NOTAS SOBRE LÓGICA E DIALÉTICA NA ENÉADA DE PLOTINO[1]
Loraine OLIVEIRA[2]
■ RESUMO: Este trabalho objetiva caracterizar a lógica e a dialética, conforme a Enéada I, 3 [20] 4-5. Para Plotino, a lógica consiste em um conjunto de procedimentos que trata de proposições e silogismos. A dialética é um método que faz uso dos procedimentos lógicos. Mas é também uma disposição que permite compreender a estrutura do inteligível. Por conseguinte, é um caminho de ascensão rumo ao Uno. Neste sentido, tem um aspecto ético.
■ PALAVRAS-CHAVE: Plotino; lógica; dialética; método; disposição; ética.
O intuito deste estudo é examinar o que Plotino entende por lógica e por dialética, especialmente em suas relações com a linguagem e a filosofia, no âmbito dos capítulos quatro e cinco do tratado Sobre a dialética (I, 3 [20]). Tais relações apontam para o que se poderia entender como uma tensão entre a discursividade própria da Alma, portanto também da alma humana, e a supradiscursividade, própria do Intelecto, uma vez que atingi-la para então contemplar o Uno é o objetivo da filosofia. Entrementes, sendo este o escopo da filosofia de Plotino, não se pode deixar de observar a relação entre dialética e virtude. Com efeito, os possíveis caminhos que conduzem o homem ao Uno têm um traço comum: a purificação da alma pela virtude. Por este motivo, preliminarmente, são apresentados de modo sumário, temas dos outros capítulos do tratado, notadamente aqueles que pontuam a relação entre dialética e virtude.
Ainda é importante observar, a título introdutório, que a dialética recebe seus princípios do Intelecto, mas afigura-se como uma prática discursiva da alma humana, uma vez que sua função é conduzir a alma ao Uno/Bem ou primeiro princípio. Em grandes linhas, a Alma possui três atividades: inteligir o que lhe é anterior, conservar-se e agir sobre o que lhe é posterior. A estas atividades correspondem na alma humana respectivamente a dialética (dialektiké), o pensamento discursivo (diánoia) e o raciocínio (logismós) (cf. LACROSSE, 2003, p.120). De fato, tal distinção entre tais práticas discursivas não é tão evidente, pois, de um lado o pensamento discursivo confundese com o raciocínio. É o que ocorre, por exemplo, no tratado V, 3 [49], 2-3 quando Plotino explica como a alma humana faz o cotejo das impressões sensíveis com as inteligíveis. Por outro, é o pensamento discursivo que se torna dialético na medida em que vai realizando as práticas e operações dialéticas. Todavia, considerando tão-somente o tratado I, 3 [20], pode-se dizer que a dialética provém do mundo inteligível e volta-se para ele. A lógica, por sua vez, situa-se no âmbito do logismós, ou seja, é uma prática própria da alma agindo sobre o mundo sensível. Mais precisamente, sobre a linguagem.
Plotino define a lógica e a dialética no tratado I, 3 [20], Sobre a dialética. A arquitetura do breve tratado I, 3 [20] é bastante simples, como pode ser visto sumarizadamente. O tratado divide-se em seis capítulos, sendo os três primeiros uma descrição de certas teses da dialética platônica, sob a autoridade do Fedro e do Banquete, mas também da República. Nos capítulos quatro e cinco, Plotino define a dialética e, porque ela não consiste em um método de análise da linguagem, vê-se compelido a definir a lógica. Com efeito, nestes dois capítulos, Plotino trata de estabelecer a diferença entre o que ele considera a verdadeira dialética e aquilo que as escolas filosóficas da sua época denominavam correntemente dialética, e que ele denomina lógica.[3] Portanto, é destes dois capítulos que se ocupará o presente estudo, ao definir a lógica e a dialética. Todavia, não é escopo deste estudo investigar as possíveis fontes platônicas, estóicas e peripatéticas que servem de referência a Plotino em cada diferente movimento do tratado. Pelo que, somente marginalmente e ocasionalmente, serão indicadas. Por sua vez, o sexto capítulo trata de dois temas, a divisão da filosofia e a ascensão pelas virtudes, podendo ser lido em conexão aos três primeiros, e ainda, ao tratado anterior, I, 2 [19], Sobre as virtudes. Isto posto, antes de entrar na análise dos capítulos quatro e cinco, faz-se mister mencionar alguns aspectos dos três primeiros e do sexto.
Nos três capítulos inicias Plotino apresenta uma via metódica que conduz certos homens ao Bem e ao primeiro princípio. Ele ainda não denomina expressamente tal via pelo termo dialética, que é mencionado, no genitivo, pela primeira vez no tratado somente na última frase do terceiro capítulo e, no nominativo, na primeira frase do quarto capítulo. Ainda no final do terceiro capítulo, ele refere-se ao dialético (I, 3 [20], 3, 9), o que permite supor que estes três primeiros capítulos constituem um preâmbulo destinado a mostrar quais as condições e disciplinas propedêuticas à dialética propriamente dita. O ponto de partida do tratado é, com efeito, uma interrogação: “Qual técnica, qual método, qual conduta (epitédeusis) nos faz subir onde é preciso ir?” (I, 3 [20], 1, 1). Com esta pergunta, Plotino introduz três características da dialética, que é simultaneamente técnica, método e conduta, conforme ele mostra ao longo do tratado. Vale observar que esta é a única ocorrência do termo epitédeusis nas Enéadas. Este termo significa prática, incluindo o sentido de prática das virtudes, mas também ocupação, conduta; corresponde a epitedeúmata, que aparece no Banquete 210 c, quando Diotima descreve a ascensão da alma em direção ao inteligível, designando, por extensão de sentido, a prática da virtude. Desta maneira, Plotino estabelece de início um elo conceitual entre a dialética e as virtudes. Mas também é possível entrever, através deste termo, uma continuidade entre o tratado Sobre a dialética e o tratado anterior, tanto cronologicamente, como na edição porfiriana das Enéadas, I, 2 [19], Sobre as Virtudes. Enfim, Plotino introduz os conceitos que definem a dialética, que para ele é um método de purificação ética, ou em outros termos, a disciplina a qual a alma se impõe para ascender ao Bem (CHARRUE, 2003, p.469). Uma vez respondida a questão inicial, Plotino estabelece que seja preciso chegar ao Bem ou primeiro princípio, não sendo este um ponto passível de discussão (I, 3 [20], 1, 2-4).
Mas, nem todos os homens são capazes de ascender ao Bem. Plotino, portanto, apresenta aqueles que podem ascender. Ele parte de uma frase de Platão, na qual é dito que o tipo de homem capaz de elevar-se é aquele que contemplou anteriormente as realidades, ou seja, o músico, o amante, o filósofo (I, 3 [20], 1, 5 ss; cf. Fedro, 248d). Para Plotino, neste contexto, cada um destes tipos de homem representa um nível distinto de ascensão. Efetivamente, Plotino afirma que há duas etapas para a ascensão, uma do sensível até o inteligível, e outra, para aqueles que já chegaram ao inteligível.[4]Cada um dos três primeiros capítulos descreve um grau de ascensão, sucessivamente, representados pelos tipos de homens. Assim, após breve introdução ao tema do tratado, o primeiro capítulo ocupa-se do músico que, partindo das harmonias sensíveis, deve aperceber-se das relações de proporção e harmonia inteligíveis e da beleza que reside nesta harmonia. O músico pode tornar-se amante.
O segundo capítulo versa sobre o amante. Este lembra da beleza e necessita das belezas visíveis para transportar-se até a inteligível, comum a todos os corpos. É conduzido pela razão, entendendo que a beleza dos corpos é diferente da beleza inteligível, e que esta ocorre em maior grau nas belas ocupações (epitédeuma) e nas belas leis do que nos corpos.[5] O amante então deve ser acostumado a amar o incorporal. Deve encontrar a beleza nas técnicas, nas ciências e nas virtudes; deve ver a unidade do belo e como ela se produz. E a partir das virtudes, o amante pode ascender ao Intelecto e ao ser. Então, diz Plotino encerrando o capítulo, o amante poderá empreender a segunda subida, a do alto.
O terceiro capítulo versa sobre o filósofo. O filósofo é naturalmente disposto à subida, necessitando tão-somente de orientação quando se sentir desorientado. Há que lhe ensinar matemática, a fim de que se acostume a compreender o incorpóreo e a ter confiança em si. E depois da matemática, proporcionar-lhe um treinamento na dialética (dialektikês) para que se torne um dialético (dialektikón). Sendo por natureza virtuoso, basta conduzi-lo ao aperfeiçoamento de suas virtudes.
Alguns elementos preliminares à definição da dialética podem ser percebidos nestes capítulos. Trata-se, em primeiro lugar, de uma via ascendente. Em segundo lugar, a ascensão constitui um aperfeiçoamento nas virtudes. Nesse sentido, a dialética, por um lado, constitui uma condição de acesso ao saber e às demais virtudes. Mas por outro lado, quem não possui as virtudes inferiores que são virtudes que existem de modo imperfeito sem a dialética, não pode se tornar um dialético. Este é, com efeito, o tema da segunda parte do sexto capítulo.[6]
O sexto e último capítulo do tratado, tido como sendo de difícil interpretação pelos comentadores, foi considerado, inclusive, escrito por Porfírio com o objetivo de acentuar o caráter moral de um tratado consagrado à dialética e à lógica. Porfírio teria procedido desta maneira com o fim de incluir o tratado no grupo I, 1-9, que é constituído de tratados morais.[7] Entretanto, o contexto ético é de suma importância para a justa apreciação do acentuado caráter platônico do desenvolvimento da dialética, de tal modo que este texto poderia ser considerado parenético, como observa Leroux.[8] Ademais, sendo a dialética um método apropriado à virtude, ela se distingue da lógica, a qual não tendo relação com as virtudes, é vista como um exercício prévio à purificação da alma.
Neste sentido também pode ser lida a primeira parte do capítulo, que mostra o elo entre a dialética e as outras partes da filosofia, a física e a ética, mostrando que a dialética é, dentre elas a mais preciosa. Ora, a lógica não constitui uma parte da filosofia, sendo, sob este ponto de vista, distinta da dialética. Entrementes, a lógica afigura-se como uma parte propedêutica do método dialético, haja vista que se restringe ao mundo sensível. Podese, agora, apresentar a definição de lógica e de dialética que se encontra nos capítulos quatro e cinco do tratado Sobre a dialética.
Segundo Plotino a lógica (logikén) trata de proposições e silogismos,[9]podendo ser caracterizada como uma técnica de análise da linguagem que, versando sobre palavras, não se ocupa das formas. Esta distinção é importante para definir os limites da lógica. Porém, para que fique efetivamente clara, é mister verificar a relação entre linguagem, pensamento discursivo e Intelecto, observando que este é a sede das formas.
Plotino, em V, 5 [32], 5, 22-25 faz coincidir a gênese das palavras com a do próprio Intelecto. Ao nascer, o Intelecto tenta imitar o Uno e irrompe nestas vozes: ente (ón), ser (tò eînai), essência (ousía), lugar (hestían). Estas vozes significam a vinda à existência de quem as pronuncia. As palavras noéticas, sendo as primeiras palavras, constituem a forma das palavras sensíveis. Ou seja, no inteligível, ser e dizer se implicam mutuamente. O mesmo não se aplica à linguagem proposicional, ou à linguagem humana de modo geral, que não implica propriamente o ser, mas na qual o dizer pode, quando muito, explicar, desdobrar o ser na sucessão lógica. Em outros termos, a linguagem humana, entoada no discurso materializa as silentes palavras inteligíveis. Segundo Plotino, a linguagem tem o ar por matéria,[10]donde deduz-se que o elemento fônico corporifica, exterioriza o pensamen
to discursivo, possibilitando o diálogo. Assim, a linguagem é o modo propriamente sensível de expressar o pensamento discursivo na sucessão do antecedente e do conseqüente, do princípio e da conclusão, enfim, da consecução lógica (akolouthía).[11]
Voltando ao tratado I, 3 [20], no capítulo 5, Plotino menciona os procedimentos da lógica, ou seja, as regras (kanónes) e os teoremas. O que se lê na linha 20, por exemplo, “negar o conseqüente é afirmar o contrário do antecedente”, é uma regra lógica.[12] Por teoremas Plotino parece entender um conjunto de fórmulas lógicas, que assim como as regras constituem um instrumento (órganon – linha 10) para o filósofo. Todavia, teoremas vazios (psilà theorémata – linha 11) e fórmulas meramente verbais, não são de interesse para o filósofo. Há de se observar, contudo, que tanto o termo kanónes como theorémata em outras passagens das Enéadas, notadamente no tratado V, 3 [49], referem-se a princípios que o Intelecto fornece para o pensamento discursivo. Portanto se em I, 3 [20] 5, denotam um registro lógico, é por se referirem apenas a proposições e silogismos.
Tanto as proposições como as regras, Plotino considera movimentos da alma (tà kinémata tês psykhés).[13] Uma vez que a lógica serve-se de um movimento da alma (a regra, o teorema) para versar sobre outro movimento da alma (a proposição), ela não conduz a alma ao repouso próprio do inteligível. Efetivamente, ainda que admita a lógica como algo necessário ao caminho de ascensão dialético, Plotino afirma que na unidade do inteligível e em repouso, a alma considera a lógica e a abandona.14 Ora, a alma chega à unidade após haver percorrido o inteligível dialeticamente – ponto este que será examinado a seguir. No momento, detenhamo-nos em uma indagação: por que considerar e abandonar a lógica quando se está em repouso, na unidade? Quiçá porque o critério de verdade das proposições só possa ser aferido a partir do ser. Ou, dito de outro modo, a verdade do dizer reside no ser e por fim, no princípio do ser. Se o ser, a essência, a forma das palavras, vem do Intelecto, justifica-se o motivo pelo qual ao chegar à unidade inteligível a alma aperceba-se dos limites da lógica e dos próprios limites da linguagem humana. Uma vez que o objeto da dialética não é a linguagem, mas sim o ser, ao encontrá-lo a dialética não pode mais se ocupar com regras de análise da linguagem. Isso significa abandonar a lógica. Assim, a dialética põe a lume as condições e limites da lógica, permitindo conseqüentemente atingir o mais completo conhecimento da sua natureza.[14]
Plotino define a dialética como disposição (héxis) que permite declarar por meio dos discursos (lógoi) o que é o inteligível.[15] Com efeito, ele considera a dialética como sendo a disposição mais preciosa (timiotáten héxin) que se encontra em nós porque ela versa sobre o ser, isto é, sobre o inteligível.[16] Assim, falar com veracidade sobre o ser só é possível exatamente porque a dialética é considerada um modo de saber discursivo através do qual a alma percorre e divide o inteligível em gêneros e espécies, para por fim chegar à unidade. Isso significa que o télos da dialética é levar a alma a repousar, ainda que precariamente, na unidade.
Ora, é consabido que todo caminho ascendente, nas Enéadas, tem uma via descendente que lhe corresponde. Por conseguinte, se a dialética permite à alma atingir o Intelecto, é exatamente porque a alma recebe do Intelecto os princípios da dialética, desde que seja uma alma capaz de recebêlos. Então a alma pode pôr em obra as operações dialéticas: ela compõe (syntíthesi), combina (symplékei) e divide (diaireî) as formas inteligíveis, até atingir o Intelecto perfeito.18 Para fundamentar este ponto, Plotino menciona Platão e, subliminarmente, passa a associar a dialética ao seu aspecto ético. A dialética é, assim, “o que há de mais puro no intelecto e na sabedoria prática (phronéseos)”.[17] Observando brevemente a teoria das virtudes nas Enéadas, verifica-se que a sabedoria prática (phrónesis) possui um duplo aspecto refletindo a pertença do homem tanto ao sensível, como ao inteligível. Assim, ela é virtude para a alma, e atividade pura para o Intelecto. O mesmo vale para a sabedoria (sophía).[18] Dessarte, as virtudes permitem à alma separar-se do sensível, isto é, desligar-se dos afetos, e voltar-se para o inteligível, ou seja, contemplar o ser. Portanto, elas conduzem a alma humana em direção ao Intelecto, permitindo que a alma se assemelhe a ele. Isto posto, compreende-se a associação entre ética e dialética: Plotino, após introduzir o conceito de sabedoria prática no tratado Sobre a Dialética, afirma que, como sabedoria prática, a dialética concerne ao ser; como intelecto, concerne ao que está além do ser.[19]
Após vincular dialética e ética, Plotino introduz outro ponto: a dialética não é um simples instrumento para o filósofo, posto não estar restrita a regras.[20] Ora, isso não significa que a dialética prescinda absolutamente de regras, pois se ela versa o ser e coisas reais, se aproxima deles com método (hodôi) possuindo ao mesmo tempo os teoremas e as realidades.[21] Vale observar que o termo normalmente traduzido por método nesta passagem, hodôi, é o dativo de hodós, cujo sentido próprio é “caminho”. O dativo instrumental expressa a idéia de espaço percorrido. É possível então compreender a passagem deste modo: por um caminho metódico a dialética atinge os seres. A insistência na noção de caminho decorre de considerações feitas no capítulo 1 do tratado Sobre a dialética, onde Plotino diz que a ascensão até o princípio é um caminho que se cumpre em duas etapas, a primeira do sensível até o inteligível e a segunda, do inteligível até o Uno.[22] A dialética tendo por objeto o inteligível constitui a segunda parte do caminho. Assim, o conjunto de procedimentos de que se serve para chegar ao Intelecto constitui o método ou, em outros termos, o caminho metódico. Como pois opera a dialética para atingir o repouso? Vejamos, ainda que brevemente, como se caracteriza o procedimento dialético.
A dialética possuir os teoremas junto com as realidades não parece estar em desacordo com o abandono da lógica. Efetivamente, uma vez que ela não se ocupa com o objeto da lógica, ou seja, as proposições, não há motivos para seguir procedendo sua análise. Entretanto, se os teoremas e as regras têm sua origem no Intelecto, que também é onde a dialética encontra seus princípios, isso aponta para um outro aspecto: o caminho metódico da dialética também faz uso de procedimentos lógicos. Com efeito, ao apresentar o objeto da dialética, Plotino diz inicialmente que a mesma trata do Bem e do que não é o Bem; determina quantas coisas estão sob o Bem e quantas são o seu contrário. Define o eterno e o não eterno por meio de uma ciência e não de opinião.[23] Ou seja, determinar as coisas e seus contrários, assim como qualificar e quantificar são procedimentos lógicos de que a dialética se utiliza para determinar seu objeto. Uma vez separado o que pertence ao sensível daquilo que pertence ao inteligível, a dialética deixa de perambular pelo sensível, fixando-se no inteligível e então limitando a ele sua atividade.[24] É preciso advertir, no entanto, que mesmo separando conceitualmente o inteligível do sensível, em nenhuma parte do tratado I, 3 [20], Plotino afirma que o sensível constitua objeto da dialética. A expressão “perambular pelo sensível” aqui usada remete mais especificamente a este movimento de reconhecimento e distinção dos dois mundos, no qual evidentemente é preciso determinar os limites de cada um e, portanto, ainda que sumariamente, percorrê-los. Mas tal movimento é como um prelúdio à dialética, a qual, segundo Santa Cruz “é o único modo de saber que permite apreender e desenredar a complexa estrutura do inteligível e encontrar seus gêneros primeiros”.[25]
Por conseguinte, a dialética procede de acordo com um caminho metódico que é a própria definição das formas, seres ou essências inteligíveis. Ao definir os seres, determina as semelhanças e diferenças entre eles, o lugar que ocupam dentre os gêneros e a classe, ou seja, o gênero a que pertencem. Embora o tratado I, 3 [20] não forneça quaisquer explicações sobre os gêneros, pode-se considerar que Plotino está retomando os cinco gêneros supremos do Sofista: ser, movimento, repouso, mesmo e outro. Não é o caso aqui de adentrar a tese plotiniana dos gêneros, exposta em um tratado tardio, VI, 2 [43], mas tão-somente mencionar que os gêneros são considerados princípios constitutivos do Intelecto. São eles que estruturam o mundo inteligível e o revelam ao dialético. Assim sendo, a definição cumpre-se pelo método da divisão (têi diairései), que segundo Plotino consiste em separar (diákrisis) as formas até que se determine o que é (tò tí esti) cada forma e então chegar aos gêneros primeiros. A seguir, a dialética entrelaça os gêneros, percorrendo o inteligível, isto é, fazendo a síntese, e depois pelo caminho inverso, a análise, chega ao princípio de onde partiu, ou seja, à unidade, à imobilidade (hesykhía) do Intelecto.[26] O termo análise aqui deve ser entendido no sentido etimológico: um movimento de subida ao princípio e de liberação. É a análise que permite reunir, juntar a multiplicidade inteligível na unidade. Eis porque a dialética permanece no repouso enquanto estiver no inteligível.[27] Justamente neste ponto vimos que a dialética considera e abandona a lógica. E poderíamos pensar que na imobilidade,
no silêncio, também cessa a atividade dialética. Se isso fosse lícito, por que então Plotino apresenta a dialética como o hábito que permite declarar por meio dos discursos o que é o inteligível? Ainda que o tratado I, 3 não verse sobre os discursos dialéticos, ou, de modo geral, sobre a linguagem e seus limites, gostaria de concluir apontando, primeiro, brevemente para a relação entre linguagem e filosofia. Finalmente, para o aspecto ético da dialética. Me parece que este último ponto, em especial, permite compreender a especificidade da dialética em relação à lógica.
Vimos qual é a atividade da dialética e seu objetivo: procedendo pela divisão, ela distingue os gêneros, e depois, pela síntese os torna a entrelaçar. Pela análise, finalmente atinge a unidade. Ao encontrar os gêneros, pode-se dizer que chega nas premissas de uma definição correta das formas, dos seres inteligíveis. É isso o que permite à dialética formular conceitualmente e declarar por meio dos discursos o que é o inteligível. Em síntese, podemos agora dizer que a dialética é uma prática que, recebendo seus princípios do Intelecto, constitui-se como um saber através do qual (dia) ascende discursivamente (lektiké) da multiplicidade inteligível até a unidade. Quando finalmente chega na unidade, em uma retração supradiscursiva, repousa. Nas palavras de Jankélévitch, a dialética tende “a reunir os conceitos esparsos nos nossos teoremas e silogismos substituindo ao laço exterior da cópula ou da akolouthía (consecução lógica) esta imanência do inteligível a si mesmo”.[28] Segundo ele, os termos lógicos gramaticalmente justapostos, “vão se fundindo e se absorvendo mutuamente, se esclarecendo no sistema perfeitamente diáfano que é o universo inteligível”[29] na medida em que a dialética segue seu curso. Porém, cabe observar que este silêncio inteligível não significa o fim da linguagem, apenas do que poderíamos chamar “discursividade linguageira”.[30] Efetivamente, como vimos as palavras nascem com o Intelecto, por conseguinte, a retração supra discursiva é o reencontro do fundamento da linguagem, onde ser e dizer coincidem.
Por fim, não se deve obliterar que a dialética é uma disposição e, igualmente, uma conduta. Estes termos introduzem o elo entre dialética e ética, o qual finalmente se torna explícito quando Plotino afirma que, entendida como sabedoria prática, a dialética concerne ao ser. Ora, é consabido que a sabedoria prática é uma das virtudes que conduzem a alma à purificação. Quando a alma volta-se para o Intelecto, esta virtude associa-se à dialética, pois através dela, a alma contempla o ser inteligível. Não sendo possível, dados os limites deste estudo, adentrar na complexa teoria plotiniana das virtudes, apenas se tentou pontuar o aspecto ético da dialética, pois este parece ser finalmente, o elemento distintivo entre lógica e dialética. Afinal, a lógica, caracterizada como uma técnica de análise da linguagem, não tem nenhuma relação com as virtudes. Por conseguinte, não representa um caminho de ascensão rumo à unidade.
Com efeito, não se pode omitir que a filosofia de Plotino tem como pilar principal a união da alma humana com o primeiro princípio, também designado Uno, ou Bem. Ora, esta união pode perfazer-se por diferentes vias, mencionadas sumariamente no tratado Sobre a dialética. Ao percorrer o corpus plotiniano tentando compreender as outras duas vias, a do músico ou artista, e a do amante, mormente apresentadas nos tratados I, 6 [1], Sobre o belo e III, 5 [50], Sobre o amor, percebemos que o elemento comum aos três caminhos é a purificação da alma através das virtudes. Por isso, talvez, a filosofia de Plotino possa ser apropriadamente considerada ética. E também por isso, provavelmente, ele tenha relegado a lógica ao abandono no momento em que a alma atinge o inteligível. Quanto à dialética, parece tratar-se de um aperfeiçoamento mútuo da virtude e do conhecimento. Por isso, para Plotino, não há dialético que não possua as virtudes.
■ ABSTRACT: This article aims to characterize logic and dialectic in Enneads I, 3 [20] 4-5. For Plotin, logic is a whole of proceedings that deals with propositions and syllogisms whereas dialectic is a method that employs logical proceedings. Nevertheless, dialectic is also an disposition through which the structure of the intelligible can be understood. So, it is a way towards the One. Thus, it has a ethical aspect.
■ KEYWORDS: Plotino; logic; dialectic; method; disposition; ethics.
COLLETTE, B. Dialectique et hénologie chez Plotin. Bruxelles: Ousia, 2002.
JANKÉLÉVITCH, V. Plotin, “Ennéades” I, 3. Paris: Cerf, 1998.
LACROSSE, J. La philosophie de Plotin. Intelect et discursivité. Paris: PUF, 2003.
LEROUX, G. “Logique et dialectique chez Plotin”, Phoenix, 28 (1974), 180-192.
PLATÃO. República. Introdução, tradução e notas de M. H. da Rocha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
PLATON. Le Banquet. Traduction inédite, introduction et notes par L. Brisson. Paris:Flammarion, 2000.
________. Phèdre. Traduction inédite, introduction et notes par L. Brisson. Suivie de La pharmacie de Platon par J. DERRIDA. Paris: Flammarion, 2000.
________. Philèbe. Oeuvres complétes, tome IX – 2 partie. Texte établi et traduit par A. Diès. Paris: Les Belles Lettres, 1949.
PLOTIN. Enéades. Traités 7-21. Traduction sous la direction de L. Brisson et J.-F.Pradeau. Paris: Flammarion, 2003.
________. Enéadi. Plotini Opera, Scriptorum classicorum Bibliotheca Oxoniensis. Introdução e notas: HENRY, P. & SCHWYZER, H.-R. Oxford, Univ. Pr. (Editio minor), vv. I-III, 1964-1982.
PLOTINO. Enéadas. Introducciones, traducciones y notas de J. Igal. vols. I-III. Madrid: Gredos, 1992.
SANTA CRUZ, M. I. “Filosofia y dialéctica en Plotino”, Cuadernos de Filosofía, 39 (1993), 5-21.
SEXTUS EMPIRICUS. Contre les professeurs. Sous la direction de P. Pellegrin. Paris:Seuil, 2002.
VERRA, V. Dialettica e filosofia in Plotino. Milano: Vita e Pensiero, 1992.
[1] Este trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Para as transliterações do grego, seguem-se em geral as normas estabelecidas pela SBEC (Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos), todavia não é feita a notação diferencial das vogais longas e breves.
[2] Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG sob orientação de Fernando Rey Puente. Artigo recebido em set/07 e aprovado para publicação em dez/07.
[3] Como bem observa, em um valioso estudo, Leroux efetivamente se propõe a estudar o processo de separação entre a lógica e a filosofia (metafísica), tal como proposto por Plotino, e deslinda os elementos estóicos, peripatéticos e platônicos que constituem o plano de fundo do tratado em questão (LEROUX, 1974, p.180-92).
[4] Cf., I, 3 [20], 1, 12 sq.. Alusão a Banquete 210 a; República, VII, 532 a-b.
[5] Cf., I, 3 [20], 2, 1-8. Ver Banquete 210 c, onde aliás ocorre o termo epitedeúmata.
[6] Cf., I, 3 [20], 6, 8-24.
[7] Cf., LEROUX, G., op. cit., p.181.
[8] Cf., LEROUX, G., idem, ibidem.
[9] Cf., I, 3 [20], 4, 19.
[10] Cf., VI, 1 [42], 5, 5. Observe-se que neste tratado Plotino se refere explicitamente à linguagem falada.
[11] Cf., JANKÉLÉVITCH, V., Plotin, “Ennéades” I, 3. Paris: Cerf, 1998, p.62.
[12] “Se é dia, há luz, mas se não há luz, conseqüentemente não é dia” (SVF II, 242 = Sexto Empírico, Adv. Math., VIII, 223). Ao longo do capítulo 5, Plotino parece aludir a certos axiomas lógicos encontrados em Sexto Empírico e Crisipo.
[13] Cf., I, 3 [20], 5, 19-20. 14 I, 3 [20], 4, 16-20.
[14] Cf., VERRA, V. Dialettica e filosofia in Plotino. Milano: Vita e Pensiero, 1992, p.68.
[15] Cf., I, 3 [20], 4, 2-3.
[16] Cf., I, 3 [20] 5, 5-6. 18 Cf., I, 3 [20] 5, 1-4.
[17] I, 3 [20] 5. Alusão ao Filebo, 58 d 6-7. O termo intelecto aqui não parece referir-se ao Intelecto hipóstase, mas ao intelecto da alma, isto é, à parte meramente intelectiva da alma, que não está em contato com o mundo sensível, pois permanece sempre ligada ao Intelecto supremo.
[18] I, 2 [19] 6, 13-15.
[19] Cf., I, 3 [20] 5, 7-8. A expressão “além do ser” alude à República, 509 b9.
[20] Cf., I, 3 [20] 5, 8-11.
[21] Cf., I, 3 [20] 5, 12.
[22] Quanto ao vocabulário que denota a idéia de “caminho”, no capítulo 1, Plotino usa os substantivos anagogé (ação de conduzir para o alto – linhas 5, 18; da mesma família anágei linha 2), poreía (trajeto, viagem – linha 12), os verbos poreúo (transportar, conduzir – linha 15), anabaíno (subir – linha 13).
[23] I, 3 [20] 4, 6-9.
[24] Cf., I, 3 [20] 4, 9-10.
[25] SANTA CRUZ, M. I. “Filosofia y dialéctica en Plotino”, Cuadernos de Filosofía, 39 (1993), 5-21, p.11.
[26] Cf., I, 3 [20], 4, 12-16.
[27] COLLETTE, B. Dialectique et hénologie chez Plotin. Bruxelles: Ousia, 2002, p.83.
[28] JANKÉLÉVITCH, V., op. cit., p.78.
[29] Idem, ibidem.
[30] Segundo Collette, esta discursivité langagière é a alteridade característica de todos os modos de expressão próprios à alma no corpo, “uma alma que deve projetar em uma quase-exterioridade o que, na Inteligência, é um todo compacto e reunido sobre si mesmo” (COLLETTE, B., op. cit., p.72).