REFLEXÕES SOBRE A OBRA QUE O SR. HOBBES PUBLICOU EM INGLÊS, SOBRE A LIBERDADE, A NECESSIDADE E O ACASO[1]

G.W.F. Leibniz

Tradução e notas: William de Siqueira PIAUÍ[2]e Juliana Cecci SILVA[3]

1.        Desde que a questão da necessidade e da liberdade, com as que deladependem, foi outrora suscitada pelo célebre Sr. Hobbes e Sr. Jean Bramhall, bispo de Derry, graças aos livros publicados de ambas as partes; quanto a isso, acreditei fornecer uma explicação (connaissance) diferente (distincte) (embora já o tenha mencionado mais de uma vez), tanto mais que estes escritos do Sr. Hobbes até o momento não apareceram senão em inglês e o que vem deste autor geralmente contém algo de bom e de engenhoso. O bispo de Derry e o Sr. Hobbes se encontraram em Paris na residência do marquês, o então duque de Newcastle, no ano de 1646, quando entraram em debate sobre este assunto. A disputa se passou com bastante moderação; mas, um pouco depois, o bispo enviou um escrito ao milorde Newcastle e desejou que ele fizesse o Sr. Hobbes responder.[4][5] Ele respondeu; mas deixou claro, ao mesmo tempo, desejar que não se publicasse a sua resposta,[6]porque ele acreditava que pessoas mal instruídas podem abusar de dogmas como os seus, por mais verdadeiros que eles possam ser. Aconteceu, no entanto, que o próprio Sr. Hobbes a comunicou a um amigo francês, e permitiu que um jovem inglês fizesse a tradução dela para o francês em favor deste amigo. Este jovem homem guardou uma cópia do original em inglês e a publicou na Inglaterra sem o conhecimento do autor, o que obrigou o bispo a elaborar uma réplica e o Sr. Hobbes uma tréplica, e publicar todas elas juntas num livro de 348 páginas impresso em Londres no ano de 1656, in-4º, intitulado: “Questões concernentes à liberdade, à necessidade e ao acaso, esclarecidas e debatidas pelo doutor Bramhall, bispo de Derry, e Thomas Hobbes de Malmesbury”.[7] Há uma edição posterior, do ano de 1684, numa obra intitulada Hobbes’s Tripos, onde encontramos seu livro sobre a natureza humana, seu tratado sobre o corpo político, e seu tratado sobre a liberdade e a necessidade;[8] mas esse último não contém a réplica do bispo nem a tréplica do autor. O Sr. Hobbes raciocina sobre esse assunto com seu espírito e sua sutileza costumeiras: mas é uma pena que ambas as partes se interrompam por causa de pequenas provocações (petites chicanes), como acontece quando se é irritado em um jogo. O bispo fala com muita veemência e usa disso com certa arrogância. O Sr. Hobbes, por seu lado, não tem humor [suficiente] para poupá-lo, e demonstra bastante menosprezo pela teologia e pelos termos da escola a qual o bispo parece ligado.

2.        É preciso reconhecer que há algo de estranho e de insustentável nasopiniões do Sr. Hobbes. Ele pretende que as doutrinas que dizem respeito à Divindade dependam inteiramente da determinação do Soberano, e que Deus não é mais causa das boas ações das criaturas do que das más. Pretende que tudo aquilo que Deus faz é justo, desde que não há ninguém acima dele que possa puni-lo e contradizê-lo. Entretanto, fala algumas vezes como se o que dizemos de Deus não fossem senão elogios (compliments), isto é, expressões próprias para honrá-lo e não para conhecê-lo. Ele mostra, assim, acreditar que os sofrimentos (peines) dos maus devem cessar com a destruição deles; é quase a opinião dos socinianos,[9] mas parece que as suas vão bem mais longe. Sua filosofia, que afirma que só os corpos são substâncias, não parece muito favorável à providência de Deus e à imortalidade da alma. Ele não deixa de dizer coisas muito racionais sobre outros assuntos. Faz notar muito bem que não há nada que se faça ao acaso, ou melhor, que o acaso não significa senão a ignorância das causas que produzem o efeito, e que para cada efeito é preciso um concurso (concours) de todas as condições suficientes, anteriores ao evento; então, é evidente que nenhuma pode faltar, quando o evento deve acontecer, porque são estas as condições; e que o evento não deixa tampouco de acontecer quando elas se encontram todas juntas, porque são estas as condições suficientes (conditions suffisantes). O que faz voltar àquilo que eu disse tantas vezes, que tudo acontece por razões determinantes (raisons déterminantes), cujo conhecimento, se nós o tivéssemos, faria conhecer ao mesmo tempo por que a coisa aconteceu e por que ela não aconteceu de outro modo.

3.        Mas o humor deste autor, que o leva a paradoxos e o leva a contrariaros outros, fez-lhe extrair disso conseqüências e expressões exageradas e odiosas, como se tudo acontecesse por uma necessidade absoluta. Por outro lado, o bispo de Derry, na sua resposta ao artigo 35, p.327, observou muito bem que não se dá, quanto aos eventos com relação à presciência de Deus, senão uma necessidade hipotética, assim como todos nós concordamos; enquanto que o Sr. Hobbes quer que mesmo só a presciência divina bastaria para estabelecer uma necessidade absoluta dos eventos, o que também era o sentimento de Wiclef e mesmo de Lutero, quando ele escreveu de servo arbítrio,[10] ou em todo caso eles falavam assim. Mas hoje reconhecemos suficientemente que esta espécie de necessidade denominada hipotética, que vem da presciência ou de outras razões anteriores, não tem nada de que se deva alarmar; enquanto seria completamente diferente, se a coisa fosse necessária por ela mesma, de modo que o contrário implicasse contradição. O Sr. Hobbes tampouco quer escutar falar de uma necessidade moral, porque, com efeito, [para ele] tudo acontece por causas físicas. Mas tem-se razão, todavia, de estabelecer uma grande diferença entre a necessidade que obriga o sábio a agir bem (bien faire), que se chama moral, que tem lugar até mesmo com relação a Deus, e entre esta necessidade cega; segundo a qual Epicuro, Straton, Espinosa[11] e talvez o Sr. Hobbes acreditaram que as coisas existiam sem inteligência e sem escolha e conseqüentemente sem Deus; do que, com efeito, segundo eles não se teria necessidade, visto que graças a esta necessidade tudo existiria por sua própria essência, tão necessariamente quanto dois mais três deve ser cinco. E esta necessidade é absoluta, porque tudo aquilo que ela carrega com ela deve acontecer independentemente do que se faça; enquanto aquilo que acontece por uma necessidade hipotética acontece seguido da suposição que isto ou aquilo foi previsto (prévu) ou decidido (résolu), ou antecipadamente feito, e a necessidade moral traz uma obrigação de razão, que sempre tem seu efeito no Sábio. Esta espécie de necessidade é alegre e desejável, quando se é levado por boas razões a agir como fazemos; mas a necessidade cega e absoluta faria cair (renverserait) a piedade e a moral.[12]

4.        Há mais razão no discurso do Sr. Hobbes, quando ele concorda quenossas ações estão em nosso poder, de modo que fazemos o que queremos, quando nós temos tal poder e quando não existe impedimento, e sustenta, todavia, que nossas próprias volições não estão em nosso poder, de tal maneira que possamos, sem dificuldade e a nosso bel-prazer (bon plaisir), nos dar inclinações e prazeres (voluptés) os quais poderíamos desejar. O bispo não parece ter prestado atenção a esta reflexão, a qual o Sr. Hobbes também não desenvolve o bastante. A verdade é que nós temos algum poder também sobre nossas volições, mas de uma maneira indireta (oblique), não absoluta e indiferentemente. Isto foi explicado em alguns trechos dessa obra. Por fim, o Sr. Hobbes mostra, depois de outros [argumentos], que a certeza dos eventos e mesmo a necessidade, se existisse de maneira tal que nossas ações dependessem das causas, não nos impediria de realizar deliberações, exortações, censuras e elogios, castigos e recompensas; já que elas servem e levam os homens a produzirem as ações ou a delas se absterem. Deste modo, se as ações humanas fossem necessárias, elas o seriam por estes meios. Mas a verdade é que estas ações não sendo absolutamente necessárias, e independente do que quer que se faça, estes meios contribuem apenas para tornar as ações determinadas e certas, como elas o são de fato; sua natureza fazendo ver que elas são incapazes de uma necessidade absoluta. Ele fornece também uma noção bastante boa da liberdade, desde que seja considerada em um sentido geral comum às substâncias inteligentes e nãointeligentes, ao dizer que uma coisa é considerada como livre quando a potência (puissance) que ela tem não é impedida por uma coisa externa. Assim, a água que é retida por um dique tem a potência de transbordar, mas ela não tem essa liberdade; desde que ela não tem a potência de se elevar acima do dique; embora nada a impedisse então de transbordar, e que mesmo nada de exterior a impede de se elevar tão alto; mas para isso seria preciso que ela mesma viesse de mais alto, ou que ela mesma fosse elevada por alguma cheia de rio. Deste modo, um prisioneiro carece de liberdade, mas um doente carece de potência de ir embora.

5.        No prefácio do Sr. Hobbes há um resumo dos pontos contestados, osquais apresentarei aqui acrescentando algumas palavras de julgamento. [1º] De um lado, diz ele, afirma-se que não está no poder presente do homem escolher a vontade que deve ter. Isto está bem enunciado (bien dit), sobretudo com relação à vontade presente: os homens escolhem os objetos por meio da vontade, mas não escolhem suas vontades presentes; elas vêm das razões e das disposições. É verdade, todavia, que podemos buscar novas razões, e se dar, com o tempo, novas disposições; e por este meio podemos ainda procurar uma vontade que não se tinha, e que não podíamos nos dar imediatamente. Servindo-me da comparação do próprio Sr. Hobbes, é como o caso da fome ou da sede. Presentemente, não depende da minha vontade ter fome ou não, mas depende da minha vontade comer ou não comer: entretanto, quanto ao tempo que está por vir, depende de mim ter fome, ou, ao comer antecipadamente, de me impedir de tê-la numa tal hora do dia. É assim que existem com freqüência meios de evitar vontades ruins; e ainda que o Sr. Hobbes diga na sua réplica nº 14, p.138, que o estilo das leis é o de dizer: Você deve fazer, ou você não deve fazer isto ou aquilo; mas que não existe lei que diga: Você deve querê-lo ou você não deve querê-lo; é evidente, todavia, que ele se engana com respeito à lei de Deus que diz: Non concupisces, tu não cobiçarás: é verdade que esta proibição não considera os primeiros movimentos, que são involuntários. Sustentamos: 2º que o acaso (chance em inglês, casus em latim) nada produz, ou seja, sem causa ou razão. Muito bem, eu o aceito se se pretende falar de um acaso real; pois a fortuna e o acaso não são senão aparências que surgem da ignorância das causas, ou da abstração que se faz delas. 3º Que todos os eventos têm suas causas necessárias. Mal [enunciado]: eles têm suas causas determinantes, a partir das quais podemos lhes conferir razão, mas estas não são causas necessárias. O contrário podia acontecer sem implicar contradição. 4º Que a vontade de Deus faz a necessidade de todas as coisas. Mal [enunciado]: a vontade de Deus só produz coisas contingentes, que podiam acontecer de outro modo; o tempo, o espaço e a matéria sendo indiferentes a toda sorte de figuras e de movimentos.

6.        Do outro lado, segundo ele, afirma-se: 1º Que não só o homem é livre (absolutamente) para escolher o que ele quer fazer, mas também para escolher aquilo que ele quer. Isto está mal enunciado: não se é senhor absoluto de sua vontade para mudá-la imediatamente, sem se servir de algum meio ou habilidade para isto. 2º Quando o homem quer uma boa ação, a vontade de Deus concorre com a sua, de outro modo não. Isto está bem enunciado, contanto que se entenda que Deus não quer as más ações, embora ele queira permiti-las a fim de que não aconteça algo que seria pior do que estes pecados. 3º Que a vontade pode escolher se ela quer ou não. Mal [enunciado], com relação à volição presente. 4º Que as coisas [que] acontecem sem necessidade [acontecem] por acaso. Mal [enunciado]: o que acontece sem necessidade nem por isso acontece por acaso, isto é, sem causas e razões. 5º Que “não obstante Deus tenha previsto que um evento acontecerá, não é necessário que ele aconteça, Deus prevendo as coisas, não como futuras e como em suas causas, mas como presentes.” Aqui se começa bem e se termina mal. Tem-se razão de admitir a necessidade da conseqüência, mas não se tem motivo aqui para recorrer à questão de como o futuro (l’avenir) é presente a Deus; pois a necessidade da conseqüência não impede que o evento ou conseqüente não seja em si contingente.

7.        Nosso autor acredita que a doutrina ressuscitada por Arminius,[13]tendo sido favorecida na Inglaterra pelo arcebispo Laud e pela corte, e as promoções eclesiásticas [mais] consideráveis não tendo sido [concedidas] senão para aqueles deste partido; isso contribuiu para a revolta, que fez com que o bispo e ele se encontrassem no seu exílio em Paris, na residência de mylord Newcastle, e que entrassem em discussão. Eu não queria aprovar todas as atitudes do arcebispo Laud, o qual tinha méritos e talvez também boa vontade, mas que parece ter estimulado por demais os presbiterianos. No entanto, pode-se dizer que as revoluções, tanto na Holanda quanto na Grã-Bretanha, vieram em parte da enorme intolerância dos rígidos (rigides): e pode-se dizer que os defensores do decreto absoluto foram ao menos tão rígidos quanto os outros, tendo oprimido seus adversários na Holanda mediante a autoridade do príncipe Maurício, e tendo fomentado na Inglaterra as revoltas contra o rei Carlos I. Mas estes são defeitos dos homens e não dos dogmas. Seus adversários tampouco os poupam, testemunha a severidade que se usou em Saxe contra Nicolas Crellius e o procedimento dos jesuítas contra o partido do bispo de Ypres.

8.        O Sr. Hobbes observa que, depois de Aristóteles, existem duas fontesde argumentos: a razão e a autoridade. Quanto à razão, diz admitir as razões tiradas dos atributos de Deus, as quais ele denomina argumentativas, cujas noções sejam compreensíveis (concevables); mas ele afirma que existem outras das quais não se compreende (conçoit) nada, e que são apenas expressões com as quais nós pretendemos honrá-lo. Mas não vejo como se possa honrar a Deus com expressões que nada significam. Pode ser que tanto para o Sr. Hobbes quanto para o Sr. Espinoza, sabedoria, bondade, justiça não sejam senão ficções com relação a Deus e ao universo; a causa primitiva agindo, segundo eles, pela necessidade de seu poder (puissance), e não pela escolha de sua sabedoria: opinião da qual eu já mostrei suficientemente a falsidade. Parece que o Sr. Hobbes não quis se explicar o bastante, por medo de escandalizar as pessoas; no que ele é louvável. É também por isso, como ele próprio o diz, que tinha desejado que não se publicasse o que tinha se passado em Paris entre ele e o bispo. Acrescenta que não é bom dizer que uma ação que Deus não quer acontece; pois é dizer, com efeito, que Deus carece de poder. Mas acrescenta também que tampouco é bom dizer o contrário, e lhe atribuir o querer o mal; porque isto não é honrável, e parece acusá-lo de pouca bondade. Acredita, então, que nestas matérias a verdade não é boa de se dizer; e teria razão, se a verdade estivesse nas opiniões paradoxais que ele sustenta; pois parece, de fato, que conforme a opinião deste autor, Deus não tem bondade; ou ainda que aquilo que ele chama de Deus não é nada senão a natureza cega de um amontoado de coisas materiais, que age segundo as leis matemáticas, conforme uma necessidade absoluta, como fazem os átomos no sistema de Epicuro. Se Deus fosse como os poderosos (les grands) são algumas vezes aqui em baixo (icibas), não seria conveniente dizer todas as verdades que se referem a ele; mas Deus não é semelhante a um homem do qual freqüentemente é preciso esconder os desígnios e as ações; desde que sempre é permitido e racional divulgar os conselhos e as ações de Deus, porque eles sempre são belos e louváveis. Deste modo, as verdades que se referem à divindade são sempre boas de se dizer, ao menos com relação ao [que é] escandaloso (scandale); e se explicou, ao que parece, de uma maneira que satisfazia a razão e não ofende a piedade, como é preciso compreender que a vontade de Deus tem seu efeito e concorre para o pecado, sem que sua sabedoria ou sua bondade sejam prejudicadas por isso.

9.        Quanto às autoridades tiradas da Sagrada Escritura, o Sr. Hobbes asdivide em três tipos; umas, diz ele, estão comigo, as outras são neutras, e as últimas (troisièmes) parecem estar com o meu adversário. As passagens que ele acredita serem favoráveis ao seu sentimento são aquelas que atribuem a Deus a causa de nossa vontade. Como em Gn XLV, 5,[14] onde José diz aos seus irmãos: “Não vos aflijais e não vos entristeçais por terem me vendido para ser trazido aqui, já que Deus me enviou a vós para a conservação de vossa vida”, e versículo 8: “Vós não me enviastes para cá, mas Deus.” E Deus diz, Ex VII, 3: Eu endurecerei o coração do faraó.” E Moisés disse, Dt, II, 30: “Mas Sion, rei de Hesebon, não quis nos deixar passar pelo seu território. Pois o teu Eterno Deus tinha endurecido seu espírito e enrijecido seu coração, a fim de entregá-lo em tuas mãos.” E Davi diz de Semei, 2Sm, XVI, 10: “Que ele amaldiçoa Davi, pois o Eterno lhe disse: Amaldiçoa Davi; e que ele lhe dirá: Por que fez isso?” E, 1Rs, XII, 15: “O rei Roboão não escutou o povo, pois isto fora conduzido dessa maneira pelo o Eterno.” , XII, 16: “É a ele que pertence tanto aquele que se desorienta quanto aquele que o torna desorientado.” Versículo 17: “Ele tira o senso dos juizes”. Versículo 24: “Ele tira o centro dos chefes das nações, e os faz errar nos desertos.” Versículo 25: “Ele os faz cambalear como pessoas que estão embriagadas.” Deus diz do rei da Assíria, Is, X, 6: “Eu o despachei contra o povo, a fim de que ele faça uma grande pilhagem e que o deixe esmagado como a lama das ruas.” E Jeremias diz, Jr, X, 23: “Eterno, sei que o caminho do homem não depende dele, e que não está no poder do homem que caminha dirigir os seus passos.” E Deus diz, Ez, III, 20: “Se o justo se afasta da justiça e comete [uma] iniqüidade, quando eu tiver posto algum obstáculo a sua frente, ele morrerá.” E o salvador diz, Jo, VI, 44: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai.” E São Pedro, At, II, 23: “Jesus tendo sido entregue pelo desígnio determinado (conseil défini) e pela providência de Deus, vós o capturastes.” E, At, IV, 27 [e] 28: “Herodes e Pôncio Pilatos com os Gentios e os povos de Israel se reuniram para fazer todas as coisas que tua mão e teu desígnio tinham determinado anteriormente que deveriam ser feitos.” E São Paulo, Rm, IX, 16: “Não [depende] daquele que quer nem do que corre, mas de Deus que faz misericórdia.” Versículo 19: “Mas tu me dirás: por que ele ainda se queixa, pois quem é que pode resistir à sua vontade?” Versículo 20: “Mas de preferência, ó homem, quem és tu, tu que contestas Deus? A coisa criada dirá àquele que a criou: Por que tu me criastes assim?” E 1Cor, IV, 7: “Quem é que distingue tu de um outro, o que é que tu possuis que não tenhas recebido?” E 1Cor, XII, 6: “Mas é um mesmo Deus que opera todas as coisas em todos.” E Ef, II, 10: “Nós somos sua obra, sendo criados em Jesus Cristo para as boas obras que Deus preparou a fim de que nelas andássemos.” E Fl, II, 13: “É Deus quem produz em vós tanto o querer quanto o realizar, conforme o seu bel-prazer (bon plaisir).” Pode-se acrescentar à estas passagens todas aquelas que fazem de Deus ator de todas as graças e boas inclinações, e todas aquelas que dizem que somos como mortos no pecado.

10.    Agora eis aqui as passagens neutras, segundo o Sr. Hobbes; sãoaquelas onde a Sagrada Escritura diz que o homem tem a escolha de agir se ele quiser, ou de não agir, se ele não quiser. Por exemplo, Dt, XXX, 19: “Hoje tomo o céu e a terra como testemunhas contra vós; pois coloquei a sua frente a vida e a morte; escolhe, então, a vida, a fim de que vivas, tu e tua posteridade.” E Js, XXIV, 15: “Escolhas hoje aquele a quem vós quereis servir.” E Deus diz a Gad o profeta, 2Sm, XXIV, 12: “Vá, diga a Davi: assim o disse o Eterno, eu trago três coisas para ti; escolha uma das três, a fim de que eu a faça para ti”. E Is, VII, 16: “Até que a criança saiba rejeitar o mal, e escolher o bem.” Enfim as passagens que o senhor Hobbes reconhece que parecem contrárias à sua opinião, são todas aquelas onde está evidenciado que a vontade do homem não é conforme àquela de Deus; como Isaias, [Is, V,] versículo 4: “O que mais eu poderia fazer à minha vinha, que eu [já] não tenha feito? Por que eu esperava que ela produzisse uvas e ela produziu cachos silvestres?” E Jr, XIX, 5: “Eles construíram lugares altos para Baal, a fim de queimar no fogo seus filhos em holocausto a Baal; o que eu não mandei, e do que eu não falei, e no que eu jamais pensei.” E Os, XIII, 9: “Ó Israel, tua destruição vem de ti, mas teu auxílio está em mim.” E 1Tm, II, 4: “Deus quer que todos os homens sejam salvos e que eles cheguem ao conhecimento da verdade.” Ele confessa poder trazer muitas outras passagens, como aquelas que evidenciam que Deus não quer a iniqüidade, que ele quer a salvação do pecador, e geralmente todas aquelas que fazem saber que Deus manda [fazer] o bem e proíbe o mal.

11.    A estas passagens ele responde que Deus não quer sempre o queele manda (commande), como quando ele mandou Abraão sacrificar seu filho, e que sua vontade revelada não é sempre sua vontade plena ou seu decreto, como quando ele revelou a Jonas que Nínive pereceria em quarenta dias.[15] Ele acrescenta também que quando se diz que Deus quer a salvação de todos, isto significa somente que Deus manda que todos façam aquilo que é preciso para serem salvos: e que quando a Escritura diz que Deus não quer o pecado, isto significa que ele quer puni-lo. E quanto ao resto, o Sr. Hobbes o relaciona com a maneira como as pessoas falam. Mas lhe responderemos que não é digno de Deus que sua vontade revelada seja oposta à sua vontade verdadeira: que aquilo que ele fez Jonas dizer aos ninivitas era antes uma ameaça que uma predição e que, portanto, a condição da impenitência estava aí subentendida: também os ninivitas pregaram-na neste sentido. Dir-se-á também que é bem verdade que Deus, mandando Abraão sacrificar seu filho, quis a obediência mas não quis a ação, a qual ele impediu depois de ter obtido a obediência; pois esta não era uma ação que por ela mesma merecesse ser desejada; mas não é o mesmo caso nas ações que ele manifesta querer positivamente, e que são, com efeito, dignas de serem o objeto de sua vontade. Assim é a piedade, a caridade, e toda ação virtuosa que Deus ordena (commande); assim é a omissão do pecado, mais afastada da perfeição divina que qualquer outra coisa. Então, é incomparavelmente melhor explicar a vontade de Deus como nós fizemos nessa obra: deste modo, nós diremos que Deus, em virtude de sua soberana bondade, tem primeiramente (préalablement) uma séria inclinação a produzir, ou a ver e a fazer produzir todo bem e toda ação louvável; e a impedir, ou a ver e a frustrar todo mal e toda má ação; mas que ele é determinado por esta mesma bondade, unida a uma sabedoria infinita, e pelo próprio concurso de todas as inclinações primeiras (préalables) e particulares (particulières) na direção de cada bem e na direção do impedimento de cada mal, com o fim de produzir o melhor desígnio (dessein) possível das coisas; o que constitui sua vontade final e decretória: e que este desígnio do melhor sendo de uma tal natureza, que o bem deve estar realçado de algum mal, incomparavelmente menor que este bem, como a luz em meio às sombras; Deus não podia excluir este mal, nem introduzir certos bens excluídos deste plano, sem prejudicar sua suprema perfeição; e que é por isso que se deve dizer que ele permitiu o pecado de outrem, porque do contrário ele próprio teria feito uma ação pior que qualquer pecado das criaturas.[16]

12.    Penso que o bispo de Derry ao menos tem razão ao dizer (artigo XV,na sua Réplica, p.153) que a opinião dos adversários é contrária à piedade, quando eles relacionam tudo somente ao poder de Deus; e que o Sr. Hobbes não devia dizer que a honra ou o culto é apenas um signo do poder daquele que se honra, visto que se pode e que se deve mesmo reconhecer e honrar a sabedoria, a bondade, a justiça e outras perfeições: Magnos facile laudamus, bonos libenter; esta opinião que despoja Deus de toda bondade e de toda justiça verdadeira, que o representa com um tirano usando de um poder absoluto, independente de todo direito e de toda eqüidade, e criando milhões de criaturas para serem eternamente descontentes (malheureuses), e isto sem outra perspectiva senão aquela de mostrar seu poder; esta opinião, eu digo, é capaz de tornar os homens muito maus; e se ela fosse aceita, não precisaria outro diabo no mundo para desunir (brouiller) os homens de si mesmos e de Deus, como fez a serpente ao fazer com que Eva acreditasse que Deus, proibindo-lhe o fruto da árvore, não queria o seu bem. Na sua Réplica (p.160), o Sr. Hobbes se esforça para dar ornamento a este golpe, ao dizer que a bondade é uma parte do poder (pouvoir) de Deus, isto é, o poder de se tornar amável. Mas isto é abusar dos termos mediante um subterfúgio e confundir o que é preciso distinguir; e no fundo, se Deus não tem em vista o bem das criaturas inteligentes, se ele não tem outros princípios de justiça além tão somente de seu poder que o faz produzir, ou arbitrariamente aquilo que o acaso lhe apresenta, ou necessariamente tudo aquilo que se pode, sem que exista escolha fundada no bem: como ele pode se tornar amável? É então a doutrina, ou da potência (puissance) cega, ou do poder (pouvoir) arbitrário que destrói a piedade: pois a primeira destrói o princípio inteligente ou a providência de Deus, a outra lhe atribui ações que convém ao mau (mauvais) princípio. A justiça em Deus, diz o Sr. Hobbes (p.161), não é outra coisa senão o poder (pouvoir) que ele tem, e que ele exerce ao distribuir bênçãos e aflições. Esta definição me surpreende: não é o poder de distribuí-las, mas a vontade de distribuí-las racionalmente, ou seja, a bondade guiada pela sabedoria que faz a justiça de Deus. Mas, ele diz, a justiça em Deus não é como em um homem, que não é justo senão pela observação das leis feitas pelo seu superior. O Sr. Hobbes se engana também nisto, tanto quanto o Sr. Puffendorff[17] que o seguiu. A justiça não depende das leis arbitrárias dos superiores, mas das regras eternas da sabedoria e da bondade tanto nos homens quando em Deus. O Sr. Hobbes afirma, na mesma passagem, que a sabedoria que se atribui a Deus não consiste numa discussão lógica da relação dos meios com os fins, mas num atributo incompreensível, atribuído a uma natureza incompreensível para honrá-la. Parece que ele quer dizer que é um não-sei-quê atribuído a um não-sei-quê, e mesmo uma qualidade quimérica dada a uma substância quimérica, para intimidar e para distrair os povos mediante o culto que eles lhe oferecem. Pois, no fundo, é difícil que o Sr. Hobbes tenha uma outra opinião sobre Deus e sobre sua sabedoria, já que ele só admite substâncias materiais. Se o Sr. Hobbes estivesse vivo, eu não me furtaria a lhe atribuir opiniões que pudessem prejudicá-lo, pois é difícil isentá-lo disso; ele pode ter mudado de opinião logo em seguida, pois ele viveu bastante; deste modo, eu espero que seus erros não tenham sido perniciosos para ele. Mas, como eles poderiam ser para outros, é útil aconselhar àqueles que lerão um autor que, aliás, tem muito mérito, e o qual podemos aproveitar de muitas maneiras. É verdade que, propriamente falando, Deus não raciocina empregando o tempo, como nós, para passar de uma verdade a outra: mas como ele compreende tudo de uma só vez (tout à la fois), todas as verdades e todas suas ligações, ele conhece todas as conseqüências, e ele encerra nele de maneira eminente todos os raciocínios que nós podemos fazer, e é por isso mesmo que sua sabedoria é perfeita.



[1] As Reflexions sur l’ouvrage que M. Hobbes a publié en anglais, de la liberté, de la nécessité et du hasard é um apêndice à terceira parte da Teodicéia (Essais de Théodicée: sur la bonté de Dieu, la liberté de l´homme et l’origine du mal), publicada pela primeira vez em 1710. Esta é a obra a que o autor se refere nas muitas vezes que dirá nesta obra ou simplesmente na obra. Seguimos aqui o texto estabelecido por Jacques Brunschwig em LEIBNIZ, Théodicée, Paris: Garnier-Flammarion, 1969.

[2] William de Siqueira Piauí é Doutorando em Filosofia no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de São Paulo-USP sob orientação de Franklin Leopoldo e Silva e Professor Assistente do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe-UFS. Tradução recebida em set/2007 e aceita para publicação em dez/2007.

[3] Juliana Cecci Silva é Bacharel em Letras-Francês pela Universidade de São Paulo-USP.

[4] John Bramhall (1594-1663), bispo de Derry, refugia-se no continente desde 1644 e encontra em Paris em meados de 1646 Thomas Hobbes (1588-1679), que também se encontra refugiado desde

[5] . As etapas que foram publicadas da controvérsia entre os dois podem ser enumeradas da se-

[6] guinte maneira: (1) Hobbes, Of liberty and necessity; a treatise wherein all controversy concerning predestination, election, free will, grace, merits, reprobation, etc. is fully decided and cleared de 1654; (2) Bramhall, A Defence of true liberty from antecedent and extrinsecal Necessity, being an answer to a late book of Mr. Thomas Hobbes intituled A Treatise of Liberty and Necessity, Londres 1655; (3) Hobbes, The questions concerning liberty, necessity and chance, clearly stated and debated between Dr. Bramhall and Th. Hobbes, Londres 1656; (4) Bramhall, Castigations of Mr. Hobbes his last animadversions in the case concerning liberty and universal necessity, with an appendix concerning the catching of Leviathan, Londres 1658 e (5) Hobbes, An Answer to Archbishop Bramhall’s book called the Catching of the Leviathan, in Tracts of Mr. Hobbes, escrito em 1668 e publicado em Londres no ano de 1682. Eles se encontram na residência de William de Cavendish Newcastle (1592-1676), primeiramente duque depois marquês de Newcastle, um importante general inglês associado aos governos dos reis da Inglaterra Carlos I (1600-1649) e II (1630-1685).

[7] Em francês no original. Em inglês: The questions concerning liberty, necessity and chance, clearly stated and debated between Dr. Bramhall and Th. Hobbes; publicado pela primeira vez em 1656.

[8] Do grego tripous (de três), este livro publicado em Londres, em 1684, continha três textos: o primeiro, Human Nature sobre a natureza humana, ou os elementos fundamentais da política; o segundo, De Corpore Politico, ou os elementos da lei, moral e Política e o terceiro, The question concerning liberty, necessity and chance ao qual já nos referimos na nota anterior.

[9] Partidários das idéias de Socino – Lelio Sozzini (1525-1562), protestante italiano nascido em Siena, que defendia idéias contrárias à trindade nomeadas posteriormente de socinianismo; os últimos socinianos se refugiaram na Inglaterra e Holanda, por isso a menção a esse movimento.

[10] Leibniz se refere ao inglês John Wiclef ou Wyclif (1324-1384) nascido em Hipswell, tradutor da Bíblia para o inglês, por isso um dos precursores da reforma, e ao reformador alemão Martinho Lutero (1483-1546) nascido e morto em Eisleben, que escreveu uma obra intitulada de De servo arbitrio (Sobre o arbítrio servil), publicado em 1525, contra a Diatribe (dissertação) De libero arbitrio (Sobre o livre arbítrio) do humanista holandês Desidério Erasmo de Rotterdam (1469?- 1536), sendo está última escrita em atenção ao pedido de Henrique VIII, que reinou na Inglaterra de 1509 a 1547.

[11] Leibniz se refere ao filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.), que deu origem à escola chamada epicurismo e que defendia uma teoria na qual toda a natureza, incluindo a alma, eram formadas por átomos que declinavam (clinamen – no latim de Lucrécio) ao acaso (veja-se o § 8 do presente texto); ao peripatético Straton de Lâmpsaco (por volta de 335-268 a.C.) e, é claro, ao filósofo holandês Baruch Espinoza (1632-1677).

[12] No Resumo da controvérsia Leibniz faz a seguinte distinção: “É que a necessidade que deve ser evitada, a contrária à moralidade e que faria com que o castigo fosse injusto, é a necessidade intransponível (insurmontable), a que tornaria toda oposição inútil mesmo que se quisesse de todo coração evitar a ação necessária e quando fossem feitos todos os esforços possíveis para isso. Ora, é manifesto que aquilo não é aplicável às ações voluntárias, visto que [a partir delas] não se faria [uma determinada coisa] se assim não o quisesse. Do mesmo modo, a previsão ou determinação delas não é absoluta, mas ela supõe a vontade: se é certo que serão feitas, não é menos certo que se quererá fazê-las. Estas ações voluntárias, e suas conseqüências, não acontecerão [de tal forma que] não importe o que se faça, ou seja, quer se queira ou não, mas porque se fará e porque se quererá fazer aquilo que leva a isso. E isto está contido na previsão e na predeterminação e chega mesmo a constituir a sua razão. E a necessidade de tais eventos é chamada de condicional ou hipotética, ou mesmo de a necessidade da conseqüência, desde que ela supõe a vontade e os outros requisitos (réquisits), [ela se coloca] em lugar da necessidade que destrói a moralidade, que torna o castigo injusto e a recompensa inútil, presente nas coisas que serão o que quer que se faça ou o que quer que se queira fazer e, numa palavra, naquilo que é essencial; e é a isto que denominamos uma necessidade absoluta.” (Abrégé de la controverse, réduite a des arguments en forme, in: Essais de Théodicée, p.366-7).

[13] Leibniz se refere ao teólogo protestante holândes Jaques Harmensen Arminius (1560-1609), ao arcebispo de Canterbury na Inglaterra William Laud (1573-1645), ao príncipe Maurício de Nassau (1567-1625), ao chanceler de Saxe na Alemanha Nicolas Crellius ou Krell (1551-1592) e ao bispo (?) de Ypres na Bélgica. Também se refere às revoltas que se deram por conta principalmente de disputas religiosas entre católicos, protestantes, presbiterianos e puritanos, os quais também eram chamados de presbiterianos rígidos; ao que o texto se refere.

[14] Adotamos as abreviaturas utilizadas na Bíblia de Jerusalém e, para que não houvesse confusão, as colocamos em itálico; contudo, mantivemos a numeração romana seguida da arábica, como o próprio Leibniz utiliza.

[15] Leibniz se refere ao fato de Abrão, considerado o pai da nação judaica, ter sido provado por Deus que pediu a ele que matasse seu filho Isaac; mas diante de sua obediência, Deus impede que isso ocorra (veja-se Gn, XII, 1-18); e ao fato de Jonas ter avisado os ninivitas que sua cidade pereceria em quarenta dias a menos que todos eles, inclusive o rei, se arrependessem, o que ocorreu levando a cidade de Nínive a ser poupada (veja-se, Jn, II, 4-10).

[16] Nesse parágrafo, Leibniz lança mão de uma de suas teses mais conhecidas, ou seja, esse é o melhor dos mundos possíveis; realizado a partir das três potências infinitas de Deus: a sabedoria (sagesse), que se relaciona ao conhecimento da verdade e por isso aos infinitos mundos possíveis, a vontade (volonté), que se relaciona com o bem e por isso dá o critério de escolha do melhor, e o poder (puissance) que se relaciona com o ser e por isso é o que permite a realização do existente, escolhido a partir da sabedoria e da vontade e realizado graças ao poder (veja-se: Essais de Théodicée, I, §.7, p.108). Leibniz não perde de vista as regras de bondade da criação presentes aqui na ligação que ele estabelece entre a vontade divina e o bem, já no Discurso de Metafísica, §§ 1-3, ele lembrava que a Sagrada Escritura se refere ao fato que Deus olhou para sua criação e viu que era bom (como em Gn, I, 10 etc.).

[17] Leibniz se refere ao alemão Samuel Puffendorf (1632-1694), autor da obra O direito da natureza e das nações.