Hannah Arendt e a intencionalidade das aparências

 

Lucas Barreto Dias[1]

 

Resumo: Neste texto, investiga-se o conceito de intencionalidade presente no pensamento de Hannah Arendt. Termo proveniente da fenomenologia husserliana, a intencionalidade designa que a consciência sempre se movimenta em direção a um objeto, de modo que, para Husserl, se trata aqui de um atributo do ego transcendental. Arendt, em sua obra póstuma, faz um deslocamento do conceito: a intencionalidade passa a ser compreendida não apenas como algo vinculado a um sujeito, mas, sobretudo às aparências. Desse modo, assim como o sujeito coloca em questão o objeto visado pela consciência, também o fenômeno pressupõe uma subjetividade embutida, isto é, as aparências se doam intencionalmente àqueles que captam suas aparições. Essa relação intencional, todavia, só faz sentido, no pensamento de Arendt, caso se coloque em questão a pluralidade humana como conjunto de seres capazes de apreender as aparências, a partir de uma experiência que só é possível mediante a própria pluralidade. Assim, a pensadora rechaça o sujeito cognoscente isolado como critério de verdade e sentido, proporcionando uma interpretação da relação homens e mundo, como perspectiva pela qual se pode chegar a uma compreensão intersubjetiva da realidade.

 

Palavras-chave: Fenomenologia. Intencionalidade. Pluralidade. Aparência. Experiência.

 

Introdução

            Uma das poucas referências que Arendt dá sobre si mesma não nos chega pelo testemunho direto da própria pensadora, mas da intérprete e biógrafa Elizabeth Young-Bruehl: Arendt se autocompreenderia como uma espécie de fenomenóloga, embora não segundo o modelo hegeliano, ou, ainda, o husserliano (YOUNG-BRUEHL, 1997, p. 286). Apesar de pouquíssimas vezes utilizar o termo “fenomenologia”, ou fazer menção a um método ou a um conteúdo expressamente proveniente da tradição fenomenológica, diversos intérpretes continuamente se referiram à obra arendtiana como uma fenomenologia; menciono, principalmente, A condição humana, definida costumeiramente como uma “fenomenologia da vita activa”.

            Apesar desse tipo de designação, por parte de seus leitores, pouco se explicita sobre o seu sentido. Neste texto, dedico-me a expor parcialmente por que Arendt é um tipo de fenomenóloga. Para tanto, analiso como a noção de intencionalidade, proveniente da fenomenologia, está presente em seu pensamento. Argumento que a pensadora faz um deslocamento a partir da concepção husserliana da intencionalidade do ego transcendental, tendo em vista uma intencionalidade em que se atribui o ponto de partida às aparências (ARENDT, 2010b, p. 63). Embora a autora não desenvolva o conceito exaustivamente, e ele só apareça de modo explícito em sua obra póstuma, é possível que façamos a reconstituição do seu papel no pensamento arendtiano, com base em outras categorias exploradas por ela com mais frequência, quais sejam: a de mundo, a de aparência e a de pluralidade. Por fim, junto a uma análise do conceito de experiência, poderemos compreender a relação entre os homens e a realidade, ou, em termos mais próximos à letra de Arendt: a compreensão como reconciliação entre os homens e o mundo.

           

1 Arendt e a fenomenologia husserliana

Segundo diagnóstico de Hannah Arendt, tradicionalmente nos orientamos junto a uma moldura que hierarquiza ontologicamente os aspectos mundanos como secundários, relativamente a padrões ideais/essenciais julgados como eternos (ARENDT, 2010a, p. 20). Em virtude disso, Arendt efetua um desmantelamento da tradição filosófica,[2] em busca das experiências que se encontram na origem dos modos pelos quais costumamos encarar, ainda hoje, tanto as atividades do espírito quanto as da vita activa. As experiências originárias recebem, por parte de Arendt, uma primazia de sentido, pois revelam certas experiências que ou foram cristalizadas de modo anacrônico até a nossa posição contemporânea, ou se modificaram, ao ponto de dificilmente intuirmos o seu sentido original. Ora, trata-se de desvelar, a partir disso, certas percepções que tentaram compreender o mundo, de tal modo que vislumbrar essas experiências originárias se configura como uma abertura fenomênica ao sentido dos acontecimentos mundanos. Tais elementos compõem parcialmente a moldura na qual Arendt se movimenta, um quadro de referências teórico-metodológicas que orienta seu pensamento.

Conforme se pode visualizar, nos embates já retraçados com Husserl e Heidegger (RIZO-PATRÓN, 2006; SERRANO DE HARO, 2008; LE NY, 2013; TAMINIAUX, 1992; TASSIN, 2017; VILLA, 1996), Arendt mantém uma relação de proximidade e distanciamento com os fenomenólogos que mais exerceram influência em sua formação como estudante de Filosofia. Em seu método de análise, Arendt incorpora um elemento heideggeriano: o recurso à linguagem como abertura ao mundo, o qual a conduz ao seu método de distinguir conceitos (DUARTE, 2013), assim como às experiências originárias. De modo similar, a distinção conceitual pode ser, por sua vez, posta paralelamente como a redução eidética arendtiana, mas que, no entanto, não carrega o transcendentalismo husserliano.

Entendo que Arendt faz aqui um deslocamento de como se coloca a questão: o ponto de partida não é nem o ego transcendental, nem o é Dasein, mas, antes, o mundo em sua relação intencional com a pluralidade humana. Nesse sentido, Arendt fará uso da noção de intencionalidade, no entanto, sem assumir integralmente a posição de Husserl. Sem negá-lo por completo, mas estendendo seu conteúdo, Arendt incorporará suas próprias intuições fenomenológicas junto à defesa do valor das aparências, de sorte a não reduzir esse movimento apenas ao ato intencional do ego transcendental, estendendo-o, também, àquele proveniente das próprias aparências. Defendo que é sobretudo nesse aspecto que Arendt se torna um tipo de fenomenóloga.

Embora as referências a Husserl, nos textos arendtianos, sejam escassas, geralmente, quando despontam, costumam vir sob a forma de críticas, de forma que a fenomenologia husserliana como um todo parece ser reduzida por Arendt a uma escola epigônica da tradição iniciada por Parmênides, que ainda se mantém na tarefa de identificar Ser e Pensar (ARENDT, 2008, p. 193-196). Não obstante isso, em A vida do espírito, a noção de intencionalidade é evocada por Arendt como a “a descoberta básica e mais importante de Husserl”, pois

[...] trata exaustivamente da intencionalidade de todos os atos da consciência, ou seja, do fato de que nenhum ato subjetivo pode prescindir de um objeto. Embora a árvore vista possa ser uma ilusão, para o ato de ver ela é um objeto. Da mesma forma, embora a paisagem sonhada seja visível apenas para o sonhador, ela é objeto de seu sonho. A objetividade é construída na própria subjetividade da consciência em virtude da intencionalidade (ARENDT, 2010b, p. 63).

 

O que Arendt percebe é que, na perspectiva fenomenológica de Husserl, a objetividade é posta pela estrutura intencional da consciência, isto é, a subjetividade do ego transcendental demanda por uma objetividade ou, também se poderia dizer, em toda subjetividade há uma objetividade embutida. Por sua vez, o objeto intencionado não é necessariamente factual: o objeto visado pela consciência intencional pode ser uma ilusão. O que importa, em efetivo, é que não há sujeito (ego transcendental) sem objeto. O modelo da fenomenologia, nesse sentido, julga Arendt, libera a Filosofia contemporânea, sobretudo a Existenzphilosophie, da preocupação com “o fluxo histórico, natural, biológico ou psicológico” (ARENDT, 2008, p. 195), pois agora é o homem que volta a habitar as preocupações filosóficas. Essa designação, todavia, expõe tanto sua crítica quanto aquilo que julga que se deve reter de Husserl.

Na análise arendtiana, a estrutura da fenomenologia husserliana estaria vinculada à falácia metafísica que identifica Ser e Pensar. Ora, para a pensadora, a possível não factualidade do objeto intencionado hierarquiza a relação entre os homens e o mundo, por pelo menos duas vias. Em primeira instância, reduz a pluralidade humana ao ego transcendental: em vez de “os homens”, há “O homem”, elemento que nutre a cegueira frente aos assuntos humanos e a falta de um interesse prático no pensar, como bem aponta Tassin, pois a vocação do filósofo é com o universal e, assim, ele identificaria sua atividade pela via profissional: o funcionário da humanidade (TASSIN, 2017, p. 95-109). Em segunda instância, essa posição identifica as atividades da bios theoretikos como fundamentalmente superiores às da vita activa, estrutura que subjaz à moldura clássica da tradição filosófica ocidental, a qual subjuga o mundo comum ao pensamento sobre o mundo.

Para Arendt, contudo, o mundo e a pluralidade humana surgem como elementos originários, tanto para o pensar quanto para a cognição. Se, de um lado, Husserl elege como ponto de partida o ego transcendental para compreender a relação entre a consciência e o mundo, Arendt, a seu modo, entende como imprescindível que quaisquer reflexões acerca do mundo estejam primariamente ancoradas nos assuntos humanos, na pluralidade humana, no mundo comum: nas aparências.

Distinguindo-se de Husserl, Arendt não pensa a partir da intencionalidade do ego transcendental, isto é, a consciência não é localizada como cronológica ou ontologicamente anterior às aparências, ao mundo e à pluralidade humana. No entanto, embora seus pontos de partida não sejam compartilhados, ao trazer tais questões para discussão, em A vida do espírito, Arendt parece encontrar na formulação do pai da fenomenologia uma oportunidade para lançar luz à sua reflexão. Além da (ou “junto à”) intencionalidade da consciência, a pensadora lança mão de uma outra intencionalidade, aquela que parte dos fenômenos: é o mundo que se doa como elemento originário para o pensar e para a cognição.

 

2 A intencionalidade das aparências

            No lugar de uma fenomenologia calcada apenas na intencionalidade da consciência, Arendt equilibra a situação, ao pontuar que faz parte da relação que guardamos com o mundo também um outro tipo de intencionalidade. Sobre a intencionalidade das aparências, frisa a autora:

Ao contrário [da perspectiva em que a objetividade é constituída na própria subjetividade da consciência em virtude da estrutura intencional], e com a mesma justeza, pode-se falar da intencionalidade das aparências e da sua subjetividade embutida. Exatamente porque aparecem, todos os objetos implicam um sujeito, e como todo ato subjetivo tem seu objeto intencional, também todo objeto que aparece tem seu sujeito intencional. [...] O que quer que apareça visa a alguém que o perceba, um sujeito potencial não menos inerente em toda objetividade do que um objeto potencial é inerente à subjetividade de todo ato intencional (ARENDT, 2010b, p. 63, grifos nosso).

 

Arendt não parece desprezar esse elemento que ela elege como a principal descoberta realizada por Husserl. Em contrapartida, haveria um problema em partir unicamente da subjetividade como elemento fundante da realidade, isto é, constituir o mundo através do ego transcendental, como se ele não passasse de um objeto da consciência. Em sua apologia das aparências, Arendt aponta para a possibilidade de que façamos uma interpretação da intencionalidade não só da consciência, mas também das aparências. Em vez de pensar a constituição da objetividade, em função de uma subjetividade transcendental e solipsista, dados os riscos de retornarmos à moldura da identidade entre Ser e Pensar, Arendt tentar pensar na “subjetividade embutida” [built-in subjectivity], no que ela chama de “intencionalidade das aparências” [intentionality of appearances] (ARENDT, 2010b, p. 63). Não é o pensar que constitui o mundo, porém, são os fenômenos mundanos que engendram as atividades espirituais, de forma que são os elementos ligados às aparências que estão na base não só da cognição, mas do pensar, do querer e julgar. A fenomenologia arendtiana, por assim dizer, elege um procedimento diferente daquele efetuado por Husserl, através de um deslocamento conceitual da intencionalidade.

Arendt, no entanto, não faz meramente uma inversão a respeito da intencionalidade. Não se trata de colocar as aparências como constituidoras unilaterais da consciência: caso fizesse essa formulação, Arendt incorreria em um outro possível problema, qual seja, o de indicar que a consciência não passa de um produto do meio, posição que não dificilmente acarretaria um naturalismo da consciência ou a impossibilidade da singularidade e da espontaneidade humanas.

Ao designar que devemos encarar “com a mesma justeza” a “intencionalidade das aparências” assim como falamos da intencionalidade da consciência (ARENDT, 2010b, p. 63), Arendt nos alerta para não criar uma nova hierarquia; no lugar disso, ela nos mostra que nossa relação com o mundo não é unilateral: não há um ponto de partida unitário. Para não incorrermos, assim, em uma simples mudança de termos, que nos faria permanecer na mesma moldura, explorar a intencionalidade das aparências não significa nos deslocarmos para um estatuto ontológico superior, contudo, ao contrário, rejeitar qualquer ontologia que conduza a hierarquias.

Frente, portanto, ao desenvolvimento de Husserl quanto à intencionalidade da consciência, cabe a Arendt, nesse sentido, ressaltar a intencionalidade do mundo. Essa posição não significa que a pensadora judia aceite inequivocamente as formulações do pai da fenomenologia, sobretudo porque elas são construídas sob a perspectiva unilateral de um ego transcendental, reduzindo a objetividade do mundo – sua fenomenalidade – à própria doação de sentido do Eu às aparências. Na concepção de Arendt, a fenomenologia husserliana, após abrir espaço para um método liberador para a Filosofia contemporânea que ultrapasse as falácias da metafísica, finda por “reestabelecer o antigo elo entre Ser e pensamento”, no qual a intencionalidade da consciência finda, por não ser mais que um desvio (ARENDT, 2008, p. 193).

Quando Arendt, assim, pensa na intencionalidade das aparências junto à intencionalidade da consciência, ela afirma com vigor “o valor da superfície”. Não apenas a estrutura intencional da consciência implica uma objetividade à qual se refere, quanto também a fenomenalidade do mundo – isto é, seu caráter de aparência – carrega consigo uma subjetividade embutida. Há, nesse sentido, um movimento de bi-implicação das intencionalidades, em que nem as aparências nem a consciência são as plenas fontes de sentido e de verdade. Caso nos resignemos meramente ao conceito não relacional, seja da consciência “pura”, seja das aparências, a “conta não fecha”. Somente se compreendemos que só há consciência junto a uma pluralidade, assim como toda aparência implica seres plurais, é que, seguindo aqui o pensamento arendtiano, conseguimos compreender a relação entre homens e mundo.

Sobre o conceito de aparência, Arendt assinala que algo só pode aparecer sob o caso de que haja alguém capaz de captar a sua aparição. A objetividade do mundo só pode ser objeto para algum sujeito, no caso de Arendt, para uma pluralidade. Arendt tem em mente aqui contrapor-se ao solipsismo que ela julga perpassar a tradição filosófica ocidental e que a faz colocar Husserl nesse mesmo grupo: o que está em questão, no modo fenomenológico de encarar a realidade efetuado pela autora, é que “para o filósofo, falando a partir da experiência do ego pensante, o homem é muito naturalmente não apenas verbo, mas pensamento feito carne” (ARENDT, 2010b, p. 64), um “ser fictício” e que dá base às teorias solipsistas, as quais “estão em desarmonia com os dados mais elementares de nossa existência e nossa experiência” (ARENDT, 2010b, p. 63). Não se trata, sublinhamos, de uma negação da intencionalidade da consciência, mas de reduzir a investigação a esse aspecto como ponto de partida inalienável. No lugar, portanto, da experiência do ego pensante e da intencionalidade que parte dele, Arendt explicita uma nova perspectiva que tem como ponto de análise também as aparências e a experiência não do Homem, figura unitária posta pela falácia do solipsismo, como ela assim designa, mas da pluralidade humana.

 

3 Experiência e pluralidade

A experiência do mundo – aquela que cada um de nós tem da realidade fenomênica – não se dá, segundo Arendt, de modo direto, quer dizer, sob a forma eu-mundo: não há uma adequação entre o objeto visto e sua percepção sensorial. Ao fugir da falácia solipsista, Arendt também não quer sucumbir à imediatidade da experiência sensível dos empiristas modernos. Sua concepção – que pode ser a base para uma fenomenologia da intencionalidade das aparências – se desenha a partir do que ela chama de sensação de realidade [sensation of reality]. Na distinção que faz entre verdade e sentido, seguindo uma matriz kantiana[3], Arendt evidencia que a verdade sempre se refere ao mundo fenomênico e à capacidade cognitiva, ao passo que o sentido se vincula a questões que não visam a chegar a uma verdade, mas, sim, em pensar, interpretar, tendo como base inalienável o mundo e os seus acontecimentos, ou seja, a atividade de compreensão. A questão, todavia, é que a verdade não significa uma apreensão passiva e imediata do mundo exterior, contudo, é mediada ativamente pela pluralidade. A sensação de realidade não é um produto direto dos órgãos sensitivos, nem uma abstração do ego transcendental. A tese de Arendt é de que a relação do Eu com o mundo só é possível se esse Eu for compreendido como constitutivamente vinculado a uma pluralidade.

O conceito de pluralidade costuma figurar na maior parte dos escritos de Arendt, com especial atenção em A condição humana e A vida do espírito. Nesta última, pode-se ler uma passagem que surge com poucas modificações, em outros textos da autora: “nada do que é, à medida que aparece, existe no singular; tudo que é, é próprio para ser percebido por alguém. Não o Homem, mas os homens é que habitam este planeta. A pluralidade é a lei da Terra” (ARENDT, 2010b, p. 35). A passagem é de singular importância, sob diversos aspectos que se interligam: 1) a postulação de uma coincidência (não identidade) entre ser e aparência, tópico forte desse aspecto fenomenológico presente no pensamento de Arendt; 2) a aparência/ser evoca algo diferente que o perceba: a intencionalidade das aparências e a subjetividade embutida em todo fenômeno; e 3) a apreensão das aparências não existe no singular: a pluralidade como lei da Terra.

A intencionalidade das aparências, nesse sentido, coloca em relevo não só o mundo, mas sua pluralidade constitutiva. O fato de haver um mundo que é comum a uma pluralidade de pessoas traz consigo um outro elemento também comum, um sentido que, assim como o mundo, confere algum tipo de unidade na pluralidade, um sexto sentido que se soma ao nosso aparato sensorial natural: o senso comum. Nossas experiências, na medida em que são plurais, são, por sua vez, constituídas e constituintes desse senso comum. A pobreza de nossa experiência contemporânea está vinculada justamente à atomização, isolamento e, sobretudo, desamparo/solidão dos indivíduos, como também à decadência e esvaziamento do espaço público.

Ora, dizer que nossas experiências são, de um lado, constitutivamente plurais, significa afirmar que só é possível que possamos experienciar o mundo e seus fenômenos, junto a um conjunto de elementos provenientes da pluralidade humana, algo que não existe em nós enquanto um dado natural ou que surge espontaneamente, em cada ser humano. Desse modo, nossa experiência é sempre relativa ao senso comum de onde ela partiu, embora não completamente limitada por ele. Por outro lado, ao considerar que nossa experiência é igualmente constituinte desse senso comum, podemos reafirmar aquilo apreendido através do senso comum e que confirmamos em experiência cotidiana, assim como somos capazes de ultrapassar o meramente dado, isto é, Arendt (2010a, p. 221) sublinha que a novidade é algo que se inscreve como possibilidade latente em nossas ações, de sorte que podemos somar novas experiências, novos elementos, ao senso comum.

Ao levar em conta, portanto, a pluralidade como a lei da Terra, a pensadora coloca um alto peso semântico no conceito de pluralidade, localizando junto a ela as noções de lei e de Terra. O termo lei carrega o rigor inescapável de uma legislação (seja ela natural, seja convencional); e a Terra traz consigo tanto o caráter de mundo[4] (o qual pode ser definido enquanto espaço público constituído pela ação ou produto da fabricação) quanto o da naturalidade (identificada em A condição humana como a quintessência da condição humana – ARENDT, 2010a, p. 4); de todo modo, designa um todo do qual cada um provém, algo que nos afeta de alguma forma. Nessa perspectiva, uma lei da Terra é algo que afeta todos inescapavelmente.

Ao postular, assim, que a aparência tem como prerrogativa a pluralidade, Arendt busca por um ponto de partida distinto daquele da tradição, que encontrou continuamente seu ponto de apoio no sujeito. Quem, ou o que aparece, aparece sempre a outros; não há aparição de um ser sem que haja quem capte a aparência do ser que aparece: a aparição põe o lugar da subjetividade que a apreende. No entanto, essa subjetividade não diz respeito a um ser singular, mas, sim, a uma pluralidade. Poder-se-ia dizer, mais corretamente, que a intencionalidade da aparência traz consigo não só uma subjetividade embutida, como também põe em questão a intersubjetividade. Algo só pode aparecer pelo fato de que pode ser percebido por espectadores, os quais compartilham entre si a mesma realidade, o mesmo mundo. Para Arendt, disso surge o que ela chama de uma tríplice qualidade-comum[5] [threefold commonness] que propicia a sensação de realidade: 1) o fato de os cinco sentidos visarem o mesmo objeto; 2) haver um contexto compartilhado por uma pluralidade acerca de um objeto específico; e 3) o fato de que os demais espectadores confirmam a existência do objeto que aparece. (ARENDT, 2010b, p. 67)

Além dos cinco sentidos com os quais somos dotados – algo que nos é costumeiramente comum – para perceber a realidade, Arendt entende que não se pode prescindir de outras duas coisas que também adquirem o status de comuns, pois compartilhadas no interior da pluralidade humana: o contexto e a confirmação mútua daquilo que aparece. A existência da realidade só pode ser predicada se for objeto de uma pluralidade ou mesmo o solo no qual tal pluralidade se dá. Somente há existência, na medida em que há pluralidade. Junto a isso, o atributo de ser uma aparência entre aparências é o que faz com que cada ser humano seja parte da pluralidade humana, porque apenas sob a perspectiva de que aparecemos aos outros e que estes se nos aparecem é que faz sentido um discurso acerca da pluralidade.

É prerrogativa da pluralidade sua vinculação à dignidade do mundo e, por conseguinte, das aparências. O valor da superfície confere dignidade, ao não subordinar a aparência a uma realidade que transcende esse mundo para justificá-la, de sorte que Arendt confere ao mundo fenomênico um status de verdade que coincide com uma compreensão da verdade, não enquanto correspondência, mas enquanto comprovação, desvelamento, isto é, a ação de trazer à aparência seu próprio valor. Nesse sentido, pontuamos aqui como fator imprescindível a necessidade de se pensar a aparência como base pela qual a pluralidade existe, mas, junto a isso, o fato de ser a pluralidade humana o que garante a tal aparência o status valorativo que Arendt propõe, visto ser por meio da pluralidade que é possível confirmar a validade do mundo, sua existência e dignidade.

A experiência do mundo não provém, portanto, de um contato direto do Eu com a Realidade, porque não há esse “Eu”, não há “O Homem” como estrutura primária original, contudo, sempre como alguém já inserido junto a uma pluralidade de homens. “O Homem” está diluído entre tantos outros que compartilham com ele um lugar comum no mundo e que são, assim como ele, aparências entre aparências. Quando se fala, por conseguinte, de algum indivíduo, sua própria singularidade [uniqueness] pressupõe que ele faça parte, de algum modo, de uma pluralidade. A revelação de quem alguém é, ou seja, sua autoapresentação, entende Arendt, só é possível mediante a ação e o discurso, atividades que são condicionadas pela pluralidade humana (ARENDT, 2010a, p. 8, 225, 228), isto é, sua condição de possibilidade é a existência de outros indivíduos que compartilhem com ele um espaço comum. “O Homem”, por estar no mundo, não está só, mas já nasce constituindo e sendo constituído por uma comunidade de homens.

A pluralidade humana, nesse sentido, não é apenas a mediação entre o homem e a realidade. Arendt não faz uma leitura de que haja uma linha, na qual se teria, em uma extremidade, “O Homem”, ou um “Eu” e, na outra, “O Mundo”, de maneira que ambas as pontas seriam ligadas pela “Pluralidade Humana”. O Homem não parte de si mesmo, passa pela Pluralidade (tornando-se os homens) e, então, alcança o Mundo, todavia, na compreensão da autora, o homem já é ele mesmo um ser do mundo e, enquanto ser do mundo, ele já pertence a uma pluralidade humana, ele já se encontra de início como um dos homens, não como o Homem. Pertencer ao mundo e pertencer a uma pluralidade humana são elementos correlatos e só assim “alcanço” o mundo, nunca diretamente, também não “mediado” por uma pluralidade, mas como constituído e constituinte da pluralidade, por não ser O Homem, porém, por ser um homem entre tantos outros homens, uma aparência entre aparências, um ser do mundo.

A experiência do mundo, nessa perspectiva, é sempre uma experiência plural e depende, para além dos nossos sentidos corporais, de um sexto sentido que tem como função se somar aos nossos cinco sentidos sensíveis: o senso comum. Segundo Arendt, a qual toma o conceito de Kant, o senso comum advém de compartilharmos um mundo comum com outros e de que a pluralidade da qual fazemos parte experiencia o mesmo mundo, embora cada um o vise a partir de perfis distintos, posições diferentes que cada um de nós ocupa (ARENDT, 2010b, p. 69). A questão é que, para Arendt, essa sensação de realidade se apresenta como uma experiência constituída pluralmente, não mais em função da singularidade, mas do comum, daí a tríplice qualidade-comum [commonness].

Pensamos que tais concepções são intuições que a autora retira não só de suas reflexões acerca das chamadas atividades espirituais, mas, sobretudo, surgem como elementos que têm nascedouro em sua tentativa de compreender o mundo e os assuntos humanos, mais ainda, de conferir dignidade à esfera política e ao mundo. De modo distinto de Heidegger, para quem a vida pública apresenta o mundo em sua inautenticidade, Arendt vai erguer uma compreensão de que só há autenticidade possível – embora ela não utilize esse termo, efetivamente – na esfera pública. É contra a hostilidade e cegueira frente ao mundo que se ergue o pensamento arendtiano.

Arendt assevera que “a experiência transcende não só a Aparência, mas o próprio Ser” (ARENDT, 2010b, p. 59), isto é, ao engendrar o pensar, a experiência transcende o mundo, mas não o abandona, pois é sempre outra aparência que ela encontra, ao ultrapassar alguma aparência; ao retirar-se do mundo para pensar, é ao mundo que se retorna em seguida. Eis aqui o paradoxo do pertencimento e da retirada, como formula Taminiaux (1992, p. 155-175). Essa perspectiva certamente não trata de afirmar que o pensamento é independente da realidade, contudo, que, na medida que se pensa, se refugia do mundo, se retira temporariamente dele, sem o abandonar. O pensar pressupõe um afastar-se parcial do mundo, mas nunca efetivo. A experiência só pode transcender o mundo, justamente porque surge dele e, assim, fornece fenômenos para o pensar, cuja atividade se desvincula da realidade, quer para pensá-la, quer para refletir sobre aquelas coisas das quais Kant dizia ser inerente à razão: Deus, Liberdade e Imortalidade. O fato é que, mesmo se distanciando do mundo para realizar a atividade do pensamento, ainda assim não se evade dele completamente. Pretender evadir-se da realidade, este é o sonho da metafísica que Arendt não apenas não compartilha, mas rechaça. O ser pensante ainda é tanto uma aparição no mundo como se mantém um ser do mundo.

            Seguindo, portanto, a reflexão de Arendt, a experiência não “liga” o pensamento ao mundo. Não há um toque direto sequer entre espírito e realidade. A experiência, no entanto, ao transcender o Ser e a Aparência, eleva o espírito à possibilidade de pensar aquilo que foi experienciado, sem, nesse movimento, significar que o ego pensante tenha tido ele próprio uma experiência de mundo. Com efeito, embora não haja uma relação direta entre experiência e pensar, o primeiro “desencadeia” o segundo, não é sua causa, entretanto, abre-lhe a possibilidade de ser. A intencionalidade das aparências pensada por Arendt, nesse sentido, prescinde de quaisquer elementos metafísicos, mas traz para o centro de suas considerações uma reflexão sobre a experiência e o pensamento vinculados ao mundo, sem reduzir-se ao modelo empírico-positivista que entende haver uma adequação entre pensamento e realidade.

 

Considerações finais

            Por certo, Arendt nunca se dedicou exaustivamente ao desenvolvimento de uma fenomenologia própria, todavia, uma certa orientação fenomenológica perpassa suas reflexões. Poder-se-ia dizer que a filosofia alemã em que se formou intelectualmente nunca a abandonou, pois se constituiu como linguagem do seu pensamento. Envolvida pela tentativa de compreender os acontecimentos “políticos” do século XX, Arendt dedicou-se menos ao exame filosófico estrito, retornando exaustivamente à sua antiga paixão apenas ao fim da vida, mostrando-nos, na verdade, que nunca abandonou as discussões filosóficas. Todavia, no lugar de contemplar com o espírito, como se esperasse a revelação da verdade, a pensadora exerceu sempre uma atividade incessante em busca do sentido, como bem aprendeu com seu mestre e amigo Karl Jaspers.  A vida do espírito arendtiano, nesse sentido, nunca foi contemplativa, mas iminentemente ativa, impactada pelo mundo e por aqueles que constituíram seu círculo mais próximo, ao longo de seu trajeto.

A intencionalidade das aparências nos ajuda a entender isso, porque é justamente o impacto proveniente do evento totalitário que desencadeia em Arendt a busca pela compreensão do que ocorrera com o mundo, com as pessoas que o constituem e com seus pensamentos e ações. As atividades do espírito, nesse sentido, são constantemente motivadas pelo mundo, necessitam da linguagem para ganhar forma e só passam a ter existência ao serem expressas a uma pluralidade, isto é, ao aparecerem. Não é à toa que o primeiro capítulo do volume sobre “O Pensar”, de A vida do espírito, seja precisamente intitulado de “Aparência”, local em que Arendt defende o valor da superfície e onde se encontra a formulação da intencionalidade das aparências. Se a pluralidade é a lei da Terra, e esta é a quintessência da condição humana, então podemos ver que a Terra (e o mundo) é também o que possibilita – isto é, é condição – para as atividades do espírito.

Assim, aquelas características do mundo circunscritas por Arendt como inelimináveis – isto é, o ser comum (seja na noção de mundo comum, seja na tríplice qualidade-comum) e a pluralidade – também despontam como elementos que se doam ao espírito. A própria intersubjetividade, na medida em que é relativa à pluralidade humana, só é possível, seguindo a reflexão arendtiana, por meio da compreensão da dupla intencionalidade, a proveniente da consciência e a das aparências; mais ainda, ambas as intencionalidades pressupõem a pluralidade humana. Cai, assim, a falácia metafísica solipsista de doação de sentido à realidade. No mesmo movimento, o mundo das aparências, após ser relegado por parte da tradição filosófica à mera sombra, é reconduzido por Arendt à sua dignidade.

 

Hannah Arendt and the intentionality of the appearences

 

At this text, I make an effort to research the concept of intentionality present in Hannah Arendt’s thought. Formulated by Brentano, but with a larger reach with Husserlian phenomenology, the intentionality designates that the consciousness always move itself towards an object, in this case, for Husserl, this is a transcendental ego’s attribute. Arendt, in her posthumous work, displaces the concept: intentionality becomes not only something attached to the subject, but, also, it is linked to the appearances. In this way, just as the subject postulates the object targeted by consciousness, so the phenomenon presupposes some built-in subjectivity, i.e., the appearances donates intentionally themselves to those who perceive their appearances. This relational intentionality, however, only makes sense, in Arendt’s thought, if we highlight human plurality of a group of beings capable of apprehending appearances from a kind of experience that is only possible through plurality itself. Thus, the German-Jewish thinker rejects the isolated subject as a criterion of truth and meaning, providing an interpretation about the relation between men and world as a perspective through which we can reach an intersubjective understanding of reality.

 

Keywords: Phenomenology. Intentionality. Appearance. Plurality. Experience.

 

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Compreender: Formação, exílio e totalitarismo. Trad. Br. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Br.: Roberto Raposo, revisão técnica: Adriano Correia. 11ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.

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Recebido: 03/3/2020

Aceito: 12/5/2020

 



[1] Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1892-9171. E-mail: lucas.noglbd@gmail.com.

[2] Desmantelar se refere à atividade de analisar criticamente os critérios e métodos tradicionalmente utilizados pelo pensamento filosófico ocidental, tendo como resultado uma desconstrução do modelo-padrão.

[3] Arendt, seguindo uma interpretação própria de Kant, relaciona a verdade à cognição, ao intelecto (tradução de Verstehen, no lugar de entendimento) e que está em contato mais próximo com os sentidos; por sua vez, o sentido é resultado da atividade de compreensão empreendida pela razão (Verstand), a qual é executada tanto pela faculdade do pensamento quanto do juízo, não presos tão somente a aspectos veritativos.

[4] Em A condição humana, Arendt opera uma diferenciação entre mundo e Terra. Não obstante isto, verifica-se, em A vida do espírito, uma utilização que não se preocupa com os limites entre os conceitos, de maneira que a autora usa indiscriminadamente ambos.

[5] Arendt emprega o termo commonness, traduzido na edição brasileira por comunhão, de modo que threefold commonness se torna-se tríplice comunhão. A edição espanhola faz uso do termo afinidad (ARENDT, 1984, p. 67), a italiana decide por comunanza (ARENDT, 1987, p. 134) e a francesa por évidence (ARENDT, 2018b, p. 77). Embora não esteja de todo errada, julgo que a escolha por comunhão não deixa entrever o sentido que Arendt lhe atribui (o qual é, por sua vez, demarcar uma qualidade que há de ser comum a determinados elementos) e infelizmente as demais opções nas outras línguas não nos auxiliam muito, com exceção da italiana, que se aproximaria de algo como comunalidade em português, termo, todavia, já utilizado para traduzir communality. Na falta de uma tradução mais adequada e que não recaia nos mesmos problemas das adotadas, assim como para não recorrer aqui a neologismos, recorro à forma composta qualidade-comum, para traduzir commonness.