele conhecia e apreciava muito Andréa. Nós estávamos na Alemanha, fomos a Paris para falar com ele e ele nos fez o convite. Quando chegamos em Recife, em março de 1969, Sucupira havia brigado com o Departamento de Filosofia da Federal. Demos com os burros n’água. Nesse momento, a Paraíba precisava contratar professores; então fomos para a Paraíba. Fomos para João Pessoa e alugamos uma casa à beira-mar, perto do atual hotel Tambau. Reencontrei-me com o mar.

URAM – E vocês já tinham filhos?

ZL – Tínhamos o Marko, que nasceu em 1966, em Paris, antes de irmos à Alemanha em busca de Heidegger. Quando fomos para a Paraíba, ele tinha três anos. Ele já falava alemão, porque ele teve uma babá alemã.

URAM – Sua família chegou a conhecê-lo?

ZL – Sim. Antes de ir embora para Brasil, a gente foi para a Croácia.

AAS – Você chega em plena ditadura. Como foi? Você lembra de alguma coisa?

ZL – Tinham acabado de decretar o AI-5. Eu cheguei poucos meses depois. Antes de virmos para o Brasil, tínhamos contatos com estudantes de esquerda envolvidos nos movimentos estudantis, inclusive, nos movimentos armados. Vinícius Caldeira Brant, por exemplo, frequentava a nossa casa em Paris. Víamos com frequência Miguel Arraes, que estava exilado. Eu simpatizava com esses grupos, pois achava que toda ditadura era abominável, tanto de esquerda como de direita. Eu era a favor da resistência à ditadura. Mas isso era mais uma postura pessoal, moral, menos diretamente militar.

URAM – Você chegou a ter treinamento militar?

ZL – Não, eu escapei. A Iugoslávia é um país que passou de muitas guerras, durante muitos séculos. Lá, sabe-se qual é o perfil de um guerreiro. Então, quando eu via meninos de classe média querendo se colocar na posição de guerrilheiros, percebia com clareza que eles não tinham nenhuma chance. Quando a Andréa chegou ao Brasil, ela foi convidada a participar. Ela nunca propriamente se envolveu. Tivemos vários amigos que foram presos, torturados, o próprio Vinícius. Ao mesmo tempo, eu tinha reservas fortes a respeito de vários aspectos ideológicos desses movimentos. Pareciame que eles não sabiam o que estavam fazendo. Pela minha experiência do comunismo real, eu antevia o que iria acontecer no futuro, se eles ganhassem. Mas ninguém queria discutir isso. Quando Soljenítsin publicou O Arquipélago Gulag, os meus amigos não entenderam, nem queriam entender a sua crítica ao regime soviético.

URAM – Esse ponto é muito interessante. Você fala a respeito no seu livro Heidegger réu. Um ensaio sobre a periculosidade da filosofia. Embora o livro tenha sido publicado em 1990, não se trata só de um exame crítico do livro do Victor Farias, que causou furor em grande parte do mundo, sobretudo na França, mas se trata talvez de uma oxigenação da Filosofia, talvez no melhor do seu espírito Iluminista, e também um libelo contra a não ideologização da Filosofia aqui no Brasil. Eu aproveito para perguntar: um pouco da polêmica que ele criou aqui no Brasil ricocheteou em você? Como você saiu daquela polêmica que seu livro causou?

ZL – Meu livro certamente chamou atenção, mas não criou muita polêmica. Eu fiquei bastante decepcionado pelo fato de que o pessoal de esquerda nem tomar uma posição. Isso é significativo. Quando o marxismo real entrou em colapso, eu julgava que havia uma boa oportunidade de rever o que aconteceu. Só que a esquerda oficial e a não oficial, ao invés de se abrir para ver o que estava errado e aprender com a história, para relançar o movimento, se omitiu dessa tarefa critica. No meu livro de 1990, eu examino a questão de saber se a filosofia de Heidegger era perigosa e pergunto: Quem pode dizer o que é perigoso na filosofia, o que é uma filosofia perigosa? Em que medida pode-se dizer que Heidegger é perigoso e Marx ou Hegel, não? Por isso, nesse livro eu examino também a periculosidade do marxismo. Esse é o tema do mal que se pode fazer com boas intenções ou com boas razões. Mas esse ponto não foi discutido, nem na política, nem na filosofia brasileira, o que para mim foi uma decepção. Até hoje, esse debate não foi feito no Brasil e nem talvez em lugar nenhum.

AAS – Ruy Fausto insiste nisso seguidamente, que a esquerda não consegue fazer a história do movimento recente, não consegue recontar essa história recente.

ZL – Não se trata de fazer mea culpa, mas de entender como a postura e o discurso marxista podem se tornar desastrosos, e em que condições isso ocorre. Eu não pedia isso querendo defender Heidegger, mas para situar melhor Heidegger no contexto intelectual e político do século XX.

URAM – Eu queria voltar um pouco e falar da sua chegada a São Paulo. Se eu não me engano, você passa quatro anos como docente na USP, de 1973 a 1977. Antes, portanto, de ir à Unicamp, que foi fundada em 1976, e para o Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) que é fundado em 1977, pelo Oswaldo Porchat. O CLE então ostentava uma personalidade própria, mas a mim parece que ele marcava um terreno de oposição à índole historicizante da filosofia uspiana, contra a qual, pelo menos desde o final dos anos 1960, posicionava-se Porchat, e creio que também você. Então, a minha pergunta é: se você, naquele momento, antes, durante, após, o seu período uspiano, já se sentia aclimatado com a situação da filosofia no Brasil, e se você já mantinha alguma crítica, no estilo porchatiano, contra essa vertente radicalmente historicizante da filosofia na USP, e qual seu papel na cena filosófica daquele período?

ZL – Quando chego ao Brasil, eu defendo politicamente posições da social-democracia, sabendo que aqui elas não tinham nenhuma aceitação. Estávamos numa ditadura que não queria saber da democracia e os movimentos de esquerda perseguiam agendas revolucionárias. Isso significava que a proposta de Filosofia política que eu poderia defender e aceitar intelectualmente não era viável academicamente. Restava ainda a filologia e também a Filosofia da Ciência. Eu sabia fazer filologia, mas não achava que a Filosofia estava lá. Portanto, o único campo de Filosofia no qual eu podia entrar em diálogo com meus colegas brasileiros era o da Filosofia da Ciência.

URAM – E quem eram seus colegas naquele momento?

ZL – Eram muito poucos, o único contato significativo que estabeleci foi com Hugh Mathew Lacey, da USP; na época conhecemos-nos por cartas. URAM – Ele era norte-americano ou inglês?

ZL – Ele era australiano, também casado com uma brasileira. Nesse sentido, ele tinha uma situação parecida com a minha. E ele era filósofo da ciência. Só que eu tinha meu Heidegger e meu Kant, e meus seminários alemães, e isso Lacey não tinha. Seja como for, passei a discutir com ele e outros Popper, Hempel, Skinner, Kuhn... Era isso que se fazia na Filosofia da Ciência na época. Quando Lacey decidiu ir embora para os EUA, em 1972, ele me indicou como seu sucessor na USP. Porchat me ligou e perguntou se eu toparia ir pra USP. Eu falei com Andréa e ela disse: “Se você for sozinho, o que eu faço?”. Eu liguei para Porchat e disse: “Minha mulher faz lógica...” e ele respondeu: “Está bom, vamos contratar ela também”. Isso foi em 1972.

URAM – E a sua formação em filosofia da ciência, filosofia analítica deu-se lá, na Europa?

ZL – Sim. Eu estudei com Ladriére, Vuilleman e outros. Passei por Frege. Depois fiz o curso de matemática.

URAM – E o diálogo com Porchat pareceu natural?

ZL – Exatamente, eu me integrei no grupo dele.

URAM – E nessa época era o Porchat lógico?

ZL – Atenção, Porchat era lógico, mas também era cético. E, curiosamente, na academia ele nunca se colocou mesmo como lógico, nem como filósofo da ciência, embora tenha fundado o CLE. Porchat, diretor do CLE, não fazia nem lógica, nem epistemologia, mas exercícios em ceticismo. Creio que o ceticismo dele é reflexo de uma constelação de problemas filosóficos pessoais que parecem decorrer de certa relação com a religião.

URAM – Mas, no lado acadêmico ele resultava de uma oposição à história da filosofia uspiana.

ZL – Mesmo assim, Porchat, curiosamente, ainda defendia um modo de fazer a filosofia em termos uspianos, pelo método estruturalista. Isso, para mim, era um atraso de vida. Penso assim até hoje. Tanto é que o meu primeiro artigo publicado, de 1975, “À procura de um Descartes segundo a ordem das dificuldades” (Discurso, n. 6, 1975), contém uma crítica aberta a Gueroult, pois trata da ordem das dificuldades em Descartes e não da ordem das razões. Nele e nos outros artigos reunidos posteriormente (1997) no meu livro Descartes heurístico, tenro demonstrar que o método privilegiado por Descartes é o método combinado de análise e síntese, que é um método heurístico herdado de Pappus, e não, como pensa Gueroult, o método axiomático de Euclides, o qual é apenas um método de exposição. Além de Pappus, as fontes de Descartes são Diofanto e Apolônio, os matemáticos que Gueroult nem menciona e nem conhece. Em resumo, nesse primeiro artigo de 1975, eu me proponho a mostrar que a leitura estruturalista que Gueroult fez a Descartes não se sustenta.

URAM – E você angariou toda antipatia possível local. E seus quatro anos lá, foram difíceis? Filosoficamente difíceis?

ZL – Foram. Eu lia Descartes junto com Kuhn, teórico da ciência como atividade de resolução de problemas e não como contemplação. Esse meu Descartes heurístico era logo chamado de “o anti-Gueroult”. Eu me lembro uma vez, numa mesa em Recife, na SBPC de 1974, eu expus as minhas teses sobre Descartes, e Marilena Chauí disse em tom desabonador: “Ele não leu Gueroult...”. De fato, eu tinha lido pouco Gueroult. Mas naquele momento reconhecer isto e ser professor da USP não era admissível. A filologia para mim era um dever de casa, pois eu havia sido criado nisso. Mas nem Heidegger era filólogo, nem Kant nem Descartes eram.

URAM – Embora Heidegger faça muita filologia.

ZL – É, mas à maneira dele.

URAM – Deixe-me pular um pouco para mais adiante e falar da Sociedade Kant. As suas gestões em favor da criação de uma Sociedade Kant Brasileira, isso me parece que se deu em 1987 e 1988, levaram à criação da Sociedade, da qual você se tornou o primeiro presidente, entre 1989 e 1994. Estas gestões refletiam, e aqui eu me valho daquelas informações que você me passou, a consideração de que o pensamento kantiano, após a derrocada do pensamento marxista, poderia assumir um papel de ponta na cena cultural e intelectual brasileira. Essa espécie de edição local do Zurück zu Kant, em nada levaria aos matizes neokantianos originais. Você considera que essa volta local realmente se deu tal conforme imaginava naquele momento, ainda que não tenha se dado homogeneamente, mas em forma de variados enfoques?

ZL – Eu acho que valeu a pena. Foi uma das coisas mais significativas que aconteceu na filosofia brasileira nos últimos 30 anos. Partiu de um grupo extremamente produtivo de filósofos brasileiros, do qual tive o prazer de fazer parte. Um grupo que se criou em torno de certa simpatia pela filosofia analítica, mas que tinha consciência de que para além da filosofia analítica – da análise dos conceitos e da arrumação da casa filosófica e das dos outros, das ciências – nós precisávamos de certos conteúdos. Isso ficou claro devido ao vácuo criado pela crise dos movimentos sociais brasileiros e do marxismo. Nós achávamos que, em Kant, podíamos encontrar, ao mesmo tempo, instrumentos analíticos e conteúdos relevantes; que ele poderia nos oferecer uma filosofia da ciência, uma filosofia prática, uma filosofia política, que o pensamento dele poderia ser continuado, não tal qual, mas como fonte de inspiração. Isso me uniu a Landim (Rahul Landim Filho), Valerio Rohden, Guido Antônio de Almeida, Balthazar Barbosa Filho, José Arthur Giannotti e outros. Foi esse grupo que lançou a ANPOF. A ANPOF foi bolada nos encontros na casa do Giannotti, na casa do Valério. Paralelamente a isso, logo depois da criação da ANPOF, esse mesmo grupo ficou contagiado por Kant. Todo mundo ia nessa direção; fazendo a sua maneira essa guinada zurück zu Kant. Eu também contribuí. Para mim, estava muito claro: o projeto de uma filosofia neopositivista da ciência havia falhado. Nesse mesmo tempo constatei – estamos no início dos anos 1980 –, que o projeto neopositivista era em parte inspirado em certas teses e posturas próximas do kantismo.

URAM – Pela via do neokantismo.

ZL – Pela via do neokantismo. Com um forte diálogo com o neokantismo alemão. O zurück zu Kant era uma das fontes da filosofia da ciência neopositivista.

URAM – A via analítica poderia aproximar você, Landim, Balthazar, Giannotti?

ZL – Isso, exatamente. Naquele momento, em 1982, eu me tornei coordenador do CLE, por três anos. Eu tinha nas mãos a instituição mais móvel, mais ágil, mais bem equipada do Brasil. Tínhamos a revista Manuscrito e uma instituição de pesquisa em filosofia que não tinha de prestar contas a ninguém. Era extremamente livre em seu agir, pois tinha recursos próprios.

Foi por isso que eu fui, por duas vezes, secretário geral da ANPOF.

AAS – Para retomar um pouco a trajetória. A primeira ruptura foi com Kant, a segunda com Heidegger, e onde está o Heidegger nesse momento, com a Filosofia da Ciência?

ZL – Heidegger desarrumou a minha escolástica e pôs em cheque as minhas crenças.

AAS – Mas ele volta depois?

URAM – Aproveitando a questão da Arlenice, por que seus quatro meses em Freiburg foram inesquecíveis? E o que mais tem de inesquecível na sua formação?

ZL – Como disse, Ladrière me marcou fortemente, pela sua luminosa inteligência, e pela sua capacidade de adotar uma multiplicidade de discursos. Ele era capaz de dar uma aula sobre Hegel e, logo em seguida, uma aula sobre filosofia da Matemática. E ele não ficava incomodado com isso; ele tinha a mesma lucidez e competência em diversos discursos. Depois eu vi que isso, num certo sentido, era uma limitação, porque ele não tomava posição. E eu precisava fazer opções. Não digo isso como uma critica, mas como descrição sobre como certos espíritos funcionam. Essa abertura para diferentes modos de pensar filosoficamente, isso herdei de Ladrière. O Heidegger retornou para mim não para me ajudar a restabelecer um discurso fundante, mas para confirmar o caráter fundamental, decisivo e incontornável do fazer filosófico, da ocupação com a filosofia. Nos seminários sobre o Heráclito (1966/67), eu estava diante de um homem totalmente tomado, não sobrava dele nada que não fosse iluminado por aquilo que ele dizia e como ele o dizia. Ele era aquele que falava aquelas coisas. Havia nele uma extrema concentração; toda figura dele, no dizer, no estar presente, era filosofia. Isso eu nunca havia visto antes em outras figuras brilhantes, em Henrich ou em Gadamer. Este era um homem de espírito que cuidava das palavras. Heidegger, ainda aos 77 anos era homem vigoroso, totalmente diferente: era filosofando que ele existia. Isto pode ser em vários aspectos um defeito. Seja como for, diferentemente de Heidegger, eu mesmo nunca me identifiquei com nenhuma carreira filosófica, nem mesmo com a carreira acadêmica, nem mesmo com a atividade de ser filósofo. Sempre achei que, qualquer coisa que você faça, não deixa de haver em você algo que sobra. Tem sempre uma sobra. Sempre havia sobras em mim, mesmo quando me entregava a algo, sem reservas. Em Heidegger, não. Mesmo assim, a centralidade da filosofia na vida e na figura dele me marcou, confirmando meu ímpeto inicial de que a Filosofia é algo sem o qual não posso andar por ai.

URAM – Por isso, anos inesquecíveis.

ZL – Para mim, fazer filosofia é tão natural como ser bípede ou respirar. Filosofia faz parte da vida, num sentido trivial: acordo; durmo. Da mesma forma que para o dançarino, imagino, ou para o músico seja essencial viver no mundo dos sons. Devo isso em boa parte a Heidegger. Mas, como disse, há sobras também!

AAS – Ele existia no mundo?

ZL – O mundo dele se fazia a partir do que ele dizia em termos da filosofia. Isso é algo que só vi em Heidegger. Essa centralidade da filosofia, que nos põe frente a estruturas abstratas e não comunicáveis facilmente. Ele era aquela fala que ele produzia.

URAM – Vamos falar um pouco da semântica transcendental. Talvez possamos dizer que, de certa maneira, ao revés da ordem arquitetônica, no sentido kantiano, a semântica transcendental, será uma ideia do todo que surge não ao começo, mas ao cabo de uma trajetória reflexiva sobre a obra kantiana. E nisso me parece que você não previa que houvesse essa leitura de toda a obra a partir desse foco, que vai como que se espraiando pouco a pouco por toda a obra kantiana. Ora, nesta partitura parece que a analítica fará as vezes de leitmotiv, uma espécie de tema para as variações sucessivas. Em que medida, se for assim, a semântica transcendental não paga tributo ao neokantismo de Marburg, não sendo uma nova teoria do conhecimento? E, se a ciência abocanhou em definitivo essa pretensão outrora filosófica, como deve ser a filosofia, hoje?

ZL – Em 1987, eu fui dar uma palestra em Marburg sobre essa interpretação semântica, a convite de Reinhart Brandt. Eu estava expondo a ideia de que a pergunta kantiana: “Como são possíveis juízos sintéticos a priori?” é uma pergunta sobre a possibilidade desses juízos serem ou verdadeiros ou falsos de forma determinada, não de forma meramente pretendida, de modo que possa ser decidido, em princípio, se eles são verdadeiros ou falsos. Mesmo quando a decisão em princípio não pode ser implementada, sem mais nem menos, a cada momento. Isso porque uma coisa é decidir se um juízo pode ser verdadeiro ou falso, e uma outra é ter meios de afirmar que ele é de fato verdadeiro ou falso. Então, um dos ouvintes que estavam lá, um assistente de Brandt, disse que isso parecia ser neokantismo de Marburg sofisticado. Um aggiornamento. Eu concordei que na minha postura havia algo do neokantismo de Marburg. Contudo, a minha interpretação apresentava importantes novidades, primeiro, por ser mais especifica quanto à problemática das condições de verdade dos juízos sintéticos a priori, e, segundo, por deixar mais claro a exigência de Kant de que essas condições fossem explicitadas em termos de operações intuitivas. Ou seja, em termos de operações que incidam sobre os dados empíricos ou puros de caráter intuitivo. A semântica de Kant é intuicionista, não uma semântica a priori qualquer. Essas especificações e, depois, toda a construção que eu faço tanto do sistema categorial quanto do sistema dos princípios do entendimento, e a maneira como explicito a sintaxe kantiana desses juízos e os procedimentos de interpretação, o esquematismo, tudo isso é uma novidade. Devo esse modo de ler Kant em parte à minha passagem pela lógica e pela filosofia da ciência, porque lá eu encontrei exemplos de teorias formais, a priori, que tratam separadamente de estruturas sintáticas, de domínios de interpretação e de modos de estabelecer relações entre essas estruturas e os domínio de interpretação. De repente, pareceu-me que a reconstrução adequada da sintaxe kantiana dos juízos sintéticos a priori, dos domínios de dados intuitivos explicitados por Kant e da sua teoria do esquematismo, transcendental e empírico, permitia elaborar uma interpretação da teoria kantiana do discurso teórico segundo esse mesmo padrão. Portanto, eu não diria que sofri uma influência do neokantismo, mas que na minha semântica encontram-se parentescos com as posições dos neokantianos de Marburg. URAM – E a analítica funciona como um leitmotiv...

ZL – Funciona; só que a minha entrada no modo semântico de ler Kant não foi por aí. Foi um outro ponto de partida, a saber, a teoria kantiana dos problemas da razão pura teórica. Eu estava lembrado que um dos pontos básicos do projeto do neopositivismo é a tese de que todo problema científico bem formulado é solúvel. Se não é solúvel, ele não é bem formulado, não é um bom problema.

URAM – E esse foi o tema tratado já na sua tese de doutorado.

AAS – Que foi sobre que tema?

ZLOn Scientific Problem-Solving in Kant and Mach. A parte sobre Mach foi publicada já em 1984, em Cambridge, como artigo. A parte sobre Kant saiu só muito mais tarde e depois de muitos decantamentos. Voltando ao tema anterior, por que Kant pergunta como juízos sintéticos a priori são possíveis? Pela seguinte razão: se você formular uma pergunta por meio de um juízo desse tipo que não pode ser nem verdadeiro nem falso de forma determinada, ou seja, que não é um juízo possível, então não há resposta possível. Você formulou um problema sem solução. Ora, um problema sem solução é um falso problema. Daí a tese de que, no essencial, a analítica transcendental serve como fundamento da teoria kantiana da solubilidade de problemas da razão pura teórica, e que o problema básico de Kant não é tanto a possibilidade dos juízos sintéticos a priori, mas o de saber se eu posso conhecer certas coisas sobre as quais a razão pura se faz perguntas necessariamente e das quais se ocupa a metafísica tradicional, como saber se posso provar que Deus existe, se há alma. O problema que ocupa Kant em primeiro lugar é o de decidir se posso resolver racionalmente as disputas da filosofia tradicional, incluindo as da filosofia da história, da moral, enfim, todas as outras disputas nas quais a razão humana se vê envolvida. O diagnóstico de Kant é que tradicionalmente essa disputas surgem do mal uso da razão pelos filósofos, os quais, antes de tentarem resolver um problema, não se perguntam se este é comprovadamente solúvel. E como se determina se um problema da razão é solúvel? Quando a pergunta é feita por um juízo sintético a priori que é possível, que pode ser determinadamente verdadeiro ou falso.

URAM – Loparic, essa ressonância analítica, por trás da qual certamente haverá uma ressonância neokantiana, como ela fica diante do Heidegger, do nada, da nadificação, tão criticada, como você sabe melhor do que nós, pelos analíticos.

ZL – Só para acrescentar mais um ponto sobre a pergunta anterior. Eu acho que a abordagem kantiana da estrutura do discurso filosófico e científico ainda está viva em boa parte da Filosofia da Ciência e da Ciência do século XX. Alguém como Werner Heisenberg, pensador que Heidegger considerava um interlocutor privilegiado, se dizia um neokantiano. Só para dar um exemplo. Kant pensa que, em ciências bem construídas, os conceitos são aplicados a objetos da experiência possível e que esses objetos da experiência possível nos são dados, como tais, pela percepção, que nossa percepção é uma operação que capta os modos como os objetos nos afetam. O que Heisenberg diz é que isso é verdadeiro apenas dentro de certos limites. Quando entramos em contato com objetos, nem sempre nós limitamos a captar o objeto. Em determinados níveis de realidade, como os considerados pela física quântica, modificamos inevitavelmente esses objetos. Assim, pelos menos em certos domínios, os conceitos das ciências exatas não se aplicam aos modos como os objetos nos afetam, mas aos modos como nós interagimos com eles. Isso é o que sustenta Heisenberg; e isso faz parte da sua filosofia “neokantiana” da mecânica quântica. Acrescento que Kuhn também se diz neokantiano. Ele trabalha também com conceitos a priori, mas admite que o a priori muda com a história e sob pressões factuais. Eu creio que o zurük zu Kant abre a possibilidade de um diálogo extremamente frutífero com o que temos de melhor na filosofia da ciência do século XX e na ciência do século XX.

URAM – Nesse sentido, podemos dizer que você é uma encarnação do neokantismo no Brasil. Isso é um elogio. É a edição local de um “neoneokantismo”.

ZL – O neokantisno... Não, pois eles não acompanharam o linguistic turn iniciado por Kant.

AAS – Mas, acaba tudo em Teoria da Linguagem? Não há outra saída? Filosofia é isso?

ZL – Em Kant, a linguagem fala por falar, ela sozinha não diz nada. Ela só diz algo se for amarrada por baixo. Essas amarras são intuições possíveis. Quando se faz um discurso prático, as amarras são outras. Quais? A exequibilidade. Por exemplo, quando digo: “A paz perpétua é seu dever, você tem de buscar a paz perpétua” a um chefe de Estado, falo de um dever ser. Esse dever ser precisa ser exequível, senão ele permanece uma quimera. Nem tudo é linguagem. Mas ela é o instrumento da estruturação das coisas. Na parte teórica, da organização; na parte prática, da modificação. As estruturas discursivas, de onde quer que elas venham não são hauridas daquilo que nos vêem como coisa. Isso é a diferença entre Kant e a Fenomenologia, pelo menos tal como esta foi entendida por Heidegger.

URAM – E quando você fala, com toda razão, desse tecido que dá, por assim dizer, carne e osso, a essa teoria da linguagem kantiana, eu penso que o pano de fundo dessa relação entre a teoria da linguagem e a carne e o osso é o quadro problemático, frustrante do “como se” (als ob). Por que, afinal de contas, essa carne e osso é algo que o próprio entendimento legislador determina nas intuições puras, é aquele múltiplo a priori que é determinado pelo entendimento legislador e só por isso, pela espécie de dupla face das intuições puras, uma face voltada para experiência empírica, uma voltada para experiência possível, é que haveria um contato dessa formalidade a priori com a carne e osso.

ZL – Há conceitos que você pode amarrar aos dados empíricos. As categorias você pode. Mas há conceitos que você não pode interpretar da mesma forma, por exemplo, as idéias da razão. Mesmo não podendo amarrá-las aos objetos, você pode amarrá-las aos sistemas de conceitos, que, por sua vez, podem ser referidos aos objetos. Então, as idéias servem para organizar a casa, para articular as estruturas conceituais. Elas não se referem aos objetos da experiência possível, não há esquemas para elas. Com o tempo, me dei conta que a mesma abordagem semântica podia ser estendida além do domínio teórico. A partir de 1785, Kant pergunta como é possível um juízo sintético a priori prático que é a lei moral. E sobre a possibilidade dele, a exequibilidade. Depois, Kant quer saber como são possíveis juízos sintéticos a priori do direito, da estética, da história, da política, que é o direito em execução. De repente, eu me vi diante da possibilidade de ler a obra de Kant no seu todo como resposta à pergunta: “Como são possíveis juízos sintéticos a priori em geral?” E essa resposta consiste me explicitar condições de aplicabilidade desses juízos em domínios efetivamente acessíveis a mim. De repente, eu acabei achando um fio condutor para interpretar toda obra crítica de Kant, do começo ao fim.

URAM – Que é a primeira interpretação totalizadora na obra do Kant, aqui entre nós, por sinal como muito salientou Joãozinho Beckenkamp. E como fica o Opus Postumum? Lembro-me da sua conferência em Porto Alegre, no último congresso Kant, quando você falou que aquilo não é obra autoral, e está relacionado com aquilo que Goldschimdt chamou de responsabilidade filosófica; não é que pudesse ser deixada de lado, pois não mereceria o mesmo peso. Então, como ficaria o chamado Opus Postumum, a obra inacabada de Kant, essa sinfonia inacabada de Kant? Temos que ouvi-la ou deixá-la de lado?

ZL – Eu ainda fiz ensaios sobre essa obra. Ainda não tenho uma resposta.

URAM – Mas você não pensa como Fischer que considera uma pura senilidade de Kant?

ZL – Não, não acho que seja uma senilidade de Kant. Mas não tenho certeza que o projeto crítico de Kant, tal como foi desenvolvido até mesmo em 1798, que este projeto continua tal qual, com toda sua força nesse Opus Postumum. Toda filosofia prática, do direito, a teoria da virtude; tudo isso cai sob a minha reconstrução. Opus Postumun... ainda tenho um pé atrás em me pronunciar sobre ele.

AAS – E Winnicott? E a última ousadia de tentar o desmanche da teoria psicanalítica freudiana. É ousado porque não é simplesmente uma leitura de Winnicott, mas uma tentativa de mostrar que a metapsicologia está ultrapassada, ou que precisa ser atualizada. Você poderia falar dessa sua passagem de Kant a Heidegger e da ideia de que Winnicott continuaria o projeto heideggeriano?

ZL – Eu não sou o único a dizer que a metapsicologia de Freud tem problemas. Muitos outros antes de mim falaram a mesma coisa. O que eu fiz de novo, não foi apenas declarar que o método de teorização de Freud está ultrapassado, mas reconstruir esse método e a metapsicologia em termos kantianos. Tive vários orientandos que continuaram esse trabalho; o último deles foi Leopoldo Fulgencio. De um lado, eu comecei dizendo que o método kantiano foi aplicado por Freud na constituição da psicologia do inconsciente. De outro, observei, com base em Heidegger, que a metapsicologia freudiana é a mistura entre o neokantismo e a ciência da natureza. Heidegger criticava tanto o neokantismo de inspiração lógica, como a ciência da natureza aplicada aos seres humanos. Aí surge Winnicott. O que me fez aproximar Heidegger de Winnicott foi a observação de que na obra deste último não havia mais metapsicologia propriamente dita. Winnicott não faz especulações ao modo de Kant, nem opera com pressupostos do tipo naturalista. Ele não pensa o homem como máquina. Não há, portanto, em Winnicott nem kantismo especulativo nem naturalismo do século XIX. Winnicott usa exclusivamente uma linguagem descritiva. Ao aprofundar essa linha de pesquisa, cheguei à conclusão de que Winnicott realiza, sem saber, o projeto heideggeriano de uma ciência ôntica, trabalhando com pressupostos compatíveis com a ontologia fundamental de Ser e Tempo. Digo isso, baseando-me, sobretudo, nas considerações que Winnicott faz sobre o que está em questão na vida humana. O que está em questão na vida humana é muito mais ser e continuar sendo, do que o sexo. Mas o que significa ser? Significa estar presente num ambiente junto com outros seres humanos. O ser humano joga toda sua vida nesse tipo de espaço. Ele precisa ser; ele tem urgência em ser, e essa urgência só é atendida se ele encontrar alguém qualificadamente presente, que vai ao encontro de sua necessidade de existir. Até mesmo a chegada do ser humano no mundo é condicionada a um modo qualificado da presença, e não é uma simples encarnação. E uma vez que chegou ao mundo, o ser humano tem que se manter presente, ele precisa continuar sendo e, para tanto, precisa se relacionar com o mundo de modo contínuo. Isso significa que ele precisa integrar-se no tempo, no espaço, passar a habitar seu próprio corpo; estabelecer-se como uma unidade para, com base nessas conquistas, poder se relacionar com os objetos. Esse conjunto de temas parece-me possível tratar em termos de uma versão adaptada da fenomenologia heideggeriana; parece-me que, considerada dessa forma, a psicanálise de Winnicott exemplifica e concretiza uma parte de temas ontológicos tratados por Heidegger em Ser e Tempo.

AAS – Então, dá para falar em uma ciência positiva, factual? É possível falar em cura?

ZL – Dá pra falar em cura. O que é a doença? O defeito do estabelecimento de relações com o mundo que favoreçam a continuidade do ser. O ser humano não adoece, em primeiro lugar, devido a frustrações. O bebê não passa a ter dificuldades de ser tipicamente porque a sua comida (o leite materno) está ruim, mas porque a comida é apresentada de uma forma que não vem ao encontro da sua necessidade de existir. Ela não deve ser simplesmente imposta. O bebê reagerá a esta imposição e a doença psíquica consiste nessa reação. Repito, a temática do ser, da confiabilidade do outro no encontro, essa temática é absolutamente central em Winnicott e não a da sexualidade. E ela não é tratada especulativamente, mas descritivamente.

AAS – Abre-se, assim, um caminho para uma ética?

ZL – Sim, também, como em Heidegger. Isso significa que, para os dois pensadores, o meu ser com outro é, na origem, um cuidar. Se eu estou em relação originária com o outro e ele me solicitar com uma necessidade, eu não posso dizer: “Isso não é comigo”. Eu posso dizer: “Isto eu não posso fazer”, mas eu não posso dizer: “Isso não é comigo”. No mínimo, eu tenho que querer entender o que o outro necessita. Entender, num certo nível, já é participar. Se eu “entendo” o incômodo físico de alguém, não vou simplesmente virar as costas. Nem vou fazer uma teoria sobre isso. Entender significa articular um sentido do mundo no qual é possível afastar o incômodo, meu e do outro. Isso significa dizer que eu sou co-responsável por ele. Ser-como-outro significa, nos dois autores, ser responsável pelos outros. Trata-se aqui de fundamentos de uma ética que não é uma ética da lei, mas uma ética de cuidado e de responsabilidade.

AAS – Isso seria essa ética originária?

ZL – Sim. Ética originária, ética do cuidado, ética que decorre do sentido inicial da presença junto aos outros e da preservação da presença. Para Heidegger, a não-autenticidade consiste principalmente em tratar o outro como objeto, algo que não é proibido por nenhuma lei moral. Kant proíbe que os outros sejam tratados apenas como meios, meros objetos. Ele não viu que, em determinadas condições, os outros seres humanos precisam ser tratados apenas como fins. Mais precisamente, que, em certas situações, a terminologia meio-fim não se aplica. A ética kantiana é a ética do agente, do agir. E quando eu estou com o outro eu não ajo sobre o outro, eu sou copresente com o outro. Isto está claro na relação da mãe com o bebê, na amizade, na atitude participativa. Não há como submeter tais relações a leis morais. Há, portanto, um limite do tipo do discurso ético produzido por Kant. Mais precisamente, é preciso reconhecer que há discursos éticos de vários tipos.

URAM – Como é essa delicada relação entre você e seus orientandos, estudantes, prosseguidores? Você é um autêntico Kapellmeister, um maestro?

ZL – Eu não sei direito. Os alunos chegam, em geral, fascinados por um tema ou outro, e eu tento ajudá-los a manter o fascínio. Se eles ainda oscilam entre caminhos, eu tento aproximá-los de meus temas. Não influenciá-los. Evito fazer isso, por que o fascínio precisa ser de cada um. É mais o tipo de relação com o tema que eu tento transmitir; o meu entusiasmo, a minha atitude, do que propriamente os conteúdos. É claro que, visto que eu tenho um campo amplo de temas e de modos de ver as coisas, eu posso oferecer ajuda nesse ponto também. Isso fez com que, no passado, um bom número de jovens pesquisadores que trabalharam comigo acabasse identificando-se com as minhas linhas de pesquisa sobre Kant, Heidegger ou Winnicott. E, depois do fim de estudos, eles frequentemente permanecem no mesmo campo. Mesmo assim, não acho que fazem isso por minha influência, mas porque eles se expuseram a esses temas e ficaram fascinados.