ENTREVISTA COMPAULO EDUARDO ARANTES

A revista Trans/Form/Ação publica neste número a entrevista com o filósofo Paulo Eduardo Arantes, professor aposentado do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Autor de obras exemplares da história da filosofia como “Hegel, a ordem do tempo” (1981) e “Ressentimento da dialética” (1996), o pensador marca uma inflexão no cenário intelectual brasileiro ao publicar “Um departamento francês de ultramar” (1994) e “O Fio da Meada” (1996), reflexões que entrecruzam filosofia e vida nacional. De lá para cá Paulo Arantes tem alargado e desmistificado o próprio conceito de filosofia, especialmente em seus últimos livros “Zero à esquerda” (2004) e “Extinção” (2007). Seja na forma como nos assuntos, a novidade é o lugar ocupado pela experiência deste intelectual, que sempre de dentro, isto é, do interior da prática social, insiste em falar do Brasil e dos rumos do capitalismo. Pensamento pregnante e crítico, que não cede diante do existente, especialmente ao constatar um recuo do pensamento diante dos avanços de uma filosofia profissional ou de uma cultura dos especialistas. Aqui, ao contrário, temos um diagnóstico de nossa época, com forte envergadura histórica, no qual convergem prisma teórico e político, e a constatação que vivemos hoje uma forma de “reconversão colonial” e um “excesso de capitalismo”.

A entrevista foi concedida a Luciano Pereira, sociólogo e doutorando em filosofia na FFLCH– USP, em São Paulo, em Julho de 2008.

Editorial

Luciano Pereira. – O capitalismo alcançou um nível de produtividade capaz de resolver os problemas materiais da população do planeta, porém, esse mesmo sistema decretou o fim do emprego e transformou uma massa de homens e mulheres em ‘excluídos’. Essa contradição é a matriz de nossa época?

PA – De fato, as bases técnicas para a superação da pré-história da humanidade estão finalmente dadas, e, no entanto, esse limiar emancipatório brilha sob a luz negra de um atoleiro sem fim, o vasto aterro sanitário de homens e mulheres a um tempo descartados e “recapturados” por motivo de irrelevância econômica. Esse buraco de agulha para elefantes é a contradição terminal do nosso tempo: o reino da liberdade está enfim à vista e todavia iremos todos morrer na praia da mais crassa necessidade material, como se ainda engatinhássemos nos tempos da pedra lascada. A contradição deste último capítulo que não acaba de acabar – a liberação possível do fardo da exploração como condição do progresso tornou-se a rigor uma verdadeira expulsão, por assim dizer, na boca do guichê –, foi no entanto identificada por Marx desde a origem: a compulsão do capital a eliminar do processo de valorização econômica a fonte mesma de todo o valor, o trabalho vivo. Por paradoxal que possa parecer, o capital foge do trabalho (como relembrou recentemente John Holloway), que por seu turno também fugiria do capital se tivesse para onde ir, o que não é mais o caso, por motivo de expropriação originária e continuada. Como o seu fim é ele mesmo, acrescido de um mais valor, a produção material lhe parece um desvio dispensável, um estorvo a ser eliminado. Sendo, no entanto, um mecanismo cego e inconsciente (estamos na pré-história) de sucção e rejeição simultâneas, precisa condicionar o acesso à riqueza criada à posse de um bilhete de ingresso cujo valor de face tende a zero, em virtude daquela mesma contradição em processo. Hoje essa fuga assimétrica está assumindo proporções destrutivas inéditas. A sociedade do trabalho se decompõe sob o comando do capital, quando poderia estar sendo superada com os meios que este mesmo capital agenciou ao longo de sua história cruenta.

LP – Concretamente, como se dá essa fuga?

PA – Em primeiro lugar, a dominância financeira no regime de acumulação, por meio da qual o capital tende a autonomizar-se em seu processo de valorização interminável, porém fictícia, pois de fato está escorada numa monstruosa redistribuição da renda, em favor de uma variada clientela entrincheirada num aparato de procedimentos garantido em última instância pelo emissor geopolítico do dinheiro mundial. Uma segunda dimensão desta mesma estratégia de fuga visando valorizar-se descartando o trabalho se encontra nos mecanismos renovados de Acumulação Primitiva, a apropriação direta por espoliação, como David Harvey denominou os novos surtos privatizantes amparados pela alienação financeira consentida do Estado. Terceira dimensão enfim deste processo de autonomização do capital em fuga da sua fonte de valorização – na qual aliás seria preciso incluir as deslocalizações selvagens e a fragmentação planetária das cadeias produtivas –, os mesmos “cercamentos” expropriadores agora no âmbito da assim chamada economia do conhecimento, conhecimento socialmente produzido porém encerrado na camisa de força da sua apropriação monopolista. Assim, ao fetiche da forma capital-portador-de-juros, que se comporta como uma força autônoma e devastadora de valorização, veio juntar-se uma outra configuração fetichista, no juízo de um estudioso desta grande miragem de nossa época, o economista Rodrigo Teixeira: já que existem fábricas sem trabalhadores ou mesmo empresas sem fábricas, torna-se ainda mais forte a cega convicção do nosso tempo segundo a qual só capital gera valor ou ainda de que o conhecimento-informação tornou-se enfim a fonte do valor, e isto num grau superlativo tal a ponto de mimetizar as velhas aspirações de superação imanente, já que o capitalismo ao fazer do conhecimento sua fonte de valorização e produção de riqueza, finalmente alcançou sua etapa superior – e com ela, não por acaso, arrematou seu giro imperialista. O argumento prossegue corrigindo o foco desta quase alucinação. Não é que a substância do valor tenha mudado, mas, tal como na Acumulação Primitiva, estamos diante de um tipo de apropriação que permite aos proprietários das mercadorias-conhecimento açambarcarem os sobre-lucros que suas mercadorias ajudam a gerar ao atuarem como capital-mercadoria. Nem por isto o autor deixa de reconhecer que estamos de fato diante da matriz histórica da contradição-limiar de nosso tempo: embora não tenha substituído o trabalho na produção do valor, como a produção de riqueza efetiva (valores de uso) depende cada vez menos do tempo de trabalho e cada vez mais do conhecimento como criação coletiva da sociedade, o aprisionamento deste último pelas relações capitalistas de produção expulsa parcelas crescentes dessa mesma sociedade dos circuitos civilizados de produção e consumo, no momento mesmo em que liberar a espécie humana da servidão do trabalho se tornou possível, como aliás anunciou Marx ao encarar a eventualidade lógica daquela “desproporção qualitativa” que subverteria a relação de valor como mediação social dominante.

LP – Quando o Estado de exceção passa a ser um modo predominante de governo?

PA – As denominações variam conforme as respectivas tradições jurídicas nacionais e a hora política: estado de sítio, exceção, urgência, emergência, lei marcial, etc. Para o diagnóstico de época que nos interessa, não é preciso recuar até a instituição romana da Ditadura – carta branca para um governante ad hoc salvar a República em perdição –, basta remontar à reinvenção liberal da Razão de Estado Absolutista, em nome da qual as novas soberanias que se constituíam na Europa estavam autorizadas a cometer todo o tipo de transgressão do direito, da moral, etc. Em meados do século 19, a violação da constituição tornara-se a razão de ser da própria constituição garantidora da ordem mercantil emergente, volta e meia ameaçada pela desordem sediciosa das novas classes perigosas porque laboriosas. Produção interrompida já era sinônimo de insurreição. Segundo o historiador do direito constitucional Gilberto Bercovici, quando a luta de classes finalmente arrancou do capital as constituições sociais de compromisso, deixava de ser uma evidência que a ordem constitucional era a melhor garantia do mercado, passando o estado de exceção a ser decretado quase que em permanência, culminando no abismo fascista: tratava-se agora da salvaguarda do próprio capitalismo. A derrota militar do fascismo não cancelou este estado de emergência, cuja trajetória ascendente passou por uma nova calibragem, como atesta o consenso subsequente em torno das políticas keynesianas de ajuste e contenção.

De resto, os poderes excepcionais acionados durante a longa guerra civil imperialista de 1914-1945 não foram a rigor desativados: é preciso não esquecer que a trégua social transcorria sob um guarda-chuva nuclear. Tampouco o fim da Guerra Fria desarmou aquela fusão emergencial entre afluência consumista e complexo industrial-militar. O que se viu foi o capitalismo enfim mundializado dar uma derradeira volta no parafuso do estado de urgência latente: segundo o alarmismo apologético corrente, vivemos desde então numa sociedade securitária de risco, cujo governo é a somatória de um sem número de estratégias preventivas, nos moldes do Direito Penal do Inimigo, pelo menos como ponto de fuga “normativo”. A mesma lógica parece reger algo como uma situação de perene emergência econômica, uma vez que não há mais a menor “segurança cognitiva” quanto à conduta anômica dos fluxos de capitais. Daí o novo tipo de salvaguarda jurídico: os dispositivos constitucionais se assemelham cada vez mais ao modelo europeu de uma convenção econômica cuja elaboração não emana de qualquer poder constituinte popular, tampouco requer a existência de um Estado, basta moeda e Banco Central, pois se trata apenas de assegurar a vida bruta do capital. Não é mais necessário que o Estado de Direito saia de cena, basta que no vasto espaço funcional em que se transformou o mundo do capital globalizado não seja mais possível distinguir o regime da lei e o regime da regra (para lembrar da distinção clássica de Foucault), porém de tal modo indistintos que o infrator potencial do segundo apenas confirme sua condição prévia de fora da lei, do direito ou do contrato. Ditaduras hoje são relíquias da violência liberal do tempo das chaminés.

LP – Seria o Estado de exceção permanente a forma política correspondente às novas formas de exploração econômica?

PA – A reinvenção liberal do estado de sítio como figura constitucional da irrupção do poder soberano de exceção é rigorosamente contemporânea do processo não menos coercitivo de conversão da força de trabalho em mercadoria. A Assembleia Constituinte da Segunda República Francesa votou os artigos que consagravam a nova exceção no exato momento em que Paris estava de fato sob estado de sítio por motivo de sublevação dos bairros operários em 1848. Contra o inimigo interno era preciso defender a sociedade, sancionando a violação da norma por ela mesma, judicializando a violência extra-legal do Estado: contra uma inteira classe social fora do direito, uma lei fora-da-lei. Assim, aquele entrecruzamento histórico pode muito bem sugerir algo como uma evolução paralela e congênita entre os ciclos políticos da exceção e suas metamorfoses jurídicas correlatas, de um lado, e a sequência das formas de subordinação do trabalho pelo capital, de outro. O marco zero seria, portanto, o estágio manufatureiro correspondente à subsunção formal da força de trabalho ainda não integralmente expropriada em seu saber-fazer. Cuja marcha recalcitrante rumo ao anulamento como apêndice do sistema de máquinas seria tangida a golpes de “exceção” disciplinadora, sem falar no acesso barrado de uma classe-mercadoria à esfera pública de direitos censitários. Do mesmo modo, o isomorfismo entre a fábrica e a prisão aparece configurado igualmente pelo vínculo da exceção penal e a proliferação dos ilegalismos proletários.

Como ficamos quando as constituições sociais mal ou bem facilitarão a simétrica fuga da força de trabalho encarcerada pela grande indústria fordista? Novamente os caminhos da exploração econômica – no caso, a subsunção material do trabalho ao capital – e do vácuo jurídico acionado em defesa agora de um capitalismo confrontado por direitos voltam a se cruzar numa simetria reveladora. Como observou o filósofo Malcolm Bull, greve e exceção também têm afinidades estruturais e não apenas históricas, pois quando operários param as máquinas estão denunciando um contrato para retomálo expandido noutro patamar. Assim, como no decorrer de uma violação de garantias constitucionais, estamos ao mesmo tempo dentro e fora da lei. A rigor estamos diante de duas emergências correndo pelo mesmo trilho porém em direções antagônicas. No limite desta desobediência civil original, se uma exceção ao trabalho se alastra a ponto de multiplicar exponencialmente o número de fora-da-lei, a própria lei da mercadoria arrisca desaparecer: e se é assim, devemos concluir que o estado de exceção é decretado menos para abrir um vazio na lei do que para fechar um espaço entreaberto por uma irrupção intempestiva, como uma greve selvagem, por exemplo.

LP – Se a correspondência entre estado de sítio e controle da força de trabalho já está presente desde o nascimento da modernidade, o que há de específico nessa relação, atualmente?

PA – Um dirigente sindical brasileiro compreendeu à perfeição como se dá o novo controle: “Antes o capital só queria mão-de-obra, hoje ele quer o cara inteiro”. Seria então o caso de dizer que se passa com a lei do valor o mesmo que se passa hoje com a Lei num regime de urgência permanente: assim como o ordenamento jurídico vigora porém suspenso num limbo jurídico de redifinições inconclusivas e ad hoc, a força de trabalho continua atrelada à produção de valor e mais-valia ainda que não se possa mais medir a integralidade do resultado produzido em tempo de trabalho socialmente necessário. Numa palavra, a lei do valor continua vigorando embora tenha perdido sua base objetiva, desajuste no qual se exprime por outro lado e não menos contraditoriamente algo como o fracasso da tentativa capitalista de eliminar o trabalho vivo do processo de produção. Por este novo trilho da subsunção total de uma força de trabalho qualitativamente insubsumível, “o cara inteiro”, a vida inteira transformada em trabalho, as reviravoltas entre a exceção e a norma não têm fim. Em suma, quando a cisão entre produção material e produção de valor se instaura de vez, sem no entanto abolir a relação de capital – o capital em fuga precisa perder o lastro do trabalho ao mesmo tempo em que rifa a sobrevida dos sujeitos monetários sem-trabalho –, pode se dizer que a subsunção assumiu a forma mesma da exceção. Creio ser este o horizonte político – pois no fundo esbarramos na matriz histórica da violência inaudita da dominação contemporânea – do argumento básico de Rodnei Nascimento ao estudar a gravitação conjunta das três formas de subsunção do trabalho ao capital: a seu ver, por esse caminho é possível mostrar que o potencial de crise inaudito que a incomensurabilidade das novas forças produtivas arrasta consigo exige uma nova forma de dominação em que a exploração econômica tornou-se diretamente política – a gaiola de ferro da exceção, enfim. O desajuste intrínseco da relação de valor converteu-a numa prisão: novamente a base material de todo o edifício securitário da sociedade de controle. Não se trata de simples metáfora: tal como o ordenamento constitucional sem poder constituinte e socialmente inefetivo para melhor blindar a norma capitalista, o direito penal do inimigo que rege o atual encarceramento em massa e por categorias sociais inteiras também visa salvaguardar preventivamente a norma jurídica no seu todo através da mera gestão do risco criminal. Mas atenção: a fuga dessa prisão ampliada não é insurgência nos moldes clássicos, mas o paroxismo da convulsão social por falta de ponto de fuga. Daí o céu de chumbo do estado de sítio que pesa sobre o planeta. Tanto é assim que vai na mesma direção, embora por um outro raciocínio crítico acerca da sustentabilidade real da dominância financeira hoje, as observações de Emmanuel Nakamura sobre a indistinção entre anomia e normalidade da relação salarial capitalista, que por isso mesmo perde seu caráter originário de convenção-lei.

LP – Se, historicamente, na periferia do capitalismo o Estado de direito não é a norma, o que muda aqui quando todo o mundo está sob o Estado de exceção?

PA – Se a esquerda intelectual brasileira pretende mesmo algum dia despertar do coma profundo em que se encontra, creio que a primeira providência seria repassar os grandes lugares comuns de nossa tradição crítica por um prisma teórico e político à altura da ruptura de época que estamos atravessando às cegas. A começar pelo espantoso sentido ultramoderno da colonização – de onde também acho que deriva a espécie de vertigem histórica que inspira sua pergunta, afinal o que haveria de novo nesse eterno retorno do mesmo, pois afinal o sentimento da hora, reforçado pela reprimarização da economia e a consolidação de uma inédita “ralé estrutural”, é de franca reconversão colonial.

Aqui uma primeira revisão. De tempos em tempos, algum sábio entra em campo para anunciar que a reviravolta salvadora de que o país carece mesmo é um choque cavalar de capitalismo. Síndrome análoga na esquerda progressista, que ato contínuo apresenta sua candidatura para fazer a mesma coisa. Ocorre que é bem possível que a verdade esteja na contramão desta fantasia punitiva. A desgraça nacional não decorre de uma carência originária mas de uma demasia monstruosa, a rigor padecemos desde sempre de um excesso de capitalismo, se é que se pode falar assim. Nascemos como um negócio. Mas é preciso acrescentar que este sentido original da colonização comporta duas dimensões essenciais. Enquanto a Europa ainda se enredava no cipoal de restrições e particularismos do Antigo Regime, despertávamos para o mundo quimicamente puro da forma-mercadoria, a um tempo periférica e hipermoderna. Fizemos a experiência extrema do que significa o vazio social no qual se reproduz um território comandado integralmente pela violência da abstração econômica. Resta agora qualificar a natureza desse vazio e o regime dessa violência. Se tudo o que disse até agora se sustenta, penso que se pode compreender o segundo sentido da colonização como um processo de espacialização do avesso por assim dizer selvagem da Soberania política que se consolidava politicamente na Europa, basicamente pelo disciplinamento da guerra entre os Estados territoriais em formação. A expansão europeia ultramarina é estruturalmente coextensiva dessa racionalização da luta pelo poder entre governantes de uma nova linhagem. Tudo se passou como se o novo mundo da Conquista fosse o receptáculo do “caos sistêmico” aos poucos banido do velho mundo. Uma externalização da anomia, em suma. Deu-se então neste laboratório pavoroso a revelação de que a lei da mercadoria em sua pureza como que exigia a cobertura de um estado de exceção permanente. Dito de outro modo: o colono é o primeiro agente mercantil na sua plenitude escandalosa exatamente por entrar em cena no espaço “livre” e juridicamente vazio de uma plantation. Na verdade, um espaço liberado e demarcado pela normalização da guerra intra-europeia e a correspondente ilimitação da mesma guerra no outro lado do mundo.

Assim, o acontecimento tremendo da Conquista não só revelava que a verdade do poder soberano é o monopólio do poder de decisão quanto à suspensão emergencial da normalidade jurídica, mas sobretudo que esta exceção soberana tende inexoravelmente a assumir a forma territorial de um domínio, bem determinado no espaço e no tempo, no qual todo o direito é suspenso. A exceção também pode ser assim enunciada historicamente, pelo desenho de nossa “anomalia” congênita: por excesso de capitalismo, nascemos a um só tempo dentro e fora da lei, e fora porque dentro. A alteridade radical da colônia era imanente à metrópole. Para se ter uma ideia da atualidade desta enormidade colonial, basta referir, ao lado do principal efeito deste ambiente total de negócios, a espantosa invenção da mercadoria-escravo, uma outra consequência aberrante – a rigor, como a supracitada anomalia, um desvio dentro da norma – desta mesma desmedida do exclusivo capitalista, uma tremenda desclassificação social: a massa numerosa dos despossuídos de toda sorte, vivendo ao deus-dará à margem dos grandes negócios ultramarinos, uma humanidade inviável pesando inutilmente sobre a terra e sobre a qual se abatia sem dó nem piedade a força bruta da administração colonial, ela mesma emanação de um poder soberano cujo lastro é esta zona ultramarina de anomia. Um lastro a um só tempo mercantil e penal: é bom não esquecer que no limite toda colônia é penal. Qualquer semelhança com as populações confinadas nas neo-favelas do capitalismo da subsunção total não é obviamente mera analogia histórica. Aliás a “relação de serviço” voltou a pautar o trabalho deste descomunal proletariado informal. Tampouco é apenas uma questão de homologia o evidente encadeamento entre as situações de exceção com que o poder soberano irá refuncionalizando a pobreza destas populações disponíveis para o que der e vier no decorrer de todo o ciclo longo que principia pelas guerras bárbaras permanentes e culmina na emergência econômica na nova dependência financeira de hoje.

LP – Nessa perspectiva, o que significou a passagem da colônia à nação?

PA – Seria o caso de rever essa mudança formal justamente pelo trilho da permanência, mas também pela demarcação não menos drástica de uma “linha de amizade”, sendo as novas amigas, as nações recém emancipadas.

O modus operandi da hegemonia holandesa inaugurara um mundo baseado numa zona europeia codificada e o resto, uma vasta “zona residual de comportamentos alternativos”, nas palavras de um historiador, que assim se explica acerca da projeção ultramarina da luta europeia pelo poder e os correspondentes capitais circulantes: “enquanto a Europa fora instituída como uma zona de ‘amizade’ e de comportamento ‘civilizado’, mesmo em tempos de guerra, a área externa à Europa fora instituída como uma zona à qual nenhum padrão de civilização era aplicável e onde os rivais podiam simplesmente ser varridos do mapa”. Em sua inocência descritiva porém fidedigna, não se poderia enunciar melhor a não exclusão de fato dos dois hemisférios da norma civilizada e da exceção selvagem no comando da expansão original do capitalismo histórico. Com perdão do anacronismo, nascemos do outro lado da linha ou fora da linha – o que deu todo o segundo sentido da colonização pela mercadoria pura.

Do ângulo dominante do senhoriato em ruptura com o exclusivo colonial, o posterior sentido de uma eventual formação nacional só poderia ser o de cruzar de volta aquela “linha”, sem prejuízo de manter a solda vantajosa entre os dois regimes da guerra. A subsequente hegemonia britânica se impôs então ampliando a “zona de amizade” de modo a incluir nas prerrogativas da soberania o conjunto dos ex-colonos proprietários e beneficiários diretos do tráfico negreiro. Orbitando ainda em torno da mercadoria-escravo, até meados do século 19, a rigor soberania de um Estado-pirata, transpirando transgressões por todos os poros. Cruzando a linha, atenuava-se por certo a alteridade radical da colônia, por um lado, mas por outro, o antigo “viver em colônia” por assim dizer repaginava-se ingressando pela porta da frente num novo ciclo, plenamente liberal agora, da história ascendente do estado de exceção, desde então em contraponto com uma anômala normalidade local.

LP – Ainda no século 19, os Estados liberais da Europa invadiram e ocuparam militarmente a Ásia e a África, que permaneceram por mais de um século sob o que hoje chamamos de imperialismo clássico. Como o liberalismo interno da Europa foi afetado pelo seu próprio imperialismo?

PA – Quando o estado de sítio é enfim normalizado pelo constitucionalismo europeu do século 19, ele já estava em vigor como regime permanente das administrações coloniais. O “estado” colonial era rigorosamente um estado de exceção “normal”. Neste caso, é possível rastrear, por exemplo, a origem argelina da legislação de exceção incluída na Constituição promulgada na França em 1849. Aliás ninguém, se enganava a respeito: no ano anterior, enquanto exército e guarda nacional massacravam os operários parisienses rebelados, era comum ouvir os patriotas urrarem “morte aos beduínos”, contra os quais era regra travar guerras de extermínio – como eram de resto, as savage wars que pontuaram a expansão territorialista do capitalismo americano no período de “formação” nacional. Culminando este ciclo, digamos, da civilização liberal – no qual Polanyi reconheceu a marcha auto-destrutiva na autonomização do processo de valorização do capital baseado nas três mercadorias fictícias, trabalho, terra e moeda –, ciclo de aprofundamento da exceção soberana, algo como o desdobramento histórico de um ato despótico originário, a fundação jurídica do Terceiro Reich pela mera aplicação por tempo indefinido do artigo suspensivo 48 da Constituição de Weimar, um estado de exceção destinado a durar mil anos: quando então deu meia noite no século, o filósofo marxista alemão Karl Korsh reparou, ele mesmo perplexo com a cegueira dos europeus acerca de sua genealogia mais entranhada, que no fundo os nazistas apenas estenderam aos civilizados europeus os métodos até então reservados aos nativos do mundo exterior. Poucos anos depois Hannah Arendt entroncava o universo concentracionário na síntese colonial herdada entre massacres e administração por decreto.

Como ficou dito, com a trégua da Guerra Fria não é que a zona de sombra da exceção tenha entrado em recesso por conta do armistício social keynesiano, simplesmente tornou-se em última instância insuperável pela perene emergência nuclear, o eixo de uma guerra imaginária destinada a disciplinar sociedades e barrar qualquer veleidade de ruptura. Todavia, com ou sem procuração, na periferia uma guerra colonial emendou na outra, toda sorte de ditaduras por encomenda incluídas. É preciso não esquecer que no início dos anos 50 Coreia, Indochina e contra-revolução na Guatemala são a bem dizer irrupções contemporâneas e que, ao se encerrar, a Guerra Fria deixara atrás de si na América Central uma década de massacres políticos: hoje dominam toda sorte de pandillas [máfias] e sua correspondente economia subterrânea, sem falar nas zonas maquiladoras do livre-comércio.

LP – Medidas de exceção para governar, para resguardar o cassino financeiro, para combater a violência etc. Com a explosão do fordismo e o fim da Guerra Fria adentramos, então, a fase atual da emergência?

PA – É preciso ainda recordar que as ditaduras exterministas do Cone Sul são catástrofes inaugurais, no caso, tratamentos de choque propiciando a necessária tabula rasa sobre a qual assentar as emergências econômicas do momento, como recordou recentemente Naomi Klein, periodizando o atual Capitalismo de Desastre. Ou como vimos, a grande fuga do capital procurando a um só tempo desgarrar de populações insolváveis e açambarcar a riqueza social não obstante paradoxalmente produzida no chão de uma nova fabrica social. A palavra de ordem meio sinistra “choque de capitalismo” é exatamente dessa época, a idade dos “pacotes” e sua violência emergencial. Pois bem: a grande mutação do nosso tempo pós-nacional ocorreu no exato momento em que nossa matriz industrial se completava, somos enfim uma economia industrial plena, porém encerradas a sete chaves na periferia da inovação tecnológica, por mais que a mídia americana exalte nossas multinacionais emergentes, et pour cause. Nessa viravolta, todavia, a intuição original do processo na sua inteireza faz tempo que deixou de girar em torno da ideia fixa construção-nacional-interrompida, herdada do imaginário positivador da assim chamada modernização capitalista.

LP – Se a ideia de formação nacional não é mais adequada para se entender o Brasil de hoje, isso significa que, ao mesmo tempo, avançamos e voltamos para trás, para um novo sentido da colonização?

PA – Seria pertinente resumir os argumentos de Leda Paulani e Christy Patto (ver Brasil Delivery): a economia brasileira afinal industrializou-se, ao longo da virada crítica dos anos 70, na condição de substrato necessário à estratégia mundial da acumulação sob dominância da valorização financeira, mais precisamente, a industrialização da periferia pode ser vista como um dos momentos estratégicos iniciais desse novo regime de acumulação. Noutras palavras, num mundo enfim aprisionado pela miragem vertiginosa da valorização do valor sem a mediação da produção, nada mais atrativo, como se diz, do que a reconversão de economias periféricas com razoável capacidade de produção de renda real, como é o caso de nossa industrialização por internacionalização do mercado interno, em prestamistas politicamente talhados para exercer a função de plataforma de valorização financeira. A dose exorbitante de violência econômica para que se cumpra o “sentido da industrialização” constitui o cerne material da derradeira metamorfose da exceção que desde a origem nos atrelou à soberania capitalista no governo do mundo. Não é para menos, quando se busca o risco zero numa sociedade rentista de segurança máxima. Não se trata porém de mera provisão de uma infra-institucionalidade econômica facilitadora e asseguradora das vias de acesso à riqueza gerada no subsolo da exploração econômica. Na hipótese central do livro Brasil Delivery, da mesma Leda Paulani, estamos diante de uma nova era de emergência econômica. Para ser exato, a transformação de uma economia industrial periférica numa plataforma de valorização financeira exige um estado de emergência econômica permanente. Cuja invenção certamente não é de hoje, mas data a bem dizer da gestão da crise do entre-guerras no século passado. Para abreviar é preciso lembrar novamente que na origem do processo que nos reciclou como produtores de ativos financeiros de alta rentabilidade – e justamente possível porque nossa industrialização se completou colada a um surto de internacionalização financeira indireta de sistemas nacionais fechados – encontra-se uma terapia de choques sucessivos até a securitização plena, muito além da dívida e da inflação, securitização que por definição nunca se completa, demandando algo como uma “polícia” econômica que, tal com sua matriz absolutista, se caracteriza por um golpe administrativo diário – uma carta circular do Banco Central derruba barreiras de bilhões. Daí a centralidade máxima do Estado-guardião da renda mínima do capital e sobretudo da posse do aparelho político de acesso, gestão e açambarcamento de recursos num universo discricionário de monopólios, privilégios e compadrios. Estamos diante de uma máquina infernal de produção de hierarquias e extorsões em todos os recantos de uma sociedade congenitamente regida pelo nexo da violência econômica – agora subsunção total do trabalho ao capital. Continuamos portanto um negócio, e só um negócio. Celebrando a onda de novos milionários, deu na capa da Veja (23-01-08): o Brasil finalmente descobriu o capitalismo.