SOBRE A IMAGEM ROUSSEAUNIANA DA LEI ACIMA DOS HOMENS

Thomaz KAWAUCHE[1]

RESUMO: Entre o verbete sobre economia política, de 1755, e o Contrato social, de 1762, a noção rousseauniana de lei passa de “voz celeste” para “declaração da vontade geral”. Pretende-se defender aqui a proposição de que tal mudança na definição de lei de um escrito para o outro não implica contradição. Para tanto, será analisada a presença da imagem da “lei acima dos homens” em diversos textos do Cidadão de Genebra, sobretudo no capítulo “Do legislador” no livro II do Contrato, a fim de mostrar-se que ela corresponde a um mesmo princípio de oposição entre a liberdade, associada ao dever de obediência, e a escravidão, associada ao impulso das paixões, expressando-se de modos particulares nos diversos momentos da obra de Rousseau.

PALAVRAS-CHAVE: Rousseau; lei; liberdade; paixões; legislador.

Das supressões que Rousseau efetuou no Manuscrito de Genebra para que o texto assumisse sua forma definitiva na versão publicada em 1762, uma passagem do livro I, no capítulo intitulado “Necessidade das leis positivas”, chama nossa atenção. Trata-se do parágrafo sobre a lei, em que o Cidadão de Genebra refere-se a ela como “voz celeste”: ali, a lei é apresentada como a “mais sublime de todas as instituições humanas”, dada aos homens “por uma inspiração celeste que ensinou o povo a imitar, aqui embaixo, os decretos imutáveis da divindade” (O.C. III, p. 310).[2] As ideias presentes nessa passagem também aparecem, quase com as mesmas palavras, no verbete “Economia política” (O.C. III, p. 248), escrito por Rousseau para o quinto volume da Encyclopédie e publicado em novembro de 1755. Tanto nesse texto quanto no Manuscrito, o movimento que se verifica é o mesmo: após a descrição de uma série de dificuldades associadas ao estabelecimento do corpo político, a lei é apresentada como a única solução capaz de superá-las de maneira adequada. No verbete “Economia política” a pergunta pode ser assim enunciada: como reconhecer a vontade geral distinguindo-a das vontades particulares, e como garantir a autoridade do governo assegurando, ao mesmo tempo, a liberdade pública e o direito de propriedade? No Manuscrito de Genebra a questão é similar: trata-se de saber como manter a união social se a vontade geral não pode ser reconhecida pelo povo, essa “multidão cega” que sempre se deixa guiar pelos interesses particulares. Em ambos os casos, Rousseau refere-se à lei enquanto uma dádiva dos céus, ou seja, um verdadeiro milagre, sem o qual o corpo político não poderia existir. Acrescenta-se ainda que o vocabulário utilizado é carregado de sentido teológico, e, não por acaso, as façanhas da lei são chamadas “prodígios”.

Quanto aos motivos que levaram Rousseau a excluir esse trecho na versão final do Contrato e mudar a definição de lei para “ato” ou “declaração” da vontade geral (O.C. III, pp. 379 e 430), podemos recorrer ao livro de Albert Schinz, La pensée de Jean-Jacques Rousseau (1929, p. 353 e ss.), que é, até o momento, a referência para esse tipo de pesquisa, e isso a despeito do viés excessivamente pragmatista da leitura desse comentador. Schinz sugere a seguinte hipótese: que a repetição da passagem em questão indica que o verbete “Economia política” foi redigido no mesmo período em que Rousseau trabalhava nas Instituições políticas, correspondendo a um momento da vida de Jean-Jacques em que a lei era o Deus ex machina e o pacto social ainda não havia assumido a importância de fundamento da sociedade civil. De acordo com Schinz, foi somente na época da versão final do Contrato que a observação da lei passou a ser mais importante do que a sua excelência, donde segue a afirmação categórica do comentador: “Rousseau não teria escrito essa passagem depois de ter dado ao pacto social o papel de princípio da sociedade civil” (ibidem, p. 355).

Assim, entre o verbete “Economia política”, de 1755, e o Contrato social, de 1762, a noção de lei sofre uma espécie de perda de transcendência, passando a expressar com mais ênfase seu lugar no próprio corpo político enquanto órgão constitutivo (ou, no espírito da metáfora no capítulo sobre o legislador, enquanto peça da máquina). Sem entrarmos no mérito da natureza dessa transformação (que, do ponto de vista da história, bem poderia ser pensada como uma espécie de laicização do pensamento de Rousseau), o que pretendemos fazer a seguir consiste simplesmente em verificar se as definições de 1755 e de 1762 são de fato tão incompatíveis como parecem ser à primeira vista. Para tanto, consideraremos uma imagem que se apresenta não apenas nas duas versões do Contrato e no verbete da Enciclopédia, mas, de modo geral, em toda a obra de Rousseau, a saber, a imagem da lei acima dos homens, a fim de analisarmos, com base nela, a hipótese de que não há contradição implicada na passagem de um escrito ao outro.

Devemos notar, primeiramente, que a imagem da lei acima dos homens remonta às Leis de Platão. A definição de “lei” aparece no livro IV do filósofo grego, no momento em que um dos personagens, o Ateniense, discute uma situação de “luta pelo poder” na qual seria imprescindível que a lei estivesse acima dos interesses particulares para a manutenção da ordem, e até mesmo os chefes deveriam conduzir-se como “servos da lei”:

Uma cidade em que a lei seja submissa e sem força está à beira da ruína, mas onde ela reina sobre os chefes [despots tn archontn] e onde os chefes fazem-se servos da lei [douloi tou nomou], é a salvação que vejo chegar ali, juntamente com todos os bens que os deuses conferem às cidades. (Platão, 1951, 715d)[3]

A imagem da lei acima dos homens parece ser cara a Rousseau, uma vez que nas Cartas escritas da montanha, publicadas em 1764, ele a projeta para o Contrato em sua totalidade: “Lede-o senhor, este livro tão caluniado, mas tão necessário; encontrareis nele em todo lugar a lei posta acima dos homens [...].” (O.C. III, p. 811). E, de fato, se nos lembrarmos que no Contrato o pacto social não tem outro objetivo senão solucionar o problema da autoridade política ilegítima – isto é, enunciar as cláusulas de um acordo segundo o qual os homens obedeceriam não a outros homens, mas tãosomente à lei –, podemos dizer que a imagem da lei acima dos homens seria uma expressão da igualdade de direitos promovida pelo ato fundador da sociedade civil concebida por Rousseau: trata-se de encontrar a forma de associação em que “cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo” (O.C. III, p. 360), ou ainda, um acordo segundo o qual “cada um dando-se a todos não se dá a ninguém” (O.C. III, p. 361). Antes de tudo, o que Rousseau nos apresenta no Contrato é um Estado ideal com base no qual poderíamos julgar as sociedades historicamente instituídas; estas se diferenciariam do Estado modelo em função do grau de desigualdade de direitos nelas verificado.

É nesse sentido que podemos compreender a fala do rico no Discurso sobre a origem da desigualdade (de 1755): ao dizer “instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos sejam obrigados a conformar-se, que não abram exceção para ninguém [...]” (O.C. III, p. 177), esse orador astuto, na verdade, cria as leis para legitimar o direito de propriedade, garantindo assim não apenas a posse de seus bens, mas também a divisão entre ricos e pobres. E mesmo que, depois de instituídas as leis, todos se submetam a elas, trata-se de leis que não beneficiam os pobres (“deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico”, O.C. III, p. 178). Desse ponto em diante, Rousseau narra o quadro dos progressos da desigualdade desse estado em que o rico, de certa forma, se encontra acima da lei, e que chega a seu fim com o advento do despotismo. Não deixa de ser significativo para nossa análise que, no Contrato, Rousseau defina o déspota como “aquele que se põe acima das próprias leis” (O.C. III, p. 423), e que no Discurso, ele se refira ao despotismo como um monstro que se situa acima do estado de igualdade de direitos, acabando por “esmagar sob seus pés as leis e o povo”:

É do seio dessa desordem e dessas revoluções que o despotismo, elevando aos poucos sua horrenda cabeça e devorando tudo o que percebesse de bem e de sadio em todas as partes do Estado, conseguiria por fim esmagar sob seus pés as leis e o povo, e estabelecer-se sobre as ruínas da república. (O.C. III, pp. 190-1)

Esse mesmo espírito de crítica à desigualdade decorrente do abuso das leis, nós o encontramos também na Carta a d’Alembert (de 1758), em que o Cidadão de Genebra deixa clara sua preocupação quanto à “opulência” no caso particular de um regime republicano. Afinal, em um estado que, por definição, deveria ser de igualdade, o desejo de distinguir-se dos demais poderia levar alguns indivíduos a se porem “acima das leis”: “Em uma monarquia, jamais a opulência de um particular pode pô-lo acima do príncipe; mas, em uma república, ela pode facilmente pô-lo acima das leis” (O.C. V, p. 105). Devemos notar ainda que, nesse mesmo texto, Rousseau enumera os meios que o governo teria para agir sobre a opinião pública (única maneira de manter a igualdade de direitos diante da ineficácia dos éditos e dos decretos), e, entre outras recomendações, está a de que o soberano deveria “esforçar-se para pôr a corte de honra acima de si mesmo, submetendo-se a seus respeitáveis decretos” (O.C. V, p. 63). Ou seja, Rousseau afirma que o governante faria bem em pôr a lei (representada pelo tribunal no caso da Carta) acima de seus interesses particulares, os quais ele poderia querer defender enquanto indivíduo.

Como se sabe, no Contrato é a alienação total dos direitos de cada pactuante à comunidade toda que impede que alguns indivíduos adquiram, segundo suas vontades particulares, mais privilégios legais do que outros. Lembremos a seguinte afirmação de nosso autor: “Haverá sempre grande diferença entre subjugar uma multidão e reger uma sociedade. Sejam homens isolados, quantos possam ser submetidos sucessivamente a um só, e não verei nisso senão um senhor e escravos, de modo algum considerandoos um povo e seu chefe” (O.C. III, p. 359). A crítica a esse tipo de relação em que uma parte manda e a outra obedece mostra-se também no Discurso sobre a origem da desigualdade, quando nosso autor afirma na Dedicatória: “Teria, pois, desejado que ninguém no Estado pudesse considerar-se acima da lei, [...] pois, seja qual for a constituição de um Governo, se encontrarmos um único homem que não se submeta à lei, todos os outros estarão certamente à discrição dele [...]” (O.C. III, p. 112). Nesse sentido, a imagem da lei acima dos homens não apenas representaria a negação de um certo tipo de ordem social baseada em relações de dominação, como também expressaria, de maneira simbólica, a própria ideia rousseauniana de liberdade civil.

Voltemos às Cartas escritas da montanha: é ali que podemos apreciar com mais clareza essa relação entre a imagem da lei acima dos homens e a noção rousseauniana de liberdade. Vejamos, numa passagem da oitava carta (O.C. III, pp. 841-2), a definição que Rousseau apresenta: “A liberdade consiste menos em fazer sua vontade do que em não ser submetido à vontade de outrem; ela consiste ainda em não submeter a vontade de outro à nossa”. Para nosso autor, o que é incompatível com a liberdade não é a obediência em si, mas a obediência aos homens, visto que a ordem civil legítima deve ser estruturada com base no dever de obediência às leis, e não das relações entre senhores e escravos, como lemos nesse mesmo texto: “Um povo livre obedece, mas não serve. Tem chefes, e não senhores. Obedece às leis, mas só a elas, e é pela força das leis que não obedece aos homens”. E mais adiante: “Um povo é livre, qualquer que seja a forma de seu governo, quando naquele que o governa não vê o homem, mas o órgão da lei”. São as condições de conciliação entre autoridade política e liberdade humana que o Contrato procura determinar, e, tendo-se em vista esse objetivo, não nos parece absurdo afirmar que a imagem da lei acima dos homens representaria o esquema dessa ordem desejada por Rousseau, qual seja, um Estado em que todos os cidadãos, enquanto homens livres, se encontrassem igualmente abaixo das leis: “Não há, pois, liberdade sem leis, nem onde alguém esteja acima das leis: pois até mesmo no estado de natureza o homem só é livre de acordo com a lei natural que comanda a todos”.

Em carta ao Marquês de Mirabeau datada de 26 de julho de 1767, Rousseau utiliza novamente a imagem da lei acima dos homens, comparando-a aos problemas “da quadratura do círculo em geometria” e “das longitudes em astronomia” para expressar a dificuldade da obra da legislação: “Eis, em minhas velhas ideias, o grande problema em política, que comparo ao da quadratura do círculo em geometria, e ao das longitudes em astronomia: Encontrar uma forma de Governo que ponha a Lei acima do homem” (C.G. XVII, p. 157).[4] Mas nesse texto um novo elemento apresenta-se em nossa análise: as paixões. A carta ao Marquês de Mirabeau mostra que Rousseau considerava seriamente esse elemento no problema da obediência às leis, ao contrário do marquês, que defendia a “evidência” da necessidade do “despotismo legal”. Eis as palavras do Cidadão de Genebra: “Como os filósofos que conhecem o coração humano podem dar a essa evidência tanta autoridade sobre as ações dos homens? Isso, como se ignorassem que cada um age muito raramente por suas luzes, e muito frequentemente por suas paixões” (C.G. XVII, p. 156).

Podemos agora notar com mais clareza que a ideia de liberdade definese, para Rousseau, em termos de um jogo de oposições entre, de um lado, o dever de obediência às leis, e de outro, o impulso das paixões, estando a condição de homem livre associada às leis e a condição de escravo associada às paixões. Encontramos esse esquema no capítulo 8 do livro I do Contrato, em que o Cidadão de Genebra discorre sobre a passagem da liberdade natural para a liberdade civil: “porque o impulso do puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se estatuiu a si mesma é liberdade” (O.C. III, p. 365). Esse mesmo esquema também aparece no final do livro IV do Emílio, num momento em que Rousseau refere-se à liberdade com base no princípio segundo o qual as leis não podem estar submetidas ao interesse particular e às paixões humanas:

[...] Antes de tuas viagens, eu já sabia qual seria o efeito delas; sabia que, ao considerar de perto nossas instituições, estarias longe de dar-lhes a confiança que não merecem. É em vão que aspiramos à liberdade sob a salvaguarda das leis. Leis! Onde elas existem e onde são respeitadas? Em toda parte só viste reinar sob esse nome o interesse particular e as paixões dos homens. Mas as leis eternas da natureza e da ordem existem. Para o sábio, são como uma lei positiva; são escritas no fundo de seu coração pela consciência e pela razão; é a elas que deve sujeitar-se para ser livre, e só é escravo quem age mal, pois fá-lo sempre contra a vontade. A liberdade não está em nenhuma forma de governo, ela está no coração do homem livre; ele a carrega consigo por toda parte. (O.C. IV, p. 857)

É, pois, com base nesse esquema de oposições liberdade-lei versus escravidão-paixões que podemos apreciar o parágrafo das Considerações sobre o governo da Polônia, texto publicado em 1772 no qual Rousseau também se refere à imagem da lei acima dos homens:

Que seja fácil, se quiserem, fazer melhores leis. É impossível fazê-las tais que delas não abusem as paixões dos homens, como abusaram das primeiras. Prever e pesar todos esses abusos por vir é talvez uma coisa impossível para o homem de Estado mais consumado. Pôr a lei acima do homem é um problema em política que comparo ao da quadratura do círculo em geometria. Resolvei bem esse problema, e o governo fundado sobre essa solução será bom e sem abuso. Mas até lá estejam certos de que onde acreditarem fazer reinar as leis serão os homens que reinarão. (O.C. III, p. 955)

Notemos a recorrência da ideia de “abuso”: as paixões dos homens abusam das leis, e isso caracteriza um mau governo. A pergunta que poderia surgir com base nesse diagnóstico seria então: como fazer melhores leis? Ora, o que Rousseau explica nessa passagem é que não adianta fazer melhores leis se não houver um controle das paixões. E, de acordo com tudo o que vimos aqui, a única maneira de controlar as paixões é pondo a lei acima de todas elas, acima de todos os homens, igualmente, e daí a repetição da ideia exposta ao Marquês de Mirabeau: “Encontrar uma forma de Governo que coloque a Lei acima do homem”. Evidentemente, Rousseau não deixa de reconhecer a dificuldade de tal empreendimento: donde se justifica a comparação com o problema da quadratura do círculo (isto é, trata-se de uma questão humanamente irrespondível), o que nos remete de volta à ideia de que a lei é um milagre a ser recebido do alto e de que o controle das paixões humanas é, em última instância, prodígio dos deuses.

Vimos até aqui a descrição de um esquema envolvendo as noções de lei e liberdade com base no qual Rousseau apresenta sua solução para o problema do estabelecimento da ordem civil. Vimos ainda que, de modo geral, esse esquema encontra-se presente em escritos que vão de 1755 a 1772, correspondendo ao período em que Rousseau produziu suas obras mais importantes. Vejamos agora como Rousseau chega a esse esquema. Para tanto, analisaremos os desdobramentos de seu raciocínio sobre os princípios do direito político, focalizando particularmente o capítulo 7 do livro II do Contrato, no qual tomaremos como referência a importante figura do legislador.

O capítulo “Do legislador” apresenta-nos uma figura extraordinária, cuja obra consiste em dar leis aos homens, o que nos remete ao “homem régio”, mencionado no Político de Platão (1935, 274e).[5] Na démarche do Contrato, nosso autor situa o legislador no ponto em que o julgamento que orienta a vontade geral recebe “luzes públicas” a fim de conhecer, de modo determinado, o bem que procura, mas não discerne, donde se justifica a imagem do legislador como “guia” de uma “multidão cega” (O.C. III, p. 380). Basicamente, o problema tratado nesse capítulo do Contrato equivale a explicar como dar leis aos homens, levando-se em conta que tal feito só caberia aos deuses, haja vista a impossibilidade prática de fazer o povo nascente compreender a necessidade de um sistema de legislação e, ao mesmo tempo, o grande risco de que o legislador, ao redigir as leis, ceda à tentação de tornar-se um tirano.

Muito já foi escrito acerca do legislador de Rousseau, de modo que julgamos ser desnecessário entrar nos detalhes da interpretação desse capítulo.[6] Por isso mesmo, deixaremos de lado em nossa análise os atributos sobrenaturais dessa figura mitológica (que poderiam levar-nos a considerá-lo uma espécie de divindade, ou, pelo menos, um intermediário entre Deus e os homens) a fim de procedermos simplesmente a uma análise da lógica interna desse texto, tendo-se sempre em vista a imagem da lei acima dos homens como pano de fundo.

Após a formulação teórica do problema do legislador, que leva Rousseau a uma conclusão aporética – “Seriam precisos deuses para dar leis aos homens” (O.C. III, p. 381) –, seguem duas considerações de método: (1) pelo “raciocínio de Calígula”, deve-se distinguir entre uma instância superior (associada aos deuses ou aos reis) e uma instância inferior (associada aos povos ou aos animais);[7] (2) pela metáfora da “máquina”, deve-se distinguir “um grande Legislador” de “um grande príncipe”, ou, ainda, o “mecânico que inventa a máquina” do “trabalhador que a monta e a faz movimentarse”. A partir desse momento até o final do capítulo, Rousseau simplesmente opera essas duas distinções, seja fazendo a oposição entre uma instância superior e outra inferior (notadamente na oposição entre o todo e a parte), seja comparando as descrições teóricas das qualidades necessárias a um legislador ideal com referências históricas de obras de legislação realizadas por grandes homens do passado. Perceba-se nesse procedimento a oposição entre o ideal (a teoria) e o concreto (a prática), que, do ponto de vista metodológico, define a própria estrutura do Contrato (cf. Goldschmidt, 1984).

Quando Rousseau refere-se ao legislador como um “homem extraordinário no Estado” (O.C. III, p. 382), ele estabelece uma oposição entre o humano e o sobre-humano: o ofício desse ser, dotado de “inteligência superior” (O.C. III, p. 381), não se confunde com os negócios dos homens: “não é magistratura, nem é soberania” (O.C. III, p. 382). De fato, a função do legislador é completamente estranha ao corpo político: “Tal ofício, que constitui a república, não pertence à sua constituição, por ser uma função particular e superior que nada tem de comum com o império humano” (O.C. III, p. 382). Ao mesmo tempo, esse “homem extraordinário” diferencia-se dos homens comuns por não participar de nenhuma das paixões humanas: lembremos que um dos requisitos do legislador é que ele “visse todas as paixões dos homens e não participasse de nenhuma delas” (O.C. III, p. 381). Não por acaso, o que está em jogo na oposição entre a “razão sublime” e os “homens vulgares” (O.C. III, pp. 383-4) é precisamente a influência das paixões sobre a atividade de redação das leis, donde se segue o princípio de separação entre o poder legislativo e o poder executivo: “Aquele, pois, que redige as leis, não tem nem deve ter nenhum direito legislativo” (O.C. III, p. 383). Pois, se o legislador também governasse os homens, “suas leis, instrumentos de suas paixões, frequentemente não fariam mais do que perpetuar suas injustiças e jamais ele poderia evitar que pontos de vista particulares alterassem a santidade [sainteté] de sua obra” (O.C. III, p. 382). A “santidade” da obra do legislador consiste justamente no fato de ele ser um outro absoluto em relação ao corpo político, não cedendo à tentação de tornar-se um tirano, mesmo sendo uma autoridade capaz de mudar a natureza humana, coisa que em termos práticos constituiria um verdadeiro “milagre”.

Percebe-se então que a tarefa do legislador também tem algo de prodigioso, o que reflete a ideia, presente já na primeira versão do Contrato, de que a lei é uma espécie de milagre na instituição do corpo político. Por meio dessa leitura, a oposição que fica evidente é aquela que se estabelece entre o divino e o humano, a qual não deixa de ser uma derivação da oposição original superior/inferior que encontramos na imagem da lei acima dos homens. Com isso, Rousseau estabelece, na própria concepção do legislador, uma clara separação entre a esfera das leis (situadas numa instância superior, dos deuses) e a dos homens (que vivem no reino inferior das paixões). E é precisamente com base nesse esquema constituído pelos termos leis divinas e paixões humanas que podemos compreender o problema que Rousseau formula acerca da comunicação entre o legislador e o povo, tendo-se em vista a distância intransponível que se verifica entre a linguagem do legislador e a linguagem do vulgo: “há inúmeras espécies de ideias impossíveis de traduzir-se na língua do povo” (O.C. III, p. 383). A separação que se estabelece entre as duas partes é considerada por Rousseau insuperável na prática, impossibilitando assim que os homens reconheçam a necessidade das leis:

A fim de que um povo nascente possa compreender as sãs máximas da política, e seguir as regras fundamentais da razão de Estado, seria necessário que o efeito pudesse tornar-se causa, que o espírito social – que deve ser a obra da instituição – presidisse à própria instituição, e que os homens fossem antes das leis o que deveriam tornar-se depois delas. (O.C. III, p. 383)

E desse abismo comunicativo, que separa a “razão sublime” do legislador e o entendimento limitado da “multidão cega”, decorre o paradoxo que mais nos interessa na obra desse “homem extraordinário”, o qual se encontra enunciado no seguinte princípio: “O povo, submetido às leis, deve ser o seu autor” (O.C. III, p. 380). Cabe ao legislador realizar esse prodígio de sondar os corações dos homens e conhecê-los a ponto de poder redigir leis que estejam de acordo com as particularidades do povo em questão, de tal maneira que se possa dizer que, em última instância, o autor das leis é o povo. O legislador precisa ainda fazer com que a lei expresse de fato a vontade geral a fim de garantir que o bem sobre o qual se legisla é comum (e não particular), promovendo assim as condições para que todos possam submeter-se à lei e beneficiar-se igualmente dela.

Antes de tudo, trata-se de uma espécie de enigma, cuja solução é dada pelo recurso aos deuses por parte do legislador. O procedimento consiste em deslocar a lei, que originalmente se encontra na instância superior das “sãs máximas da política”, para uma “de outra ordem” (mas igualmente superior): “Desse modo, pois, o Legislador, não podendo empregar nem a força nem o raciocínio, recorre necessariamente a uma autoridade de outra ordem, que possa conduzir sem violência e persuadir sem convencer” (O.C. III, p. 383). É, portanto, a linguagem da religião que cumpre o papel de mediadora no estabelecimento do corpo político. É por isso que, nas Cartas escritas da montanha, Rousseau afirma que a religião “é útil e até mesmo necessária aos povos” (O.C. III, p. 695). Ou seja, a missão do legislador é fazer com o que os homens obedeçam às leis civis comunicando-as como se estas fossem leis divinas:

Eis o que, em todos os tempos, forçou os pais das nações a recorrerem à intervenção do céu e a honrar nos deuses sua própria sabedoria, a fim de que os povos, submetidos às leis do Estado como às da natureza e reconhecendo os mesmos poderes na formação do homem e na da Cidade, obedecessem com liberdade e se curvassem docilmente ao jugo da felicidade pública. (O.C. III, p. 383)

Trata-se de um princípio que Maquiavel já havia enunciado nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, cujo original Rousseau cita em uma nota no Contrato.[8] Devemos observar, contudo, que essa associação entre a obediência às leis e a obediência aos deuses é bem mais antiga: ela aparece nas Leis de Platão,[9] sendo retomada também por Cícero no De Legibus,[10] entre outros. A versão de Rousseau tem como novidade apenas o fato de ressaltar a associação entre lei e liberdade, atrelando ambos os termos a uma instância superior relativamente ao reino das paixões: o plano da vontade geral. De fato, é patente no Contrato a ideia de que a vontade geral situa-se acima dos decretos humanos, seja porque o objeto sobre o qual ela estatui é geral (ao contrário dos objetos dos decretos, que são particulares), seja devido à sua natureza misteriosa e oracular – ela é sempre certa, mas só o legislador pode apreendê-la –, que conferem a ela um certo ar de verdade divina a ser revelada aos homens. De qualquer maneira, importa-nos observar aqui apenas que, para Rousseau, o homem em sociedade só é livre na medida em que se conforma à vontade geral como se esta fosse uma vontade divina. Assim, a liberdade no estado civil define-se como submissão à lei enquanto expressão do caráter sagrado da vontade geral (retomaremos a ideia de sacralidade da lei mais adiante – por enquanto, fiquemos apenas com os aspectos divinos da obra do legislador).

É porque a sabedoria do legislador se confunde com a sabedoria dos deuses que Rousseau qualifica essa figura como “razão sublime”. Notemos o adjetivo: “sublime”. Seu uso nos escritos de nosso autor está explicitamente associado a uma dimensão sobre-humana: a lei é a “mais sublime de todas as instituições humanas”, porque foi dada “por uma inspiração celeste”, ou seja, uma espécie de revelação. Da mesma forma, o Evangelho é admirado por Jean-Jacques precisamente pelo fato de ser “sublime”: “É possível que um livro ao mesmo tempo tão sublime e tão simples seja obra dos homens?” (O.C. IV, p. 625). Também o “livro da natureza”, que se opõe aos livros dos homens (os escritos de religião), recebe esse adjetivo justamente por ter Deus como seu autor: “É nesse grande e sublime livro que aprendo a servir e a adorar seu autor” (O.C. IV, p. 625). A associação entre o sublime e o divino aparece também nas Confissões, quando Rousseau refere-se às suas meditações na floresta no período em que escrevia o Discurso sobre a desigualdade: “Minha alma, exaltada por essas contemplações sublimes, elevava-se até a divindade” (O.C. I, p. 388). Nesse sentido, se Rousseau qualifica a razão do legislador com a palavra “sublime”, isso se deve ao fato de tratar-se de uma mente divina, superior à razão humana: “Essa razão sublime, que escapa ao alcance dos homens vulgares, é aquela cujas decisões o Legislador põe na boca dos imortais, para guiar pela autoridade divina os que a prudência humana não poderia abalar” (O.C. III, p. 384).[11]

Assim como os deuses, o legislador fala ao coração dos homens, e eis que deparamos com um outro tópos dos escritos rousseaunianos sobre religião. Façamos um breve parêntese e examinemos a ligação que nosso autor estabelece entre a palavra “coração” e a fala sagrada da divindade. Nas Confissões, ao descrever o período em que permaneceu em Bossey, Rousseau refere-se a uma espécie de comunicação entre o humano e o divino na metáfora dos “deuses que liam em nossos corações” (O.C. I, p. 21). Na Profissão de fé, as regras de conduta que Deus quer que o vigário saboiano cumpra na terra encontram-se escritas “no fundo do coração” (O.C. IV, p. 594), e a própria ideia de revelação implica verdades “que Deus diz ao coração do homem” (O.C. IV, p. 608). Daí podermos deduzir que, quando Rousseau afirma que a liberdade “está no coração do homem livre”, ele esteja mencionando indiretamente uma instância superior, na qual a lei poderia ser situada como algo divino acima dos homens. E é exatamente por isso que, no lugar da força, do raciocínio, da prudência ou da violência, o legislador passa a falar ao povo em uma linguagem que faz referência aos deuses – lembremos do Ensaio sobre a origem das línguas, quando Rousseau se pergunta: “Que discursos resta fazer ao povo reunido?” A resposta é: “Sermões” (O.C. V, p. 428). Nesse sentido, a figura do coração no Contrato estaria associada a um movimento de divinização do discurso do legislador, coisa que podemos verificar na comparação com as Considerações sobre o governo da Polônia: se, no capítulo “Divisão das leis” do Contrato, Rousseau fala de um tipo de lei que se grava “nos corações dos cidadãos”, associada aos “usos e costumes e, sobretudo, à opinião” (O.C. III, p. 394), é essa mesma figura que encontramos nas Considerações, quando o autor discorre sobre a necessidade de “comover os corações e fazer amar as pátrias e as leis” (O.C. III, p. 955), e em ambos os casos o legislador fala de coisas sagradas. Não por acaso, Jean-Jacques recomenda que a tradição dos poloneses seja cultivada relacionando-se o sagrado ao coração: “É preciso gravar esta grande época em caracteres sagrados em todos os corações poloneses” (O.C. III, p. 961). Divinização da pátria e das leis: este é o alvo a ser atingido por meio desse discurso dirigido ao coração.[12] Em uma palavra: seriam precisos deuses para dar leis aos homens, porque somente os deuses seriam capazes de falar ao coração dos homens.

Feitas essas considerações, parece-nos razoável afirmar que o recurso à religião no Contrato, longe de resultar em uma teocracia, não passa de uma forma de expressão do aspecto sobre-humano da obra do legislador, estando o “milagre” justamente no fato de esse “homem extraordinário” criar as leis sem tornar-se um tirano. Nesses termos, podemos pensar que a “autoridade divina” daquele que redige as leis seja apenas a tradução em termos teológicos (uma metáfora teológica, digamos assim) da “autoridade de outra ordem”, necessária à obra de legislação. Evidentemente, não podemos desprezar a dupla dificuldade implicada na obra do legislador, a qual seria mais do que suficiente para torná-lo mera ficção: de um lado, fazer com que os homens sejam autores de leis “divinas” e, de outro, ser uma autoridade que, mesmo tendo capacidade de mudar a natureza humana, não pode se tornar ele mesmo um governante. Polêmicas à parte quanto à possibilidade histórica de um legislador como o de Rousseau, o que queremos observar na figura desse ser fantástico é tão-somente a impossibilidade de que sua obra se realize por vias normais, e é novamente o paradoxo que se presta a expressar tal dificuldade: “Assim, na obra da legislação encontramos, ao mesmo tempo, dois elementos que parecem incompatíveis: uma empresa acima das forças humanas e, para executá-la, uma autoridade que nada é” (O.C. III, p. 383). Essa mesma constatação pode ser feita mediante a leitura do capítulo sobre a democracia no Contrato (livro III, cap. 4), em que notamos um movimento do texto similar àquele da definição da lei no Manuscrito de Genebra. Após uma longa descrição das dificuldades associadas à instituição do governo democrático, Rousseau conclui com uma frase que expressa a impossibilidade prática de tal empreendimento, remetendo seu leitor novamente a uma instância sobre-humana: “Se existisse um povo de deuses, governar-se-ia democraticamente. Governo tão perfeito não convém aos homens” (O.C. III, p. 406).

Cabe aqui observarmos que boa parte das dificuldades na leitura do capítulo sobre o legislador desapareceriam se passássemos a considerar a figura em questão do ponto de vista estritamente metodológico: sendo uma espécie de deus, o legislador seria uma referência ou um modelo para se definir seu oposto, isto é, o homem, e isso a despeito de todo o sentido teológico que o texto poderia assumir. É por isso que, para Jean-Pierre Siméon, a figura do legislador tem, no pensamento de Rousseau, a mesma função do homem em estado de natureza: “há ali um procedimento empregado para fazer ressaltar por contraste a situação essencial da política humana” (Siméon, 1977, p. 124).[13] É estabelecendo o contraponto com a esfera do divino que Rousseau delimita “a essência humana da política” (ibidem, p. 125). A transcendência divina não é, contudo, rejeitada (nem poderia ser), pois é exatamente ela que, na política, aponta para a necessidade de uma “normalidade superior”, ou seja, para a fundamentação do imanente com base em uma abertura necessária ao transcendente:

Isso não significa que Rousseau rejeite toda referência a uma transcendência divina. Mas esta entra em jogo em um outro nível: como abertura de uma normalidade superior, de uma dimensão diferente. O esforço de Rousseau será de mostrar que a afirmação dessa transcendência não somente não é contraditória com a afirmação da autonomia do povo dando-se a si mesmo suas próprias leis, mas, ao contrário, funda-a. É assim, por exemplo, que a relação do homem a Deus – o homem imagem de Deus – coincide e confirma (mas em uma ordem inteiramente diferente) a caracterização do homem livre e mestre de si mesmo e, portanto, igual a qualquer outro homem. (ibidem, p. 126)

Pautados pelos textos examinados, podemos perceber um certo modo pelo qual Rousseau estabelece seu esquema relacionando a lei e os homens: mediante uma contraposição ou uma tensão entre o divino e o humano, ou, ainda, entre uma instância superior e outra inferior. Isso posto, retornemos mais uma vez à imagem da lei acima dos homens e tentemos visualizá-la com base nesse esquema de oposições superior-divino versus inferior-humano, inspirado por nossa leitura do capítulo sobre o legislador.

Estar acima dos homens significa encontrar-se de alguma maneira em posição superior a eles: e aqui estamos pensando literalmente em termos espaciais. Se notarmos que a lei é “voz celeste” e que os homens instituem uma imitação (um simulacro) dela “aqui embaixo [ici-bas]”, parece-nos conveniente examinar a imagem da lei acima dos homens também do ponto de vista da oposição teológica constituída pelo par céu/terra. Sendo “voz celeste”, a lei, enquanto expressão dos “decretos imutáveis da divindade”, encontrar-se-ia em uma instância superior relativamente a seus simulacros terrenos: os decretos dos homens; estes expressariam não a vontade geral (situada no “céu”), mas os interesses particulares (situados na “terra”). Retomemos, apenas de passagem, o capítulo “Das leis”, no qual Rousseau explica que sem lei não pode haver justiça: ali não nos espanta que, pelo fato de a justiça ser divina por natureza (pois “Toda a justiça vem de Deus, que é sua única fonte”), devamos “recebê-la de tão alto” (O.C. III, p. 378). Sem entrarmos nos detalhes da análise desse texto de Rousseau,[14] limitamo-nos a extrair dele apenas a constatação de que a instituição da lei consiste na imitação, aqui embaixo, de um modelo divino apreendido pela observação da natureza, ainda que a imitação seja imperfeita ou ainda que o modelo seja apenas “simulacro de simulacro”, pois, como argumenta Patrick Hochart no artigo “Droit naturel et simulacre” (1967), o que importa é a “eficácia operatória” dos conceitos, e não os conceitos considerados em si mesmos. O céu seria, nesse sentido, uma metáfora para referir-se não apenas a uma condição acima das paixões humanas, mas para falar das próprias paixões.

Deixemos de lado então qualquer pretensão a um exame da natureza do céu de Rousseau, e concentremo-nos tão-somente na oposição estabelecida entre os termos céu/terra. Um exemplo bastante pictórico (e belíssimo, digase de passagem) encontra-se na Nova Heloísa, num trecho (parte I, carta 23) em que Saint-Preux descreve as maravilhas da vida na montanha fazendo uso desse esquema, que valoriza o superior em detrimento do inferior:

[...] As meditações tomam não sei que caráter grande e sublime, proporcional aos objetos que nos impressionam, não sei que volúpia tranquila que nada tem de acre e de sensual. Parece que, elevando-nos acima da morada dos homens, lá deixamos todos os sentimentos baixos e terrestres e que, à medida que nos aproximamos das regiões etéreas, a alma adquire alguma coisa de sua inalterável pureza. (O.C. II, p. 78)

A imagem da montanha como lugar para elevar-se o coração às regiões celestiais (que evidentemente nos remete ao sermão que Jesus proferiu do alto de um monte, cf. Evang. de Mateus, cap. V) aparece, também, no livro VI das Confissões:

Eu me levantava todas as manhãs antes de o sol nascer; subia [je montais] por um pomar vizinho em um caminho extremamente bonito que ficava acima [au-dessus] da vinha, e seguia a encosta até Chambéry. Ali, enquanto caminhava, eu fazia minha prece, que não consistia num vão balbuciado, mas em uma sincera elevação do coração ao autor dessa amável natureza cujas belezas estavam sob meus olhos. Nunca gostei de orar no quarto; parece-me que os muros e todas essas pequenas obras dos homens se interpõem entre Deus e mim. (O.C. I, p. 236)

Notemos que a oposição entre a obra de Deus (a bela paisagem natural) e a obra dos homens (os muros do quarto) está associada a uma outra oposição, que é a que nos interessa aqui: entre um lugar alto (“je montais...”, “au-dessus...”) e um lugar baixo. O olhar de Jean-Jacques é posicionado em um patamar elevado para simular o olhar superior de Deus: as belezas da natureza estavam “sous mes yeux”, isto é, numa instância inferior. Se nos lembrarmos ainda que o discurso do vigário saboiano não deixa de ser um discurso normativo, adquirindo força de lei do ponto de vista ético no interior da obra rousseauniana, não nos surpreenderemos ao notar que o bom padre profere suas palavras “do alto de uma colina elevada”, de onde ele e seu discípulo podiam contemplar a natureza com o olhar do alto: “Ele [o vigário] me levou para fora da cidade, para o alto de uma colina elevada, sob a qual passava o Pó, cujo curso via-se através das férteis margens que ele banha; ao longe, a imensa cadeia dos Alpes coroava a paisagem”, que constituía “o mais belo quadro que o olho humano possa contemplar” (O.C. IV, p. 565).

Outro exemplo de um posicionamento ao alto encontra-se nos Diálogos, em uma fala de Rousseau no segundo diálogo, na qual ele apresenta a imagem do indivíduo que desafia as adversidades terrenas elevando-se pela imaginação até as “regiões etéreas” (o mesmo termo utilizado na Nova Heloísa), em que se sustentaria por “sublimes contemplações”:

Mas aquele que, ultrapassando a estreita prisão do interesse pessoal e das pequenas paixões terrenas, se eleva pelas asas da imaginação acima dos vapores de nossa atmosfera, aquele que, sem esgotar sua força e suas faculdades de lutar contra a fortuna e a sorte, sabe lançar-se nas regiões etéreas, planando e sustentando-se por sublimes contemplações, pode dali afrontar os golpes do destino e os julgamentos insensatos dos homens. (O.C. I, p. 815)

Novamente, as paixões encontram-se ao rés-do-chão, e não por acaso: pois é precisamente ali que elas devem ser localizadas para servirem de referência a Rousseau, que então pode trabalhar com as ideias de “celeste” e “sublime” no plano oposto. É a mesma imagem e o mesmo procedimento que identificamos na quinta caminhada dos Devaneios do caminhante solitário: “Livre de todas as paixões terrenas produzidas pelo tumulto da vida social, minha alma se lançaria frequentemente acima dessa atmosfera e entraria desde já em relação com as inteligências celestes, cujo número ela espera ir aumentar em breve” (O.C. I, pp. 1048-9). E, se notarmos que os atributos “celeste” e “sublime” são ambos associados também à lei, poderemos então afirmar que a comunicação das verdades dessas “inteligências celestes” aos homens se dá em termos de uma perda de sublimidade, ou ainda, por meio de uma passagem do superior ao inferior, isto é, uma queda. Mas devemos sempre notar que esse movimento só se torna possível porque Rousseau consegue fixar bem os termos “céu” e “terra”. Com isso, podemos apreciar melhor a frase que abre o Emílio: “Tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem” (O.C. IV, p. 245). É bem esse movimento de decadência que vemos descrito na segunda parte da Profissão de fé, quando o vigário lança a hipótese de que a revelação decorreria de uma espécie de rebaixamento das verdades sublimes da divindade: “Suponhamos que a majestade divina digne-se a rebaixar-se [s’abbaisser] o bastante para tornar um homem o porta-voz de suas vontades sagradas [...]” (O.C. IV, pp. 611-2). Ainda na Profissão de fé, quando o vigário faz sua exaltação à consciência, vemos que é esse esforço de fixar a instância superior que confere eficácia à comparação do homem com os animais: a consciência é “instinto divino, imortal e celeste voz”, e só por causa desses adjetivos, os quais apontam para o próprio Deus, que o bom padre pode julgar-se superior às bestas: “sem ti [consciência] nada sinto em mim que me eleve acima dos animais” (O.C. IV, pp. 600-1).

Se a razão do legislador é, pois, “sublime”, isso indica a necessidade de um rebaixamento até o domínio dos homens para que as “sãs máximas da política” possam ser compreendidas na “língua do povo”. E como o povo as compreende? A resposta é imediata: como verdades sagradas. É porque a lei é sublime e celeste que ela também é santa ou sagrada. Daí podermos afirmar que quando Rousseau se refere à lei da natureza como “Lei santa” e “Lei sagrada” nas Considerações sobre o governo da Polônia (O.C. III, p. 973), podemos entender que se trata de uma lei divina e, portanto, absolutamente acima dos homens. Mas é preciso não esquecer que também no caso das leis civis nosso autor utiliza a palavra “santidade”: o quinto dogma da religião civil é o da “santidade do contrato social e das leis” (O.C. III, p. 468). Assim, tanto no caso das leis da natureza quanto no das leis dos homens, o que se verifica é um caráter sagrado ou santo pelo fato de elas emanarem de uma instância infinitamente superior, mencionada por Rousseau como “divina”, “celeste”, “sublime” etc. A própria maneira com que Rousseau define a vontade geral – enquanto algo acessível apenas à mente divina do legislador – nos induz à interpretação de que a lei que a expressa situa-se numa instância necessariamente superior àquela em que se encontram os homens com suas paixões: ainda que o povo seja autor das leis, nem por isso deixam de ser necessários deuses para que elas sejam instituídas. É como afirma Rousseau em um fragmento político sobre as leis:

O que torna as leis tão sagradas, mesmo independentemente de sua autoridade, e tão preferíveis a simples atos da vontade? É, primeiramente, o fato de elas emanarem de uma vontade geral sempre reta a despeito dos particulares; é ainda, o fato de elas serem permanentes e sua duração anunciar a todos a sabedoria e a equidade que as ditaram. (O.C. III, p. 492)[15]

Percebe-se então que a palavra “santidade”, referindo-se tanto à obra do legislador quanto ao contrato e às leis, não pode ser dissociada das ideias de sublimidade, superioridade e também, no caso do texto que acabamos de citar, de eternidade (pois, como afirma Rousseau na Dedicatória do Discurso sobre a origem da desigualdade, é a antiguidade das leis que as torna “santas e veneráveis”, O.C. III, p. 114). Enfim, todos esses conceitos expressam, de uma maneira ou de outra, a imagem da lei acima dos homens. Nesses termos, poderíamos afirmar a ligação necessária entre os atributos divinos do legislador – em especial, sua “razão sublime” e sua “inteligência superior” – e o quinto dogma da religião civil, da “santidade do contrato social e das leis”, uma vez que a “santidade” da alma do legislador expressase no caráter inviolável e eterno do referido dogma da religião civil. Ao utilizar a expressão “santidade [...] das leis”, Rousseau parece ter em vista a imagem de uma lei sublime ou superior, que não se tornasse nas mãos dos homens “instrumentos de suas paixões”, mesmo sabendo que os abusos das paixões são inevitáveis. Percebemos então que o uso desse vocabulário teológico para referir-se à instituição das leis indica não apenas a necessidade do recurso à religião para a fundação e a preservação do Estado, mas também o paradoxo implicado na própria instituição da lei, que só se torna possível por meio de um milagre. Parece-nos evidente, pois, que o aspecto “sublime” e “superior” dessa instância “de outra ordem” serve de referência para que simulacros do corpo político ideal concebido por Rousseau possam ser julgados na medida da escala das leis, nem sempre acima dos homens como deveriam estar.

Em suma, podemos concluir dizendo que a imagem da lei acima dos homens deve ser entendida não apenas como uma expressão simbólica do caráter inviolável do pacto civil e da declaração da vontade geral (em termos de retórica, diríamos tratar-se de um tópos dos escritos políticos de Rousseau), mas também como um reconhecimento de que o advento do corpo político na história só poderia se dar mediante o recurso a uma instância superior, que pudesse traduzir (ou revelar) a noção de lei aos homens: donde se justificaria tanto a identificação do legislador a um deus quanto a referência às obras da lei como “prodígios” (isto é, milagres). De qualquer maneira, importa-nos ressaltar que esse reconhecimento permanece constante ao longo dos textos aqui examinados, cada um dos quais correspondendo a momentos diferentes da vida e da produção intelectual de Jean-Jacques.

ABSTRACT: Between the article on political economy, of 1755, and the Social Contract, of 1762, Rousseau’s notion of law changes from “celestial voice” to “declaration of general will”. The purpose here is to defend that this change in law’s definition from one text to another does not implicate contradiction. In order to achieve it, the presence of “law above men” image will be analyzed in several texts of Geneva’s Citizen, especially in the chapter “The Legislator” (book II of the Social Contract). This aims at showing that such image, being expressed in particular ways along Rousseau’s work, corresponds to a same principle of opposition between liberty, related to obedience duty, and slavery, related to passions impulse.

KEYWORDS: Rousseau; law; liberty; passions; legislator.

Referências bibliográficas

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2) Traduções utilizadas para os textos de Rousseau

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Discurso sobre a origem e o fundamento da desigualdade entre os homens [1755]. In: Rousseau. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Abril, 1973 (Col. Os Pensadores).

Carta a D’Alembert [1758]. Trad. Roberto Leal Ferreira; apres. e intr. de Franklin de Mattos. Campinas: Ed. Unicamp, 1993.

Júlia ou A nova Heloísa [1761]. Trad. Fúlvia M.L. Moretto. São Paulo/Campinas:Hucitec/Ed. Unicamp, 1994.

Contrato social [1762]. In: Rousseau. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo:Abril, 1973 (Col. Os Pensadores).

Emílio ou Da educação [1762]. 2. ed. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Cartas escritas da montanha [1764]. Trad. Maria Constança Peres Pissarra e Maria das Graças de Souza. São Paulo: Ed. Unesp/Educ, 2006.

Considerações sobre o governo da Polônia e sua reforma projetada [1772]. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Brasiliense, 1982.

Ensaio sobre a origem das línguas [1781]. 2. ed. Trad. Fúlvia Maria Luiza Moretto. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.

Os devaneios do caminhante solitário [1782]. Trad. Fúlvia Maria Luiza Moretto. Brasília: Ed. UnB, 1986.

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[1] Doutorando em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Artigo recebido em 08/08 e aprovado em 11/08.

[2] Para as citações dos textos de Rousseau, utilizamos a edição das Œ uvres Complètes, publicada sob direção de B. Gagnebin e M. Raymond (Paris: Gallimard, 1959-1995, 5 volumes, Col. Bibliothèque de la Pléiade), que indicamos por “O.C.”, seguido do número do volume e da paginação do texto citado. Utilizamos também a Correspondance Générale de J.-J. Rousseau, editada por Th. Dufour (Paris: Armand Colin, 1924-1934, 20 volumes), que indicamos por “C.G.”, também seguido de volume e paginação.

[3] A relação que Platão procura estabelecer por meio dessa imagem é aquela entre senhor e escravo: a lei é despots sobre os chefes, isto é, uma espécie de chefe acima dos chefes humanos – o sentido é de “quem comanda” ou “quem é mestre”, tendo como traduções possíveis “chefe de família” ou “mestre da casa” (cf. Chantraine, 1968, p. 266). Inversamente, os chefes humanos devem pôr-se abaixo da lei, em posição de servos desse despots, ou, mais literalmente, escravos (douloi) da lei. Sobre a relação entre senhor e escravo na Grécia antiga são úteis as seguintes referências: Finley, 1989, e Vernant & Vidal-Naquet, 1989. Agradeço à pesquisadora Sheila Paulino e Silva, do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, a ajuda com a tradução dos termos gregos e pelas indicações bibliográficas.

[4] Tradução de Ricardo Monteagudo publicada nos Cadernos de Ética e Filosofia Política, nº 2, 2000. Quanto à quadratura do círculo, trata-se de um dos problemas clássicos da geometria grega, podendo ser enunciado da seguinte maneira: dado um círculo, construir um quadrado que tenha a mesma área utilizando apenas régua e compasso em um número finito de etapas. Na Encyclopédie o problema da quadratura do círculo já era considerado insolúvel (cf. verbete “Quadrature”), mas foi somente em 1882, ou seja, mais de cem anos depois da morte de Rousseau, que o matemático alemão Carl Louis Ferdinand von Lindemann provou que esse problema não tem solução (cf. Smith, 1958). Já no caso do problema das longitudes, trata-se de um antigo desafio para a náutica, consistindo em determinar a longitude exata da embarcação considerando-se a curvatura da superfície do oceano e a rotação da terra. A dificuldade encontra-se muito bem ilustrada no verbete “Navigation” da Encyclopédie: “O que mais falta para a perfeição da navegação é saber determinar a longitude. Os geômetras de todos os tempos aplicaram-se para resolver esse grande problema, mas até o presente seus esforços não tiveram muito sucesso, não obstante as magníficas recompensas prometidas por diversos príncipes e por diversos estados àquele que conseguisse resolvê-lo”. Com a invenção, no século XX, do radar e do sistema de posicionamento via satélite (conhecido como GPS), que permitiram uma localização suficientemente precisa das embarcações, o problema é considerado hoje resolvido. Uma aproximação bastante satisfatória havia sido descoberta, contudo, já no século XVIII, com o cronômetro, introduzido pelo inglês John Harrison (em 1735) e aperfeiçoado pelo francês Pierre Le Roy (em 1766), que tornou praticamente dispensável o método astronômico menos preciso das distâncias lunares (cf. Thomazi, 1947). Rousseau provavelmente desconhecia essas soluções aproximadas. De qualquer maneira, importa-nos apreciar essas comparações em termos da imagem que elas evocam. Tanto no problema da quadratura do círculo quando no das longitudes, Rousseau desejava expressar a mesma ideia: que a tarefa de pôr a lei acima dos homens implica dificuldades muito grandes, talvez até mesmo impossíveis segundo o conhecimento que se tinha naquele tempo.

[5] Platão também utiliza esse adjetivo para referir-se à realeza da tarefa do legislador (“função régia”, cf. Platão, 1935, 294a). É, portanto, significativo que as referências a esse diálogo de Platão no Contrato estejam relacionadas à ideia de rei: no livro II, cap. 7, Rousseau refere-se ao Político como “livre du regne” (O.C. III, p. 381); “Civili” (O.C. III, p. 412) é a outra designação utilizada, que aparece bem no livro III, cap. 6, “Da monarquia”; no Manuscrito de Genebra, Rousseau também se refere ao “Civilis”, porém, ali ele faz menção explícita ao “homme royal” na questão do rei (O.C. III, p. 300). O legislador de Rousseau assemelha-se ao “homem régio” de Platão pelo fato de ambos recusarem a ideia de uma legislação universal, preocupando-se, cada um a sua maneira, em redigir leis adequadas às particularidades de cada povo: “Estrangeiro: É que a lei jamais seria capaz de estabelecer, ao mesmo tempo, o que há de melhor e de mais justo para todos, de modo a editar as prescrições mais úteis. Pois a diversidade que há entre os homens e as ações, e o fato de que as coisas humanas, por assim dizer, jamais se encontram em repouso, torna inadmissível, em qualquer arte ou assunto, um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos. [...]” (Platão, 1935, 294a-b). A semelhança entre os legisladores de Platão e de Rousseau verifica-se ainda no fato de ambos legiferarem recorrendo também aos costumes locais (patria eth, cf. ibidem, 299d, 301a), dando a eles força de leis não-escritas.

[6] Indicamos aqui as seguintes obras: Monteagudo, 2006; Waterlot, 2004; Pezzilo, 2000; além do clássico comentário de Maurice Halbwachs, encontrado na edição crítica do Contrato (Du contrat social. Paris: Aubier, 1943). Também são importantes os artigos de Milton Meira do Nascimento, entre os quais se destaca “O legislador e o escritor político: duas formas de aproximação da opinião pública em Rousseau” (Nascimento, 1998).

[7] O raciocínio de Calígula encontra-se no livro I: “Assim como um pastor é de natureza superior à de seu rebanho, os pastores de homens, que são os chefes, também possuem natureza superior à de seus povos. Desse modo – segundo Filo – raciocinava o imperador Calígula, chegando, por essa analogia, à fácil conclusão de que os reis eram deuses, ou os povos, animais” (O.C. III, p. 353).

[8] “E quem considerar bem as histórias romanas, verá como a religião servia para comandar os exércitos e infundir ânimo na plebe, para manter os homens bons e fazer com que os reis se envergonhem. [...] E, de fato, nunca houve ordenador de leis extraordinárias, em povo nenhum, que não recorresse a Deus; porque de outra maneira elas não seriam aceitas: pois há muitas boas coisas que os homens prudentes conhecem, mas que não têm em si razões evidentes para poderem convencer os outros. Por isso, os homens sábios, que querem desembaraçar-se dessa dificuldade, recorrem a Deus. Foi o que fizeram Licurgo, Sólon e muitos outros que tinham as mesmas finalidades. [...] E, assim como a observância do culto divino é razão da grandeza das repúblicas, também seu desprezo é razão de sua ruína. Pois onde falta o temor a Deus, é preciso que o reino arruíne-se ou que seja mantido pelo temor a um príncipe que supra a falta de religião. E, como os príncipes têm vida curta, o reino só poderá desaparecer logo, ao desaparecer a virtù dele. [...]” (Maquiavel, 2007, I, 11, pp. 50-1).

[9] Nesse texto encontramos a afirmação de que é preciso servir “em primeiro lugar as leis, pois isso é o mesmo que servir os deuses” (Platão, 1951, 762e). Ver também o livro X, no qual o diálogo gira em torno da necessidade da crença nos deuses para a obediência efetiva às leis.

[10] “[...] a lei não é uma invenção do espírito humano nem um decreto dos povos, mas algo de eterno que governa o mundo todo, mostrando o que é sábio prescrever ou proibir. Essa lei, [...], do começo ao fim, é o espírito de Deus promulgando obrigações e vetos igualmente racionais. Por ser essa a sua origem, a lei que os deuses deram ao gênero humano é justamente celebrada, pois ela se confunde com a razão ou o espírito do sábio, que sabe o que é preciso ordenar e do que é preciso desviar os homens” (Cícero, 1954, p. 281).

[11] Sobre a superioridade da autoridade divina, há uma carta, escrita por Rousseau em 15/10/1758 e endereçada às “pessoas de lei”, na qual ele explica quais seriam as autoridades acima da autoridade do soberano: “Admito três delas somente. Primeiramente, a autoridade de Deus; depois a da lei natural, que deriva da constituição do homem; depois a da honra, mais forte sobre um coração honesto do que todos os reis da terra” (C.G. IV, p. 88).

[12] De acordo com Luiz Roberto Salinas Fortes, a proposta de Rousseau consiste em inculcar o amor à pátria no coração de cada cidadão “por meio de jogos e espetáculos cívicos e por meio da educação que fortaleça a busca do reconhecimento público”, tendo na base dessa ritualização “a ideia de uma ‘sacralização’ da ordem político-social” (cf. Fortes, 1997, pp. 126 e 137).

[13] Agradeço à pesquisadora Patrícia Fontoura Aranovich, do Dep. de Filosofia da FFLCH-USP, a tradução das citações desse comentador.

[14] Uma proposta de leitura do parágrafo sobre a justiça no capítulo “Das leis” encontra-se em minha dissertação de mestrado (Kawauche, 2007, cap. 3, seção “A questão da justiça”). O texto completo de minha dissertação encontra-se disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP (http://www.teses.usp.br).

[15] De acordo com o tomo 2 das Œuvres Complètes editadas por Michel Launay (Paris: Seuil, 1971), esse texto encontra-se no primeiro esboço do artigo “Economia política”, nos manuscritos da Bibliothèque de Neuchâtel (Ms. R. 16).