Tradução

 

OBSERVAÇÕES SOBRE “A PERSONALIDADE AUTORITÁRIA” DE ADORNO, FRENKEL-BRUNSWIK, LEVINSON E SANFORD

 

T. W. Adorno

 

A.                O lugar do estudo na pesquisa atual

A fim de destacar o objetivo e o escopo do estudo, parece apropriado indicar sua relação com outras pesquisas vigentes sobre preconceito. Vamos tentar fazê-lo, examinando as diferenças específicas entre o nosso trabalho e o de outros. Certamente, essas diferenças se devem em parte a circunstâncias externas e mais ou menos acidentais, como a configuração a partir da qual o estudo se desenvolveu, a composição da equipe principal que estava particularmente interessada nos aspectos sociopsicológicos do projeto, entre outras. Contudo, essas circunstâncias não foram ingenuamente tomadas como certas. Embora tivéssemos que nos contentar com os recursos disponíveis, tentamos, no entanto, elaborar nossas tarefas de uma maneira que permitisse o melhor uso possível do material, ou seja, o tratamento de problemas que consideramos cruciais, enquanto a literatura conhecida por nós deu pouca atenção a isso. Essa intenção levou não apenas ao planejamento no sentido de uma divisão do trabalho, mas também a uma avaliação crítica de outras abordagens.

            Deve-se mencionar aqui que existe um estudo que mostra uma afinidade considerável com nosso próprio empreendimento, tanto em relação ao interesse geral quanto aos métodos empregados: Problems in Prejudice, de Eugene Hartley (1946). [1] Seu projeto foi iniciado sem o nosso conhecimento e, quando o texto chegou até nós, a redação final dos nossos resultados já estava muito avançada. Quanto à coincidência entre Hartley e nossas próprias descobertas sobre a personalidade preconceituosa, podemos considerá-la uma corroboração substancial da adequação dos conceitos subjacentes. No entanto, os dois estudos são muito diferentes em escopo, método e teoria, para implicar problemas de duplicação.

 

(1) O foco subjetivo

Nossa investigação sobre o preconceito é dedicada a aspectos subjetivos. Não estamos analisando as forças sociais objetivas que produzem e reproduzem a intolerância, tais como os determinantes econômicos e históricos. Até fatores de curto prazo, como propaganda, não entram em cena per se, embora várias hipóteses importantes surjam de análises de propaganda realizadas pelo Instituto de Pesquisa Social.[2] Todo o preconceito enaltecido e estimulado e até o clima cultural geral – imbuído de estereótipos de minorias, como é – são considerados pressuposições. O efeito deles sobre nossos sujeitos não foi acompanhado; permanecemos, por assim dizer, no reino das “reações”, não dos estímulos.

            Estamos convencidos de que a fonte última do preconceito deve ser buscada em fatores sociais incomparavelmente mais fortes que a “psique” de qualquer indivíduo envolvido. Essa premissa é corroborada pelos resultados do próprio estudo, na medida em que mostra que a conformidade a valores implicitamente promovidos pelo “espírito objetivo” da sociedade americana[3] atual é uma das principais características de nossos sujeitos altos pontuadores.[4] Assim, percebemos integralmente que limitar o estudo a aspectos subjetivos não deixa de ter seus perigos. Nossa análise detalhada dos padrões subjetivos não significa que, em nossa opinião, o preconceito possa ser explicado em tais termos. Pelo contrário, consideramos a análise de forças sociais objetivas que geram preconceito como a questão mais premente, na pesquisa contemporânea sobre preconceito antiminorias. A negligência relativa com que essa tarefa é tratada em toda a pesquisa americana se deve ao seu “viés democrático”, à ideia de que descobertas científicas socialmente válidas só podem ser obtidas com a amostra de um grande número de pessoas, de cujas opiniões e atitudes depende o que vai acontecer – assim como o sucesso ou o fracasso de uma mercadoria oferecida no mercado supostamente depende da mentalidade do comprador. Metodologicamente, um resultado não insignificante de nosso estudo é a suspeita de que a pressuposição acima mencionada não seja mais verdadeira. Nossos sujeitos com alta pontuação parecem não se comportar como unidades autônomas, cujas decisões são importantes tanto para o próprio destino quanto para a sociedade, mas são centros de reações submissas, procurando a “coisa convencional a fazer” e surfando no que consideram “a onda do futuro”. Essa observação parece alinhar-se com a tendência econômica ao desaparecimento gradual do livre mercado e à adaptação do homem à nova condição que emerge lentamente. As pesquisas que seguem os padrões convencionais de investigação da opinião pública podem facilmente chegar ao ponto em que o conceito ortodoxo do que as pessoas sentem, querem e fazem se mostra obsoleto.

            Na medida em que os problemas econômicos são levados em consideração, nosso estudo permanece no nível da ideologia. Registramos e, até certo ponto, interpretamos as opiniões manifestas de nossos sujeitos sobre questões econômicas específicas, incluindo questões cruciais, como livre empresa, controle estatal e organizações sindicais. No entanto, as inferências extraídas desse material não permitem conclusões seguras sobre as verdadeiras forças econômicas operacionais que promovem o preconceito, atualmente. Elas se referem mais ao padrão de pensamento do que ao efeito real que leis e tendências econômicas essenciais podem ter sobre a dinâmica do preconceito e seus equivalentes políticos.

            Nosso próprio ponto de vista sobre o determinismo econômico é explicado no Capítulo I;[5] algumas observações adicionais seguem mais adiante, no presente capítulo. Aqui, contentamo-nos com algumas palavras sobre o que poderia ser chamado de falta de perspectiva histórica, em nosso estudo. Essa falta não se deve apenas à situação americana específica, a qual, ao contrário da Europa, não está sobrecarregada com uma tradição antiga de antissemitismo. Existem outras considerações menos superficiais. Embora a ideia do “judeu eterno” raramente esteja ausente na literatura antissemita contemporânea, deve-se duvidar que o antissemitismo moderno seja um fenômeno “histórico”, no sentido estrito da palavra, ou seja, que deriva de uma tradição antissemita específica. Suas raízes históricas são encontradas na tendência geral de crescente “integração” do indivíduo na totalidade social e, economicamente, nos crescentes sacrifícios que a civilização exige de seus supostos beneficiários. Não há continuidade histórica ininterrupta entre as formas mais antigas de antissemitismo e a sua atual marca totalitária. Os falsos aspectos frequentemente observados do antissemitismo moderno (de Sartre)[6], os indícios frequentes dos quais mesmo nossos sujeitos com alta pontuação quase nunca estão totalmente convencidos, permitem a suposição de que o antissemitismo moderno se alimenta em grande parte de uma pseudotradição artificial invocada arbitrariamente por seus promotores e cegamente adotada por seus recrutas. Em toda a sua irracionalidade, o antissemitismo costumava estar de alguma forma de acordo com certos princípios basicamente incongruentes da sociedade, sobretudo a crença cristã no diabo. Essa base histórica foi completamente dissolvida pelo esclarecimento moderno. O estudo extremamente valioso de Joshua Trachtenberg, The Devil and the Jews, revela claramente – em termos de motivação histórica concreta – a incompatibilidade completa entre a versão medieval e a contemporânea da isca de judeus [Jew-baiting].[7] Suas raízes últimas – a repressão social e o impulso sádico que isso engendra – são idênticas, embora de uma maneira quase a-histórica, invariável; no entanto, não há continuidade autêntica em relação ao conteúdo histórico da ideologia antijudaica, bem como às reações primárias. Em um mundo que dispensa completamente o diabo, é impossível construir uma conexão imediata entre o anátema religioso pronunciado contra o judeu e o planejamento administrativo atual de liquidação das “raças inferiores”. O que acontece é, antes, que a pressão social não mitigada é usada para remobilizar os traços de preconceitos e estereótipos antigos e, às vezes, meio esquecidos. Mas esses traços permanecem incompatíveis com o estágio de racionalidade que a sociedade alcançou hoje. A ideologia antissemita moderna é o antídoto contra os sofrimentos causados pela civilização racional, e não a expressão imediata dessa civilização ou do tipo de irracionalidade ostentada pelo antissemita. Essa inconsistência aumenta a violência, em vez de mitigá-la. Aqueles que são incapazes de acreditar em sua própria causa, ou seja, os adeptos da tecnologia que se munem de noções demonológicas provenientes do sótão de sua edificação intelectual, devem provar constantemente a si mesmos a verdade de seu evangelho, através da realidade e irreversibilidade de suas ações.

            Uma análise verdadeiramente histórica do antissemitismo moderno não poderia se limitar à sua própria história intrínseca, à “antiga perseguição aos judeus”. Teria de apontar para o elemento falso envolvido em sua forma atual – um elemento que provavelmente também estava contido em suas formas anteriores, mas que, em um país onde as memórias históricas dificilmente ultrapassam o limiar da era capitalista, exclui qualquer impacto real da tradição. O aspecto objetivo decisivo do antissemitismo de hoje é o fato de que ele não pode ser atribuído a impulsos espontâneos da população. É uma doutrina cuidadosamente ponderada e racionalmente inventada, promovida de cima, que utiliza disposições sociopsicológicas poderosas das massas. A diferença entre o antissemitismo moderno e as tendências históricas anônimas é justamente esse racionalismo no irracional. Isso foi ressaltado pela análise de Paul Massing sobre o antissemitismo pré-hitlerista, desde a época de Bismarck, Rehearsal for destruction;[8] os “movimentos” antissemitas aos quais os nazistas apontaram como prova de sua tradição nas bases populares foram ativados e desativados por líderes do Império Alemão, dependendo das condições sempre mutantes da política interna do poder. A história do antissemitismo não é a sua “própria” história, mas a história política e social do mundo no qual cumpre uma função perniciosa.

 

(2) Não é um levantamento [survey] sobre o preconceito

O estudo não é um levantamento de atitudes antissemitas ou preconceituosas. No entanto, certas generalizações a respeito de tais atitudes podem ser extraídas de seus resultados. No geral, o objetivo do nosso trabalho pode ser resumido da seguinte forma. Tentamos analisar o tipo de pessoa – em muitos aspectos, tipo característico de nosso tempo – cuja disposição psicológica geral faz dele um seguidor em potencial de movimentos totalitários e ideologias intolerantes. Por outro lado, estávamos interessados no tipo de pessoa que se poderia opor militarmente a esses movimentos. O ponto focal de nossa pesquisa é a diferenciação entre “altos” e “baixos” [pontuadores]; a presença ou ausência real de preconceito era uma questão de importância secundária para nós, embora a mentalidade “alta” e “baixa” fosse originalmente definida nesses termos. A concepção geral dessa relação pode ser resumida pelo argumento segundo o qual praticamente todas as pessoas preconceituosas são “altas”, enquanto existem numerosos “altos” que, por um motivo ou outro, não são abertamente preconceituosos (ou pelo menos não antissemitas), mas que provavelmente seriam suscetíveis à propaganda fascista, se um movimento totalitário ganhasse força. No que diz respeito à atualidade dos “altos” e “baixos”, nossa constatação de que os “altos” se conformam mais integralmente ao clima cultural predominante e são – pelo menos superficialmente – mais bem ajustados do que os “baixos” parece indicar que, mensurados pelos padrões do status quo, eles também são mais característicos da situação histórica atual.

              Essas breves considerações já mostram que os resultados de nosso estudo contrastam acentuadamente com pesquisas de opinião [poll] sobre antissemitismo, tais como aquela conduzida pela FORTUNE MAGAZINE[9], ou pelo Instituto Gallup[10]. Aqui, novamente, limitações involuntárias coincidem com nossas intenções conscientes. Nesse sentido, deve ser mencionada a impossibilidade de estudar uma amostra bem representativa e bem equilibrada – impossibilidade que se deve em parte à complexidade de nosso instrumento básico de pesquisa. No entanto, mesmo a composição peculiar da amostra deve ser atribuída ao interesse norteador que nos levou a procurar “grupos-chave” e não os que seriam medianos, uma vez que estes últimos dificilmente serão decisivos para determinar se o fascismo deve ou não dominar o país. Além disso, nossas intenções obviamente não poderiam ser atendidas pelos métodos de pesquisas de opinião [poll]. A suscetibilidade, ou seja, atitudes em potencial, não pode ser acessada como se fosse composta de questões drásticas e claras. Se uma pessoa vai votar em Roosevelt ou Dewey, sua resposta será considerada – dentro de uma certa margem – indicativa do que ele realmente fará. Porém, se perguntarmos à mesma pessoa se ela é um antissemita, dificilmente podemos contar com a confiabilidade de sua resposta. Pode haver controvérsias sobre o significado do termo antissemitismo; ou a ideologia oficial americana pode impedi-lo de expressar preconceito, se for perguntado diretamente, mesmo que ele tenha sentimentos muito fortes a respeito. Além disso, esse preconceito pode ser pré-consciente ou mesmo inconsciente. Obviamente, todas essas qualificações são igualmente, senão ainda mais, válidas em relação à suscetibilidade. Sem mencionar que perguntas como “Você eventualmente participaria de um movimento fascista, se tivesse certeza de que ele tem um apoio poderoso e uma forte adesão popular?” não podem produzir informações confiáveis. Todos os aspectos do preconceito contra grupos de minorias são tão carregados de afetos, tão profundamente envolvidos com anseios [urges] e mecanismos irracionais, que uma abordagem racional deve necessariamente permanecer superficial e falaciosa. O problema da personalidade “alta” não seria resolvido, se a investigação permanecesse no nível opinativo, por mais tangíveis e mensuráveis que esses resultados parecessem. A maior quantidade de material opinativo reunido em nosso estudo nunca foi considerada autossuficiente, mas sempre foi avaliada segundo a estrutura de nossa abordagem geral. As perguntas “dinâmicas” frequentemente resultavam da informação opinativa. O que poderíamos ter perdido em termos de certeza em relação a problemas como “Quantos por cento da classe média americana são antissemitas?” foi obtido por respostas à pergunta “Que tipo ou tipos de pessoas quantitativamente relevantes podem ser considerados – em uma generalização segura – como possíveis seguidores fascistas?” Não visamos a classificações superficiais, mas sim generalizações mais limitadas, embora mais significativas, relativas aos traços essenciais do “caráter fascista”. Nesse sentido, deveria ser corroborado que, particularmente em áreas da ideologia política e econômica, a distinção entre “altos” e “baixos” teve de ser parcialmente relativizada como uma dicotomia superficial. Ela teve que dar lugar à construção de um padrão geral da mentalidade americana característica de hoje, que – através do clima cultural geral americano – está imbuído de elementos “altos” que não se enquadram nos limites de “alteza” e “baixeza”, conforme definidos em nosso estudo. Essa percepção em particular deve, como acreditamos, receber a mais séria atenção das agências que se encarregam de defender a democracia americana.

 

(3) Relação com a psicanálise

O problema fundamental de saber se e em que medida o preconceito pode ser abordado com métodos psicológicos, em geral, e com a psicologia profunda, em particular, será discutido mais sistematicamente depois. Entretanto, deve-se mencionar aqui a relação de nossa pesquisa com outras investigações psicanalíticas, nesse campo (Fenichel, Simmel e muitas outras),[11] que exerceram[12] considerável influência sobre nosso método. Embora seu assunto se enquadre na área da psicologia social, todo o nosso estudo está em plena harmonia com a psicanálise, em sua versão freudiana mais ortodoxa. Em bases teóricas, nosso grupo se opôs às tentativas de “sociologizar” a psicanálise, as quais abrandam conceitos básicos, por exemplo, o inconsciente, a sexualidade infantil, o dinamismo psicológico da mônada, procurando por influências ambientais que teriam que ser registradas em termos do eu [ego], e não do inconsciente.[13] Se, como é inevitável por causa da complexidade de nosso estudo, os fatores psicológicos ambientais desempenham um papel importante, as respostas reunidas no nível de “influência” externa não são consideradas em lugar algum[14] como explicações últimas sobre traços de personalidade; são meramente estágios na busca de tais explicações e requerem uma interpretação psicanalítica mais completa. Onde quer que pareçamos permanecer dentro dos limites da psicologia social mais convencional, isso não se deve a nenhum viés “revisionista”, de nossa parte, mas às inevitáveis limitações metodológicas de nosso estudo. Levamos a psicanálise muito a sério para brincar com ela, em uma investigação que, na melhor das hipóteses, pode produzir um exame mais detalhado de apenas algumas entrevistas individuais dentre os casos que foram selecionados. Embora os dados coletados nessas entrevistas possam se mostrar significativos, não poderíamos afirmar que realmente analisamos nossos sujeitos. A esse respeito, o estudo coletivo de casos psicanalíticos, realizado pelo departamento de pesquisa do American Jewish Committee, será de considerável valor suplementar.

            Entretanto, nosso interesse sociológico orientador, embora de maneira alguma afete nossa atitude no campo da psicologia enquanto tal, pelo menos nos impede de nos comportarmos ingenuamente como psicólogos. Ideias como “personalidade preconceituosa” ou “caráter fascista” são significativas apenas se pudermos ter certeza de que são quantitativamente relevantes e que a interconexão entre certas atitudes altamente específicas e traços abrangentes de personalidade – o principal tema de nossa pesquisa – pode ser observada com bastante regularidade. Temos que fazer jus ao aspecto social do nosso problema, pelo menos na medida em que nossas categorias e descobertas psicológicas provem ser socialmente relevantes, isto é, quantificáveis; nosso conceito de caráter fascista só pode se tornar produtivo, se e na medida em que conseguirmos demonstrar que é realmente um “tipo”, que os traços, atitudes e opiniões que consideramos estarem conectados por uma profunda necessidade, na verdade obedecem a essa necessidade. A única evidência é a associação regular dessas características, ao longo de toda a nossa amostra. Assim, nas seções clínicas das entrevistas, o procedimento de pontuação visa a estabelecer confiabilidade estatística nas áreas da investigação que mais se aproximam do centro psicológico do indivíduo.

            A relação do nosso projeto com os procedimentos psicanalíticos deve ser entendida adequadamente. Algumas de nossas hipóteses norteadoras, as quais são verdadeiramente psicológicas, ou seja, aquelas por trás da escala F, os itens projetivos do questionário e o roteiro de entrevistas,[15] pertencem definitivamente à psicanálise. No entanto, o método a que estão sujeitas se alinha com a pesquisa social acadêmica. Nosso estudo pode, portanto, ser chamado de uma primeira tentativa preliminar de integrar psicologia profunda e generalização estatística. O objetivo dessa integração seria duplo. Por um lado, teria libertado a psicanálise do – como achamos – ônus injustificado da generalização prematura, das “conclusões precipitadas”; por outro lado, métodos quantitativos incontestáveis ​​seriam aplicados a problemas que não são trivialidades, nem algo entre a verdadeira percepção psicológica e as noções populares, mas a categorias que são geralmente consideradas situadas para além da verificação em termos de confiabilidade científica produtiva.

 

(4) Não é uma pesquisa de “comunidade” ou de “ação”

Em seus “Erros metodológicos no estudo do antissemitismo,”[16] Shlomo Bergman disse – por razões puramente lógicas – que não há razão para supor que um homem que agride fisicamente os judeus seja mais antissemita do que aquele que os xinga nas ruas: ele é apenas mais violento. Da mesma forma, o desastre resultante de um ato antijudaico de maneira alguma reflete o grau de antissemitismo que o inspira. O disparo em uma sinagoga, por exemplo, pode ser muito mais trágico do que a circulação de um panfleto, mas isso não prova que seu autor seja mais antissemita. Ele pode igualmente ser inspirado pela mera histeria da multidão ou ambição oportunista. No entanto, na maioria das abordagens modernas sobre o assunto, graus de violência e desastre são contundentemente identificados com graus de antissemitismo. Devemos nos conscientizar para perceber que nem todo o ato que os judeus sofrem é necessária e automaticamente antissemita.

            Essas observações críticas devem ser fortemente enfatizadas. Temos não somente que evitar cuidadosamente um curto-circuito entre teoria e prática, o qual poderia facilmente nos levar a combater sintomas e negligenciar o essencial, mas é também altamente duvidosa a interconexão entre manifestações antissemitas e o problema da discriminação, como aconteceu no poderoso exemplo da Alemanha de Hitler. Não houve relação imediata entre as insurreições antissemitas espontâneas e a política de extermínio dos nazistas. Manifestações antijudaicas espontâneas no Terceiro Reich foram, sem exceção, manipuladas, incitadas e abafadas. Os distritos que tinham um forte vínculo tradicional com o antissemitismo, como, por exemplo, Oberhessen, nunca fizeram nenhuma manifestação em particular sob Hitler; Frankonia, por outro lado, sem essa tradição, tornou-se notória por causa de alguns líderes excepcionalmente violentos. Gregor Strasser[17], o organizador mais eficiente do partido nazista, declarou pouco antes da tomada do poder, que o tempo de Radau-Antisemitismus[18] havia terminado – um anúncio que dava um conforto espúrio a muitos judeus. Sob o regime totalitário, o antissemitismo não é mais uma questão de hostilidades primárias por parte do povo e de ações verdadeiramente espontâneas. É uma medida administrativa que utiliza preconceitos existentes e, em grau ainda mais elevado, disposições psicológicas. Naturalmente, valentões que molestam judeus na praia são o material ideal para a milícia nazista [Stormtroop], mas o triunfo do antissemitismo não depende deles. Os problemas de alienação, enfatizados em nossa discussão sobre o material político e econômico das entrevistas, e também contemplados no artigo de Nathan Glazer sobre a alienação do homem moderno,[19] afetam a própria estrutura das atitudes antissemitas. O que importa hoje não é tanto que as pessoas possam odiar suficientemente os judeus para iniciar um pogrom, mas que possam endossar um movimento que inclui o antissemitismo em sua plataforma. É muito mais importante determinar o tipo de pessoas que pode estar disposto a se unir a movimentos ou apoiar governos que planejam exterminar os judeus, do que investigar a causa específica de problemas antissemitas, em uma determinada área. A verdadeira questão é o antissemitismo totalitário e não insurreições mais ou menos incidentais. Estas últimas podem ser sintomáticas de tendências, e certamente é bom e útil estudá-las e tentar remediar suas supostas causas. Contudo, seria bastante ilusório supor que tais intentos – sejam eles teóricos, sejam práticos – possam realmente levar a compreender a natureza e o escopo da ameaça, ou que as “curas” (mesmo as bem-sucedidas) possam atingir seriamente o potencial antissemita. Podemos chegar ao ponto de dizer que o antissemitismo totalitário está, por assim dizer, alienado do preconceito de seus próprios adeptos; na verdade, o preconceito entra em cena apenas como um apêndice de algo incomparavelmente mais abrangente. Sem menosprezar os estudos de comunidade agora favorecidos devido à sua concretude e ao rápido retorno que eles podem trazer, acreditamos ser justificado dar ao nosso próprio estudo uma ênfase completamente diferente, a da “antropologia cultural”. Nossa hipótese é que o antissemitismo contemporâneo pode ser combatido adequadamente, quer politicamente, quer com medidas educacionais de longo termo, mas não com ações locais de curto prazo e nem pela instituição agora mitológica de “relações interculturais”. Vistas pragmaticamente, nossas descobertas devem ser avaliadas principalmente em termos de um programa educacional de longo termo, o qual busca tocar as condições antropológicas amplas e básicas que favorecem a ascensão do fascismo, neste país. Essa ênfase pode parecer acadêmica e derrotista para aqueles que esperam muito de manifestações de boa vontade. É nossa opinião, entretanto, que a situação objetiva requer uma atitude algo reservada em relação a tais manifestações.

 

B. Posição do nosso estudo em relação a algumas das principais teorias

Em uma discussão sobre as principais teorias do antissemitismo e sobre o nosso próprio ponto de vista teórico, o problema de nossa definição específica de antissemitismo deve necessariamente surgir. Essa pergunta frequentemente funciona como um meio de sabotagem metodologicamente encoberto de qualquer investigação que realmente se aprofunde no assunto. Depois de Auschwitz, é ridículo pedir uma definição de antissemitismo. Deveríamos saber tanto quanto um nazista o que significa “judeu”. Especificamente, e em um nível mais ou menos técnico, o antissemitismo foi definido na discussão da escala AS.[20] Em termos mais amplos, este livro é uma resposta, e definições isoladas não são necessárias.

Em relação ao problema de causalidade, poderíamos dizer que subscrevemos uma teoria que não é nem monística nem pluralista. Seria absurdo selecionar uma única fonte isolada de antissemitismo, como, por exemplo, inveja, frustração etc., e atribuir todo e qualquer fenômeno antissemítico a essa causa. Seria menos absurdo, embora certamente bastante superficial, enumerar uma série de fatores e afirmar que todos, relativamente independentes um do outro, desempenham um papel na produção da personalidade preconceituosa. A maioria desses fatores foi arbitrariamente isolada em procedimentos científicos e somente mais tarde se tornou hipostasiada, enquanto determinantes separados. A impossibilidade de tratar qualquer um deles separadamente é evidência de sua inter-relação objetiva. Não se pode falar em projetividade, sem falar em agressividade; não se pode discutir agressividade, sem mencionar frustração; não se pode analisar a frustração, sem chegar ao que é conhecido popularmente como inveja; e não se pode falar de inveja, sem considerar a concupiscência e a atitude social que a acompanha regularmente, e assim por diante. Usamos o termo síndrome, para denotar a interconexão comprometedora entre esses fatores e na tentativa de fazer justiça à sempre recorrente[21] impossibilidade de isolar os vários fatores por outros meios que não sejam definições arbitrárias. Nossa hipótese do que causa o antissemitismo é a seguinte: é devido à estrutura total de nossa sociedade ou, para ser mais abrangente, de toda sociedade basicamente coercitiva. Essa totalidade se manifesta em vários aspectos, todos os quais estão nela incluídos, e aparecem como “causas” particulares apenas para a classe de pensamento que, seguindo ingenuamente o padrão das ciências naturais, esquece que todos os fatos sociais carregam a marca do sistema no qual eles aparecem e que nunca podem ser explicados satisfatoriamente pela enumeração atomística de várias causas. Sem falar que um e o mesmo aspecto de uma totalidade social, por exemplo, o aspecto religioso do preconceito, assume diferentes pesos, em diferentes momentos e em diferentes locais.

 

(1) Atitude em relação a explicações econômicas

Afirmamos repetidamente nosso acordo básico com a teoria econômica que vê no antissemitismo um fenômeno essencialmente social e não psicológico, devendo ser entendido economicamente, na medida em que a própria sociedade é constituída através da economia, isto é, por meio do processo de automanutenção da espécie humana e das disparidades que esse processo trouxe. No entanto, como apontamos no Capítulo I, que discutiu a ênfase psicológica de nossa investigação, não acreditamos que a motivação econômica seja suficiente para explicar a existência ou a ausência de preconceito em qualquer pessoa, em particular. Chamamos a atenção para o exemplo no qual as pessoas tiveram que enfrentar desvantagens econômicas, por causa de seu preconceito, e destacamos que o fascismo, na Alemanha, significou a ruína econômica para grandes setores de seus seguidores, muito antes da perda da guerra,[22] mas aparentemente sem retirar a sua lealdade. Certamente, pode-se argumentar que, mesmo nesses casos, prevaleceu a ganância econômica; que essas pessoas estavam dispostas a fazer sacrifícios temporários, na esperança de uma compensação última, principalmente por meio da conquista alemã da Europa, e que a expropriação dos judeus que trouxesse às massas qualquer pequeno ganho era apenas uma engrenagem na maquinaria da ganância universal. Muito pode ser dito a favor dessa linha de raciocínio, mas ainda parece ser bastante dogmático assumir uma motivação econômica clara, embora se refira a um futuro distante, como sendo primordialmente operante no indivíduo antissemita. Uma análise casual de qualquer fascista já mostra que sua atitude não parece refletir a racionalidade envolvida nos motivos econômicos. Ele está mais empenhado na destruição dos judeus e, possivelmente, também de suas propriedades, do que na apreensão destas últimas. O motivo da inveja, enfatizado com mais frequência nas tentativas populares de vincular determinantes econômicos e psicológicos, dificilmente funcionava na Europa, onde a posição do intermediário judeu declinava como resultado da expansão monopolista da indústria. Ele tem ainda menos fundamento na realidade dos grandes centros urbanos americanos, com seu enorme proletariado judaico. No geral, o estereótipo tradicional de que todos os judeus são ricos parece ser altamente indiferente à evidência de sua falácia.

            A aparente contradição entre nossa aceitação de uma teoria basicamente econômica do antissemitismo e nossa admissão da inadequação da motivação econômica como um meio de entender completamente atitudes e comportamentos antissemitas oferece-nos a oportunidade de formular nosso ponto de vista.

            A resposta para o problema é sugerida em nossa declaração anterior de que o princípio da totalidade social é responsável pelo preconceito. É no sentido dessa totalidade, em vez de motivações isoladas e interesses tangíveis, que falamos dos fundamentos[23] econômicos do antissemitismo. Isso não se aplica apenas ao fato de que a desigualdade e a pressão social dependem, em última análise, da diferenciação econômica. Nós vamos além disso. A estrutura do sistema econômico afeta todos os relacionamentos humanos e até mesmo a composição mais íntima do indivíduo. Assim, a característica onipresente da “alienação” social reflete largamente a natureza de uma economia mercantil, na qual o homem aparece como produtor e consumidor de bens e não como sujeito de sua sociedade. Mal precisamos enfatizar o efeito[24] de fenômenos econômicos nas ações humanas e, por assim dizer, no total de seres humanos enquanto tais, como a competitividade ou a marca particular de coletivização concomitante à forte concentração atual de capital. De fato, o impacto da estrutura econômica como um todo pode até cegar o indivíduo para a sua própria motivação econômica, bem como para a percepção de ações contrárias ao seu interesse econômico. A psicologia individual é em grande parte uma agência [agency] através da qual as leis econômicas se tornam operantes em atitudes e comportamentos, sem que o indivíduo esteja ciente disso. Logo, na sociedade competitiva do liberalismo do século XIX, o funcionamento do sistema de mercado era mediado por anseios [urges] e desejos subjetivos que não estavam cientes do fato de que sua satisfação dependia largamente do funcionamento do todo e apenas em um grau muito pequeno da iniciativa individual per se. De fato, se cada indivíduo tivesse plena consciência de que ele era apenas uma engrenagem na máquina total e de sua incapacidade de realmente determinar seu destino, o sistema dificilmente teria funcionado. A cegueira a leis objetivas e, em última análise, a repressão de percepções que negam a harmonia entre sociedade e indivíduo, são elas próprias o resultado do sistema econômico. As pessoas são inevitavelmente tão irracionais quanto o mundo em que vivem. Assim, a psicologia, isto é, o domínio da determinação irracional de atitudes e comportamentos, não se opõe tanto à causação econômica quanto é o resultado da irracionalidade econômica, que é ela própria um elemento intrínseco da totalidade socioeconômica em que vivemos. As pessoas nem sempre são guiadas por seus interesses econômicos bem definidos, e seria tolamente racionalista procurar tal motivação. Mas, mesmo quando agem contra esses interesses, as pessoas refletem tendências provenientes do processo econômico como um todo. A construção dessa relação não é meramente especulativa; não postulamos uma harmonia pré-estabelecida entre o processo econômico total e a psicologia individual. Nossa hipótese, no entanto, é que a aparente ruptura entre as duas esferas, expressa por comportamentos economicamente irracionais, deve-se na verdade[25] a condições econômicas que negam a realização a inúmeros indivíduos e permitem a “integração” do indivíduo apenas na medida em que ele reage passivamente, por assim dizer, e renuncia – junto a sua autonomia subjetiva – a cuidar estritamente de si mesmo. Voltando à teoria da inveja: a inveja é certamente um aspecto do preconceito, mas as pessoas não são antissemitas porque têm inveja dos judeus. Elas são invejosas por causa da constante pressão social e da flagrante contradição entre as potencialidades econômicas de hoje e sua própria existência profundamente insatisfatória. Afinal, sua inveja é dirigida contra os judeus, ou qualquer outro grupo minoritário adequado, seguindo a linha de menor resistência. Isso, ao menos, parece-nos implícito em nossas descobertas sobre o “caráter funcional” do preconceito. Quanto mais nossa sociedade tende a se tornar “integral”, isto é, uma totalidade completamente organizada, mais aumenta a pressão que exerce sobre indivíduos comparativamente impotentes. E é exatamente esse processo que expande os mecanismos de defesa psicológica que estão relacionados ao preconceito. É possível que, mesmo a manifestação mais horripilante de discriminação, a política nazista de “genocídio”, esteja profundamente ligada ao fato econômico de que a forma atual de organização econômica se mostre incapaz de reproduzir o modo de vida da população sob tais condições. No entanto, isso não precisa necessariamente ter sido um determinante objetivo consciente, nas mentes da hierarquia nazista, embora possa ter desempenhado um papel maior em seus pensamentos do que – por razões ideológicas – eles queriam admitir. Pode-se supor que o medo de ser supérfluo também se manifeste no antissemitismo contemporâneo de outros países. A ideia expressa no tratamento dos judeus, nos campos de concentração e nas fábricas da morte, de que eles eram meros objetos de manipulação, cadáveres vivos, virtuais “bolos de sabão”, pode facilmente ter sido a projeção da fraca consciência da pessoa preconceituosa sobre sua própria situação social, uma consciência que ela só poderia suprimir com sucesso, se pudesse provar a si mesma e aos outros que é o outro sujeito que pode ser dispensado.

            Tudo isso, é claro, é puramente teórico e não pode ser comprovado através de nosso trabalho. Ao contrário, denota uma tendência de ideias que nos levou a investigações psicológicas, sem abrir mão da teoria econômica do preconceito. Para descobrir como as leis econômicas objetivas operam não tanto por meio de “motivações” econômicas do indivíduo quanto por sua formação inconsciente exigiria uma pesquisa específica extensa e cuidadosamente planejada. Ousamos sugerir, todavia, que a solução para o problema nos forneceria a verdadeira explicação científica da natureza do preconceito contemporâneo. Nosso estudo ao menos forneceu matéria-prima considerável e várias hipóteses para tal empreendimento. Nesse sentido, podemos mencionar o conceito de solidariedade ao grupo ou, como um homem de “alta pontuação” o chamou, lealdade, que desempenha um papel extremamente importante no padrão geral de personalidade de pessoas preconceituosas. Temos um bom conhecimento da etiologia psicológica da lealdade ao grupo, sua dependência da solução “autoritária” do complexo de Édipo e também sabemos o suficiente sobre a função econômica desse tipo de lealdade. Ao subordinar os próprios interesses econômicos evidentes do indivíduo àqueles do grupo com o qual ele se identifica, a lealdade favorece interesses de classe que são muito mais decisivos para o funcionamento de leis econômicas objetivas do que para os interesses particulares do indivíduo. Ao mesmo tempo, essa identificação ajuda a racionalizar as frustrações individuais, na medida em que prevê a vantagem do grupo do qual o indivíduo se considera membro. É o domínio da ideologia em que os processos psicológicos inconscientes parecem transformar leis econômicas objetivas “inconscientes” e, portanto, opacas, em padrões individuais de comportamento.

 

(2) Atitude em relação à abordagem sociológica.

Nesse sentido, o termo “sociológico” denota teorias que tentam explicar o fenômeno do preconceito, por meio de categorias gerais que se referem aos seres humanos como seres sociais e derivam leis de estruturas mais ou menos formais de sua convivência. Aqui se situam, por exemplo, explicações que delimitam a distinção entre in e outgroup, estabilidade e mobilidade social, formas fechadas e abertas de organização social e assim por diante. Tais explicações parecem se aproximar bastante de nossa própria abordagem. Elas fazem justiça à natureza essencialmente social, supraindividualista do preconceito; elas consideram o conceito de totalidade social, em vez de causas econômicas atomísticas; elas parecem fornecer vínculos entre aspectos objetivos (sociais) e subjetivos do preconceito.

            É exatamente essa semelhança superficial que torna necessário explicar a diferença entre nossa atitude específica e a abordagem sociológica. Não negamos que os conceitos enfatizados pela abordagem sociológica desempenham um papel importante no preconceito. Há ampla evidência de que a distinção entre ingroup e outgroup é fortemente libidinizada pelos antissemitas; que os reais ou declaradamente conservadores expoentes do antissemitismo se ressentem da “mobilidade” judaica (frequentemente associada à sua urbanização) como uma ameaça ao que eles consideram uma ordem estável e tradicional; que certos grupos sociais, como clubes exclusivos, são quase invariavelmente imbuídos de ódio racial. Entretanto, não acreditamos que esses conceitos sociais formais, que são em grande parte abstrações do conteúdo da dinâmica social e psicológica, sejam causas de preconceito. Tal suposição leva frequentemente a uma neutralização de questões científicas que permitem que fenômenos intrinsecamente relacionados a propriedades concretas e relações de poder apareçam como consequências da existência da sociedade organizada enquanto tal. Apesar da ênfase nos “fatores sociais”, as explicações sociológicas atuais assumem, assim, um ar de “naturalidade” que faz o preconceito parecer inofensivo – um mal necessário da sociedade organizada – e perene. Essa implicação é reforçada pelo fato de que a sociedade, tal como a conhecemos, em realidade tem sido associada a traços discriminatórios que seriam facilmente interpretados como invariáveis da organização social, e não como consequência da exploração e repressão. É como se a abordagem sociológica hipostasiasse o efeito congelado das forças sociais materiais e as tornasse, por sua vez, responsáveis por tendências das quais elas próprias são meros resultados. Isso leva a uma atitude superficial do senso comum que não consegue nem perceber a seriedade da ameaça, a qual, em última instância, é ela própria “antissocial”, nem conceber a ideia de uma mudança social por meio da qual essa ameaça possa desaparecer.

            Não importa o quão “sensatas” as explicações sociológicas possam parecer, um aspecto revela sua inadequação: a alegada autoevidência de suas principais categorias. A experiência histórica condicionou o pensamento a tal ponto que uma tese como “o ingroup é hostil ao outgroup” ou – expressa psicologicamente – “o estranho é sempre odiado” parece óbvia e autoexplicativa. Para além do fato de que o problema sobre se deve haver in e outgroups em uma sociedade organizada está sendo escamoteado pela observação autossuficiente segundo a qual onde quer que essa divisão aconteça, também haverá discriminação; a suposta naturalidade da hostilidade é duvidosa. Uma pessoa ingênua, não treinada pelo procedimento sociológico, pode muito bem perguntar: “Por que o estranho é odiado?” Como resposta, ele não receberá uma explicação ou ouvirá uma repetição de que isso é assim, que é natural, ou explanações que, se não tomam o fenômeno como certo, perdem o aspecto da autoevidência, não sendo, portanto, populares. A ingenuidade de tais questionamentos não deve ser desencorajada. Mesmo em um nível superficial, o ódio ao estrangeiro não é inequívoco. A literatura está cheia de relatos de feitiço erótico lançado por mulheres estranhas, pela “Mädchen aus der Fremde”,[26] do incomum, do singular que é frequentemente retratado como incomparavelmente mais atraente do que a rotina do mundo em que se está acostumado, o ingroup; em numerosas sociedades primitivas, o estrangeiro não é de modo algum visto com hostilidade clara, mas com reverência e afeto positivo. Há razões para acreditar que isso se refere não apenas a indivíduos, mas também a grupos maiores, como os alemães e os judeus. A abordagem sociológica precisaria necessariamente dar conta da ambiguidade envolvida nesse ponto. No exato momento em que se assumisse tal explicação, a autoevidência da “hostilidade” desapareceria. Se a afirmação de que o estrangeiro é o inimigo fosse complementada pela explicação “... porque ele é inquietante [uncanny]”, o problema seria apenas modificado, mas não resolvido. Alguém teria que perguntar: “O que é o inquietante e quais mecanismos estão por trás da experiência do inquietante?” Freud ofereceu a resposta de que o inquietante não é o que experienciamos como “estranho” em um sentido absoluto, mas o que é familiar demais para nós, o que tivemos que reprimir em nós mesmos e o que, portanto, objetificamos ao encontrarmos nos outros. Pode-se supor que, mesmo em nível socioeconômico, padrões igualmente dialéticos possam estar subjacentes às relações entre ingroup e outgroup. Desse modo, foi sugerido[27] que a alegação típica do ingroup – de que os judeus são improdutivos – deve-se, em última análise, à consciência inarticulada de que o próprio ingroup é improdutivo, que se apropria do trabalho de outros. Assim que a análise é levada na direção de tais considerações, a estrutura conceitual da abordagem sociológica se desfaz em pedaços; tem que ceder lugar a conceitos inteiramente diferentes. O constructo de ingroup e outrgroup pode, afinal, revelar-se apenas uma expressão diluída e formalizada das relações de classe.

            Certamente, o aspecto “integrativo” da abordagem sociológica se perde no processo de raciocínio, e os problemas, por assim dizer, retornam às disciplinas tradicionais da economia e da psicologia.

À primeira vista, isso parece contradizer nosso próprio pressuposto básico de que o preconceito é determinado pelo sistema socioeconômico total. No entanto, nosso pressuposto não implica que essa totalidade seja consistente em si mesma. Pelo contrário, seu caráter intrinsecamente antagônico é o próprio motivo de irrupções irracionais, da discriminação. A essência dessa totalidade é manter-se através do autointeresse daqueles que ela abrange, mas, simultaneamente, dificultar e pôr em perigo constante e incessantemente esse autointeresse. Pode ser denominada totalidade autocontraditória; certamente não inclui harmonia entre o todo e o particular. A ruptura entre eles é ingenuamente expressa pela divisão do trabalho científico em disciplinas como economia e psicologia; a ingenuidade da divisão, a saber, a concepção de que há economia, de um lado, e indivíduos sobre quem ela se impõe, de outro, deve ser superada pela percepção da identidade última das forças operativas em ambas as esferas. Por outro lado, porém, a divisão expressa a verdade de que, em nossa sociedade, nem a totalidade nem o indivíduo podem ser identificados imediatamente; eles devem ser entendidos como opostos um ao outro, enquanto continuam sendo aspectos do mesmo todo. A abordagem sociológica esquece com muita facilidade que a alienação de diferentes ramos da ciência social é adequada à realidade, na medida em que faz justiça à alienação social enquanto tal. Portanto, é mais apropriado prosseguir com a análise no interior de um determinado ramo da ciência até que os resultados se tornem transparentes em relação à totalidade social do que introduzir conceitos derivados dessa totalidade, de uma maneira muito simplificadora. Em vista de tais considerações metodológicas, nossa investigação foi mantida dentro dos limites da especialização.

 

(3) Atitude em relação à tese religiosa

A explicação religiosa do antissemitismo fornece uma oportunidade de esclarecer nossa abordagem em relação a outras explicações particularistas, não importa o quanto de verdade estas possam conter. Em sua forma mais antiga, a tese religiosa deriva o antissemitismo da oposição do cristianismo ao judaísmo e, especialmente, da ideia tradicional da responsabilidade judaica pela crucificação de Cristo. Pragmaticamente, essa suposição leva a uma ênfase extrema no “antissemitismo da escola dominical” e a uma expectativa de que a reforma da instrução religiosa – que é, sem dúvida, altamente desejável – possa alcançar uma melhora decisiva. O fato indiscutível da indiferença religiosa, corroborado também por nosso estudo, proíbe qualquer explicação religiosa direta, mesmo que possa parecer adequada para certos países agrários atrasados, ​​com populações fanaticamente religiosas. Contudo, a tenacidade de vários motivos de antissemitismo religioso, que, por assim dizer, sobreviveram à própria religião, torna impossível desconsiderar completamente o aspecto religioso da perseguição. A tese religiosa foi reformulada de acordo com isso. Por exemplo, embora Maurice Samual [Samuel], em seu Great Hatred,[28] ainda trate o antissemitismo como um fenômeno especificamente cristão, ele não o relaciona mais ao dogma, mas a uma rebelião constante, o que Kierkegaard chamaria de cristianismo oficial contra o espírito cristão: resistência de natureza bárbara indomável contra os sacrifícios exigidos pela religião do amor. Segundo Samual [Samuel], o ódio aos judeus é basicamente o ódio a Cristo. O que alguém não se atreve a fazer com os valores aos quais se é forçado a adotar é feito com os “outros” valores que são, no entanto, essencialmente idênticos aos próprios valores, ou seja, tão intimamente relacionados quanto as doutrinas mais íntimas das duas grandes religiões monoteístas. O judaísmo de Jesus se torna muito importante, nesse contexto. Pode-se notar que isso segue a mesma linha de uma teoria que parte de pressupostos completamente diferentes: a dedução psicológica do antissemitismo, no livro Moisés e monoteísmo,[29] de Freud. Além disso, a afinidade de Samuel com o Unbehagen in der Kultur[30] dificilmente pode ser negligenciada.

            Não rejeitamos esse caminho de pensamento. Pelo contrário, muitos de nossos resultados parecem corroborar as “especulações” de Samuel. Eles não se referem tanto a atitudes religiosas manifestas, mas a percepções obtidas no nível da personalidade. O conflito entre o convencionalismo superficial e a rebeldia subjacente está intimamente relacionado à oposição ao humanismo cristão. Os anseios [urges] destrutivos tão claramente evidenciados em todo o material do TAT mostram o “bárbaro” temperamento pagão, bem como seu desvio do próprio mundo em direção ao “outro”. A natureza projetiva da equação ódio ao judeu-ódio ao Cristo é óbvia, e a projetividade provou ser um elemento onipresente da estrutura de caráter da personalidade “alto pontuadora”. Quase não existe um traço da síndrome “alta” que contradiga a formulação de Samuel.

            O que deve ser enfatizado, porém, é o fato de que esses traços se manifestam em um plano muito mais amplo do que o sugerido pela tese religiosa. Esta última erra, na medida em que reduz uma série de observações corretas e significativas a um “fator” selecionado arbitrariamente que parece convincente, porque representa de maneira bastante adequada certas tendências da totalidade do processo social, mas que não pode ser considerado como responsável final dos fenômenos em questão. Relativamente ao antissemitismo, o processo histórico da cristianização é apenas um aspecto da civilização, e o curso subterrâneo da “rebelião da natureza bruta” não se limita à tradição judaico-cristã, mas obscurece toda a civilização até hoje. É verdadeiramente Unbehagen in der Kultur. A rebelião contra a civilização se deve ao fato de que esta impõe incessantemente todos os tipos de sacrifícios materiais e psicológicos. Estes deveriam ser “racionais”, porque se espera que eles garantam a automanutenção do todo e a segurança do indivíduo, contudo, eles fracassam ao fazê-lo. A fúria contra a civilização, concentrada em uma forma pura, por assim dizer, no antissemitismo, decorre da sensação de se ter sido enganado. Por causa da promessa não cumprida de redimir o homem da barbárie, a civilização desencadeia [nele] repetidamente os instintos bárbaros. A rebelião contra a civilização é estimulada sob a forma de surtos ilimitados de ira, porque o poder que oprime a barbárie em seu interior é em si mesmo bárbaro. Ele quer viver em um mundo caótico e até destruir tudo, em vez de viver em uma cultura que ele sabe ser apenas um sistema que garante o controle daqueles que estão no comando. Como ele não poderia viver de outra maneira, pois o seu “próprio” mundo se desintegraria, sua fúria latente contra seus opressores – que são mais fortes do que ele – é transferida e direcionada contra a própria ideia do bem que foi maculada por essa civilização. Esse deslocamento também lhe permite seguir a via de menor resistência e perseguir aqueles que são, de qualquer maneira, fracos. Samuel percebeu essa estrutura. Ele falhou, no entanto, ao relacioná-la a forças sociais básicas e, em vez disso, limitou-a ao âmbito ideológico de aceitação e rejeição religiosa. A concretude que se ganha, a capacidade de apontar para uma “razão” tangível e específica do antissemitismo, é espúria. O cristianismo está envolvido no antissemitismo, pois está envolvido na totalidade da civilização. Entretanto, a ideia de que o imaginário sobre Cristo ainda seja tão poderoso, a ponto das formações reativas a ele serem a única explicação do ódio totalitário, é arbitrária e não resiste a um escrutínio mais minucioso. Se fosse verdade, a pressão do cristianismo teria que ser igual à pressão do anticristianismo latente. Obviamente, isso não é verdade. Países com tradições cristãs antigas, por exemplo os latinos, ou países onde, na esteira do calvinismo, a religião moldou[31] profundamente a vida secular, mostraram-se até agora mais imunes ao vírus antissemita do que a Alemanha, onde a cristianização nunca foi bem-sucedida e onde tendências pagãs não sublimadas sobreviveram ao longo dos tempos. O anticristianismo é apenas uma força auxiliar do antissemitismo. Encará-lo como a raiz do problema é uma falácia perigosa, pois oferece conforto fácil aos judeus que, quando perseguidos, tentam fazer com que eles próprios e outros acreditem que o ataque é igualmente dirigido contra protestantes e católicos. Pragmaticamente, essa ideologia frequentemente se assemelha a uma tentativa de obter ajuda dos grupos dirigentes, por meio de uma identificação que tem pouca base na realidade.

 

(4) Atitude em relação à teoria “existencial”

No Capítulo I, mencionamos o estudo altamente sugestivo “Retrato do antissemita”, de Jean-Paul Sartre.[32] De todas as discussões filosóficas sobre o problema que conhecemos, esse estudo é o que se aproxima mais da nossa própria interpretação sobre o antissemita. No entanto, divergimos bastante do Sr. Sartre em relação a alguns dos conceitos filosóficos básicos. O mais surpreendente é que as declarações de Sartre, que só nos foram conhecidas depois que começamos a formular nossos resultados finais, coincidem com nossa própria interpretação até em detalhes excessivamente concretos, espécie de detalhes que, em regra, só pode ser obtida de investigações empíricas. Embora sua terminologia seja completamente diferente da nossa, o núcleo de ideias é quase o mesmo. Justifiquemo-nos com alguns exemplos. A insistência de Sartre de que o envolvimento emocional do antissemita “não é provocado pela experiência” é o equivalente à nossa tese de que a pessoa com “alta pontuação” é incapaz de ter qualquer experiência real e que o antissemitismo, tanto quanto outros elementos da ideologia pseudoconservadora, serve como um substituto para tais experiências. Sartre também percebe que os antissemitas nunca “acreditam completamente”, que oscilam entre a ilusão e qualquer experiência que ainda estejam aptos a ter. “Não pense que os antissemitas ignoram completamente o absurdo dessas respostas” (dos estereótipos usuais dos judeus como sendo trapaceiros e limpadores de barra [trouble shooters]). O que chamamos de “anti-intracepção”[33] é formulado por Sartre da seguinte forma: “Ele (o antissemita) escolheu ficar do lado de fora, nunca examinar sua consciência, nunca ser outra coisa senão o próprio medo que causa nos outros.” O conformismo sadomasoquista e ódio contra o intelectual e contra tudo o que é diferente: “Ele se considera um homem médio, modestamente médio e, em última análise, uma pessoa medíocre.” Buscando subterfúgios na coletividade simulada: “[...] não se pode ser antissemita sozinho. Esta frase ‘eu odeio os judeus’ é uma frase que é dita em coro; que o conecta a uma tradição e a uma comunidade.” Nossa construção geral do caráter fascista: “Começamos a entender que o antissemitismo não é simplesmente uma ‘opinião’ sobre os judeus e que envolve a personalidade inteira do antissemita.” Outra afirmação feita por Sartre relaciona-se a um conceito que surgiu na análise do Instituto de Pesquisa Social sobre o agitador fascista: o agitador concebe o judeu como fazendo o mal em prol do mal, ou seja, irracionalmente: “[...] um princípio metafísico que o obriga a fazer o mal em todas as circunstâncias, embora, ao fazê-lo, ele se destrua. Esse princípio, como poderíamos esperar, é mágico.” A tendência do antissemita mencionada anteriormente de se voltar contra o “ideal” e de atacar a vítima em vez do opressor, concomitantemente com a rancorosa adesão ao existente, também é identificada por Sartre: “O antissemita tem medo de descobrir que o mal vem do mundo.” Sob o aspecto positivo do “alto” [pontuador], descortina-se o oposto: “Sua ênfase está na destruição.”

A própria capacidade de Sartre para a experiência e a tradição da “psicologia” francesa, conforme definida pelos grandes romancistas, de Stendhal e Flaubert a Proust (este último forneceu algumas análises extraordinárias de reviravoltas antissemitas, conferir as seções de seu trabalho que são dedicadas ao caso Dreyfus), parecem ser tão fortes que tornam impotentes os elementos ideológicos da filosofia que ele segue. A doutrina principal dessa filosofia é a ideia de “decisão”: que o valor do homem depende de sua livre decisão e, finalmente, de sua capacidade de enfrentar o destino sem véus e ilusões. Isso induz Sartre a interpretar o antissemitismo apenas em termos de individualidade, embora ele saiba, é claro, que o antissemitismo é concomitante a atitudes sociais e políticas específicas. “Nenhum fator externo pode induzir antissemitismo no antissemita. É uma atitude total e livremente autoescolhida.” Embora a ênfase na estrutura geral do antissemitismo individual seja mais produtiva, é impossível, no entanto, isolar essa individualidade, tratá-la como um absoluto e se cegar a seu funcionamento como uma agência [agency] de repressão social. Todavia, um exame mais detalhado do conceito aparentemente individualista do antissemita de Sartre mostra que mesmo a afirmação kierkegaardiana da atitude “autoescolhida” do antissemita contém um elemento de verdade. Nossa própria tese da natureza secundária da transferência negativa do antissemita, do caráter “funcional” do antissemitismo, aponta na mesma direção. Repetidas vezes, observou-se que o antissemitismo individual é incitado e abafado, assim como as “ações espontâneas” contra os judeus foram produzidas e canceladas no Terceiro Reich. A percepção desse aspecto do antissemitismo deve de alguma forma modificar o pressuposto de Sartre de que o antissemitismo é “uma paixão e, ao mesmo tempo, um conceito de mundo”. Considerando que não possa haver dúvida sobre a base emocional é, no entanto, primariamente “flutuante”, como os psicanalistas o diriam. A transferência para o objeto específico envolve o eu. O próprio fato de o antissemitismo não ser uma mera atitude, mas uma ideologia pseudorracional cuja inverdade inerente nunca está totalmente oculta à personalidade fascista, necessita da espécie de envolvimento do eu que Sartre interpreta com a ajuda da ideia existencialista de “livre escolha”. A verdade por trás desse conceito é que o “eu fraco” precisa da ideologia antissemita, para fins de automanutenção, por mais espúria que esta possa ser. Isso está implícito na observação de Sartre de que a adesão a uma ideologia de ódio arbitrária dá ao sujeito “uma aparência de existência”. Aquele que professa violentamente odiar os judeus ou, como Sartre diz, que “não pode respeitar os ingleses”, aparece a si mesmo, com isso, como “alguém”, uma pessoa forte e independente, caracterizada por traços distintivos específicos, um indivíduo severo que deve ser reconhecido. Essa óbvia e extrema formação reativa à fraqueza do eu não tem nenhuma substância verdadeira, porque não é uma expressão primária, mas um mecanismo de defesa no sentido mais estrito do termo. Não é por acaso que Sartre toma uma atitude positiva com respeito à psicanálise, quando discute a ambivalência do antissemita em relação à imagem judia. A maioria das experiências às quais ele se refere na linguagem existencialista pode ser expressa na linguagem psicanalítica sem a falácia de um curto-circuito entre concepções metafísicas que nunca podem ser aplicadas diretamente a descobertas empíricas e intuições de uma substância puramente psicológica. Algo análogo pode ser dito quanto ao aspecto social da teoria de Sartre.

Sua afirmação “[...] o antissemita escolheu recorrer ao espírito de síntese como um meio de entender o mundo. É o espírito de síntese que o permite se ver formando uma unidade indissolúvel com a França como um todo[...]”, na verdade, equivale à nossa própria construção de que o antissemitismo tem a função de penetrar em uma realidade social, a qual, caso contrário, seria alienada e opaca. Em nossas categorias, o elemento de escolha, enfatizado com tanta força por Sartre, seria interpretado como implicando que o sistema paranoico ao qual os antissemitas se apegam desesperada e coletivamente, na verdade, serve ao propósito de construir uma pseudorrealidade que, sendo um “sistema fechado” de decisões, não pode ser refutado e, portanto, oferece um grau considerável de segurança intelectual. Para citar Sartre: “Mas como alguém pode escolher raciocinar falsamente? Porque sente a nostalgia da impermeabilidade.” Finalmente, a principal característica do caráter fascista, a ambivalência entre submissão autoritária e rebeldia destrutiva, é traçada por Sartre, no final de seu estudo. Ele sabe que a estrutura de caráter fascista implica a necessidade de cometer excessos, se eles tiverem o sinal da aprovação social, uma atitude que é, a propósito, psicologicamente idêntica à externalização do supereu, conforme discutimos em vários contextos.

 

(5) Observações gerais sobre a teoria psicológica do antissemitismo

Herbert Aptheker[34] baseia sua crítica a Um dilema americano,[35] de Gunnar Myrdal, no ponto de vista deste último segundo o qual o problema do negro americano é um problema “no coração do americano”, e que “as tendências sociais ganham um significado central para o status dos negros por causa do que está na mente das pessoas brancas.” O cerne do argumento de Aptheker é que o problema do negro é abstraído de suas condições socioeconômicas: na medida em que é tratado como sendo essencialmente de natureza psicológica, seu entorno é removido. Aptheker acumula evidências suficientes para seu posicionamento, tanto em relação a certos aspectos do trabalho de Myrdal quanto, particularmente, em relação a seus efeitos sobre a opinião pública, como se o problema da discriminação antinegra pudesse ser resolvido com uma mudança de mentalidade da parte das pessoas e sem pressupor mudanças essenciais nas condições sociais.

Nossa própria abordagem é predominantemente psicológica, visto que vai além do nível ideológico e está voltada para forças motivadoras. No entanto, não afirmamos que o antissemitismo está relacionado primariamente ao “esquema mental dos gentios”. Para esclarecer essa aparente inconsistência, bem como nossa posição em relação à “teoria psicológica” do antissemitismo, pode ser dito o seguinte.

Distinguimos entre o antissemitismo como um fenômeno social objetivo e o antissemita como um tipo peculiar de individualidade semelhante ao exposto por Sartre, que, por boas razões, é chamado de “Retrato do Antissemita” em vez de “Psicologia do antissemitismo”. Esse tipo de personalidade é acessível à análise psicológica. Dentre as razões pelas quais decidimos focar nossa investigação na suscetibilidade, e não na adesão aberta ao credo antissemita, considera-se a esperança de que poderíamos chegar a uma imagem clara do tipo de personalidade e das pré-condições subjetivas para a “jornada” fascista, embora a decisão de tal pessoa realmente se juntar a um movimento não possa ser tomada apenas por motivos psicológicos, porém, envolva fatores objetivos que se fazem sentir no indivíduo, através das situações políticas e econômicas mutantes que ele deve enfrentar. Seria impossível reduzir o fenômeno objetivo do antissemitismo atual, com seu legado antigo e todas as implicações sociais e econômicas, à mentalidade daqueles que, para falar junto a Sartre, tiveram que tomar uma decisão em relação a esse assunto. Hoje, todo e qualquer homem é confrontado com uma enorme quantidade de preconceitos objetivamente existentes, discriminações e atitudes antissemitas articuladas. O poder acumulado desse complexo objetivo é tão grande e aparentemente tão além dos poderes individuais de resistência, que se poderia perguntar: por que as pessoas são não-antissemitas, em vez de perguntar por que certos tipos de pessoas são antissemitas. Assim, seria ingênuo basear um prognóstico de antissemitismo, essa doença verdadeiramente “social”, no diagnóstico de pacientes individuais. Mesmo sua atitude pessoal, para não mencionar a perspectiva do próprio fascismo, na medida em que pode envolver essa atitude apenas em menor grau, pode ser explicada por sua mentalidade específica. Esse fato torna apropriado abordar o problema por meio de uma investigação sociopsicológica como a nossa. Ela mede e determina qualitativamente reações potenciais cuja ocorrência pode ser esperada, se a situação mudar devido a desordens econômicas severas ou à crescente “respeitabilidade” social do antissemitismo. Além disso, mostra como e em que grau as forças sociais objetivas que produzem o antissemitismo atuam sobre o indivíduo, não apenas de fora, mas na verdade dentro dele, e permitem a suposição de que a pessoa “alto pontuadora” é perigosamente indicativa do espírito da época, já que ela é representativa de grandes setores da população atual. Essa ideia é de grande importância. Ela deveria colocar em xeque quaisquer ilusões sobre o antissemitismo que as agências de defesa possam acolher, como a de ser um mal vindo de fora que recai sobre as mentes inocentes da população, por meio de propaganda enganosa – uma ingenuidade comparável apenas àquela que falhou em reconhecer a seriedade da ameaça antissemita na Alemanha, porque isso parecia tão completamente desproporcional ao estado geral de esclarecimento alcançado naquele país. No entanto, nosso objetivo não é a “psicologia do antissemitismo”; esta julgamos impossível. Só podemos alcançar algumas extrapolações de certas tendências antropológicas da cultura e, é claro, embasar algumas ideias sobre a espécie de resistência subjetiva contra o fascismo que podemos aspirar. Não é preciso dizer que consideramos o fator humano apenas um entre outros elementos, no processo socioeconômico, que engendram o fascismo.

            Isso de alguma forma afeta nossa abordagem psicológica. Deve ficar claro aqui que, por assim dizer, não sociologizamos a psicologia. Todos os conceitos e hipóteses tomadas da escola freudiana se referem à dinâmica da personalidade. No entanto, não usamos as teorias psicanalíticas específicas do antissemitismo, como a construção feita por Freud de um padrão repetitivo do assassinato do pai da horda primária (Urhorde), o assassinato do Moisés egípcio e o assassinato de Cristo, ou a explicação do antissemitismo através do complexo de castração e da “inquietação [uncanniness] da circuncisão” (desenvolvida por Freud e Fenichel). Tais teses tendem a reduzir geneticamente o antissemitismo a eventos psicológicos, poder-se-ia dizer quase a “traumas” isolados, por meio de uma analogia um tanto dogmática entre etiologia individual e causalidade social. Essa ingenuidade fornece constructos que tratam tanto os fenômenos do espírito objetivo quanto os da realidade social como se eles fossem neuroses que poderiam ser compreendidas em termos de alguma experiência primária, um toque apócrifo e disparatado. Além disso, explicar o antissemitismo exclusivamente como um complexo de culpa e castração dá crédito demais à experiência emocional do antissemita: interpreta o ódio aos judeus como [algo] muito mais específico, “genuíno” e substancial do que realmente é. A personalidade antissemita mostra certos traços neuróticos ou, para citar Ernst Simmel, psicóticos, mas esses traços não podem ser entendidos como derivados de experiências originais com os judeus. Procurar por tais experiências aproxima perigosamente as análises de fantasias metodológicas[36] selvagens [wild]. Se a psicologia do antissemita fosse levada ao extremo, finalmente teria que chegar a um ponto em que a repressão externa, social e os mecanismos intrassubjetivos da repressão psicológica coincidiriam. Essa análise, sem dúvida, envolveria medo da castração e sentimentos de culpa baseados no assassinato imaginário do pai, [e] é igualmente verdade que esses complexos se alimentam de memórias históricas e mitológicas. Não obstante, é irresponsável tratar eventos históricos altamente dúbios, como a morte de Moisés – que provavelmente era uma condensação coletiva e não um indivíduo – como realidade empírica literal da qual podem ser derivadas atitudes sociais e complexos psicológicos. Estamos em dívida com o Freud que desenvolveu a teoria do inconsciente e da repressão, do isso [Id], do eu e do supereu – e não com o Freud antropólogo.

            Enquanto esta última qualificação da abordagem psicanalítica diz respeito às origens arcaicas, a outra se refere à sua última fase – pode-se quase dizer, o fim da psicologia antissemita. A inabilidade da personalidade de “alta pontuação” de ter experiências de aceitação (tanto rígida quanto intercambiável) de determinados padrões ideológicos, a fraqueza de seu próprio poder autointegrador – tudo isso foi destacado em nosso estudo. A conexão de traços, que pode ser chamada de falha de individuação, pode muito bem fornecer a definição última da síndrome “alta”. Isso indica uma tendência histórica que afeta não tanto a psicologia individual quanto o locus da psicologia enquanto tal. É a decadência da individualidade provocada pelo declínio da livre concorrência e da economia de mercado. Se o indivíduo, no sentido de um equilíbrio entre eu, supereu e isso, não puder mais ser considerado a forma característica dos seres humanos de hoje, a psicologia poderá começar a se tornar obsoleta,[37] na medida em que as ações individuais não possam mais ser explicadas adequadamente, em termos da própria constituição psicológica do indivíduo. Não é por acaso que a teoria de Freud foi concebida durante a segunda metade do século XIX, quando a individualidade como categoria social estava em seu auge. Também não é por acaso que as neuroses de transferência clássicas, a partir das quais Freud desenvolveu sua teoria, parecem ter desaparecido e têm sido gradualmente substituídas por conflitos narcísicos, cujo tratamento inspirou as escolas revisionistas. Se o indivíduo não puder mais existir mediante uma ênfase em sua independência e força, se ele só pode ser bem-sucedido ao se entregar aos poderes coletivos, a interação psicanalítica clássica entre o eu, o supereu e o isso se encontra seriamente afetada e a antiga definição do princípio da realidade mediante a cristalização de um eu forte não é mais válida.[38] Embora não possamos mais falar sobre essas mudanças e a maneira como elas podem afetar a estrutura conceitual da psicanálise, podemos pelo menos arriscar a hipótese de que a psicologia do antissemita contemporâneo, de certa forma, pressupõe o fim da própria psicologia; por esse motivo, ele não pode ser adequadamente descrito psicologicamente. O que estamos enfrentando aqui não é o velho ódio aos judeus como um poder emocional distinto. É a prontidão de certos tipos de homem a aceitar mecanicamente determinados padrões ideológicos, tickets, que também contêm slogans antissemitas, mas que não são mais inspirados por reações antissemitas per se.[39] Essa prontidão é a contrapartida subjetiva da transformação objetiva do antissemitismo em um dispositivo puramente administrativo. Pode-se dizer que nossa época de antissemitismo totalitário e genocídio não conhece mais o antissemitismo “espontâneo”, e é possível que a própria ausência de uma base emocional autêntica e específica o torne tão impiedoso (confira a era da contrarreforma, na qual a perseguição religiosa e a caça às bruxas eram especialmente cruéis, porque os ensinamentos religiosos, em cujo nome ocorreu a perseguição, não tinham mais substância alguma). Pode ser uma função do nosso estudo apontar as limitações dos determinantes psicológicos no homem moderno e sua substituição pela adequação social onipotente que, vista psicologicamente, é regressiva e, ao mesmo tempo, se aproxima do conceito behaviorista de homem como um agrupamento de reflexos condicionados. A síndrome “alta” deve ser vista à luz dessa regressão total. Para alcançar uma adequação social, a pessoa com “pontuação alta” renuncia à ideia de sua própria individualidade, uma tendência que se aproxima da afirmação de Sartre de que o antissemita tem medo “[...] de si mesmo, de sua consciência, da liberdade, dos instintos, de suas responsabilidades, da solidão, de mudança, da sociedade e do mundo; de tudo, exceto dos judeus.” A última declaração expressa a irrealidade final do ódio aos judeus enquanto tal. Essa irrealidade nos dá a esperança de que o próprio antissemitismo possa desaparecer, com o desaparecimento da “psicologia do antissemita”.

Hoje, os homens tendem a se transformar em “agências sociais” e a perder as qualidades de independência e resistência que costumavam definir o antigo conceito de indivíduo. A dicotomia tradicional entre forças sociais objetivas e indivíduos, que mantemos metodologicamente, perde, assim, parte de sua substância. Quanto mais as pessoas se tornam “socializadas”, isto é, moldadas através da adaptação total à estrutura social, mais descobertas – pertinentes à essência da sociedade enquanto tal – podem ser obtidas a partir do estudo dos membros dessa sociedade. A harmonia pré-estabelecida entre uma sociedade integral e aqueles que ela abrange diminui a importância de uma distinção entre a análise das reações objetivas (estímulos) e as reações subjetivas. Embora a prioridade causal ainda pertença a elementos estruturais objetivos, essa prioridade não força[40] mais o cientista social a tomar como ponto de partida a “esfera de produção” objetiva. Se nossa sociedade está realmente a caminho de se tornar um todo, deixando cada vez menos brechas para o indivíduo e tolerando cada vez menos domínios não sociais e individuais de existência, não faz muita diferença se começamos com a análise das forças econômicas ou com o homem. Todos os caminhos levam ao mesmo centro, uma vez que a dinâmica social pertence tanto a instituições quanto a pessoas; as últimas são na verdade o produto dessa dinâmica. Essa é a hipótese por trás de nossa afirmação de que os mecanismos aos quais os indivíduos estão incessantemente submetidos, a partir do exterior, devem ser encontrados nas profundezas desses mesmos indivíduos.

Em vista da própria natureza da ameaça fascista, muito pode ser dito em favor da abordagem subjetiva. A sociedade moderna é uma sociedade de massa. Isso não se refere apenas ao tremendo aumento quantitativo da população mundial, durante a era industrial. Existem também conotações qualitativas. Todo o padrão da cultura atual é moldado de tal maneira que toma conta das massas, “integrando-as” a formas padronizadas de vida que são construídas segundo o modelo de produção em massa industrial e satisfazendo de fato ou indiretamente seus desejos e necessidades. O enorme aumento atual de controle social sobre as massas é igual à pressão potencialmente exercida pelas massas sobre a estrutura social. As populações são tratadas en masse, porque não são mais “massas”, no antigo sentido do termo. Elas são manipuladas como objetos de todas as espécies de organizações sociais, inclusive as deles próprias, pois ser mero objeto se tornou problemático, desde que elas atingiram – através da civilização técnica – um estágio de esclarecimento que lhes teria permitido tornar-se verdadeiros sujeitos, caso os mecanismos de controle fossem suplantados em algum momento. Mesmo a repressão em sua forma mais cruel teve que contar com as massas oprimidas. Como Otto Kirchheimer apontou, a economia e a política nazistas não representavam simplesmente os interesses do grupo dominante; eles mantiveram traços de compromisso. As massas são incessantemente moldadas a partir de cima, elas devem ser moldadas para que sejam mantidas sob controle. A esmagadora maquinaria da propaganda e da indústria cultural evidencia a necessidade desse aparato, para a perpetuação de uma configuração cujas potencialidades superaram o status quo. Uma vez que esse potencial também é o potencial de resistência efetiva contra a tendência fascista, é imperativo estudar a mentalidade daqueles que são os receptores finais da dinâmica social de hoje em dia. Devemos estudá-los não apenas porque eles refletem essas dinâmicas, mas, acima de tudo, porque são a antítese intrínseca delas.

 

 

TRANSLATION OF “REMAKS ON ‘THE AUTHORITARIAN PERSONALITY’, BY ADORNO, FRENKEL-BRUNSWIK, LEVINSON AND SANFORD”

Abstract: This is the inedited translation of a chapter written by Theodor W. Adorno in 1948 that would integrate the book “The Authoritarian Personality”, published in 1950, but which was not included in the work. In this chapter, Adorno intends to outline in more precise terms the concept of “anthropology” of the authoritarian type exposed in the work. The author describes it very precisely: not being a psychological, nor a sociological approach, not even existential and religious, the anthropology of the authoritarian portrayed here denotes part of the hegemonic formation of individuals under the influence of administered capitalism. The translation is preceded by an introductory text (authored by the translator) that presents and contextualizes the translated chapter and relates it to the original book published in 1950.

 

Keywords: Adorno. Authoritarian Personality. Anthropology. Capitalism. Psychoanalysis.

 

REFERÊNCIAS

ADORNO, T. W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

APTHEKER, H. The Negro People in America: A Critique of Gunnar Myrdal's “An American Dilemma”. New York: International Publishers, 1946.

COSTA, V. H. F. Resumo de The Authoritarian Personality. In: ADORNO, T. W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: Obras completas, v. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

FREUD, S. Moisés e o monoteísmo. In: Obras Completas, v. 19. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

GLAZER, N. The Study of Man: The Alienation of Modern Man. Commentary. New York, Apr. 1947. Disponível em: https://www.commentarymagazine.com/articles/nathan-glazer-2/the-study-of-man-the-alienation-of-modern-man/ Acesso em: 05 maio 2020.

HARTLEY, E. Problems in Prejudice. New York: King’s Crown, 1946.

MASSING, P. Rehearsal for destruction: a study of political anti-Semitism in Imperial Germany. New York: Haper & Brothers, 1949.

MYRDAL, G. An American Dilemma: The Negro Problem and Modern Democracy. New York: Harper & Brothers, 1944.

SAMUEL, M. The Great Hatred. New York: A. A. Knopf, 1940.

SARTRE, J. P. A questão judaica. São Paulo: Ática, 1995.

SIMMEL, E. (org.). Anti-Semitism: A Social Disease. New York: International Universities Press, 1946.

THE FORTUNE SURVEY. Fortune Magazine, Febr. 1946.

TRACHTENBERG, J. The Devil and the Jews: The Medieval Conception of the Jew and its Relation to Modern Antisemitism. New Haven: Yale University Press, 1943.

 

Recebido: 04/3/2020

Aceito: 30/4/2020

 



[1] Não há referência desse estudo, na publicação original de The Authoritarian Personality, devido à publicação tardia do mesmo. Embora Hartley tenha concluído suas investigações em 1939, os resultados não foram publicados até 1946, em função de efeitos da Segunda Guerra Mundial. [ N.T.]

[2] Estão incluídos aqui certos conceitos, como a ideia de pseudopersonalização, a substituição de meios por fins, a hostilidade contra meras imagens, a mudança funcional de conceitos religiosos, o “culto ao existente” e muitos outros. [ N.A.]

[3] Traduzimos aqui “American” por “americano”. Constitui um dado interessante o emprego de Adorno em suas análises do mesmo termo utilizado por entrevistados etnocêntricos (que identificam todo um continente ao seu próprio país), em vez de optar por uma expressão “mais neutra” como “north-american”. [ N.T.]

[4] A obra original explica como as respostas aos itens dos questionários foram organizadas segundo o método Likert: concordava-se muito (+3), médio (+2) ou pouco (+1), ou ainda se discordava muito (-3), médio (-2) ou pouco (-1) com cada um dos itens. Tais respostas foram convertidas em pontuações: concorda muito (+3) = 7 pontos; concorda médio (+2) = 6 pontos; concorda pouco (+1) = 5 pontos; discorda pouco (-1) = 3 pontos; discorda médio (-2) = 2 pontos; discorda muito (-3) = 1 ponto. 4 pontos corresponderiam, então, a uma suposta resposta neutra, que não é contemplada no método Likert. A decisão da exclusão dos 4 pontos é significativa, por demonstrar numericamente a distância psíquica expressa entre as respostas que indicam pouca discordância e pouca concordância com um item. A pontuação de uma pessoa é revelada pela soma geral dos pontos das respostas aos itens. Assim, os mais preconceituosos, que concordavam muito com os itens enunciados, são designados como altos pontuadores (os 25% maiores pontuadores das escalas), os menos preconceituosos, baixos pontuadores (os 25% menores pontuadores das escalas). [ N.T.]

[5] Trata-se da Seção “A) Problema” do capítulo introdutório de The Authoritarian Personality, momento em que os autores abordam a relação entre os temas socioeconômicos e a ideologia dos sujeitos da amostra. Nela, lemos a análise segundo a qual as pessoas tendem a não seguir racionalmente os interesses econômicos de seu status social, algo que foi comprovado pela pesquisa empírica da obra. Muitas vezes, elas tendem a pensar em termos de “identificação de grupo”, apoiando, por mobilização de desejos e medos inconscientes, interesses pertencentes às classes sociais às quais aspiram (ADORNO, 2019, p. 84ss. [N.T.]).

[6] Trata-se o ensaio publicado por Sartre, em 1945, em Les Temps modernes, intitulado “O retrato do antissemita”, que compõe a primeira parte de suas Réflexions sur la question juive (SARTRE, 1995 [ N.T.]).

[7] Refere-se em geral a quaisquer atos antissemitas que envolvam provocar judeus. Em específico, por exemplo, à ação de dirigir por um bairro predominantemente judeu, durante o sábado judaico, enquanto o motorista ou o passageiro acena uma nota de dólar pela janela, na esperança de atrair um judeu para agarrá-la (TRACHTENBERG, 1943. [ N.T.]).

[8] Cf. MASSING, 1949. Este volume compõe os Estudos sobre Preconceito dirigidos por Horkheimer e Flowerman, uma pesquisa multidisciplinar que publicou cinco volumes de diferentes temas, dentre eles The Authoritarian Personality. [ N.T.]

[9] Adorno não cita aqui e nem em The Authoritarian Personality a quais pesquisas em específico ele se refere. Contudo, provavelmente se trata de um questionário da revista Fortune, realizado em fevereiro de 1946. Foi elaborado para descobrir a situação do antissemitismo manifesto nos Estados Unidos da América, após a Segunda Guerra. Segundo a publicação, apesar de ser um país bastante antijudaico, durante a guerra, os níveis de antissemitismo teriam se estagnado com a queda de Hitler. Apenas 8,8% da população adulta se considerava antissemita, em 1946, especialmente os ricos (13,5%). Por outro lado, os afroamericanos eram os menos antissemitas, com apenas 2,3% deles tendo uma opinião negativa dos judeus. Cf. THE FORTUNE SURVEY, 1946. [ N.T.]

[10] Adorno também não cita aqui e nem em The Authoritarian Personality a quais pesquisas do Instituto Gallup em específico ele se refere. Ao longo dos anos 1930 e 1940, essa instituição realizou diversos questionários de opinião pública sobre o povo judeu e a Alemanha de Hitler. Perguntas tais como “Você acha que o sentimento antijudaico está aumentando ou diminuindo neste país?”, “Você acha que a perseguição aos judeus na Europa foi culpa deles?”, “Você aprova ou desaprova o tratamento dos nazistas [...] aos judeus na Alemanha?”, “Você acha que deve haver uma campanha generalizada contra os judeus neste país?” e “Você acha que o sentimento antijudaico está aumentando ou diminuindo neste país?” No geral, as respostas indicavam, o que já era de se esperar pelas formulações diretas do questionário, um posicionamento geral antiantissemita. [ N.T.]

[11] Cf. SIMMEL (1946), especialmente os capítulos de Otto Fenichel (“Elements of Psychoanalysis Theory of Anti-Semitism”) e o do próprio Simmel (“Anti-Semitism and Mass Psychology”). Nesse volume organizado por Simmel, Adorno publicou “Anti-Semitism and Fascist Propaganda” [ N.T.]

[12] No original, há um erro ortográfico de Adorno, que empregou “exercized” com “z”, ao invés de com “s” [ N.T.]

[13] Cf. T.W. ADORNO, “Social Science and Sociological Tendencies in Psychoanalysis”, comunicação apresentada no encontro bianual da San Francisco Psychoanalytic Society em abril de 1946. [ N.A.]

[14] O autor empregou “howgere”, ao invés de “nowhere” [ N.T.]

[15] Obviamente, o TAT também é um instrumento puramente psicológico. Por conta das reações mais associativas e menos racionais dos sujeitos, ele atinge mais profundamente ainda o inconsciente do que as seções clínicas e genéticas das entrevistas. Todavia, a natureza particular do instrumento de Murray nos permitiu aplicá-lo sem formular hipóteses explicitamente, como foi feito, por exemplo, com relação ao questionário. Naturalmente, tínhamos ideias bastante claras sobre sua relação com os outros métodos. [N.A.] [ N.T.: O Teste de Apercepção Temática (TAT) foi desenvolvido por Murray e Morgan, em 1934, na Harvard Psychological Clinic. Foi aplicado aos 25% maiores e menores pontuadores, na seção qualitativa da pesquisa de The Authoritarian Personality. Eram apresentadas imagens contendo grupos de minorias e os entrevistados deveriam contar histórias associadas a elas, revelando desejos, conflitos e mecanismos de defesa subjetivos que estavam sendo projetados nas imagens. Para uma explicação pormenorizada do TAT, cf. COSTA (2019, p. 59-61). [ N.T.]

[16] Jewish Social Studies, [v.] V, n. 1, p. 43ss. [ N.A.]

[17] Gregor Strasser (1892-1934), junto com seu irmão Otto Strasser, foi considerado um dos “organizadores mais eficientes” do Partido Nazista. Devido em grande parte à sua influência, o Partido Nacional-Socialista cresceu de 27.000, em 1925, para mais de 800.000 membros, em 1931. [ N.T.]

[18] Expressão por meio da qual historiadores se referem relativamente a atos antissemitas radicais, física e diretamente violentos, praticados principalmente após a Primeira Guerra Mundial, inclusive na época da República de Weimar. [ N.T.]

[19] Commentary, v. III, n. 4, p. 378ss [ N.A.] Cf. GLAZER, 1947. [ N.T.]

[20] “Inicialmente, a escala AS [antissemitismo] foi composta por 52 itens que constituíram um formulário preliminar. Na composição dos formulários seguintes, os itens foram selecionados segundo seu maior poder de discriminação. A escala AS completa abarcava 5 subescalas: a de opinião ofensiva, ameaça social, atitudes em relação a judeus, além da visão de que os judeus seriam excessivamente segregadores ou assimiladores. Suas afirmações descreviam, dentre outras ideias, que “os judeus são todos iguais”, sendo extravagantes, agressivos, excessivamente sexuais, fedorentos, feios. Ao mesmo tempo em que eles seriam excessivamente fechados em seu grupo, qualquer tentativa de interação com outros grupos seria paradoxalmente entendida como um bisbilhotar ou fugir de suas raízes. Eles seriam considerados perigosos, dominadores, corruptos, de grande poder econômico e político, inescrupulosos, imorais, sendo uma ameaça para a nação e civilização. Há a presença de contradições – os judeus sendo considerados ricos e pobres, poderosos e parasitas, capitalistas e revolucionários. Os itens procuraram abranger diferentes níveis de discriminação, desde contatos evitados até a defesa da exclusão, segregação e aniquilação. Na análise dos resultados da escala AS, é evidenciado que, para os altos pontuadores, se o antissemitismo é culpa das vítimas judias e se os judeus são incapazes de “melhorar” ou se desfazerem de sua “judaicidade”, a relação preconceituosa seria vista como inevitável. É claro também o medo de contaminação no contato com os judeus, como uma influência degenerativa geral. Uma vez estas ideias centrais sendo aceitas, os indivíduos tenderiam a concordar com as demais afirmações periféricas.” (COSTA, 2019, pp. 42-3.) [ N.T.]

[21] O autor empregou erroneamente “re-rucurring”, em vez de “recurring”. [ N.T.]

[22] Pode-se lembrar que as principais ações antissemitas dos nazistas, antes da decisão da política de extermínio, muitas vezes serviam como disfarce para medidas econômicas que eram altamente prejudiciais para o little man, por exemplo, a notória “Auskämmungsaktion” [“campanha de exclusão seletiva”- tradutora] contra as “Kleinbetriebe” [“pequenas empresas”- tradutora]. [ N.A.]

[23] O autor utilizou erroneamente “fundaments”, em vez do plural acertado “fundamentals”. [ N.T.]

[24] O autor empregou “affect,” em vez de “effect”. [ N.T.]

[25] O autor errou ao escrever “turth”, e não “truth”. [ N.T.]

[26] Referência a um poema de Friedrich Schiller de 1796. [N.T.]

[27] Cf. HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Elemente des Antisemitismus. In: HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Dialektik der Aufklärung. Amsterdam, 1947. [ N.A.]

[28] Cf. SAMUEL, 1940. [ N.T.]

[29] Cf. FREUD, 2019. [ N.T.]

[30] Ou O mal-estar na civilização, de Freud. [ N.T.]

[31] Adorno empregou a grafia “moulded”, utilizada na Inglaterra. A grafia estadunidense seria “molded”. Tal verbo aparece mais quatro vezes na sequência do texto, todas na grafia britânica. [ N.T.]

[32] Cf. Partisan Review, v. XIII, n. 2., p. 63ss [ N.A.] Cf. acima nota 6 da tradutora. [ N.T.]

[33] A anti-intracepção é designada como “[...] uma atitude de impaciência e oposição ao subjetivo e ao espírito compassivo, pode muito bem ser uma marca do eu fraco. O indivíduo extremamente anti-intraceptivo tem medo de pensar sobre os fenômenos humanos porque poderia, por assim dizer, pensar os pensamentos errados; ele tem medo de sentimentos genuínos porque suas emoções podem ficar fora de controle. Fora de contato com grandes áreas de sua própria vida interior, ele tem medo do que poderia ser revelado se ele se observasse, ou outros o observassem, atentamente. Ele é, portanto, contra a ‘intromissão’, contra a preocupação com o que as pessoas pensam e sentem, contra ‘conversas’ desnecessárias; em vez disso, ele se manteria ocupado, dedicando-se a atividades práticas e, em vez de examinar um conflito interior, voltaria seus pensamentos para algo alegre.” (ADORNO, 2019, p. 148).

[34] The Negro People in America. [ N.A.] Cf. APTHEKER, 1946. [ N.T.]

[35] Cf. MYRDAL, 1944. [ N.T.]

[36] O autor se equivocou, ao escrever “methological”, ao invés de “methodological”, no original [ N.T.].

[37] O autor utilizou erroneamente a palavra “absolescent”, no lugar de “obsolescent”, no original. [ N.T.]

[38] Adorno emprega aqui a expressão estadunidense “hold true”, que ganha uma variante na Inglaterra, apresentando-se como “hold good”. [ N.T.]

[39] Cf. MAX HORKHEIMER; T. W. ADORNO, “Elemente des Antisemitismus”. [ N.A.]

[40] Adorno empregou a expressão “does no longer force” ao invés da forma gramatical padrão “no longer forces”. O auxiliar “does” normalmente utilizado para enfatizar uma afirmação. [ N.T.]