RESENHA/REVIEW

Gesuína de Fátima Elias LECLERC[1]

DASCAL, Marcelo. Interpretação e compreensão. Tradução de Márcia Heloisa Lima da Rocha. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p.729.

O livro do Prof. Marcelo Dascal enfoca a significação (em textos literários, jurídicos, científicos) com um compromisso metodológico explícito. É providencial para quem argumenta, sistematicamente, em favor de uma compreensão sobre interações sociais particulares (face a face) e recorrentes, como fazemos no campo da pedagogia. Aborda muitos temas (digressões, metáforas, controvérsias, mal entendidos, leis, chistes, sonhos, arte, entre outros recortes), mas com um fio condutor. Esse fio é “uma teoria da comunicação essencialmente griceana” (p.6), levando o (a) leitor(a) a compartilhar o tratamento epistemológico da pragmática, sobre uma base filosófica e lingüística.

A comunicação humana está essencialmente ligada à capacidade de utilizar meios semióticos (como a linguagem) para transmitir as “intenções comunicativas” de um indivíduo e a capacidade de reconhecer tais intenções. Minha proposta é analisar as diversas circunstâncias nas quais essas capacidades são utilizadas de maneira bem sucedida, bem como os mecanismos e princípios que tornam isso possível. Uma ênfase especial é dedicada aos casos em que a comunicação parece fadada ao fracasso (isto é, à falta de entendimento correto e de interpretação apropriada), como nas ocasiões em que uma pessoa diz uma coisa, mas pretende comunicar uma outra completamente diferente. (p.6)

O livro está dividido em três partes, dedicadas respectivamente aos aspectos teóricos (nove capítulos), de aplicação (doze capítulos) e da produção de alternativas (nove capítulos).

A primeira parte discute a concepção da pragmática associada às intenções comunicativas (p.26-53), e nela comparecem as principais noções que serão recorrentes. Dascal questiona os limites da tradição que consagrou a tricotomia (semântica, sintaxe e pragmática) segundo a divisão de Charles Morris, aprofundada por Rudolf Carnap (p.28). Quando a referência é explícita ao usuário da linguagem, pertence ao campo da pragmática; se nos abstraímos do usuário em favor das expressões daquilo que designam, estamos no campo da semântica, e quando por fim, nos abstraímos do que as expressões designam, para considerar as relações entre as expressões, estamos no campo da sintaxe. A eliminação dos falantes ocasiona prejuízo para uma abordagem da semântica e da sintaxe das linguagens naturais, marcadas pela imprecisão e dependência do contexto. A definição reducionista da pragmática como a disciplina que tem a tarefa de “coletar os fenômenos desdenhados por outras disciplinas” (p.30), segundo a classificação de Frege, descarta os fenômenos “irrelevantes para a preocupação semântica com a verdade” (p.31). A abordagem pragmática faz mais do que “reciclar” o que é descartado. Ao considerar que uma conversa não se desencadeia como uma sucessão desconexa de observações, porque os falantes se regulam por um “princípio cooperativo”, Grice desenvolveu uma lógica da conversação. Implicitamente cada participante reconhece na conversa um propósito comum ou uma direção mutuamente aceitável:

a interpretação pragmática é um processo inferencial, pelo qual o ouvinte tenta encontrar a hipótese explanatória mais adequada para o ato lingüístico desempenhado pelo falante no contexto da elocução. A necessidade de buscar uma hipótese explanatória se deve ao fato de o ato lingüístico em questão ser detectado, de alguma maneira, como “problemático”. (p.39)

O modelo de Grice, todavia, não permite saber se o falante está tentando enganar; para Dascal as objeções mostram que há necessidade de maior elaboração da noção de “intenção comunicativa” (p.50).

Do princípio geral de cooperação “faça a sua contribuição corresponder ao que é exigido, no momento em que ela ocorre, pelo objetivo ou a direção da interação em andamento” (p.55), decorrem quatro categorias às quais correspondem certas máximas conversacionais: Quantidade (faça com que a sua contribuição seja tão informativa quanto necessário para os atuais propósitos da interação); Qualidade (tente fazer uma contribuição verdadeira); Relação (seja relevante) e Modo (seja claro). A noção de relevância conversacional (p.54-74) é destacada. Grice não aprofundou aspectos sobre os tipos e focos de relevância, como eles se alternam no curso de uma interação e como a alternância dos temas é legitimada em uma conversação. A relação entre significado e compreensão é discutida através da apresentação de Estratégias de compreensão (p.75-104); valendo-se de monólogos auto-reflexivos e muito criativos, Dascal problematiza os processos de meio caminho entre a compreensão de um assunto e a capacidade para sua formulação (linguisticamente), envolvendo a escolha de quadros conceituais desde a avaliação sobre o recurso ao estado da arte dos assuntos, o esforço para a seleção de um conjunto de relações pela via sintagmática ou paradigmática, os papéis da análise e da síntese na compreensão até o reconhecimento da compreensão pré-analítica, os critérios de relevância para a seleção de características contextuais mais porosas e arbitrárias da experiência vivida. Em Duas modalidades de compreensão – compreender e captar, (p.105-23), o autor considera o dever de compreender implicado em todos os tipos de atos comunicativos, interlocutores e contextos e a capacidade de seguir regras ou convenções. Evidencia o recorrente princípio da caridade (vinte ocorrências no índice de assunto) como complementar ao dever, vinculado às máximas conversacionais.

Ao abordar Intenções individuais e coletivas (p. 124-37), Dascal apresenta a terminologia de John Searle sobre “estado intencional” (‘S(r)’ em que ‘S’ é uma variável para ‘modalidades psicológicas’, tais como e esperança, crença e desejo) e “ação intencional”, para questionar em que medida a análise da ação individual informa a respeito da ação coletiva. Recorre à “teoria popular”, à formulação da tipologia da ação e à noção de comportamento de grupo a partir da hipótese segundo a qual a ação coletiva é caracterizada por algum tipo de intenção compartilhada. O autor apresenta as contribuições de Leo Apostel que “sugere a fusão de diversas explicações já propostas na literatura sobre a filosofia da ação” ou “a agregação indivisível de todos eles em uma entidade chamada ‘o agente’ como a causa da ação” (p.131). Para aprofundar a relação entre semântica e pragmática, em Como funciona um conectivo? Entre semântica e pragmática:os dois tipos de mas – aval e ela” (p. 138-70), Dascal examina dois tipos de “mas”, em hebraico aval e ela, aplica análises similares utilizadas em relação às sentenças com but em inglês (G. Lakoff e R. Lakoff), mais em francês (Ducrot) evidenciando que a compreensão da oposição semântica e do contraste depende muitas vezes das características do contexto (João é economista; Ele não é economista, mas é um homem de negócios; John é republicano, mas é honesto; João é alto, mas Pedro é baixo, etc.;) e requer um quadro conceitual mais amplo do que a consideração dos conceitos de argumento, implicitação, expectativa e similares.

A conversação é considerada também sob as implicações do Compromisso e envolvimento (p.171-89); o compromisso (nêustico, componente da força ilocucionária, regra cerimonial) é um conceito absoluto (do tipo sim e não) avaliado frente à discussão na lingüística e na filosofia da linguagem, vinculado às regras e obrigações, enquanto o envolvimento (envolvimento tópico, interativo), é um conceito de segundo grau, vinculado à orientação cognitiva para a situação de fala. Sob o título Dicas, pistas e contexto (p.190-215), Dascal analisa a categorização das informações contextuais em tipos (extralingüístico e metalingüístico) e níveis (específico, convencional e geral/background), a categorização é ilustrada através da análise de um texto jornalístico. Finalmente, em Modelos de interpretação (p.216-32), Dascal apresenta os modelos criptográfico, hermenêutico e o pragmático, em suas especificidades e complementaridade. A ênfase é dada sobre o modelo pragmático aprofundando a partir da categorização entre situações de “interpretação radical” e “interpretação real”.

A segunda parte do livro é dedicada à aplicação e tem como capítulo de abertura o título Compreendendo as digressões, um estudo sobre a coerência conversacional (p.235-64) onde são apresentadas três abordagens: o estudo de elocuções consecutivas, exigência conversacional e reação conversacional, tópicos de discurso e derivações; as máximas conversacionais e os atos de fala indiretos; e a relevância condicional. As diferentes abordagens têm em comum a tentativa de explicar a coerência a partir de relações entre elocuções sequencialmente ordenadas no discurso, pares adjacentes ou demanda conversacional e reação. Dascal procura mostrar que a conversação precisa ser analisada como uma interação que incorpora as digressões. No capítulo intitulado Compreendendo as metáforas (p.265-93), Dascal explora as implicaturas em ocorrências da metáfora “além de x” nos títulos inspiradores de obras famosas, como Skinner (Para além da liberdade e da dignidade) e Freud (Para além do princípio do prazer). As metáforas remetem à insuficiência de x, como se prometessem superar a insuficiência. Ao considerar Três observações sobre pragmática e literatura (p.294300), Dascal se detém sobre as possibilidades e os limites para o enriquecimento mútuo entre a pragmática e a teoria da literatura, assinalando uma preocupação com “uma interdisciplinaridade verdadeira” (294) e aspectos sobre as especificidades da literatura (o estilo, o poder de criar seu próprio contexto, o uso de outras capacidades além das inferenciais para interpretação). Em compreendendo as controvérsias (p.301-13) Dascal se empenha em argumentar sobre a estrutura essencialmente pragmática de uma controvérsia, a partir de padrões entrecruzados de demandas que os contendores tentam identificar e atender com intervenções em lances sucessivos. A controvérsia difere da conversação, por não se apresentar como uma seqüência de elocuções na qual os contendores se alternam, mas uma seqüência de textos mais ou menos longas com várias demandas de respostas. O exemplo é analisado na contenda entre Arnauld e Malebranche. O capítulo Compreendendo os mal-entendidos (p.314-41) enfoca o papel significativo que os mal-entendidos exercem sobre a compreensão. Pode-se falar nas regularidades do mal-entendido (a freqüência da ocorrência, a freqüência com a qual é detectado e corrigido, como lidar com o mal entendido, qual é a causa do mal entendido, é um fenômeno binário, admite gradação)? Sim, e pode-se alegar que a noção de mal entendido também é necessária para a explicação do fenômeno lingüístico. Dascal se ocupa de “substanciar” essa alegação por meio de exemplos e do levantamento de hipóteses “sobre os diferentes papéis dos mecanismos lingüísticos, que têm a ver com o que pode ser chamado de administração do mal entendido na comunicação” (p.325). Em Compreendendo as leis (342-81), a pragmática é associada ao campo do direito, partindo da crítica à idéia de “clareza” do texto legal (se pode ser compreendido diretamente, então não precisa de interpretação) segundo o princípio cartesiano das idéias claras e distintas. Enfatiza a interpretação pragmática de atos comunicativos executados em textos legais, sem poder deixar de destacar as pressuposições de racionalidade da teoria da ação comunicativa de Habermas e a abordagem geral da filosofia da linguagem. Em Compreendendo chistes e sonhos, sociopragmática versus psicopragmática (p.382-99), Dascal retoma o uso da linguagem na compreensão dos sonhos e na construção dos chistes para explorar as peculiaridades do uso da linguagem em cada uma das duas atividades, a partir das analogias de Freud. Em Compreendendo a arte (40020), Dascal apresenta duas posições sobre a experiência estética (sentir/ compreender) para mostrar que além das perspectivas intelectualista e emotivista, outras capacidades cognitivas que podem ser agrupadas nos conceitos de saber como e saber que (know how/know that) para se extrair contribuições significativas para a educação estética e para o relacionamento artista/obra de arte/espectador. Avançando sobre o campo da aplicação, ao questionar Qual a importância da linguagem na inteligência artificial? (p.421-54), Dascal apresenta as posições clássicas que comparam o potencial das máquinas em relação às capacidades dos humanos, unificadas por um ponto de vista cognitivista (Hobbes e Fodor); e uma posição que privilegiou a linguagem como constitutiva da práxis humana, passível de ser considerada independentemente dos processos de cognição. Essas posições podem representar três tipos de pragmáticas a serem explorados, vinculados, cada qual, aos aspectos sociais, psíquicos e ontológicos. Na mesma direção, ao analisar a Pragmática na era digital (p.455-73), expõe o processo de refuncionalização do uso dos computadores, concebidos inicialmente como máquinas capazes de realizar cálculos, a partir de uma teoria que tentou captar a capacidade cognitiva humana de calcular e que engendrou o desafio de operar com linguagens nos domínios da sintaxe, da semântica e da pragmática. Outro campo de aplicação está relacionado com a Interpretação e tolerância (p.474-93); o significado da tolerância oscila entre conotações positivas (Locke, Mill) e negativas (o racionalismo crítico de Popper/princípio de tolerância restrita). A aplicação ultrapassa o campo teórico e o exemplo enfocado é o processo de Bertrand Russell, quando em 1940 foi judicialmente impedido de lecionar no City College de Nova Yorque. Sob o título Compreendendo outras culturas, a ecologia do espaço cultural (p.494-512), o enfoque, agora, recai sobre o relativismo que emerge como postura epistemológica, a partir dos antropólogos que se imiscuíram nos problemas para interpretar outras culturas. O autor está motivado, em primeiro lugar com a preocupação política e de mudança de atitude em relação à “destruição de vidas humanas e modos de vida” no Ocidente. Os antropólogos e outros cientistas sociais encontram-se às voltas com o fato de que quando se tenta realizar a etnografia do pensamento das sociedades ocidentais vê-se que “as comunidades acadêmicas mais eficientes não são maiores que a maioria das aldeias de camponeses e apresentam o mesmo padrão de crescimento endógeno” (p.503), como mostra o trabalho interpretativo de Clifford Geertz (falecido em 30 de outubro de 2006).

A terceira parte expõe alternativas metodológicas. Por que devo perguntar a ela? Dedica-se à análise do uso da linguagem como o indicador mais confiável para reconhecer o que se passa na mente de uma pessoa. Existem motivos para a escolha da interpretação de elocuções como o processo mais confiável entre os comportamentos humanos (p.515-24) e esses motivos “estão na intersecção de pelo menos três disciplinas filosóficas: a filosofia da ação, a filosofia da linguagem e a filosofia da mente” (p.517). A segunda alternativa é apresentada com o provocativo título Teoria dos atos de fala e pragmática, um estranho casal, é dedicada aos aspectos da análise filosófica sobre os fenômenos da linguagem comum, onde os pensamentos de Grice e Searle se aproximam e se distanciam (p.525-38). A terceira alternativa é analisada sob o título A estrutura pragmática da conversação, centrando-se nas questões e objeções de Searle à estruturação e tipificação da conversação segundo o modelo de Wittgenstein, Grice e em uma abordagem etnometodológica sobre a tomada da palavra nas conversações (p.53959). A quarta alternativa é apresentada sob o título Contextualismo (p.56079), examina o “contextualismo moderado” e discute versões do “contextualismo reducionista” (p.566) analisando as tentativas de redução de toda a pragmática ao contexto e a crítica à preconização de significados literais, completos e independentes de contextos; apresenta tentativas para se comprovar empiricamente que os significados literais não contam como uma realidade psicológica, pois os ouvintes se valem da indiretividade em situações normais de fala. A quinta alternativa intitula-se A pragmática e o fundacionalismo, debate a in (viabilidade) da adoção de uma base unificada para a epistemologia, a ciência cognitiva e os estudos da linguagem quanto à representação, ao significado e às estruturas lingüísticas (p.612-8). A sexta alternativa adota o título O casamento da pragmática com a retórica para analisar a contribuição das apropriações que Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca fizeram dos conceitos de Aristóteles sobre a retórica e a pragmática (p.619-41), destacando os esforços característicos da persuasão (a alteração de um estado emocional ou a mobilização de um valor). A sétima alternativa é apresentada sob o título Interpretação hermenêutica e interpretação pragmática examina os princípios defendidos por Gadamer: o processo circular da interpretação, a fusão de horizontes e a centralidade do papel da consciência histórico-efetiva e da tradição (p.642-59). Por fim, ao tratar Os limites da interpretação (p.660-78), Dascal se vale desse título para explorar a coincidência de dois livros que aparecem no mesmo ano, 1990, de autores diferentes (Peter Lamas e Umberto Eco) com o referido título, provocando a reflexão sobre o fenômeno da busca imediata de um significado para essa coincidência. Afinal a interpretação é a atividade pela qual se busca uma espécie de lugar seguro “descobrindo (ou inventando) regularidade que se encaixe ali, onde originariamente havia uma regularidade que causou surpresa” (p.661). Fenômeno tão familiar à nossa espécie que levou Lewis Carroll a escrever A caça ao Snark (1876). Snark é a palavra sem sentido, oferecida pelo escritor como um símbolo no qual o escritor dá a liberdade para que os leitores criem as suas próprias interpretações. Mas o que fazem os leitores? Voltam-se para a o “poder de presunção da intencionalidade” (p.674) do escritor e hesitam em fazer uso dessa liberdade. Dascal quer nos provocar a ver “as tendências imperialistas da interpretação pragmática – da atribuição da intencionalidade consciente aos agentes/falantes humanos”, como o caso do Snark. Ao mesmo tempo em que evidencia a atividade interpretativa incorporada na vida cotidiana pela inevitabilidade otimista do princípio da caridade derivado do fato de que resistimos em aceitar algo como desprovido de significado:

Somente admita a estupidez, a ignorância, a incoerência, etc. – ou seja, a ausência de significado – apenas se não houver nenhuma outra maneira de interpretar um determinado comportamento como sábio, bem informado, racional, coerente, etc. (p.661)

O recurso aos modelos interpretativos é parte da descoberta e da invenção das regularidades para a qual o discernimento é invocado para que se possa passar de um modelo a outro, tanto para entender o objeto interpretado quanto para avaliar nossa compreensão.



[1] Doutora em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPb). Resenha recebida em mar/07 e aprovada para publicação em jun/07.

https://doi.org/10.1590/S0101-31732007000100017