RESENHA/REVIEW
Carlos Eduardo Jordão MACHADO[1]
BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. v.1/v.2. Trad. Nélio Schneider/ Werner Fucks.
Rio de Janeiro, Contraponto, 2005.
Sonhos diurnos e geografia – sobre O princípio esperança de Ernst Bloch
Wagner lamenta a seu mestre, no início do Fausto de Goethe: “Meu Deus! É longa a arte. E é tão breve nossa vida!”. Decerto a frase não poderia ser aplicada a Ernst Bloch, que nasceu em Ludwigshafen em 1885 e faleceu em Tübingen em 1977, aos 92 anos de idade, deixando uma obra de dimensões monumentais. Foi aluno de Georg Simmel, como Georg Lukács e Siegfried Kracauer, dos quais se tornou grande amigo. Sobre Lukács, Bloch chegou a dizer que chegaram a ter uma espécie de “parque nacional protegido das diferenças de opinião” [Naturschutzpark der Meinungsverschiedenheiten) à época em que o primeiro publicou a Teoria do romance (1920) e História e consciência de classe (1923) e Bloch a primeira edição de O espírito da utopia (1918) e Thomas Münzer. Teólogo da revolução (1919). Uma produção febril, sobretudo durante os anos da República de Weimar, cujo testemunho é a Herança dessa época, publicada no exílio em 1935. Se em O espírito da Utopia,[2] temos de modo muito original uma estética, uma ética e uma filosofia da história, sendo um dos primeiros a tirar conseqüências estético-filosóficas do movimento expressionista e das vanguardas históricas na pintura, na arquitetura e na música, no livro de 1935, A Herança dessa época, Bloch faz um balanço dos “anos dourados” da República de Weimar e apresenta uma análise profundamente original do nacional-socialismo com o conceito de “não-contemporaneidade”.[3] No exílio americano publica em 1948 no México, El pensamiento de Hegel, um dos melhores compêndios sobre o pensador alemão. De volta à Alemanha aposta na construção do socialismo na antiga República Democrática Alemã, como Bertolt Brecht, Hanns Eisler e outros; expectativa que se frustra em 1961, com a construção do muro de Berlim, na ocasião Bloch, por acaso, se encontrava na República Federal, tornando-se professor de filosofia na Universidade de Tübingen, permanecendo lá até sua morte. Em 1959, publica sua obra mor, O princípio esperança, ao longo dos anos sessenta e setenta do século passado são publicados, sempre pela editora Suhrkamp de Frankfurt aM, vários volumes de suas obras como os ensaios de Literatura e Filosofia, edita Experimentum Mundi, seus estudos sobre a história do materialismo, o Ateísmo no cristianismo etc. Uma figura de proa do que Merleau Ponty denominou de “marxismo ocidental”.
Bloch elaborou O princípio esperança entre 1938 e 1947, durante seu exílio nos Estados Unidos, e o revisou entre 1953 e 1959, quando ainda residia na antiga República Democrática Alemã. Uma obra de dimensões ciclópicas de quase 1700 páginas, dividida em cinco partes que têm como tema “os sonhos de uma vida melhor”, ou como ele próprio diz “uma enciclopédia da esperança”; começa com a indagação: “Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Que esperamos? O que nos espera?”. É uma tentativa de levar a filosofia até a esperança, conforme se lê no prefácio, “um lugar do mundo tão habitado quanto as terras mais cultivadas e tão inexplorado quanto a Antártida”. Obra que está em conexão, como ele próprio enfatiza, com o conteúdo de seus trabalhos anteriores como Spuren [Vestígios] (1930), Geist der Utopie [O espírito da utopia] (1918-1923), Thomas Münzer (1921), Erbschaft dieser Zeit [Herança desta época] (1935) e o livro sobre Hegel, Subjekt-Objekt [Sujeito-objeto] (1948-1962), entre outros. Seu modo de exposição é uma curiosa combinação, segundo Lukács, entre as histórias de calendário de Hebel e a Fenomenologia de Hegel.[4]
O livro foi, finalmente, traduzido para o português graças ao trabalho hercúleo de Nélio Schneider (vols. 1 e 3) e Werner Fuchs (v.2).[5] Fora Thomas Münzer. Teólogo da revolução[6] e de alguns ensaios da época do “Debate sobre o expressionismo”,[7] Bloch permaneceu durante décadas praticamente desconhecido do leitor brasileiro que não lê alemão. A publicação dessa obra monumental entre nós merece atenção, sobretudo pela qualidade da tradução. O texto de Bloch se caracteriza por um modo muito peculiar de exposição, seu pensamento “fabulante”, “expressionista”, flui como uma torrente de palavras que, conforme Adorno, “aceitando o primado da expressão sobre o significado, não está preocupada em que as palavras esclareçam conceitos nem que os conceitos encontrem uma morada nas palavras...”.[8] Uma filosofia da expressão, capaz de retornar aos objetos concretos e que, conforme o mesmo Adorno em outro ensaio sobre Bloch, “comunica, de maneira não ambígua, aquilo que de maneira unívoca recusa comunicar”.[9] Logo o trabalho de traduzir seus escritos não é absolutamente nada fácil e por isso o esforço dos tradutores é, sem dúvida, louvável, pois transpõe para o português justamente a quase loquacidade e, ao mesmo tempo, a qualidade literária de seu estilo de pensamento, mesmo que se possam fazer restrições, aqui e ali, em relação à precisão terminológica de certas passagens, como, por exemplo, os conceitos hegelianos de “falsches Bewusstsein” – falsa consciência – que é traduzido por “má consciência” (v.1, p.153) ou, o contrário, de “wahres Bewusstsein” – consciência verdadeira – por “boa consciência” (v.1, p.155) etc. Sem poder me adentrar neste continente conceitual e expressivo quase intransponível pelas suas dimensões colossais, vou me restringir apenas a dois momentos do livro, o “sonho diurno” e a sua “geografia”.
O sonho diurno, o sonho desperto – que difere qualitativamente do sonho noturno, de caráter regressivo, como veremos – perpassa toda argumentação do livro ao tentar dar resposta à questão inconstruível de nós mesmos, começando com o instante no qual nos encontramos ainda dispersos, imersos na “obscuridade do instante vivido” [das Dunkel des gelebten Augenblickes], numa penumbra que nos envolve provocando angústia, tédio; afetos indefinidos, desconcentrados, irracionais, pois ainda não temos o que queremos; é o “diariamente sem saber o amanhã” e que aos poucos se esvai ao vislumbrar que a vida poderia ser diferente do que é. A concentração numa meta, “um querer fazer” que transforma a mera imaginação num ideal: “assim deveria ser” (v.1, p.50). Através de um processo complexo de mediações se alcança às grandes objetivações, ao bem supremo, o novo – “a certeza, o mundo inacabado, a pátria”, conforme o capítulo conclusivo do livro dedicado a Marx. Um fio da meada que se estende do instante vivido imediato às obras da ciência, da filosofia e da arte. Um processo que considera o desenvolvimento existencial do indivíduo da infância à maturidade, “o que resta a desejar na velhice”, como do gênero, percorrendo diferentes estágios do desenvolvimento do gênero humano. Posso dizer que Bloch leva as últimas conseqüências o que Kant denominou na Crítica do juízo, de Einbildungskraft [força de imaginação], ou seja, determinar concretamente o lugar da fantasia na vida dos indivíduos e nas diferentes formações sócio-culturais, por meio de uma viagem: Egito, Grécia, Índia, China, o medievo, as descobertas geográficas; da experiência das revoluções burguesas às vanguardas históricas – um inventário cartográfico das descobertas do que há de “excedente utópico” em cada momento tanto da história do gênero humano como da trajetória individual, não no sentido da mera recordação [Erinnerung], como em Hegel, que pensa apenas o que foi ao não colocar como tarefa da filosofia ir além de Rodes, ou seja, do presente. Trata-se, nas palavras do jovem Marx, do “sonho de uma coisa” [der Traum von einer Sache].
Certamente ao diferenciar o sonho noturno do sonho diurno Bloch se apóia na interpretação dos sonhos desenvolvida pela psicanálise de Freud, diferenciando-o de modo radical de seus discípulos, particularmente de Jung. Como muitos de sua geração, como Adorno, Benjamin e Marcuse, entre outros, a psicanálise de Freud joga um papel não secundário em suas interpretações da subjetividade, a particularidade de Bloch reside na relevância dada por este ao sonho diurno. Como em Freud, o sonho protege o sono e não é mera bolha de sabão. No sonho o eu adulto está enfraquecido e o mundo exterior bloqueado, mas mesmo aí, segundo Bloch, “O tema ‘sonhos de uma vida melhor’ inclui parcialmente, com cuidado e significância, também os sonhos noturnos como sonhos desejosos, também eles são uma parcela (ainda que deslocada e não muito homogênea) no gigantesco campo da consciência utópica” (v.1, p.81). Na interpretação do sonho, as imagens oníricas compõem a “história criminal” de nós mesmos, daí o impulso noturno do eu para a máscara, encobrindo e disfarçando o conteúdo do sonho: “o sonhador não sabe o que sabe. Para Freud, o conteúdo manifesto do sonho, como tal, é apenas fantasia ou baile de máscaras e a interpretação torna-se a quarta-feira de cinzas” (v.1, p.83).
Só que, diferentemente de Freud, para Bloch o sonho diurno não é um prelúdio do sonho noturno (v.1, p.88). Aqui, a transformação do inconsciente em consciente, meta da psicanálise, da qual Bloch se apóia e louva da teoria de Freud, se diferencia frontalmente. Pois o sonho diurno, diferentemente do sonho noturno, desenha figuras de livre escolha, pode entusiasmar ou delirar, mas também planejar e ponderar: “o sonho diurno pode proporcionar idéias que não pedem interpretação, e sim elaboração – ele constrói castelos de vento com as plantas já desenhadas e nem sempre meramente fictícias” [...] “Pois até agora, surpreendentemente, a fantasia diurna praticamente não foi destacada em termos psicológicos como uma condição originária, nem como um tipo próprio de realização de desejos, cheio do wishful thinking, o que não exclui a precisão, nem a responsabilidade justamente do thinking” (v.1, p88). Bloch cita uma passagem das Vorlesungen de Freud de 1935, que diz: “Os produtos mais conhecidos da fantasia são os chamados sonhos diurnos, satisfações imaginárias de desejos ambiciosos, de grandeza, eróticos, que crescem de modo mais exuberante quanto mais a realidade exorta ao cerceamento ou à espera paciente”. Bloch lança neste ponto uma crítica impiedosa ao fundador da psicanálise: “uma psicanálise que considera todos os sonhos apenas como caminho para o reprimido, e a realidade sendo apenas a da sociedade burguesa e do mundo existe para ela, pode tranqüilamente definir os sonhos diurnos como meros prelúdios dos sonhos noturnos” (v.1, p.88-9). Enquanto o sonho noturno é de caráter regressivo, muitas vezes arcaico, pois voltado para trás, o sonho diurno é antecipador. Como sublinha Bloch: “O castelo no ar não é um prelúdio do labirinto noturno: antes, são os labirintos noturnos que formam os porões do castelo diurno no ar” (v.1, p.89). O sonho diurno exige, portanto, um tratamento específico, não reducionista, não é mero devaneio fugaz, trivial e ocioso, mas possui o caráter modelador da arte; é engajado, responsável e contém o tutano alimentado pela pulsão que o impele para que sua antevisão seja concretizada. Bloch determina quatro características do sonho diurno: o livre curso e o ego preservado, a melhoria do mundo e o ir até o fim, que tento resumir.
A primeira reside em que o sonho desperto não é opressivo, é uma viagem na qual o eu consciente suspende quando quer: “a casa do sonho desperto só é mobiliada com representações auto-escolhidas, ao passo que quem dorme nunca sabe o que o espera além do limiar do subconsciente” (v.1, p.90). Aqui se depara com uma consideração de Bloch que é no mínimo curiosa, como se sabe ele é um dos companheiros de Walter Benjamin nas suas experiências com o haxixe ao longo dos anos vinte do século passado, conforme o registro do próprio Benjamin.[10] Segundo Bloch, “até as drogas que provocam artificialmente os dois gêneros de sonho são distintas, o que significa que... nos estados fantásticos estimulados artificialmente, a fantasia do cérebro adormecido com o obscurecimento do eu difere da fantasia do dia. Mais precisamente: o ópio aparece associado ao sonho noturno; o haxixe ao sonho diurno, flutuando, esvoaçando em liberdade. No transe do haxixe o ego é pouco alterado: o seu natural aspecto individual e o intelecto não são atingidos” (v.1, p.90). Numa consideração sem preconceitos, mas também responsável Bloch vê no haxixe, sem deixar de lado a mania de grandeza e a paranóia que acompanham o transe, certo espírito de leveza silfídico: “o mundo torna-se um concerto ideal para o talentoso sonhador do haxixe” (v.1, p.91). Esses paradis artificiels, conforme citação de Baudelaire, designam o transe do ópio e do haxixe, esses “encantamentos malditos”, o do haxixe permanece associado patologicamente ao sonho acordado: “as do Morfeu aqui [o ópio – CEJM], as de Fântaso acolá [o haxixe-CEJM]” (ibid). Para que o sonho diurno não se perca em quimeras ou mesmo em excessos particulares, é necessário a concentração no plano da sabedoria e da experiência, isto é, dar forma a um mundo melhor (v.1, p.93).
É na terceira característica do sonho diurno, “a melhoria do mundo”, que e se revela o prelúdio da arte e sua promessa de felicidade: “A partir do sonho diurno, a arte contém essa natureza utópica, não para tudo dourar levianamente e sim para ter dentro de si também a privação, que com certeza não será superada apenas pela arte (...) sendo envolvida pela alegria como uma forma vindoura” (v.1, p.96). Para Bloch, todas as utopias sociais, as grandes obras de arte, como também as da ciência, referindo-se a Kepler e sua intenção de uma relação perfeita do mundo ao descobrir as leis dos movimentos planetários, estão ambientadas apenas nos sonhos diurnos e não na imersão, no caráter arcaico e pré-lógico do sonho noturno. “É antes de tudo o interesse revolucionário, com seu conhecimento de como está ruim o mundo e seu reconhecimento do quanto ele poderia ser bom como um outro mundo, que necessita do sonho desperto para a melhoria do mundo” (v.1, p.97). Assim, a fantasia diurna dos artistas serenos tem nos desejos o seu ponto de partida, não é mera digressão, vai com eles até o fim, quer chegar ao seu lugar de realização, visam um ponto de chegada. Tem um alvo: “O conteúdo do sonho noturno está oculto e dissimulado, enquanto que o conteúdo da fantasia diurna é aberto, fabulante, antecipador, e seu aspecto latente se situa adiante. Ele mesmo provém da expansão do si-mesmo e do mundo para frente, é um querer-viver-melhor, muitas vezes de fato um querer-saber-melhor” (v.1, p.100). O sonho diurno não necessita de interpretação, de escavação, de uma investigação de detetive, como no sonho noturno, mas de correção para que possa ir até o fim: sua concretização. Ele pressupõe, decerto, uma disposição de humor, faz parte da hora azul e não da hora escura, exige relaxamento, mas, como ressalta Bloch, “não busca a sonolência e sim a viagem” (v.1, p.107).
Se na primeira parte de O princípio esperança, Bloch dá atenção aos “Pequenos sonhos diurnos”, constituída de relatos; na segunda, que denomina de “Fundamentação” ou “a consciência antecipadora”, justamente onde se encontra a “diferenciação fundamental entre sonhos e sonhos noturnos” (cap.14), que acabo de sintetizar; na terceira parte, que Bloch considera uma transição intitulada “Imagens do desejo no espelho (vitrine, conto, viagem, filme, teatro)”, que contém considerações instigantes sobre o teatro de Brecht (cap.30), que considera como “instituição paradigmática”, é na quarta parte do livro que encontramos os “Esboços de um mundo melhor (medicina, sistemas sociais, técnica, arquitetura, geografia, perspectivas na arte e sabedoria)”. Cabe aqui destacar aspectos da sua “geografia” ou do capítulo 39: “Eldorado e Éden, as utopias geográficas”.
Bloch começa diferenciando o inventar do descobrir para caracterizar a “esperança geográfica”. O primeiro altera os objetos, intervindo neles enquanto o segundo se limita a encontrar algo que já existe, ou seja, o novo existe apenas para o sujeito que chega a algum lugar até então desconhecido: “descobrir, portanto, parece ser também metodologicamente sinônimo de destapar, retirar a coberta, e debaixo dela encontram-se então os dados para catalogar algo que supostamente existe de forma fixa” (v.2, p.300). Nesse sentido, “a utopia geográfica na realidade parece à primeira vista estar em disparidade total em relação às utopias médicas, sociais e tecnológicas” (v.2, p.301). O que se revela falso, na medida em que “o descobrir definitivamente visa e é capaz de transformar” (ibid). Não é mera observação, pois altera radicalmente os valores da vida anterior que são transformados com a descoberta. Bloch inicia uma exposição que revela uma erudição absolutamente incomum que vaga pelas épocas movida pelas diferentes utopias geográficas desde os gregos, árabes, fenícios, mostrando que toda descoberta pressupõe um impulso inicial de caráter utópico, o exemplo mais importante: Colombo. “Quando Colombo zarpou para as Índias, tinha em mente até um Éden real. Não causa surpresa, a partir dessa perspectiva que descobertas trouxeram consigo tanto sonhos quanto transformações. O alvo, porém, aparece como algo que na realidade já existe. Seu conteúdo: ouro, prata, zinco, âmbar, marfim etc., também seu elemento fabuloso aguardado, a maravilha da terra distante, o qual tudo supera, tão somente precisa ser trazido” (v.2, p.302). Desse modo, a descoberta geográfica nunca se contrapõe à invenção sem deixar de ser utopia; o elemento utópico perpassa tanto o inventar como o descobrir. Assim, a utopia médica se aproxima da utopia geográfica, ou seja, a utopia da abolição da morte na medicina tem seu correlato na utopia geográfica: encontrar o paraíso terrestre (v.2, p.303). Colombo estava convicto que havia chegado as ilhas Hespérides e que atrás da terra da foz do Orinoco estaria oculto o Éden. “Essa é também a razão por que as eras do descobrimento, de Alexandre a Colombo, deram uma contribuição tão homogênea às utopias sociais” (v.2, p.304-5).
A geografia é o terreno no qual tudo era considerado possível: Polifemo, serpentes semelhantes a dragões, monstros marinhos como cracas do tamanho de uma ilha, como no episódio de Sindbad o marujo, o vale dos diamantes, Atlântida, florestas mágicas, moças sobrenaturais, desfiladeiros e montanhas, o cão do meio-dia com cabeça imóvel, a rocha que capta e imita o som, a caverna do tesouro, o espaço interestelar, a moeda da sorte, um escrito que cai do céu ou chega à praia como destroço, em suma, um mundo de conto de fada, uma imbricação de Eldorado e Éden: “a terra sempre vive o seu verão somente na terra distante, ali são cozidos os melhores frutos” (...) “Por isso não há uma correlação, que transcende o tempo e o espaço, apenas em Sindbad, Ulisses e o suposto expedicionário conde Ernst. Ela também existe entre Ulisses e os contos de fada acerca do mundo a ser encontrado em grandes geógrafos como Plínio e Pompônio Mela, em enciclopedistas como Isidoro de Sevilha ou Beauvais” (v.2, p.305).
Curiosa é a representação do oceano Atlântico como um mar de lama e mergulhado em trevas eternas, do Ocidente, onde o sol se põe, lá habita a morte, ou o mito babilônico, do Ocidente como “prisão marítima do sol”; a geografia do inferno; a misteriosa ilha em algum lugar do Atlântico, onde estaria uma estátua marcada com a inscrição: “Non plus ultra” [Não vá além daqui]. Todo esse universo fantástico e medonho repleto de perigos mortais, acrescenta Bloch, “a fábula do perigoso mar atlântico se manteve até Colombo” (v.2, p.310). O mito astral do sol moribundo, o terror diante do Ocidente, o mar de lama e a ilha das Hespérides, segundo Bloch, tornou-se frutífera apenas no mundo cristão. “Porque somente a lenda e a utopia geográfico-cristãs acreditavam saber acerca do paraíso terrestre por que ele era mantido impenetrável, e a impenetrabilidade era enfatizada em termos geográficos. Explicita-se agora uma função: o Éden está atrás de um cinturão de terror, o cinturão pleno de terror o contorna” (grifo do autor – v.2, p.310-1). Clemente de Alexandria foi o primeiro a associar as algas, a lama, as trevas como a entrada proibida no paraíso terrestre imaginado no hemisfério Sul, o que foi acolhido pelos pais da Igreja; é quando se introduziu uma relação dialética no mar sombrio (cf. v.2, p.311).
Na seqüência Bloch reconstrói o imaginário cristão-medieval acerca do procurado paraíso terrestre até a lenda da expedição marítima de São Bretano, do reino do sacerdote João e das diferentes hipóteses de localização do paraíso na América e na Índia, como o seu contemporâneo brasileiro Sérgio Buarque de Holanda que justamente no mesmo ano (1959) de publicação de O princípio esperança, publicou pela José Olympio sua tese universitária, Visão do paraíso. Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Com um rigor historiográfico e uma erudição só comparável ao nosso filósofo alemão. Não posso confirmar se Sérgio chegou a conhecer o livro de Bloch, pois lia muito bem alemão, decerto a obra-prima de Sérgio permaneceu desconhecida de Bloch, pois este não lia português. Eis um tema que poderia resultar numa futura e produtiva análise comparada – neste sentido, certamente, vale a pena ter esperança!
[1] Professor de História da Filosofia e de História Social da Cultura da Unesp, campus de Assis. Autor de Debate sobre o expressionismo. Um capítulo da história da modernidade estética. São Paulo: Ed. Unesp, 1998 e As formas e a vida. Estética e ética no jovem Lukács (1910-1918). São Paulo:Ed. Unesp, 2004.
[2] Ver Machado, C.E.J. “Uma filosofia expressionista: sobre O espírito da utopia de Ernst Bloch” in Loureiro, I. M. e Musse, R. (Org.). Capítulos do marxismo ocidental. São Paulo: Ed. Unesp, 1998, p.35-58
[3] Ver o capítulo dedicado à Herança dessa época in Machado, C. E. J. Debate sobre o expressionismo, ed. cit. Parte do capítulo foi traduzido para o espanhol ver Vedda, M. (Org.). Ernst Bloch. Tendencias y latencias de un pensamiento. Buenos Aires: Herramienta, 2007, p.55-72.
[4] Trata-se de uma entrevista radiofônica realizada em 1967 com Bloch e Lukács, coordenada por Iring Fetscher, “Geladener Hohlraum”. Nas palavras de Lukács: “Trata-se de um estilo curioso, uma mescla das histórias de calendário de Hebel e a Fenomenologia de Hegel” in Bloch, E. Ergänzungsband zur Gesammtausgabe. Tendenz – Latenz-Utopie. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1978, p.374.
[5] Bloch, E. O princípio esperança. 3 vol. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed.UER, 2005-2006.
[6] Bloch, E. Thomaz Münzer. Teólogo da revolução. Rio de Janeiro, 1973. Tradução de Valmireh Chacon e Celeste Aída Galeão – tradução com vários problemas, diga-se de passagem.
[7] In Machado, C.E. J. Debate sobre o expressionismo. Ed.Cit. Com traduções de Miriam Madureira e C. E. J. Machado: “Discussões sobre o expressionismo”, “O expressionismo visto agora” e o diálogo redigido com Hanns Eisler: “A arte e sua herança”.
[8] Adorno, Th. “Blochs Spuren” in Noten zur Literatur (II). Frankfurt aM: Suhrkamp, 1981, p.244.
[9] Adorno, Th. “Henkel, Krug und frühe Erfahrung” in Noten zur Literatur (IV), ed. cit, p.566.
[10] Benjamin, W. Schriften IV-1. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1980, p.409-16.