RESENHA/REVIEW
Márcio Gimenes de PAULA[1]
ONFRAY, Michel. Tratado de ateologia. Trad. Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
Michel Onfray já é um conhecido do público brasileiro pela tradução de alguns de seus livros como A arte de ter prazer, A razão gulosa, O ventre dos filósofos, A políica do rebelde e A escultura de si. Igualmente conhecida é sua postura como filósofo, isto é, sua recusa da academia, sua ênfase no prazer, sua afirmação do ateísmo e sua participação na montagem da Universidade Popular de Caen que pretende, no interior da França (e também nas páginas da web), filosofar com todos os interessados, sem se prender a ela como uma disciplina acadêmica, curricular ou profissional.
Suas teses são claramente polêmicas no decorrer de várias das suas obras. Aqui, no Tratado de ateologia, não ocorre nenhuma exceção. Contudo, antes de entrarmos propriamente na temática do livro, penso que nos cabe realizar algumas observações sobre o contexto e a época onde o mesmo se encontra inserido. O primeiro dado a se notar é que depois de 11 de Setembro de 2001, mas não apenas depois dele, um grande número de pensadores levantaram sérias preocupações acerca da religião e de sua relação com a sociedade. A intolerância religiosa e o fundamentalismo, nas suas múltiplas facetas, parecem anunciar dias tenebrosos para todos nós. Nos Estados Unidos, por exemplo, poderíamos citar autores como Daniel Dennet, também recentemente traduzido no Brasil, e sua obra Quebrando o encanto. Na Inglaterra, poderíamos nos lembrar de Richard Dawkins, autor de célebres obras sobre darwinismo e, do também recém publicado em nossa pátria, Deus um delírio.
O projeto de Onfray, notadamente através da Universidade de Caen, é escrever uma história não oficial da filosofia ou, como ele prefere denominar, uma contra-história da filosofia. Nesse sentido, suas obras anteriores, que tratavam de questões estéticas, éticas e políticas, já anunciavam o tema. Todavia, é com o seu Tratado de ateologia que ele se insere, ainda mais, dentro da tradição ateísta e afirma tal posicionamento como uma postura filosófica capaz de fornecer melhores respostas aos homens do nosso tempo do que as religiões e todas as suas fantasias.
Sua obra divide-se em quatro partes que possuem, por sua vez, uma escrita fluida e bastante clara, visto que seu objetivo é atingir um grande número de pessoas. A primeira parte intitula-se ateologia. O primeiro ponto a se destacar aqui é a própria palavra que, aliás, fornece o título para o livro. Afinal, escrever um tratado de ateologia, significa começar uma obra dando sentido a um prefixo que, a rigor, denota negação. O ateu parece não ter positividade e identidade e, por isso, se firma como negador, isto é, como aquele que não possui teísmo algum. Curiosamente, entretanto, o termo ateu serviu para designar não apenas aquele que não crê em algo, mas aquele que acredita em algo que não corresponde à crença da maioria. Sócrates, nesse sentido, pode ser acusado de ateísmo. O cristianismo primitivo, dentro do contexto do Império Romano, pode ser acusado de ateísmo. Espinosa pode ser acusado de ateísmo. Cabe, portanto, notar duas coisas: o ateísmo serve para designar quem não crê ou quem não crê tal como os outros acreditam ou como as leis da tribo ou dos Estados determinam.
Com efeito, o objetivo do pensador francês é aqui reconstituir o caminho do ateísmo no decorrer de algumas passagens da história do pensamento. Suas influências aqui vão desde alguns dos antigos pré-socráticos até autores como Feuerbach, Nietzsche e outros. Segundo ele, a idéia de Deus, apesar de todos os abalos que sofreu no decorrer da história moderna e contemporânea, continua viva. Tal afirmativa já pode ser encontrada também em autores como Heine que, em 1834, na sua Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha, já observava isso, de forma contundente, que o máximo que a crítica iluminista da religião alcançava era o corpo já decaído do cristianismo, mas não a sua idéia ou essência. De igual modo, Feuerbach, este bastante citado pelo autor francês, nota, na sua Essência do cristianismo de 1841, que o cristianismo não se configura num nada desprovido de significado, mas numa idéia. Por isso, sua proposta é compreender o código de tal ilusão e, posteriormente, desmontá-la, tal como procederá Freud, seu leitor, no ano de 1927, numa obra não fortuitamente intitulada O futuro de uma ilusão.
Há uma curiosa ligação entre aquilo que Onfray denominou como antifilosofia com a teologia. Este grupo, no seu entender é herdeiro da filosofia do século XVIII e usa todo o arsenal clássico do iluminismo para defender a fé e desqualificar o ateísmo. Um dos principais expoentes desse grupo teria sido Pascal. Para ele, tal tipo de filosofia não passa de um disfarce teológico, alcançando seu ápice na filosofia moderna e contemporânea até mesmo em autores como Kant e Hegel, entre outros. Por isso, seguindo a trilha do niilismo nietzschiano, o autor se mostra absolutamente consciente da significativa relação entre a religião e a filosofia não só na Alemanha, mas também na França e no restante da Europa. Afinal, em solo germânico, tal como já apontou Nietzsche, o pastor protestante é uma espécie de avô da filosofia alemã.
Boa parte do que se produziu em termos de crítica à religião é, no entender de Onfray, uma espécie de ateísmo cristão. Por isso, poderíamos colocar nesse grupo, também, autores como Descartes, Kant, Hegel e até Marx. Seguindo novamente pela senda nietzschiana (mas também schopenhauriana), o autor configura-se como um enfático crítico dos valores morais e da justificação teológica dos mesmos. Desse modo, sua proposta de construção de um ateísmo pós-moderno é na verdade uma proposta de desconstrução, isto é, desconstrução da moral cristã e da moral utilizada pela anti-filosofia que, no fundo, é a mesma moral do cristianismo.
Em outras palavras, seu intuito é defender abertamente a construção de uma proposta ateológica que consistiria, basicamente, em três coisas capitais: desconstrução do monoteísmo, desconstrução do cristianismo e desconstrução das teocracias. Com efeito, de modo absolutamente estratégico, essas serão as três outras partes da obra: os monoteísmos, o cristianismo e a teocracia.
Ao analisar os monoteísmos, base das três religiões ocidentais, o pensador francês é categórico: os monoteísmos geram, a partir do seu próprio significado primeiro, a intolerância. A intolerância manifesta-se na raiz do próprio monoteísmo, isto é, trata-se de acreditar que há um só Deus e não muitos deuses como no politeísmo. Seguindo a pista já trabalhada por Feuerbach, Onfray afirma que todo monoteísmo é, por sua natureza, intolerante. O que agrava sua situação, entretanto é, que por julgar-se porta-voz de Deus, sua intolerância é expressa de maneira violenta e, em muitos momentos, consiste na eliminação categórica do adversário. Afinal, todo aquele que se coloca contra Deus, coloca-se na posição de adversário. Por isso é que, na tradição judaico-cristã, o adversário equivale à figura do Diabo ou de Satã, ou seja, aquele que pretende rivalizar e causar obstáculos para Deus.
O passo seguinte é a obscuridade. Os monoteísmos, tal como as patologias psíquicas, dependem da obscuridade, da falta de clareza, dos subterrâneos doentios. Por isso é que Freud, seguindo a trilha de Feuerbach, denominou a religião como patologia psíquica. É significativo que aquele que encarna o papel de adversário do cristianismo seja, também, denominado de Lúcifer, isto é, aquele que, ao contrário do que diz a tradição teológica, traz luzes e não trevas.
Se tudo está na completa obscuridade, o ódio à ciência, também, se afirmará aqui. Desde a célebre história de Adão e Eva, o pecado surge como desobediência, mas também como desejo de conhecimento. Crer em Deus significa submeter-se e não questioná-lo em hipótese alguma. Quando o primeiro casal resolve provar do fruto da árvore do conhecimento seu destino é inevitável: eles perdem o paraíso. A submissão, característica das três religiões primitivas, vence o desejo natural de conhecer dos homens. Aristóteles perde a disputa para os teólogos.
O cristianismo será o objeto de análise do terceiro capítulo da obra. Onfray começa apontando que a construção da figura histórica de Jesus é algo completamente envolto em contradições. Por isso, através de inúmeros exemplos, o pensador afirma aqui o cristianismo começa com uma falsificação.
Tal falsificação é agravada com distorção feita pelo apóstolo Paulo naquilo que até então se compreendia como cristianismo. Seguindo novamente a trilha nietzschiana, Onfray, com estilo retórico e impactante, afirma que Paulo representa a histeria no seu elevado grau, apontando, também em seu pensamento, o elogio da escravidão, o desprezo pelo corpo e o ódio à inteligência.
O Estado cristão será o foco da última parte destinada ao cristianismo. Nele, Onfray aponta como, após a conversão de Constantino, o cristianismo passa de uma religião de perseguidos a perseguidores, cometendo uma incontável série de vandalismos e coisas afins. Novamente, seguindo a interpretação nietzschiana, o autor enfatiza que a decadência do próprio Império Romano coincide com a ascensão do cristianismo. Tais teses não são novas e já podem ser percebidas tanto em Nietzsche, como no clássico Declínio e queda do Império Romano de Edward Gibbon e na Palavra verdadeira do pagão Celso. Em outras palavras, o cristianismo chega ao poder e, com seu gosto pela morte, substitui tudo que é vivo, forte, bom e saudável. É o triunfo da moral de escravos.
Na última parte de sua obra, Onfray aborda a temática da teocracia. A tese principal a ser defendida aqui é que teocracia e democracia são excludentes por definição. Para usar a clássica terminologia agostiniana, a primeira parte da cidade de Deus, enquanto a segunda não almeja nenhum tipo de transcendência, mas contenta-se com a imanência e com a cidade dos homens. Por isso, e servindo-se de diversos exemplos, o autor aponta a impossibilidade de qualquer convivência entre democracia e teocracia.
Para ele, todos os monoteísmos espelham uma pulsão de morte e um ódio aos que não são seus partidários. Por isso, a própria idéia de amor ao próximo seria uma falácia, visto que o próximo é apenas alguém com quem se compartilha as mesmas crenças. Regras como não matar, por exemplo, servem apenas para não matar aqueles que pertencem ao seu clã e a sua crença, uma vez que, nas três religiões monoteístas, existem fartos exemplos tanto da morte em nome de Deus como da ideologia da guerra sagrada. Onfray oferece, como indignado exemplo da relação promíscua entre religião e política, a escusa relação entre os nazistas e o Vaticano. Nesse sentido, só uma laicidade pós-cristã poderia melhorar o Ocidente. A destruição de toda a explicação religiosa do mundo é necessária pois, no seu entender, mesmo os não-religiosos agem com uma ética religiosa. Deste modo, somente transcendendo tal proposta é que se poderá chegar à ateologia plena e à uma libertação total dos monoteísmos, do cristianismo e de qualquer teocracia.
Na bibliografia da obra há importantes apontamentos para os interessados em pesquisar o pensamento ateu, suas origens, seus desdobramentos e a própria tentativa de articulação de uma proposta ateológica. O ponto positivo desta parte, além das ótimas referências a autores importantes para o ateísmo, é uma crítica ao posicionamento equivocado de Foucault (p.213), que, por ocasião da chegada de Khomeini ao poder, saudou a revolução islâmica do Irã como algo positivo e revolucionário. O ponto negativo está na ênfase positiva dado por Onfray à leitura da obra A sociedade aberta e seus inimigos de Karl Popper (p.209) que nos parece, cada vez mais, uma das piores interpretações que alguém poderia fornecer para a filosofia platônica e hegeliana. Se tal elogio fosse feito no mesmo período em que Foucault se equivocou, poderia ser até solidariedade francesa. Aqui é somente mais um equívoco, mas agravado com pelo menos trinta anos de diferença.
A tradução da obra é, no geral, bem feita e sem problemas. Contudo, nos parece estranho que, na Introdução exista o título do opúsculo de Kant O que é as Luzes? quando o correto seria O que são as Luzes? (p.XIII). Outro pequenino erro é apontar, na bibliografia, Pseudo-Denis Areopagita quando, em português, se diz Pseudo-Dionísio Areopagita (p.199).
Contudo, apesar do seu excesso de retórica, e do claro estilo visceral francês, o texto de Onfray é, sem dúvida, um alento em tempos fundamentalistas. Além disso, outra de suas virtudes é um ótimo domínio das fontes e de sua correta citação, o que sempre pode ajudar o leitor interessado. Infelizmente, em alguns momentos, o texto não consegue realizar uma leitura original das fontes, tal como se esperava de uma obra tão divulgada e bem vendida em todo mundo. De qualquer modo, sua contribuição é inegável, pois ela nos desperta o desejo de ir além.
[1] Márcio Gimenes de Paula é Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe-UFS. Resenha recebida em set/07 e aprovada em dez/07.
https://doi.org/10.1590/S0101-31732007000200019