ANIQUILAMENTO E DESCRIAÇÃO: UMA APROXIMAÇÃO ENTRE MARGUERITE PORETE E SIMONE WEIL
Maria Simone Marinho Nogueira[1] [2]
MARIA SIMONE MARINHO NOGUEIRA, M. S. M.
Resumo: Neste artigo, pretendemos abordar o pensamento de duas mulheres (duas filósofas francesas) por meio dos conceitos de aniquilamento (anientissement), que encontramos em Le mirouer des simples ames de Marguerite Porete († 1310), e descriação (decréation) que aparece em Pensateur et grace de Simone Weil (1909-1943). Também usaremos a obra de Weil La connaisance surnaturelle composta pelos Cahiers d'Amérique e Notes ècrites à Londres, onde ela faz referência ao livro de Marguerite Porete. Deste modo, apresentaremos, num primeiro momento, a mística de Marguerite Porete, focando no conceito de aniquilamento. Depois, num segundo momento, mostraremos um pouco da mística de Simone Weil por meio do conceito de descriação. A partir deste segundo momento, já iremos traçando alguns paralelos para mostrar a semelhança entre a mística das duas pensadoras que se refletirá no terceiro momento deste artigo, onde apresentaremos Weil como leitura de Le mirouer des simples ames.
Palavras-Chave: Marguerite Porete. Aniquilamento. Simone Weil. Descriação. Mística.
Considerações iniciais
O que aproximaria o pensamento de duas mulheres tão distantes temporalmente, além do fato de ambas pertencerem a mesma região geográfica? Como as ideias de Marguerite Porete (†1310), uma mística do século XIII, condenada e queimada por heresia na Praça de Grève em Paris, chegaram ao conhecimento de Simone Weil (1909-1943)? Por quais caminhos os pensamentos destas duas mulheres seguiram até se encontrarem, nos propiciando um misto de assombro e admiração? O que levou um pequeno livro de um dos períodos mais ricos da Idade Média a iluminar uma mente por demais brilhante como a da filósofa francesa contemporânea? Enfim, quais elementos nos permitem aproximar a mística de Marguerite Porete da mística de Simone Weil, construindo pontes entre a Idade Média e o século XX?
Entretanto, antes de passarmos ao nosso texto propriamente dito, cabe aqui um pequeno esclarecimento. Sabemos o quão conflitante é a relação entre mística e filosofia e já tratamos um pouco sobre isto em alguns trabalhos (NOGUEIRA, 2015, 2017a, 2017b). Como este não é necessariamente o tema deste artigo, remetemos para alguns estudos que podem ajudar a refletir melhor sobre tais relações: (BRETON, 1996; BEIERWALTES, 2005; VANNINI, 2007; BINGEMER e PINHEIRO, 2010; e MCGINN, 2012[3]).
Da nossa parte, entendemos a mística, nas suas variadas vertentes, como um percurso que leva ao encontro do humano com o divino. Marguerite Porete, por exemplo, pode ser lida à luz da mística especulativa que tem como grande representante Mestre Eckhart. Sobre a possível influência que a mística francesa medieval exerceu sobre o místico alemão há alguns estudos, inclusive já nos debruçamos um pouco sobre o tema (NOGUEIRA, 2019).
No que diz respeito a Simone Weil, os seus textos místicos são mais difíceis de serem classificados, mesmo com o leque de denominações que a história da mística nos dá. Mesmo assim, o que gostaríamos de observar é que ao tratarmos da mística nestas duas mulheres não deixamos de abordar, também, as suas filosofias, uma vez que estes saberes nos parecem complementares e não opostos. Além disso, tanto Marguerite Porete quanto Simone Weil não deixam de ser pensadoras magistrais e, portanto, filósofas, pelo fato de serem também místicas. Afinal, como afirma Vannini (2007, p. 21), ao abordar as relações entre mística e filosofia, quando fala daquela, diz que se trata pura e simplesmente de filosofia, certamente feita com toda alma e não como trabalho ou mero passatempo intelectual. Ou, como escreve Bingemer (2007, p. 272) quando fala da experiência vital como inseparável do pensamento, escreve: “É parte do gênio feminino a capacidade de integrar todas as dimensões sem fragmentá-las.”
Marguerite Porete: vida e obra
Comecemos por situar a nossa primeira filósofa no seu contexto, fazendo uma breve apresentação dela e da sua obra. O pouco que sabemos da vida de Marguerite Porete nos chega de algumas crônicas da época e dos autos do processo inquisitório que a condenou como herege recidiva, relapsa e impenitente[4]. Assim, não temos como precisar a sua data de nascimento, mas apenas a de morte, 1310. As atas do processo também nos informam seu local de nascimento, ou pelo menos a região (Hainaut[5]) e seu nome e sobrenome: Marguerite de Hainaut, denominada a Porete. Sabemos, igualmente, que ela ficou presa por quase um ano e meio e permaneceu calada diante das insistências de seus algozes para que abjurasse as suas ideias ou confessasse seus “crimes”, sendo oferecido o sacramento da absolvição, desde que humildemente ela o solicitasse.
Enfim, somos notificados de que se trata do seu segundo processo, uma vez que já havia sido chamada atenção pelo Bispo de Cambrai e teve, inclusive, seu livro queimado, sendo proibida de escrever um novo[6] ou mesmo divulgar as ideias contidas no livro condenado. Mesmo assim, também sabemos pelos autos do processo que a mística medieval, depois da primeira condenação, fez várias cópias do seu livro e enviou a várias autoridades: “Além disso, você enviou o mesmo livro, sem fazer menção que havia sido condenado e sem remover as partes [condenadas], como se fosse bom e lícito, para o reverendo pai, Lorde John, Bispo de Châlons e para outras pessoas.” (BARTON, 2019).[7] Dito isto, passemos ao livro condenado, queimado, mas salvo, graças à rebeldia de Marguerite e à sensibilidade de quem quis preservá-lo e divulgá-lo.
Le mirouer des simples ames anienties et qui seulement demourent en vouloir et desir d’amour[8]. Este é o título do livro que condenou Marguerite Porete à morte na fogueira da Inquisição e nele é possível situar a nossa pensadora no seu locus, uma vez que o Mirouer (Miroir no francês moderno) é uma metáfora recorrente na literatura medieval. Assim, há desde os espelhos de instruções, obras sobre os saberes da época, como o Speculum majus de Vincent de Beauvais, do século XII, passando pelos Specula principum, até os espelhos normativos ou exemplares, como o Speculum virginum, do século XII. Importa notar, como escreve Mariani (2008, p. 59) que:
A obra de Marguerite Porete, Le mirouer des simples ames, escrita em língua vernácula, estando dentro de um contexto religioso, é “espelho exemplar”, isto é, um escrito inserido num gênero literário pertencente à tradição cristã, com intenção de “instruir” a respeito de um itinerário espiritual. Por outro lado, o livro não se restringe à função religiosa, é uma obra claramente marcada por elementos profanos.
Neste sentido, o Espelho é uma obra complexa que revela, dentre outras coisas, toda a cultura letrada da sua autora. Deste modo, Marguerite alterna a prosa e o verso; escreve em terceira e em primeira pessoa numa narrativa cheia de personagens que assumem determinadas posturas que, aos poucos, vão dando a conhecer, também, a própria pensadora, numa escrita de si, assumida, sobretudo a partir da segunda parte do livro, quando as personagens desaparecem e a mística francesa fala em primeira pessoa. Mas não é só isso que o Espelho revela. Ele reflete também os conhecimentos literários, teológicos e filosóficos de Marguerite Porete que compõem o seu Espelho, fazendo dele um tratado didático, portanto, um texto normativo ou exemplar, que revela um percurso místico.
Cabe ainda destacar, antes de finalizarmos esta parte sobre a vida e a obra de Marguerite Porete, o fato de ela escrever seu livro em língua vernácula [médio-francês (picardo)[9]], o que o tornou, assim, acessível ao público leigo, o que fazia do seu texto, do ponto de vista da ortodoxia da igreja, perigoso, já que ali, ao pregar as suas ideias, sobretudo a de liberdade, a autora afirma que a alma totalmente livre não se submete a nada, como podemos ler no seguinte passo do Mirouer:
A herança desta Alma é a perfeita liberdade, cada uma de suas partes tem o brasão de nobreza. Ela não responde a ninguém a menos que queira, se ele não é de sua linhagem; pois um nobre não se digna a responder a um vilão que o chama ou o convida ao campo de batalha. Portanto, quem chama uma tal alma não a encontra; seus inimigos não conseguem dela nenhuma resposta. (PORETE, 2008, p. 148).[10]
A nobreza do silêncio poretiano, durante todo o processo que sofreu, segue a nobreza da sua escrita e do seu falar, pois, recordando Michel de Certeau (2015, p. 259), se esboça, assim, uma “maneira de andar” animada pela seguinte questão: “como falar ou ser falado é constitutivo de existência?”[11] Transpondo a pergunta para Marguerite Porete, questionaríamos: “como escrever ou ser ouvido[12] é constitutivo de existência?” Lembremos que a mística francesa morre pelo seu livro e pelas ideias ali contidas. Logo, o falar ou o escrever é constitutivo da sua existência e é sobre esta existência que agora vamos falar através das ideias sobre o aniquilamento.
O Espelho poretiano e o anientissement (aniquilamento)
O conceito de aniquilamento não aparece com clareza em o Mirouer. Aliás, quando se trata de textos místicos medievais, eles diferem, sobretudo na forma dos textos de uma determinada tradição filosófica, como já apontamos no nosso artigo (NOGUEIRA, 2017a). De qualquer maneira, apesar de não aparecer ao longo do Mirouer definições do que seja aquele estado, todo o livro se articula do início ao fim na ideia de que as almas podem chegar a ser almas aniquiladas, isto é, almas livres de todo e qualquer intermediário que impeça a livre união do ser humano com Deus. O aniquilamento, por sua vez, pode ser lido de diferentes ângulos no texto poretiano, desde as três mortes (do pecado, da natureza e do espírito), passando pelos setes graus ou sete estados que a alma deve percorrer, até a “depuração” da própria linguagem por meio das apófases, estando tudo isso relacionado ao mesmo processo de aniquilamento da alma. Sigamos, então, o percurso oferecido por nossa mística medieval.
A ideia do aniquilamento das almas, como um percurso, aparece ao longo de o Espelho, mas há alguns capítulos específicos em que esta ideia é apresentada, seja de forma introdutória (prólogo), seja resumida (cap. 61), seja melhor explicitada (cap. 118). Lembremos que o Espelho poretiano é um livro de estilo exemplar, logo, a condução de seus leitores/ouvintes[13] é importante para sua autora. Assim, mesmo se tratando de um experienciar próprio e subjetivo, o Mirouer não deixa de ser um tratado mistagógico, portanto que conduz (ou ensina) outras pessoas. Sendo assim, logo no prólogo, as palavras iniciais são: “A alma, tocada por Deus e despojada do pecado no primeiro estado de graça, é elevada pelas graças divinas ao sétimo estado de graça, no qual tem a plenitude de sua perfeição pela fruição divina no país da vida.” (PORETE, 2008, p. 31). Nesta abertura, tomamos conhecimento da existência de uma alma, mas não de uma alma qualquer, mas uma que recebe o toque do Criador e se despoja do pecado (primeira morte) e que será elevada ao sétimo estado que lhe dará a fruição eterna.
Ainda no prólogo, mas agora o encerrando, encontramos a “meta” de o Espelho que nos ajuda a entender melhor o seu início: “Há sete estados nobres de existência por meio dos quais a criatura recebe o ser, se ela se dispõe a passar por eles antes de alcançar o estado perfeito; vos direi como, antes que este livro termine.” (PORETE, 2008, p. 32). Posto isto, Marguerite Porete vai narrando e conduzindo o/a leitor(a)/ouvinte na sua narrativa que traz muitas reflexões. Mas sigamos as indicações do aniquilamento. Depois de introduzir a ideia da alma tocada por Deus e despojada do pecado e anunciar os setes estados nobres da existência, escreve a mística medieval no capítulo 61, que tem como título Aqui Amor fala dos sete estados da Alma:
(Amor): ‒ Eu disse, diz Amor, que há sete estados, cada um com maior entendimento em relação ao anterior e sem comparação um com o outro. [...] Ainda assim, dos quatro primeiros estágios nenhum é tão elevado que a Alma não viva nele sem grande servidão. Mas o quinto estágio está na liberdade da caridade, pois é liberado de todas as coisas. E o sexto estágio é glorioso, pois a abertura do doce movimento da glória, que o gentil Longeperto dá, não é senão uma manifestação que Deus quer que a alma tenha de sua própria glória, que ela terá para sempre. Pois, por sua bondade, lhe dá essa demonstração do sétimo estado no sexto. (PORETE, 2008, p. 115).
Na citação acima, Marguerite Porete faz uma espécie de resumo dos sete estágios e apresenta, também, um paralelo e uma distinção entre os quatro primeiros e os três últimos, ainda que afirme que não há comparação entre eles. Assim, nos quatro primeiros, a Alma ainda não está aniquilada, pois ainda vive em estado de servidão. Embora não apareça na citação supra, sabemos que nos quatro primeiros estágios só acontecem duas mortes (a do pecado e a da natureza). Já no quinto estado, importante para o processo do aniquilamento, ocorre a terceira morte (a do espírito) e no sexto acontece uma demonstração do sétimo estágio, como lemos na citação supra, isso porque, como reforça Marguerite no capítulo 118: “Quanto ao sétimo estado, Amor o guarda em si para nos dar na glória eterna, e dele não teremos compreensão até que nossa alma tenha deixado nosso corpo.” (PORETE, 2008, p. 194).
Aproveitando a citação que fizemos do capítulo 118, é nele que Porete apresenta com detalhes, portanto, de forma mais desenvolvida os sete estágios, incluindo aí as três mortes, embora elas apareçam nos capítulos 54, 55, do 60 ao 65, 72 e 73, de forma mais explícita. De qualquer modo, o livro de Marguerite é um espelho que deve, como a alma aniquilada, refletir Deus e, neste direcionamento, as três mortes e os sete estágios aparecem e reaparecem ao longo do texto. Pensemos, então, sobre os estágios na sua relação com o aniquilamento da alma, focando nos elementos que mais refletem este processo, pois, como já dissemos, trata-se de um caminho percorrido e de uma tentativa de expressá-lo em palavras, mesmo no reconhecimento dos seus limites, como podemos ler na passagem seguinte, quando ela se descreve como uma tola no momento em que escreveu o seu livro porque se aventurou: “Em algo que não se pode fazer, nem pensar, nem dizer, não mais do que aquele que quisesse encerrar o mar em seu olho, ou carregar o mundo na ponta de um junco, ou iluminar o sol com uma lanterna ou com uma tocha.” (PORETE, 2008, p. 163).
Mesmo assim, apesar do reconhecimento dos seus limites e da sua finitude, Marguerite Porete se esforça não só em registrar sua experiência como em divulgá-la e, deste modo, abre o capítulo 118, com as seguintes palavras:
(Alma): ̶ Prometi, quando Amor me aprisionou, dizer alguma coisa sobre os sete estágios, que chamamos estados, pois eles assim o são, diz essa Alma. Esses são os graus por meio dos quais ascendemos do vale ao cume da montanha, tão isolado que aí vemos senão Deus, e cada grau está estabelecido num determinado estado. (PORETE, 2008, p. 188).
Como podemos notar, há uma metáfora que aparece no capítulo que abre a explicação dos sete estágios: a do caminho que leva do vale ao ponto mais alto da montanha (embora não seja a primeira vez que apareça no texto)[14]. Trata-se, portanto, de um caminho de ascensão, que conduz a um isolamento, onde só resta Deus. Entre o vale e o alto da montanha desenham-se sete estados que, como chamam atenção Cirlot e Garí (1999, p. 237), não é de modo algum um caminho linear, coincidindo com o discurso poretiano: ambos, caminho e discurso não progridem linearmente e por etapas, mas por meio de um movimento argumentativo e linguístico circular, como um espiral de proximidade e distância.
Este espiral de proximidade e distância, lembra, naturalmente, a figura do Longeperto (Loingprés) que aparece em várias partes do texto e que, apesar dos diferentes sentidos (todos relacionados), ou seja, os sentidos estão ligados à experiência religiosa de Marguerite, pertence, como analisa Kurt Ruh (2002, p. 368), à literatura cortesã, como o Romance de Alexandre, citado no início do Mirouer, e a poesia trovadoresca. Também a terminologia do amor utilizada por ela mostra todo o seu conhecimento da poesia amorosa profana e é usada para expressar o mais perfeito amor divino. O Longeperto comparece várias vezes para expressão deste perfeito amor na experiência mística poretiana.
Por exemplo, no capítulo 58, p. 111, onde aparece pela primeira vez, é chamado de centelha: “Onde a Alma permanece após a obra do arrebatador Longeperto, o qual chamamos uma centelha pela forma de abertura e rápido fechamento.” No capítulo 61, o termo aparece duas vezes. Na primeira, que já citamos, refere-se também à abertura do doce movimento da glória. Já na segunda aparição, ele é denominado de Trindade, p. 116: “Que o Longeperto é a própria Trindade, e mostra suas manifestações”. Para finalizar os exemplos, no capítulo 98, o Longeperto aparece como o único que pode quebrar o selo da clausura daqueles que estão no estado acima de seus pensamentos: “Esta clausura ninguém pode nem abrir, nem dela quebrar o selo, nem fechar quando ela está aberta. A menos que o gentil Longeperto, de muito longe e de muito perto, a feche e abra, pois só Ele tem as chaves, e ninguém mais as têm, nem poderia tê-las.” (PORETE, 2008, p. 164).
Como vemos nos exemplos acima, o Longeperto faz parte do percurso místico poretiano, sendo ele próprio um novo nome para Deus que, conforme muito bem analisa McGinn (2017, p. 380), são dois adjetivos que sugerem ser Deus não uma coisa (o que poderia dar a entender um substantivo), mas uma “relação”. Dialeticamente distante (longe) por sua infinitude e, ao mesmo tempo, próximo (perto) pela força do nosso desejo e pela nossa origem (divina). Daí, Marguerite falar muito mais dos seus efeitos sobre a alma aniquilada do que, propriamente, buscar defini-lo, como podemos ler no capítulo 84, onde a Alma fala para a Razão sobre a Alma liberada que vive livremente pela vida divina:
Pois quando ela está assim liberada em seus quatro aspectos e nobre em todos os ramos que descendem dela [...], então ela cai disso numa perplexidade, que se chama “nada pensar sobre a perplexidade do Longeperto”, que é o seu mais próximo. Portanto uma tal Alma não vive mais somente a vida de graça ou a vida do espírito, mas a vida divina, livremente [...], mas vive divinamente, já que nesse ponto Deus por si a santificou, e ninguém que possa ser contrário à bondade a pode alcançar lá. (PORETE, 2008, p. 146).
Posto isto, resumamos os sete estágios[15], que de alguma forma já vêm sendo pensados, para concluirmos esta parte do nosso artigo. Já dissemos que há uma diferença entre os quatro primeiros e os três últimos, posto que naqueles a alma ainda se encontra em estado de servidão, sobretudo da sua vontade, só ocorrendo, assim, duas mortes. Já nos últimos, com a terceira morte, a do espírito, a alma começa, efetivamente, o seu aniquilamento. Este processo, como afirma McGinn (2017, p. 368): “Pode ser descrito como a criação de uma identidade mística, embora paradoxalmente ocorra por meio da “des-criação” da pessoa em aniquilamento, sendo o objetivo final [...] ‘um 'eu' sem mim’.”[16]
Neste processo de aniquilamento, o primeiro estágio corresponde à morte do pecado e à observância da obediência aos mandamentos de Deus. No segundo, com a morte da natureza, a alma segue o que Deus aconselha aos seus amados especiais e despreza as riquezas e as honras. No terceiro, considerado mais difícil[17] do que os anteriores, a alma realiza a vontade de outro para destruir a sua e, assim, “é necessário pulverizar-se, rompendo-se e suprimindo-se, para alargar o lugar onde Amor gostaria de estar, e aprisionar-se em vários estados, para liberar-se de si mesmo e alcançar o seu estado” (PORETE, 2008, p. 190). Já no quarto estágio, a alma aparece inebriada de amor, completamente elevada nesta contemplação, o que Marguerite Porete considera muito perigoso, pois “essa alma está enganada, porque há outros dois estados que Deus dá aqui embaixo que são mais elevados e mais nobres que este” (PORETE, 2008, p. 191).
No que diz respeito aos três últimos estados, ou melhor, aos dois últimos, já que o sétimo só ocorre na vida eterna e por isso sobre ele nada se pode falar, vamos apresentá-los com citações diretas do texto, pois elas serão importantes para percebemos as semelhanças com as ideias místicas de Simone Weil. Assim, no que diz respeito ao quinto estado:
É aquele no qual a Alma considera que Deus é, Ele por meio de quem todas as coisas são, e ela não é [...], ela vê que a vontade deve querer somente a vontade divina, sem outro querer, e por isso lhe foi dada essa vontade. [...] Por isso não se preocupa mais com a guerra da sua natureza, pois sua vontade foi, com despojamento, recolocada no lugar de onde foi tomada, onde por direito ela deve estar. [...] Agora essa Alma é nada, pois vê seu nada por meio da abundância da compreensão divina, que a faz nada e a coloca no nada. E assim ela é tudo. (PORETE, 2008, p. 191-192).
Já o sexto estágio, define a mística francesa medieval:
É aquele no qual a Alma não se vê mais, qualquer que seja o abismo de humildade que tenha em si; nem vê a Deus, qualquer que seja a altíssima bondade que Ele tenha. Mas Deus se vê nela por sua majestade divina, que, por si, clarifica essa Alma de tal forma que ela não vê nada que não seja Deus mesmo, Aquele Que É, no qual todas as coisas são. [...] a Alma está liberada de todas as coisas, pura e clarificada [...] Mas essa Alma, assim pura e clarificada, não vê nem Deus, nem a si mesma, mas Deus se vê por si nela, para ela, sem ela. (PORETE, 2008, p. 193-194).
Como podemos perceber, a diferença entre os quatro primeiros estágios e o quinto e sexto é a vontade, expressa na existência de um eu bastante forte que obedece aos mandamentos divinos (primeiro grau); que (segundo grau) teme perder o que possui, mas segue preocupado em agradar ao Amado; que no terceiro grau procura destruir a sua vontade para realizar a vontade do outro, havendo, portanto, um querer, logo, um eu que quer; e no quarto grau este eu é ainda mais acentuado, uma vez que há a consciência de que se encontra nas delícias do toque do amor. No entanto, tudo muda nos estágios quinto e sexto quando ocorre a morte do espírito porque com este morre também a vontade e, morrendo esta, o eu, tão presente nos quatro primeiros estágios, desaparece para dar lugar à vontade de Deus, transformando-se a alma no seu espelho. Por isso, Porete pode afirmar no capítulo 135, já quase no final do seu livro:
O distante é o mais próximo, pois em si, a Alma reconhece melhor o mais próximo do que o distante, o que a faz estar continuamente em união com a sua vontade, sem a interferência de qualquer outra coisa que possa lhe acontecer. Tudo para ela é uma única coisa, sem um porquê, e ela é nada no uno. Agora ela não tem mais nada a fazer por Deus, nem Deus por ela. Por quê? Porque Ele é e ela não é. Ela não retém mais nada em si, no seu próprio nada, pois isso lhe basta, ou seja, Ele é e ela não é. Portanto, ela está despojada de todas coisas, pois está sem ser, lá onde estava antes de ser. Assim ela tem de Deus o que Ele tem e é o que Deus mesmo é, por meio da transformação do amor, no ponto em que estava antes de fluir da bondade de Deus. (PORETE, 2008, p. 224-225).
Simone Weil e seu percurso místico
A filósofa francesa contemporânea nasce em Paris em 1909 e morre na Inglaterra em 1943. Apesar de ter vivido apenas 34 anos, é difícil fazer um resumo da sua vida tão intensa e rica de pensamentos e ações quanto de obras. Sobre sua vida há uma extensa bibliografia, inclusive uma biografia escrita por uma amiga, La vie de Simone Weil, de Simone Pétrement (publicada em 1973). Além disso, a própria Simone Weil diz muito da sua vida nos seus escritos e também nas inúmeras cartas que escreve aos amigos e familiares. Como o acesso à sua vida e à sua obra é muito mais fácil do que à vida e à obra de Marguerite Porete, faremos uma breve contextualização aqui a partir da sua autobiografia espiritual (uma carta que se encontra no livro Espera de Deus).
Sendo assim, e embora consideremos a pensadora francesa como um todo, não abordaremos a Simone Weil professora de filosofia, militante das causas sociais, sindicalista, crítica do capitalismo (do colonialismo, do comunismo, do marxismo, do totalitarismo, da revolução), anarquista, operária (na fábrica e nos campos), amante dos gregos, interessada em todas as tradições religiosas; leitora dos clássicos, enfim, não será possível dar conta de tudo pelo que a parisiense se interessou e escreveu. Deste modo, focaremos apenas na Weil mística e isto deve ser visto não como uma classificação (nossa pensadora era avessa a este tipo de coisa), mas como uma forma didática encontrada para dar conta de um dos muitos aspectos desta mente genial. Comecemos por apresentá-la com as palavras de uma outra filósofa francesa, Simone de Beauvoir, que a define como um coração capaz de bater através do universo inteiro[18], expondo, a partir da própria Simone Weil, seu percurso espiritual.
Em uma carta escrita por volta de 15 de maio de 1942 e dirigida ao seu amigo Pe. Perrin[19], a quem ela se dirige apenas como Meu Padre, Simone Weil, dentre outros temas, escreve sobre a sua experiência mística. Inicia a carta falando do seu agnosticismo: “Posso afirmar que em toda a minha vida nunca, em momento algum, procurei Deus. [...] Pensei, desde a adolescência, que o problema de Deus é um problema para o qual nos faltam, neste mundo, os dados [...] Assim, não o colocava.” (WEIL, 2005, p. 56). Esta fala talvez seja para justificar o temor que ela tinha de ser influenciada por alguém ou por alguma leitura no domínio das coisas divinas[20]. Daí ela poder afirmar, abrindo mão da ideia de intermediário como fez Marguerite Porete, que: “Não me trouxe a inspiração cristã nem Cristo; pois quando o encontrei tal não quedava por fazer, estava feito, sem intermediação de qualquer ser humano.” (WEIL, 2005, p. 55).
Embora venha de uma família de judeus não praticantes e demonstre toda sua acolhida às mais diversas concepções religiosas, Simone Weil, como ela mesma escreve, sempre teve uma inspiração cristã, apesar de todas as críticas que fez à Igreja católica. Deste modo, seu itinerário espiritual passa pelo cristianismo. Assim, logo depois de passar um ano vivendo a experiência da fábrica como operária, os pais a levam para Portugal, numa tentativa de recuperá-la deste aprendizado por demais pesado para alguém de saúde tão frágil como era o seu caso. A sua narrativa é pungente, mas iremos direto ao ponto que nos interessa. Depois de dizer que se separa dos pais para ir sozinha a uma pequena aldeia portuguesa, que sua alma e seu corpo estavam em pedaços e que o ano na fábrica matara a sua juventude, ela escreve que era noite e festa do padroeiro e que as mulheres dos pescadores entoavam cânticos muito tristes, e continua: “Aí tive, repentinamente, a certeza de que o cristianismo é, por excelência, a religião dos escravos, que os escravos não podem senão aderir a ela, e eu entre eles.” (WEIL, 2005, p. 60).
O segundo momento do seu percurso espiritual ocorre em 1937, quando, ao visitar a pequena capela românica do século XII, Santa Maria degli Angeli, ela escreve: “Qualquer coisa mais forte do que eu obrigou-me, pela primeira vez na minha vida, a ajoelhar.” (WEIL, 2005, p. 61). Depois em 1938, em Solesmes, na França, ela estava na igreja e sentia fortes dores de cabeça. Lá encontrou um jovem inglês que lhe apresentou um poema do século XVII, intitulado, Love, que ela passou a recitar “aderindo de alma e coração à ternura que ele encerra” (WEIL, 2005, p. 62) e assim, continua: “Foi no decurso de uma dessas recitações que [...] o próprio Cristo desceu e me tomou.” (WEIL, 2005, p. 62). Para encerrar esta parte, vejamos o que ela diz sobre o Pai Nosso que “descobriu” estudando grego e decidiu recitá-lo todos os dias antes do trabalho na vindima e se surpreende porque acha a prática extraordinária e sempre ultrapassava a sua expectativa. Leiamos:
Por vezes, logo as primeiras palavras arrancaram o meu pensamento ao meu corpo e transportaram-no a um lugar fora do espaço onde não há nem perspectiva nem ponto de vista. O espaço abre-se. A infinidade do espaço normal de percepção é substituída por uma infinidade elevada à segunda ou, por vezes, à terceira potência. Ao mesmo tempo, esta infinidade da infinidade preenche-se, de um extremo ao outro, de silêncio, um silêncio que não é uma ausência de som, que é objeto de uma sensação positiva, mais positiva que a de um som. [...] Por vezes também [...] Cristo está presente em pessoa, mas a sua presença é infinitamente mais real, mais lancinante, mais clara e mais plena de amor do que a daquela primeira vez em que me tomou. (WEIL, 2005, p. 64-65).
Retomemos, para finalizar esta parte, alguns aspectos do percurso apresentado. A narrativa weiliana, ao contrário da poretiana, é direta, Cristo a toma ou sua presença é real ou ela se ajoelha diante da beleza, enfim, são relatos simples, mas intensos, como intensos foram os trinta e quatro anos de sua existência. Trata-se, portanto, de relatos de uma experiência mística, antes da sua leitura dos autores místicos, como ela mesma afirma na autobiografia espiritual. Mas sigamos agora com um texto mais reflexivo sobre alguns conceitos da mística weiliana, embora a vida de Simone Weil não deixe de ali pulsar.
Simone Weil e a décréation (descriação)
No livro intitulado A gravidade e a graça encontramos uma série de pensamentos de Simone Weil que dizem muito da sua forma de pensar ou dizer Deus, expressando, deste modo e na nossa interpretação, uma maneira também de enveredarmos na sua mística. Entretanto, como a ideia neste artigo é apenas de aproximar, via os conceitos de aniquilamento e descriação, as duas pensadoras em apreço, focaremos no texto weiliano supracitado apenas para dar conta deste paralelo, ou seja, não faremos aqui uma análise propriamente dita da sua mística que consideramos por demais complexa para ser exposta numa parte de um artigo, além do que, seria necessário analisarmos outros livros dela que aqui serão apenas mencionados. Sendo assim, vejamos o que Weil nos legou sobre a sua ideia de descriação.
Comecemos pelo pensamento intitulado Desapego. Ele antecede, na ordem da organização do texto, a Descriação que também é antecedida pela ideia de O eu e posterior a Descriação aparece o pensamento sobre o Apagamento. Sigamos, pois, esta ordem, à medida que estas ideias estão relacionadas. Assim, quando aborda o Desapego, Simone Weil fala de extinção do desejo, inclusive do desejo do bem absoluto. Quando a isto chegamos, diz ela, chegamos ao vazio que é mais pleno que todos os plenos[21] e arremata: “Se chegamos a isso, somos tirados de apuros, pois Deus preenche o vazio. Não se trata de forma alguma de um processo intelectual, no sentido em que o entendemos hoje. A inteligência nada tem a encontrar, só tem a desobstruir. Ela só serve para as tarefas servis.” (WEIL, 1993, p. 14). Ainda nesta parte do texto ela diz que “o apego é fabricador de ilusões, e quem quer o real deve ser desprendido” (WEIL, 1993, p. 15).
A crítica que faz à inteligência lembra a que Marguerite Porete faz à Razão (personagem), que está sempre procurando compreender com as suas categorias o que Amor lhe diz e, neste sentido, fica procurando encontrar algo, porém, como dizem as duas pensadoras, nada há para encontrar, mas muito a desobstruir, ademais, inteligência (Weil) e Razão (Porete) só se prestam às tarefas servis e o desapego está relacionado à liberdade. Além disso, apegar-se implica em fabricar ilusões, por isso Porete considera o quarto estágio como perigoso, porque a Alma se delicia e se apega ao toque delicado do Amor, produzindo, assim, a ilusão de ter chegado ao seu grau mais elevado. Este apego, por sua vez, está intrinsecamente relacionado à ideia do eu.
O pensamento sobre O eu, em Simone Weil, se abre com a seguinte afirmação: “Nada possuímos no mundo – pois o acaso pode nos tirar tudo – a não ser o poder de dizer ‘eu’. É isso que devemos dar a Deus, ou seja, destruir.” (WEIL, 1993, p. 27). Seguindo, portanto, a ideia do Desapego, e de outras que estão intercaladas entre este e O eu, a francesa contemporânea nos fala, com um vocabulário diferente da francesa medieval, da necessidade do aniquilamento do eu/alma para dar lugar a Deus ou para entendermos o vazio como a plenitude suprema, como ela escreve no pensamento que antecede O eu, cujo título é Desejar sem objeto. Mas voltando a O eu, ela escreve: “O pecado em mim diz ‘eu’.” Ora, em o Espelho de Marguerite Porete, somente com a morte da vontade, logo, do eu, é possível uma alma tornar-se aniquilada em Deus. Deste modo, como esclarece Carson (2002, p. 194), Simone Weil, assim como a Porete, se sente como um obstáculo para Deus. Desta forma, o processo de descriação é para ela um deslocamento de si mesma de um centro onde ela não deveria estar, pois é preciso abrir caminho para Deus.
Assim, inicia o pensamento sobre a Descriação definindo-a: “Descriação: fazer passar do criado ao incriado.” (WEIL, 1993, p. 33). Impossível não lembrar do que acontece com a alma poretiana depois da morte do espírito, ou seja, da vontade, pois, como escreve Marguerite Porete no capítulo 135, depois de afirmar que a alma não tem mais nada em si e isto lhe basta, “portanto, ela está despojada de todas as coisas, pois está sem ser, lá onde estava antes de ser” (PORETE, 2008, p. 225). Assim, passar do criado ao incriado não nos parece muito diferente de voltar a ser o que era antes de ser. Como escreve Palumbo (2014, p. 51), Simone Weil cunha um neologismo que apresenta notáveis correspondências com a experiência e a linguagem mística. Mas diferente do que lemos na Autobiografia espiritual em que ela fala das suas experiências místicas de forma quase objetiva, mesmo entendendo este objetivismo como um não saber/poder dizer o que se passou na sua plenitude, na escrita de A gravidade e a graça uma linguagem mística mais elaborada se faz presente, embora não deixe de ser uma escrita nua e simples (adjetivos bastante convenientes aos místicos de uma maneira geral)[22].
Destarte, os textos de A gravidade e a graça não são correspondências, logo, Simone Weil está à volta com os seus pensamentos, podendo, por isso, refletir um pouco mais sobre si mesma, sobre Deus, a beleza, a dor, o vazio, a plenitude, enfim, sobre tudo que compõe o peso e a leveza ou a gravidade e a graça. Neste sentido, ainda sobre o tema da Descriação escreve:
A criação é um ato de amor e é perpétua. [...] É Deus que por amor retira-se de nós a fim de que possamos amá-lo. Pois se ficássemos expostos à radiação direta do seu amor, sem a proteção do espaço, do tempo e da matéria, seríamos evaporados como a água ao sol; não haveria suficiente eu em nós para abandonar o eu por amor. A necessidade é o anteparo colocado entre Deus e nós para que possamos ser. Cabe a nós atravessar o anteparo para cessar de ser. [...] Participamos da criação do mundo ao nos descriarmos. [...] Ser nada para estar em seu verdadeiro lugar no todo. (WEIL, 1993, p. 33-35, 37 respectivamente).
Como vemos, Weil coloca a criação como um ato de amor, diz que Deus se retira do mundo por amor e afirma que nós nos tornamos co-criadores quando ocupamos o nosso real lugar no todo, ou seja, nos descriamos. Dito de outra forma, a descriação em Simone Weil é um caminho ou um processo que nos torna nada, abrindo, assim, um espaço vazio para Deus. Abrir este espaço e devolver a ele o que ele nos deu, como ela escreve no pensamento relativo ao Apagamento, entrando em plena sintonia com a ideia do aniquilamento poretiano. Escreve belamente Weil (1993, p. 44-45):
Devo retirar-me para que Deus possa entrar em contato com os seres que o acaso põe em meu caminho e que ele ama. Minha presença é indiscreta como se eu estivesse entre dois amantes ou dois amigos. Sou, não a jovem que espera o noivo, mas o terceiro importuno que está com os noivos e deve afastar-se para que eles fiquem realmente juntos. Se ao menos eu soubesse desaparecer, haveria união de amor perfeito entre Deus e a terra em que caminho, o mar que escuto [...] Que eu desapareça a fim de que as coisas que vejo se tornem, por não serem mais coisas, perfeitamente belas. [...] Quando estou em algum lugar, maculo o silêncio do céu e da terra com minha respiração e o batimento de meu coração.
Deste modo, o conceito de descriação em Simone Weil pode ser lido ou compreendido em outros conceitos seus, como o desapego que, dentre outras coisas, significa matar pelo pensamento tudo que amamos; o eu que precisa ser destruído, pois privo Deus de tudo à medida que digo eu; até a ideia do apagamento, como vimos na citação acima em que a descriação parece chegar ao seu grau máximo, pois o meu ser (meu eu) impede o amor perfeito entre Deus e a sua criação, que sou eu mesma, que preciso me descriar para devolver ao céu e à terra o seu silêncio ordenador, consentindo, portanto, em deixar Deus passar ou simplesmente ver a sua criação através da minha descriação. Não parece forçoso, deste modo, afirmar que com o conceito de descriação a alma weiliana, semelhante à poretiana, se torna espelho de Deus.
Considerações finais: Simone Weil leitora de O espelho das almas simples
Mesmo tendo evitado a leitura dos místicos durante algum tempo, como vimos na carta enviada ao Pe. Perrin (Autobiografia espiritual), sabemos que Simone Weil, nos últimos anos de sua vida, dentre outras coisas, se dedicou à leitura daqueles autores. Cita, por exemplo, São João da Cruz em A gravidade e a graça e neste mesmo livro, num pensamento que já pelo título se mostra extremamente místico Aquele que é preciso amar está ausente, ela escreve, depois de falar sobre a presença de Deus na criação sob a forma da ausência: “Por isso, a mística é a única fonte da virtude de humanidade.” (WEIL, 1993, p. 121). Assim, nos seus últimos escritos, que tem como título O conhecimento sobrenatural[23], Weil cita vários místicos, dentre eles, Marguerite Porete, por meio do Mirouer. Como escrevem Cirlot e Garí, (1999, p. 251), ao falarem sobre Marguerite Porete, os séculos XVII e XIX foram de esquecimento para a obra poretiana, mas no século XX se renova o interesse, primeiro pelo livro, depois pela sua autora. Assim, se publica em 1927, ainda sem o nome de Porete, uma versão moderna que tem por base o manuscrito inglês.
Prosseguem as estudiosas espanholas: “E de novo uma mulher fica atônita diante de sua leitura. Chamava-se Simone Weil e, como demonstrou Luisa Muraro, impressionada pela grandeza desse Mirouer que ela atribui a um místico francês do século XIV” (ibidem), faz eco nas suas últimas obras, sendo a segunda, Notas escritas em Londres, redigidas meses antes de morrer, em 1943. Ou seja, o Espelho de Marguerite Porete circulou como anônimo ou atribuído a uma beata húngara durante muito tempo e somente em 1944, isto é, um ano depois da morte de Simone Weil, Romana Guarnieri, num grande trabalho de pesquisa, restitui o livro à sua verdadeira autora. Muitos pesquisadores confirmam que Simone Weil teve acesso a esta edição inglesa de 1927 em que o Espelho aparece como anônimo[24].
E de fato, a primeira referência ao livro de Marguerite Porete aparece nos Cahiers d’Amérique da seguinte forma: “«Miroir des âmes simples». Mystique français du XIVe” (WEIL, 1950, p. 162), e está no contexto em que ela escreve/pensa sobre alcançar o absoluto que não se exprime senão por identidades, pois somente uma identidade exprime o incondicionado. As outras referências aparecem nas Notes écrites à Londres e Simone Weil faz três referências ao Mirouer (capítulos V, IX e XIII)[25] no contexto em que reflete sobre a existência como não devendo ser percebida senão como o querer de Deus, chegando mesmo a afirmar: “Que tua criação desapareça absolutamente, a começar por mim.” (WEIL, 1950, p. 333). Ora, os capítulos citados por ela do Mirouer falam, exatamente, dos temas que se cruzam no conceito de descriação weiliano, como a morte da vontade, a ideia da não mediação e o amor[26].
Vejamos, pois, para finalizar nossa reflexão, o que Marguerite Porete escreve nos capítulos citados por Simone Weil. O capítulo 5 fala sobre a vida aniquilada. Nele, Amor diz que a alma aniquilada “não busca a ciência divina entre os mestres deste século, mas ao verdadeiramente desprezar o mundo e a si mesma”[27] (PORETE, 2008, p. 36), permanecendo para sempre na vontade divina. Ainda fala que não há nenhum intermediário entre o seu amor e o amor divino (lembremos do terceiro importuno que está no meio dos noivos que Weil fala em Apagamento, supra). No capítulo 9, só o título já seria suficiente para ter chamado a atenção de Weil, Como tais almas não têm mais vontade própria, mesmo assim, gostaríamos de destacar o seguinte passo: “Mas tal natureza é tão bem ordenada pela transformação da união do Amor, ao qual a vontade desta alma está conjunta, que a natureza não pede nada que não seja proibido.” (PORETE, 2008, p. 42). Ora, quando a vontade da Alma é a mesma do Amor (Deus), se desfaz, como escreve Weil, a criatura e se restabelece a ordem[28]. Já no capítulo 13, Marguerite Porete volta a falar sobre as almas não terem mais vontade, exceto a que Deus quer nelas e, por isso, são livres para fazer tudo que lhes agrade, “como testemunha o próprio Amor, [...]: minha amada, amai e fazei tudo o que quiserdes” (PORETE, 2008, p. 53)[29].
Neste mesmo capítulo, Porete, numa fala da personagem Razão, afirma que ninguém entenderá este livro a não ser pela virtude da fé e pela força do amor, reforçando a debilidade da razão que em o Espelho representa um determinado modo de pensar, o da instituição (Santa Igreja, a pequena) e não o modo de pensar movido pelo amor de Santa Igreja, a grande (formada pelas almas aniquiladas)[30]. Weil também valoriza a fé e o amor quando afirma, no pensamento sobre A inteligência e a graça: “A fé é a experiência de que a inteligência é iluminada pelo amor.” (WEIL, 1993, p. 141). Em relação à linguagem, o aniquilamento poretiano se dá também no seu auto reconhecimento como escritora que sabe da riqueza e também dos limites da sua linguagem. Ela o diz, refletindo sobre o próprio livro que escreveu, capítulo 119, repetindo posteriormente que pensar de nada lhe vale: “Meu coração foi atirado tão alto e desceu tão baixo que não posso completá-lo (este livro). Pois tudo que podemos escrever ou dizer sobre Deus, ou que podemos pensar, que é mais que dizer, é mais como mentir do que como dizer a verdade.” (PORETE, 2008, p. 195).
Simone Weil não parece pensar diferente quando escreve a Gustave Thibon para falar-lhe da possível publicação que ele faria dos seus cadernos. Redige a parisiense: “Na operação da escrita, a mão que segura a caneta, o corpo e a alma que estão ligados a ela, com todo seu ambiente social, são coisas de importância infinitesimal para quem ama a verdade.” (WEIL, 2003, p. 14)[31]. Ou seja, a verdade é sempre maior do que aquilo que podemos escrever sobre ela, mesmo assim, Marguerite Porete, como afirma no capítulo 97, se encarrega de escrever para tomar seu curso que vem em seu socorro. Weil (1993, p. 144), por sua vez, afirma que “a inteligência jamais pode penetrar o mistério, mas é capaz, e só ela, de explicar a conveniência das palavras que o exprimem”. Neste sentido, apesar da distância temporal e histórica, muitas semelhanças podem ser encontradas no pensamento dessas duas mulheres que fizeram dos seus textos um espelho de Deus. Mas todo espelho, para realmente exercer a sua função, ou seja, refletir, precisa ser polido, e este cuidado pode ser percebido, de forma exemplar, não só nos conceitos de aniquilamento e descriação analisados, como na própria escrita das duas filósofas que leem o mundo e são lidas a partir das suas leituras. Lembramos de uma passagem de Weil sobre Leituras e com ela encerramos nosso texto: “Lemos, mas também somos lidos pelos outros. [...] Forçar alguém a ler a si próprio como o lemos (escravidão). Forçar os outros a nos lerem como lemos a nós mesmos (conquista).” (WEIL, 1993, p. 148).
Referências
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[1] Professora Associada do Curso de Filosofia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Campina Grande, PB – Brasil. https://orcid.org/0000-0003-1141-3911 E-mail: mar.simonem@gmail.com
[2] Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade da UEPB.
Doutora em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Coimbra – Portugal. Líder do Principium: Núcleo de Estudo e Pesquisa em Filosofia Medieval/UEPB/CNPq e pesquisadora do Apophatiké: Grupo de Estudos Interdisciplinares em Mística/UFF/CNPq.
[3] O livro de Beierwaltes é todo dedicado ao estudo do grande pensador alemão Nicolau de Cusa. Mesmo assim há reflexões primorosas, nem sempre explícitas, entre mística e filosofia. Já McGinn, no primeiro volume da sua coleção sobre uma história da mística, traz no Apêndice, Seção 2, as Abordagens filosóficas da mística. Estes e outros livros citados aparecem nas nossas referências no final deste artigo.
[4] Para as atas da sentença de Marguerite Porete, veja-se Barton (2019, p. 156-160). Para uma análise mais detalhada do processo, veja-se Verdeyen (1986, p. 45-94).
[5] Hainaut, hoje, fica localizada na região sudoeste da Bélgica, mas na época de Marguerite Porete esta região pertencia ao reino da França.
[6] Existe a possibilidade de Porete ter escrito um outro livro que não nos chegou: L’Être de l’affinée amour. Quem levanta tal hipótese é o estudioso Raoul Vaneigem (1993, p. 129).
[7] Lorde John, citado nos autos do processo era um franciscano inglês. Além dele, Marguerite Porete enviou mais uma cópia a Goffrèdo di Fontaines, eminente teólogo da Faculdade de Teologia de Paris, e uma outra cópia é enviada a Dom Franco, um cisterciense da abadia de Villers. A referência a estas três personalidades aparece no final do livro de Porete, na tradução latina, com o título de Approbatio. Na edição brasileira que estamos utilizando, logo após o título do capítulo 140, A aprovação, aparece a seguinte nota: “A aprovação foi preservada no latim e no inglês médio e acrescentada pelos editores da edição crítica como capítulo final.” (SCHWARTZ, 2008, nota 29, p. 229).
[8] O título da edição brasileira é: O espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do Amor. Doravante referenciado apenas como Espelho ou Espelho das almas simples ou simplesmente Mirouer.
[9] O original em picardo (língua materna de Marguerite Porete. Hainaut ficava na região da Picardia) se perdeu. Mas deste original quatro traduções foram feitas: uma para o latim, quando Marguerite ainda estava viva e, logo depois da sua morte, duas para o médio-inglês e uma para o médio-francês. Isso mostra não só que cópias de o Espelho sobreviveram à fogueira da Inquisição, como também que essas cópias tiveram uma ampla divulgação.
[10] Percebe-se no passo acima citado a influência da literatura cortês, como o uso dos termos brasão, nobreza, linhagem, vilão, batalha, além das próprias ideias a que estes termos rementem, embora, claro, transpostos aqui para o plano da mística. Embora estejamos utilizando a tradução em língua portuguesa de Silvia Schwartz (2008), temos em mãos o original francês, editado por Romana Guarnieri e Paul Verdeyen (1986).
[11] Certeau coloca a questão quando fala dos aparelhos enunciativos que constroem a cena de um texto místico. De toda forma, é bom lembrar que o livro de Certeau se propõe, como o subtítulo indica, a estudar a mística dos séculos XVI e XVII. Além disso, o substantivo “mística” só surge, conforme o próprio estudioso, no século XVII. Até então o que se tem é o termo mística usado como adjetivo. De toda forma, o termo percorre uma longa história, desde “o adjetivo de um segredo” até “o substantivo de uma ciência” que não cabe refazer aqui neste artigo. Remetemos, assim, ao livro de Certeau (2015).
[12] Numa época em que poucas pessoas sabiam ler e escrever, mesmo em língua vernácula, além dos altos custos na produção de um livro (muitos eram considerados verdadeiras obras de artes), eles (os livros) devem ser “expostos” por aqueles que sabem ler e escrever. Talvez, por isso, em várias partes do seu texto, Marguerite Porete se refere aos seus leitores como ouvintes: “(Amor): – Agora ouvi e entendei bem, ouvintes deste livro […].” [PORETE, 2008, p. 49 (os destaques não aparecem no texto)]. Isto se repete ao longo do seu livro.
[13] Vide nota 11.
[14] No capítulo 9, p. 42, por exemplo, fala em vale da Humildade (valle d’Umilité) e montanha do Amor (montaigne d’Amour). No capítulo 74, p. 132, escreve, se referindo à alma: “Pois ela habita o fundo do vale, de onde vê o cume da montanha e de onde também vê a montanha a partir do cume. Nenhum intermediário pode penetrar entre os dois.” (PORETE, 2008).
[15] Embora sejamos tentados a não o fazer, afinal, como escreve MCGINN, 2017, p. 368-369: “Não é tanto que faltem a O espelho estruturas detalhando o processo de transformação mística (por ex., as sete etapas para a união no cap. 118), mas essas estruturas são necessariamente secundárias num tratado cujo objetivo total é negar estrutura. Introduzir fortes doses de confusão e vertigem no leitor é central para a terapia mística de O espelho das almas simples”.
[16] McGinn cita, na parte que intercalamos, Mommaers (1991, p. 88-107). Interessante perceber que o estudioso norte-americano, mesmo sem fazer referência, usa um conceito de Simone Weil quando fala do aniquilamento poretiano, o conceito de descriação.
[17] Sobre esta dificuldade, escreve Porete: “E esse é mais difícil, muito mais difícil do que os outros dois estados acima mencionados. Pois é mais difícil derrotar as obras da vontade do espírito do que derrotar a vontade do corpo ou realizar a vontade do espírito.” (PORETE, 2008, p. 190). Por isso a morte do espírito é tão importante para nossa pensadora, porque ela significa a morte da vontade.
[18] A definição diz respeito às lágrimas de Simone Weil quando sabe de uma grande fome que assola a China, mas como ação e contemplação não se separam na sua filosofia (ver nosso artigo NOGUEIRA, 2017, p. 1-11), assim como não se separam na mística, sobretudo a feita por mulheres, de uma maneira geral, pensamos ser uma frase que resume bem a filosofia weiliana e a sua pessoa. O contexto completo é o que segue: “Essa obstinação me impediu de tirar proveito de meu encontro com Simone Weil. Enquanto ela se preparava para a Escola Normal, cursava na Sorbonne os mesmos cursos que eu. Intrigava-me por sua inteligência de grande reputação e por seu modo estranho de se vestir; perambulava pelo pátio da Sorbonne escoltada por um bando de antigos alunos de Alain; trazia sempre no bolso de seu casaco um número de Libres Propos e, no outro, um do Humanité. A fome devastara a China e tinham contado que, ao saber dessa desgraça, ela chorara: essas lágrimas, mais do que seus dons filosóficos, forçaram meu respeito. Eu invejava um coração capaz de bater através do universo inteiro. Consegui um dia chegar-me a ela. Não sei mais como a conversa se iniciou; declarou-me em tom cortante que somente uma coisa importava hoje na terra: a Revolução que daria de comer a todos. Eu atalhei, de modo não menos peremptório, que o problema não consistia em fazer a felicidade dos homens e sim em dar um sentido à vida deles. Ela mediu-me dos pés à cabeça e disse: “Bem se vê que nunca teve fome.” Nossas relações não foram além. Compreendi que me catalogara: “Uma pequena-burguesa espiritualista”, e irritei-me como antes me irritava quando Mlle Litt explicava meus gostos pela minha infantilidade; acreditava-me liberta de minha classe: não desejava ser outra coisa senão eu.” (BEAUVOIR, 2009, p. 182, grifo nosso).
[19]Pe. Perrin é um dos responsáveis pela publicação de parte da obra de Simone Weil. Os outros dois são Gustave Thibon, que acolhe Simone em sua vindima e Albert Camus. Toda Obra da pensadora francesa (com exceção de alguns artigos que publicou em vida) foi publicada postumamente com a autorização da sua família. Ao Pe. Perrin, além das Cartas que trocaram, Simone Weil deixa alguns textos que ele publica (juntamente com as Cartas) sob o título Attente Dieu. A Thibon, ela confia parte dos seus Cahiers e ele os publica sob o título La pesanteur et la grace. O restante dos seus textos foi publicado por Camus, numa coleção intitulada Espoir, da editora Gallimard. Os textos organizados por Pe. Perrin e Thibon foram publicados em português, respectivamente: A espera de Deus e A gravidade e a graça.
[20] Por isso, nesta mesma carta ela escreve: “Nunca tinha lido os místicos, porque nunca tinha sentido nada que me ordenasse que os lesse. [...] Deus impedira-me misericordiosamente de ler os místicos, a fim de que me fosse evidente que não tinha fabricado esse contacto absolutamente inesperado”. (WEIL, 2005, p.62). Diz algo parecido em relação a prece: “Durante toda esta progressão espiritual nunca rezei. Temia o poder de sugestão da prece, [...].” (WEIL, 2005, p. 63).
[21] Como não lembrar de Marguerite Porete quando afirma no capítulo 81: “Ela caiu na certeza de nada saber e na certeza de nada querer. E esse nada do qual falamos, diz Amor, lhe dá tudo, e ninguém poderia ter isso de outra maneira.” (PORETE, 2008, p. 142-143).
[22] Não podemos deixar de mencionar aqui o prólogo que aparece em La connaissence surnaturelle (1950, p. 11-12), onde a linguagem mística weiliana difere tanto da que aparece em a Autobiografia espiritual quanto em A gravidade e a graça, aproximando-se muito mais da linguagem das místicas medievais.
[23] Conforme o editor da coleção, o livro é composto pelo conteúdo dos últimos cadernos (maio-novembro de 1942) de Simone Weil, sendo, em sua maior parte, pensamentos, esboços de obras, notas de leituras e também algumas bibliografias e citações. São sete cadernos e uma caderneta. Os cadernos são do período em que ela sai de Marseille para os Estados Unidos e daí para a Inglaterra. A caderneta inclui, principalmente, anotações da sua estada em Londres. Daí o título geral ser Cahiers d’Amérique (para os cadernos) e Notes écrites à Londres (para as anotações da caderneta). No geral, como explica o editor, o título do volume foi dado por ele por causa da frequência com que a expressão aparece nos pensamentos de Simone Weil: La connaissance surnaturelle (1950, p. 7-8)
[24] Alguns destes estudiosos aparecem nas nossas referências.
[25] A edição que Weil leu deve trazer as indicações dos capítulos em algarismos romanos, pois assim ela o cita.
[26] O tema do amor é central nas duas místicas abordadas, mas reconhecemos que ele não foi explorado neste artigo. Apesar de importante, é também complexo e por isso necessitaria de um artigo dedicado somente a ele.
[27] A semelhança com a última citação que fizemos de Simone Weil é marcante.
[28] É o que ela escreve em Descriação: “Restabelecer a ordem é desfazer em nós a criatura.” (WEIL, 1993, p. 36).
[29] Não podemos deixar de lembrar da famosa frase de Agostinho “dilige, et quod vis fac” (ama e fazes o que quiseres) que se encontra In Epistolam Ioannis ad parthos, 7, 8. De sua parte, Weil (1950, p. 322) escreve: “Não é preciso falar do amor da verdade, mas de um espírito de verdade no amor. Ele está sempre presente no amor real e puro.”
[30] Com a distinção entre as duas igrejas (a pequena e a grande) Marguerite Porete empreende uma crítica à igreja enquanto instituição. Simone Weil também não poupa críticas à instituição igreja. Basta ler apenas a sua Lettre à un religieux (1951) ou mesmo uma passagem como a que segue no pensamento O ateísmo purificador: “A religião enquanto fonte de consolo é um obstáculo à verdadeira fé[...]” ou de A inteligência e a graça: “O ateísmo, a incredulidade, constituem um equivalente dessa purificação.” (WEIL, 1993, p. 126 e 134).
[31] Esta carta se encontra na introdução feita por Thibon em uma tradução inglesa de A gravidade e a graça. A referência completa encontra-se no final deste artigo.