A TEORIA NIETZSCHEANA DA TRAGÉDIA[1]

José Fernandes WEBER[2]

RESUMO: Tendo como referência O Nascimento da Tragédia de Friedrich Wilhelm Nietzsche, busca-se explicitar a particularidade da concepção nietzscheana de tragédia a partir de um duplo movimento: 1) Reconstrução das principais teses dos primeiros parágrafos da obra; 2) Demonstração da vinculação daquelas teses à tradição estética alemã do final do século XVII e do início do século XIX. Com isso se realça e reedita o diálogo intenso de Nietzsche com aquela tradição e se mostra as inovações e a radicalidade da sua interpretação da tragédia.

PALAVRAS-CHAVE: Nietzsche; Estética; Tragédia.

(...) pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente. (Nietzsche, 1992, p.47)

Desde os primeiros escritos, a Grécia pré-socrática ocupou um lugar de destaque no pensamento de Nietzsche, constituindo-se em referência obrigatória para a compreensão de suas reflexões. Se houve, neste particular, uma mudança no decorrer do tempo, a avaliação de Nietzsche não deixa dúvidas: a “dívida” para com os gregos manteve-se em todos os períodos da sua produção intelectual. Afinal, até os últimos momentos de vida lúcida, Nietzsche proclamou-se discípulo do deus Dionísio.[3]

Porém, a volta aos gregos não é característica exclusiva do pensamento nietzscheano. Uma parte considerável dos empreendimentos literários, artísticos e até mesmo filosóficos na Alemanha em fins do século XVIII e no século XIX, buscavam na cultura grega o “material” para seu deleite e prazer pessoal assim como a fonte de inspiração para a criação de novas maneiras de pensar o homem, a cultura, enfim, a vida corporal e espiritual. Sob o signo da renovação, a volta aos gregos assumia o sentido de volta à origem, volta a um momento onde o Ser se dava de forma mais pura.[4] A vida, ainda não mediada pela barbárie de uma visão científica mecânica que emprestaria ao homem uma estática opressiva, podia instituir-se com mais intensidade.

Para a grande parte dos intelectuais alemães do final do século XVIII e do início do século XIX, voltar à Grécia significava deter-se na polis de Atenas dos séculos V e IV a.C.; com as estátuas de formas deslumbrantes; com sua estrutura política e com as oscilações dos diálogos socráticos, presentes nos escritos de Platão.[5] O exemplo mais representativo desta tendência encontra-se na interpretação de Johann Joachim Winckelmann. Para ele, o conceito que melhor expressaria a essência da cultura grega, seria o conceito de serenidade, representado simbolicamente na imagem do deus Apolo. Nas palavras de Winckelmann:

Enfim, o caráter geral, que antes de tudo distingue as obras gregas, é uma nobre simplicidade e uma grandeza serena tanto na atitude como na expressão. Assim como as profundezas do mar permanecem calmas, por mais furiosa que esteja a superfície, da mesma forma a expressão nas figuras dos gregos mostra, mesmo nas maiores paixões, uma alma magnânima e ponderada. Essa alma se revela na fisionomia de Laocoonte, e não somente na face, em meio ao mais intenso sofrimento. A dor que se revela em todos os músculos e tendões do corpo e que, se não examinarmos a face e outras partes, cremos quase sentir em nós mesmos, à vista apenas do baixo ventre dolorosamente contraído, esta dor, digo, não se manifesta por nenhuma violência, seja na face ou no conjunto da atitude. Laocoonte não profere gritos horríveis como aquele que Virgílio canta: a abertura da boca não o permite; é antes um gemido angustiado e oprimido, como Sadolet o descreve. A dor do corpo e a grandeza da alma estão repartidas com igual vigor em toda a estrutura da estátua e por assim dizer se equilibram. Laocoonte sofre como o Filoctetes de Sófocles. Seu sofrimento nos penetra até o fundo do coração, mas desejaríamos poder suportar o sofrimento como essa grande alma. (Winckelmann, 1975, p.53)

O estudo da literatura grega, mas principalmente, o atento estudo e observação das estátuas preservadas – algumas cópias – em Roma e na Alemanha, levaram Winckelmann a concluir que na Grécia havia se desenvolvido um ideal de beleza muito especial que, específico daquela cultura, representava o ideal estético por excelência: o ideal da beleza visual. Os efeitos deste princípio podiam ser apreendidos, segundo ele, na harmonia da figura, na leveza dos contornos, no sentimento de simplicidade evocado pela visão das estátuas e pinturas, enfim, no sentimento de serenidade que tomava o espectador, interpretado como manifestação da serenidade da cultura grega. Conseqüentemente, todas as outras formas e expressões artísticas passaram a ser submetidas hierarquicamente às artes plásticas, e o princípio da beleza visual foi erigido em critério para o julgamento de todas as obras de arte. Sendo assim, no início do século XIX, para os “admiradores de Winckelmann”, sejam os representantes do movimento literário Sturm und Drang,[6] sejam aqueles mais ligados ao classicismo que têm justamente em Winckelmann a figura alemã mais eminente, ou ainda aqueles ligados ao romantismo,[7] o princípio da beleza visual tornou-se o critério de julgamento e o conceito explicativo para toda a atividade artística, dos gregos aos alemães do século XIX.

É contra esta interpretação que Nietzsche se volta em O Nascimento da Tragédia (doravante indicado como NT), embora a crítica seja endereçada à particularidade da interpretação de Winckelmann, jamais ao estatuto da arte enquanto cânon para a vida e para o pensamento. Cabe aqui notar que em virtude da importância assumida pela arte nas análises da cultura alemã no século XIX, desenvolveram-se teorias da educação que incorporaram os princípios estéticos à empresa educativa. Ou seja, se a arte tinha uma posição estratégica para a edificação da cultura, a criação de uma “pedagogia da arte” – que implicava numa educação para o gosto estético – era a maneira de efetivar a construção de uma cultura regida pelos princípios estéticos.[8]

Se a volta aos gregos é um procedimento comum a Nietzsche e aos literatos e estetas alemães do século XVIII e XIX, não é, porém, a mesma Grécia que ambos têm em mente. Ambos não comungam a mesma valoração dos estágios da cultura grega pois, enquanto Schleiremacher traduz as obras de Platão, expressando uma tendência dos meios letrados alemães em atribuir à filosofia dos diálogos platônicos uma posição de destaque, posição devedora ao máximo da interpretação winckelminiana, Nietzsche ocupa-se das fontes de Diógenes Laércio, realizando trabalhos sobre Homero, sobre a tragédia e os autores da idade trágica dos gregos, os pré-platônicos. Quando Nietzsche se deteve no estudo dos diálogos platônicos, foi muito mais para mostrar que, a partir de Platão, a cultura grega se encontrava num processo irreversível de decadência.

Por outro lado, de posse do referencial teórico da filosofia de Schopenhauer, Nietzsche operou uma crítica interna à tese sustentada por Winckelmann, buscando mostrar que a postulação da serenidade como tipologia distintiva da cultura grega, base para a instituição da beleza visual enquanto princípio normativo da reflexão sobre a arte, carecia de sustentação pois desconsiderava uma dimensão significativa da produção artística grega e da própria cultura grega, a saber, as produções artísticas e as considerações sobre o valor da vida que brotavam de um profundo pessimismo. Segundo Nietzsche, serenidade é sinônimo de superfície. Faltou à Winckelmann a investigação atenta da tragédia grega; faltou-lhe a intuição do impulso dionisíaco.[9]

Trata-se então de apresentar a teoria estética nietzscheana, circunscrevendo-a ao âmbito mais abrangente de uma reflexão sobre a cultura, grega e alemã. Neste contexto, um dos momentos mais significativos de NT, situa-se no início do primeiro parágrafo. A “abertura” da obra não deixa dúvidas quanto a novidade de suas teses. O ponto de partida será o da crítica da abstração excessiva em questões de estética. Diz Nietzsche:

Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão [Anschauung] de que o desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações. Tomamos estas denominações dos gregos, que tornam perceptíveis à mente perspicaz os profundos ensinamentos secretos de sua visão da arte, não, a bem dizer, por meio de conceitos, mas nas figuras penetrantemente claras de seu mundo dos deuses. (Nietzsche, 1992, p.27)

Embora Nietzsche não dissimulasse a crítica à insuficiência do conceito em questões relativas à arte, não se trata neste caso de uma negação incondicional do valor explicativo do conceito, e sim, da demonstração da insuficiência da explicação conceitual quando erigida em forma explicativa única. A estratégia empregada consistiu em relativizar[10] a importância do conceito recorrendo ao símbolo como uma forma de linguagem que, sendo mais afim às questões da arte – o símbolo é intrínseco à própria obra de arte e ao fazer artístico – torna-se por isso mesmo, mais significativo que o conceito. Tal crítica à “intelecção lógica” seria reafirmada em outros momentos de NT, como por exemplo: “Por uma fraqueza peculiar de nossa capacidade moderna, tendemos a complicar o protofenômeno estético e a representá-lo de maneira muito complicada e abstrata.” (Nietzsche, 1992, p.59). Ou ainda, “Nós falamos de poesia de um modo tão abstrato por que todos nós costumamos ser maus poetas.” (Nietzsche, 1992, p.59). A partir de então, a questão adquiriria contornos mais precisos: se a justificação última de um conceito se dá no âmbito da pura abstração, este não pode figurar como critério para as questões da arte por que, segundo Nietzsche, a arte diz respeito à vida entendida enquanto impulso, pulsão. A razão, o pensamento, a lógica, a consciência são de origem tardia,[11] por isso mesmo, são menos significativas, menos expressivas.[12] Não é por ser teórico – oposto de prático – que o conceito deve ser preterido, e sim, por que a partir de uma consideração teórica, que é essencialmente abstrata, desloca-se para o conceito, o simbolismo da arte, a sua pulsão, negando-se os impulsos, desfigurando-se a arte.[13] Ora, a teoria estética e a teoria da cultura nietzscheanas sustentam-se exatamente nesta novidade: valorização do impulso, da pulsão.

Estas reflexões, antes de expressarem uma descrença por parte de Nietzsche na possibilidade da explicação teórica das questões estéticas, representaram o primeiro esboço de uma teoria da linguagem que postulava a linguagem como nomeação e que assumia a metáfora como alternativa à logicização da língua. Não se tratava de desvalorizar o uso dos conceitos e sim, de submetê-los ao poder cognitivo dos símbolos. Eis o substrato de sustentação do apolíneo e do dionisíaco no âmbito da linguagem: eles também são metáforas nietzscheanas! A partir destes pressupostos, o apolíneo e o dionisíaco seriam introduzidos em NT.

Apolo enquanto deus da bela aparência simboliza o “universo artístico” do sonho, atividade orgânica – natural – na qual é jogado o jogo da aparência. Para a pessoa suscetível ao artístico, diz Nietzsche, o universo simbólico do sonho representa o substrato de sustentação da atividade artística, bem como, o “momento” reparador da realidade, no qual o artista é servido do poder simbólico da natureza, próprio ao empreendimento criativo. Segundo Nietzsche, pela disposição peculiar para o artístico, os gregos sabiamente captaram esta característica sanadora do sono e do sonho, e projetaram-na magistralmente na figura de Apolo, o deus da bela aparência. Esta tese, Nietzsche procurou sustentá-la a partir do confronto das várias obras de arte gregas e dos vários estilos, mostrando que os escritos de Homero representam plenamente o ideal apolíneo de beleza,[14] enquanto ordenação e medida.

Na interpretação da obra de arte apolínea (Homero), Nietzsche recuperou as teses tradicionais sobre o apolíneo.[15] Para ele, Apolo também representaria

[...] aquela limitação mensurada, aquela liberdade em face das emoções mais selvagens, aquela sapiente tranqüilidade do deus plasmador. Seu olho deve ser ‘solar’, em conformidade com a sua origem; mesmo quando mira colérico e mal-humorado, paira sobre ele a consagração da bela aparência. (Nietzsche, 1992, p.29-30)

Porém, a aproximação da interpretação nietzscheana às interpretações antecedentes é apenas aparente. A sua precariedade revela-se no momento em que Nietzsche introduz em sua obra temas e conceitos schopenhauerianos. Para ele, o apolíneo da cultura grega representaria aquilo que Schopenhauer definiu, na obra O mundo como vontade e representação, como princípio de individuação. Para Schopenhauer, a individuação é o atestado da “situação humana”, a saber, a finitude, a incontornável solidão e o dilaceramento da natureza em indivíduos. Ocorre que pela própria especificidade humana – ser racional – torna-se possível ao homem ascender ao estado de consciência teórica desta situação, forjando para si uma crença inabalável na vida, não obstante a constatação da finitude e da solidão.[16] Esta crença do homem individual converter-se-ia, segundo Schopenhauer, no próprio móvel da vida: acreditar que num mundo pleno de tormentos, ainda assim, a vida possui sentido.[17] A partir destes postulados, o apolíneo foi interpretado por Nietzsche em NT, razão suficiente para marcar uma distância considerável entre a sua concepção e a concepção tradicional do apolíneo.

Neste contexto, a arte apolínea passou a ser o atestado da luta desencadeada por homens que possuíam uma superafetação da sensibilidade e que projetavam nas suas obras de arte, o remédio para o sentimento dilacerante da existência. Em outros termos, os gregos possuíam nítida consciência do dilaceramento, do fato de que o homem estava separado da natureza, que ele era um, em meio ao todo. Sendo assim, pergunta-se Nietzsche: “De que outra maneira poderia aquele povo tão suscetível ao sensitivo, tão impetuoso no desejo, tão singularmente apto ao sofrimento, suportar a existência, se esta, banhada de uma glória mais alta, não lhe fosse mostrada em suas divindades?” (Nietzsche, 1992, p.37). Porém, dizer que os gregos possuíam uma superafetação da sensibilidade e por isso sofriam intensamente, não representa um grande avanço na argumentação. A reflexão intensificou-se quando Nietzsche sustentou que a criação do Olimpo, o desfile das afecções dos deuses, características distintivas da obra de Homero, eram o exemplo inequívoco de que este sentimento de dilaceração fora dominado em prol da arte. Ou seja, também os gregos da Grécia pré-socrática, da obra de arte apolínea, homérica, transformaram em obra de arte a sua pré-disposição ao sensitivo e ao sofrimento.

A filosofia de Schopenhauer permitiu a Nietzsche um aprofundamento na interpretação da cultura grega, sendo decisivo para a crítica da interpretação tradicional. Ao afirmar que “[...] em algum ponto capital, tampouco aqueles lutadores conseguiram penetrar no âmago do ser helênico” (Nietzsche, 1992, p.120), Nietzsche pretendeu mostrar que Winckelman, Goethe e os adeptos da interpretação tradicional permaneceram presos à equação Grécia = Apolo (Serenidade), desconsiderando uma dimensão da arte, da cultura, do ser grego que já se encontrava presente nos textos de Homero, a saber, a disposição para o terrível, para o horrendo, para o sofrimento. O “ponto capital” desconsiderado por “aqueles lutadores” foi o impulso dionisíaco. Entretanto, a simples referência ao princípio de individuação schopenhaueriano não seria suficiente para operar uma transformação radical da interpretação tradicional da cultura grega, pois não introduziria grandes novidades. A questão adquire contornos mais precisos quando se considera que o tratamento do princípio da individuação em Schopenhauer requer a tematização do seu conceito de Vontade, assim como em NT, o apolíneo é apenas uma parte da teoria estética nietzscheana, na medida em que o apolíneo requer o dionisíaco.[18] Ora, se a disposição para o sofrimento é o sinal da aptidão de um povo para o fenômeno dionisíaco, torna-se inequívoca a vinculação ente a cultura grega e o fenômeno dionisíaco.[19] Conseqüentemente, a maior falha daqueles “lutadores pela cultura” – razão para o malogro da sua empresa – encontra-se naquilo que lhes passou desapercebido, a saber, a disposição dos gregos para o impulso dionisíaco. Não chegaram à intuição do dionisíaco pois não interpretaram o dionisíaco e o apolíneo como impulsos. Por conseqüência, toda a sua interpretação da cultura grega se ressentiu.[20]

Se o apolíneo é apresentado pelo recurso à analogia do sonho, o dionisíaco por sua vez, é evocado pela analogia com a embriaguez. De posse da linguagem filosófica schopenhaueriana, Nietzsche diria que o dionisíaco irrompe enquanto impulso de destruição da individuação, impulso de recondução à unidade com a natureza simbolizando o completo evanescimento do subjetivo no auto-esquecimento. Enquanto impulso que brota “[...] do fundo mais íntimo da natureza” (Nietzsche, 1992, p.30), o dionisíaco revelaria o prazer e o terror do sentimento de unidade com a natureza pois o prazer proporcionado por esta visão não se institui sem a consciência da inevitável destruição do particular, do subjetivo.

Porém, como conciliar a explícita valorização nietzscheana do dionisíaco com o caráter eminentemente destrutivo deste impulso? É possível a uma teoria da cultura fundar-se sobre um impulso destrutivo? Ou existiria em NT uma polissemia de significados para o dionisíaco que permitiria nuançar a relação entre uma teoria da cultura e a destrutividade dos impulsos? Na reflexão nietzscheana sobre o dionisíaco, as dificuldades evocadas por estes questionamentos convivem com a tentativa de demonstrar a singularidade da cultura grega como resultado de um esforço hercúleo de edificação da cultura engendrada por impulsos artísticos, com especial ênfase para o impulso dionisíaco. Trata-se então de apresentar a polissemia do dionisíaco, bem como, a especificidade do dionisíaco grego.

Antigos registros preservados testemunham a existência de festivais, de cultos, enfim, de manifestações populares caracterizadas pela completa dissolução da subjetividade e pelo afundamento do indivíduo no seio da natureza, através dos rituais de retrogradação do homem ao animal (Nietzsche, 1992, p.30-1). Este impulso, caracteristicamente anárquico, representava uma dissolução das convenções familiares, na medida em que consistia numa desenfreada licenciosidade sexual e na inversão da relação de poder entre servos e senhores. Ao impulso que irrompe nestas manifestações, Nietzsche denominou-o: “dionisíaco bárbaro”.

Embora permita algumas breves analogias com o dionisíaco bárbaro, o dionisíaco primitivo grego, expresso na figura do sábio Sileno, companheiro de Dionísio, também caracterizado pela dissolução, constitui uma fonte de sabedoria, tanto pela dissolução que expressamente revela quanto pelo resguardo e pelo aviso que cria. Por ser fonte de sabedoria, ou melhor, por expressar um ensinamento, Sileno representa um estágio superior ao dionisíaco bárbaro na medida em que a própria destrutividade da natureza é captada e apresentada enquanto ensinamento.

Não te afastes daqui sem primeiro ouvir o que a sabedoria popular dos gregos tem a contar sobre essa mesma vida que se estende diante de ti com tão inexplicável serenojovialidade. Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio SILENO, companheiro de Dionísio.

Quando, por fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, o demônio calava-se; Até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras: – Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer. (Nietzsche, 1992, p.36)

O fatalismo desta perspectiva é evidente: A vida como o grande mal, e a morte como o único remédio ao infortúnio de existir. Porém, ainda não estará solucionado, sequer compreendido bem o enigma do dionisíaco, se permanecermos apenas na constatação do seu aspecto corrosivo. É inegável que a destruição é o elemento distintivo do dionisíaco. Apesar disso, a superioridade do trato grego com o dionisíaco repousa na decidida recusa da incorporação da destruição do indivíduo em favor da natureza bruta, característico das celebrações dionisíacas bárbaras. O enorme abismo que separa os gregos dionisíacos dos bárbaros dionisíacos está em que os gregos transformaram em arte o rompimento do princípio de individuação (cf. Nietzsche, 1992, p.32-5).

A questão decisiva que aqui se impõe pode ser formulada nestes termos: Como é possível que um povo tão suscetível ao sofrimento tenha produzido uma civilização e uma cultura exemplar, segundo Nietzsche, não superada até hoje? Como lhes foi possível superar esta base de consideração pessimista da existência? Há um sofrimento que provém da superabundância?[21] Para usar uma expressão do pensamento tardio de Nietzsche: Como engendraram a força que transforma impedimento e obstáculo em estímulo? Estas questões, Nietzsche as solucionará investigando o enigma do nascimento e do significado da tragédia.

A tragédia grega, momento de intensidade máxima dos poderes criativos daquela cultura, efetiva a união do apolíneo e do dionisíaco, o que equivale a dizer que o dionisíaco bárbaro, ou o dionisíaco da sabedoria de Sileno foi “capturado” e desarmado dos seus poderes destruidores. Na estrutura das peças trágicas, a “captura” do dionisíaco pelo apolíneo se dá no âmbito da forma: O apolíneo diz respeito ao universo das imagens, das formas, enquanto que o dionisíaco, representado inicialmente no coro,[22] é o portador da “verdade” fundamental, símile simbólico do espírito da música.[23]Solidário à teoria estética schopenhaueriana,[24][25] Nietzsche instituiu a música como forma de arte por excelência, através da qual o enigma da origem da tragédia enfim poderia ser devidamente elucidado. Atento às formas artísticas da cultura grega, Nietzsche detectou um elemento comum entre a poesia lírica (canção popular) e a tragédia, a saber, sua profunda vinculação com a música. A este propósito, segundo M.S. Silk e J.P. Stern, “[...] a palavra grega ‘mousiké’ significava ‘música e poesia’ e não somente ‘música’.” (Silk & Stern, 1995, p.137). Somente após o início do século IV a.C. ocorreu a separação entre música e poesia (cf. Dias, 1994, p.44-7). Se há um condicionamento entre música e palavra, trata-se então de verificar de que ordem é este condicionamento e qual a respectiva posição de condicionante e condicionado entre música e palavra.

De acordo com Nietzsche, a poesia lírica foi o primeiro momento, o mais simples, da união do apolíneo e do dionisíaco onde a força descomunal da melodia – dionisíaca – incitava a produção de imagens – apolíneo. Arquíloco,[26] o criador da poesia lírica, expressou a contigüidade do apolíneo e do dionisíaco em uma linguagem poética que guarda a perfeita simetria entre música e palavra. Na tragédia, tal relação radicaliza-se atingindo o ponto máximo de intensificação das potencialidades figurativas.

Retomando a idéia já presente em Aristóteles (Poética, IV, 1449a), segundo a qual, “[...] a tragédia surgiu do coro trágico e que originariamente ela era só coro e nada mais” (Nietzsche, 1992, p.52), o autor afirma a partir do §7 de NT que a tragédia nasceu do espírito da música, do coro entoado por um cambaleante grupo de adoradores de Dionísio. A irrupção do trágico no coro dionisíaco – forma primitiva da tragédia – foi posteriormente incorporado à representação dramática, por meio da qual Ésquilo e Sófocles criaram a arte da tragédia na qual o espírito da música, engendrando o drama, era representado na relação ondulante entre a figura de um herói mascarado – máscara de Dionísio – e o coro – manifestação primitiva de Dionísio. Aos olhos de Nietzsche, a tragédia grega na representação esquiliana e sofocliana é a forma artística por excelência pois foi construída sobre a intuição do exato limite entre música e drama, sendo que a “serenidade grega”, repousando sobre um fundo aterrador, permite que o terror seja representado como belo, posto que essência do mundo, signo da vida. E tudo isto, sob a aparência de obra de arte!

Tem se então que a dimensão fundamental da interpretação nietzscheana da tragédia grega – situado genericamente na contraposição entre o apolíneo e o dionisíaco – não diz respeito a uma mera distinção entre forma (apolíneo) e conteúdo (dionisíaco), e sim, a delimitação de dois universos artísticos distintos que, regidos por princípios estéticos particulares, representam duas formas de arte específicas relativas a duas considerações peculiares da existência. Se o apolíneo e o dionisíaco representam duas maneiras distintas de se acercar do fenômeno humano da cultura – o apolíneo como edificação, conservação e crença incondicional na humanidade; o dionisíaco como volta à natureza, como destruição da cultura – para Nietzsche, a tragédia grega foi a superação trágica destes antagonismos, a auto-superação em proveito de uma cultura estética.

Embora a superioridade da cultura grega resida justamente no domínio das “bestas mais ferozes da natureza” – e o palco desta conquista é o palco das peças trágicas – Nietzsche não deixa de lembrar que o sátiro continua sendo o verdadeiro homem, no qual a natureza manifesta-se de maneira direta, não encoberto pela ilusão da cultura. Como conciliar estes dois aspectos, aparentemente contraditórios, em uma teoria da cultura que se funda no pressuposto do convívio dos impulsos? Se o sátiro – “verdadeiro homem” – é uma espécie de modelo para o homem da cultura, não se trata de operar uma simples cópia do modelo, e sim, de submetê-lo a um comércio produtivo: incorporá-lo à civilização sem destruí-lo. Se os gregos da época trágica foram bem sucedidos neste empreendimento é por que a cultura por eles criada não abdicou do sofrimento, do terror, do perigo da destruição em favor da civilização. Para Nietzsche, a convivência destes impulsos antagônicos – não obstante o perigo desta convivência pois ela não era pacífica – revela a força dos gregos para suportar a tensão constante, a potência para desejá-la, mais, para amá-la. Segundo Nietzsche, somente um povo que ama estar em constante mudança pode edificar uma cultura artística.[27]

A união entre os impulsos dionisíaco e apolíneo descortina a tese fundamental de NT, a saber, a tragédia representa uma perspectiva de aceitação incondiconal da existência, uma atividade artística de afirmação da existência. Só pela arte, ou por uma consideração artística, pode a vida encontrar justificação. Ou seja, a arte é esta atividade justificadora da existência na medida em que permite criar perspectivas para a ação, reparando a angústia fundamental da morte e a dor de viver. Antes de proporcionar descanso para seres fatigados, a arte trágica encarna a ação como móvel para vida. Neste sentido propõe-se a interpretação da máxima nietzscheana que postula a arte enquanto consolo metafísico: “[...] pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente” (idem, p.47).

As reflexões nietzcheanas sobre a tragédia grega tinham como objetivo inicial averiguar o enigma do nascimento da tragédia. Com a consecução da investigação, Nietzsche se viu enredado no difícil tema da morte da tragédia. Munido de seus referenciais estéticos, e com os argumentos já firmemente assentados desde o início da obra, no §11 de NT, o autor apresentou uma das teses mais importantes, a saber, com Ésquilo a tragédia grega alcançou o seu apogeu, chegando à decadência total com as peças trágicas de Eurípedes. De acordo com Nietzsche, nas tragédias de Eurípedes manifestou-se o movimento decadencial da Grécia que passou a privilegiar os procedimentos dialéticos, “racionalistas”, em detrimento do mito. A “prova documental” para sustentar esta afirmação, Nietzsche acreditou tê-la encontrado no “prólogo euripideano”.

Diferentemente de Ésquilo e Sófocles, Eurípedes introduziu na apresentação das peças trágicas um prólogo que tinha por objetivo “situar” o espectador na trama da peça. De acordo com a interpretação de Nietzsche, além de destruir o efeito trágico, este procedimento operou a dissolução do palco grego trágico, pois o prólogo abriu espaço para o espectador ocupar a cena. Os motivos e temas titânicos e divinos foram subjugados pelas questões quotidianas. Com Eurípedes,

[...] o homem da vida cotidiana deixou o âmbito dos espectadores e abriu caminho até o palco, o espelho, em que antes apenas os traços grandes e audazes chegavam à expressão, mostrou agora aquela desagradável exatidão que também reproduz conscienciosamente as linhas mal traçadas na natureza. (idem, p.74).

A transformação da estrutura cênica da tragédia grega situa-se num contexto de intensificação do procedimento pelo qual “[...] o Estado se apoderou da Tragédia e fê-la um apêndice da religião política da pólis” (Brandão, 1999, p.12). Se é inegável que desde os seus primórdios a representação trágica instituiu-se em solidadriedade com os festejos religiosos da polis, cabe lembrar que o momento de maior intensificação da compreensão da tragédia como assunto de Estado coincidiu com o período de celebridade das peças de Eurípedes. Mera coincidência? Certamente não! Basta dizer que ao introduzir o prólogo na peça, Eurípedes introduziu o espectador na cena, cumulando o palco das mais variadas “questões políticas”. Em suma, o dionisíaco destituído do seu poder de afecção – o dionisíaco sem poder endêmico, sem efeito trágico – passou a figurar como uma triste caricatura, diluindo-se progressivamente na completa banalização a que foi submetido pelos comediógrafos gregos, todos adoradores de Eurípedes.[28]

A assim chamada “dissolução do trágico”, objeto de belíssimas e desesperançadas reflexões de Nietzsche, apenas mitigadas pela esperança na Ópera de Wagner, poderia figurar como motivo para uma breve apresentação do complexo problema da relação entre o teatro, o palco e a multidão dos espectadores. De maneira breve, pontual, o problema subjacente àquela relação poderia ser formulado nos termos que seguem: dado que no teatro trágico se representam os mistérios do deus Dionísio bem como a exuberante afirmação da vida característica daquele culto, não seria esta representação já uma “forma decaída”, uma espécie de simulacro no sentido da crítica platônica à mimesis, na medida em que a potência dionisíaca já não estaria mais presente plenamente no teatro pois o “evanescimento originário” sentido pelas Bacantes é sentido plenamente no corpo sendo que no teatro, a representação, incorporada aos festejos da Polis, não permite a Dionísio tornar-se endêmico, epidêmico, sendo o seu efeito “distribuído”: no palco, no corpo dos atores, na oscilação da voz do Coro, no corpo dos espectadores. Destituído da potência plena da endemia, ainda se trata de Dionísio?

Já Rousseau e D’Alembert haviam celebrizado este tema, polemizando a respeito da criação de teatros na cidade de Genebra. Enquanto este último, fiel ao espírito das luzes, de quem era representante ilustre, acreditava que o teatro possuía papel estratégico no processo de esclarecimento dos homens, pois permitia associar razão e emoção, com o que também Diderot concordava; Rousseau, mais descrente dos poderes da civilização – o teatro era um representante decisivo daquilo que se passou chamar de Civilização no século XVIII e que este tanto criticava, – argumentava que o teatro propugnado por D’Alembert, Voltaire e Diderot era, no melhor dos casos, inútil; no pior, o que para ele representava a regra, aquele teatro se convertia em meio de perversão moral na medida em que seu móvel era o amor próprio, a ambição e o desejo de glória. Segundo ele, em Genebra os teatros não eram necessários pois nas festas genebrinas o próprio público desempenhava o papel de ator, não estando separado pela condição de espectador de um espetáculo.[29] Quer dizer, operando uma transição rasteira, mas nem por isso totalmente injustificada, poder-se-ia afirmar que em Genebra mantivera-se aquilo que, já na época do teatro grego, se perdera na Grécia, a saber, a imediatidade da relação entre o ator e o espectador[30] o que, se levado às últimas conseqüências, permitamo-nos dizer, destrói a própria idéia de teatro, de palco, de representação. Se, apesar disso, ainda permanece a idéia de mundo como palco, como cena, e dos homens como atores ora serenos conhecedores do roteiro, ora atônitos representantes em meio a um espetáculo cujo roteiro não conhecem bem, ou mesmo desconhecem, esta, porém, embora bastante tentadora, é uma tese metafísica, não dramatúrgica. Contudo, seguindo os termos desta interpretação não se estaria abrindo caminho para uma refutação do próprio Nietzsche a ponto de dizer que o que se manifesta neste autor é uma espécie de idealização do teatro bem ao gosto romântico, sendo que a efetividade, a imediatidade da Vida perdeu-se, apesar do empenho da arte?

Se esta interpretação é tentadora pois põe às claras o tema da angústia do homem que quer apreender a própria vida com as mãos como quem pega um touro à unha e que não se contenta com a “mera representação”, parece que, no contexto das teses de NT, ela peca por dois descuidos: 1) Por considerar que o representado não mais é vida ou, no melhor dos casos, que é vida diminuída; 2) Por que, para Nietzsche, Dionísio sem Apolo, embora não seja apenas “Natureza Bruta”, ainda assim, representa uma consideração pessimista, expressa na cultura grega na Sabedoria de Sileno, transfigurada pelo poder da arte justamente pela união Apolo-Dionísio. A este respeito, o §8 de NT é decisivamente esclarecedor. Nele, Nietzsche indica que a solução para este impasse encontra-se na explicitação do significado do Sátiro e, mais fundamentalmente, do Coro.

Que é, portanto, o Sátiro? Segundo Nietzsche, ele representa a protoimagem do Homem. “A Natureza, na qual ainda não laborava nenhum conhecimento, na qual os ferrolhos da cultura ainda continuavam inviolados” (Nietzsche, 1992, p.57). E, de modo admirável, Nietzsche afirma: o Sátiro não se confunde com o macaco, com o animal, sendo antes, algo divino, sublime! Assim, há um contraste entre o Sátiro considerado como “coisa em si” em que ele representaria uma verdade da natureza, ou melhor, a natureza como verdade, e a civilização como fenômeno, como superfície, enfim, como mentira. Portanto, o Sátiro é uma imagem concentrada das potências da natureza em estado puro! A simbiose entre a natureza originária e o homem se dá por meio de uma transmutação: “(...) o grego dionisíaco, ele, quer a verdade e a natureza em sua máxima força – ele vê a si mesmo encantado em Sátiro” (idem, p.58).

Isto, porém, não reforçaria aquela objeção inicial, aumentando ainda mais a distância entre vida e representação da vida no teatro? A não ser que algo de muito especial, característico, distinto, ocorra no teatro grego, e não apenas no teatro...

Qual a relação do sátiro com o palco, com o coro e com o espectador? Diz Nietzsche:

Sob o efeito de tais disposições de ânimo e cognições, exulta a turba entusiasmada dos servidores de Dionísio; e o poder dessas disposições e cognições os transforma diante de seus próprios olhos, de modo que vêem a si mesmos como se fossem gênios da natureza restaurados, como sátiros. A constituição ulterior do coro da tragédia é a imitação artística desse fenômeno natural. (idem, p.58).

O coro é a transmutação artística da tendência do homem grego ao prazeroso e perigoso afundamento na natureza pelo flerte com as potências naturais. Se o sátiro representa a divindade da natureza; se o Coro é a imitação artística da posse do homem, pela natureza; e se, por fim, os espectadores participam do espetáculo, seja pela privilegiada arquitetura do teatro, seja pela privilegiada disposição pulsional dos gregos, tudo isso leva a crer que as objeções anteriormente apresentadas não se sustentam. Além do mais porque desde o início Nietzsche alerta ao fato de que o teatro antigo, especificamente o grego, é essencialmente distinto do teatro moderno. Diz ele:

Enquanto nós antes, habituados à posição do coro no palco moderno, especialmente a de um coro de ópera, nem sequer podíamos conceber como esse coro dos gregos havia de ser mais antigo, mais original e até mais importante do que a ação propriamente dita (idem, p.61).

Quer dizer, no teatro grego, o coro não atua; ele diz respeito a algo mais primordial que a própria cena em que se encontra inserido, o coro enquanto transmutação artística da divindade opera como um polo endêmico:

Agora o coro ditirâmbico recebe a incumbência de excitar o ânimo dos ouvintes até o grau dionisíaco, para que eles, quando o herói trágico aparecer no palco, não vejam algum informe mascarado, porém uma figura como que nascida da visão extasiada deles próprios (idem, p.62).

O que ocorreu, em suma, foi a substituição da linguagem: no teatro, Dionísio passa a falar por meio da linguagem de Apolo: “(...) agora Dionísio não fala mais através de forças, mas como herói épico, quase com a linguagem de Homero” (idem, p.63). Ou seja, o percurso do Dionisíaco na cultura grega, de deus silvícola à deus do teatro, indica um percurso paralelo no plano da constituição da civilização que vai da religião à arte: neste caso, não excludentes pois na Grécia trágica a religião comunga de princípios artísticos e a arte não abandona o culto.

Com Eurípedes, o coro não aponta mais para o primevo, para aquela concepção divina de natureza, nem os seus personagens revelam a imagem do dionisíaco como proto-imagem do homem. A inserção do prólogo, mas mais do que isso, a inserção do “homem comum”, destruindo o dionisíaco, destrói a tragédia!

Porém, “excisar da tragédia aquele elemento dionisíaco originário e onipotente e voltar a construí-la de novo puramente sobre uma arte, uma moral e uma visão de mundo não-dionisíacas” (idem, p.78), não é um procedimento a ser atribuído unicamente a Eurípedes. Seguindo as reflexões de Nietzsche, somos levados a concluir que as tragédias de Eurípedes apenas anunciavam uma tendência decadencial em curso na cultura grega pois, “[...] Eurípedes foi, em certo sentido, apenas máscara: a divindade que falava por sua boca não era Dionísio, tampouco Apolo, porém um demônio de recentísssimo nascimento, chamado SÓCRATES” (idem, p.79). O próprio Sócrates já não representa mais uma exceção: Sócrates é um sismógrafo pelo qual é possível captar o abalo e a derrocada do mundo trágico e a irrupção da visão científica de mundo.

ABSTRACT: Having as a reference the work The Birth of Tragedy by Friedrich Wilhelm Nietzsche, it is our purpose to explicit the characteristics of Nietzsche`s conception of tragedy based on a double movement: 1) Reconstruction of the first theses of the first paragraphs of the abovementioned work; 2) Demonstration of the link between those theses and the aesthetic German tradition of the end of the 18th century and beginning of the 19th century. It is thus enhanced and revised Nietzsche`s intense dialogue with that tradition and it is shown the innovations and the radicality of his interpretation of tragedy.

KEYWORDS: Nietzsche; Aesthetics; Tragedy.

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[1] Este artigo beneficiou-se de uma bolsa-sandwich concedida pela Capes e realizada entre maio de 2004 e fevereiro de 2005 junto a Universidade Nova de Lisboa (UNL) sob orientação de António Marques.

[2] Doutorando em Filosofia da Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) sob orientação de Lídia Maria Rodrigo e Professor Assistente do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

[3] Dionísio é a versão dada por J. Guinsburg na tradução portuguesa do Nascimento da tragédia para o nome próprio grego transliterado Diónysos. Junito Brandão opta por Dioniso. Cf. Brandão, 1991, v.II, p.113. Adotaremos a opção apresentada por J. Guinsburg para manter conformidade com as citações extraídas da edição em português.

[4] Neste particular há conformidade entre Nietzsche e os românticos.

[5] Deste período data a tradução para o alemão das obras de Platão, feita por Friedrich D. E. Schleiermacher.

[6] “Tempestade e Ímpeto”: Movimento literário alemão, também denominado genericamente de “pré-romantismo”, em que se destacam as obras de Klinger “Tempestade e Ímpeto” que, aliás, deu nome ao movimento bem como “Os Sofrimentos do Jovem Werther” de Goethe e “Os Salteadores” de Friedrich Schiller. Conjuntamente ao aspecto literário do movimento pode-se dizer que a recusa das letras francesas, característica distintiva do movimento, tem conotação política na medida em que recusar as letras francesas implicava, ao mesmo tempo, recusar o modelo “civilizatório” francês que se impunha às cortes alemãs. Diferentemente do romantismo alemão, movimento imediatamente posterior, não houve no “Tempestade e Ímpeto” a elaboração de premissas filosóficas orientadoras, sequer havendo a preocupação de criar um sistema totalizador ou mesmo fragmentário. Esta preocupação eminentemente filosófica é marca registrada do romantismo e isto pode ser vislumbrado nos trabalhos de Schleiermacher, de Schlegel ou mesmo de Schelling, o “filósofo do movimento romântico”. O que se poderia dizer é que se há problematização filosófica neste movimento isto, porém, não se dá no plano da elaboração de uma teoria filosófica que daria sustentação ao próprio “ato literário”. Sendo ato crítico não é, porém, filosófico no sentido posterior do romantismo em que a Filosofia é um ingrediente sem o qual não se compreende a própria dimensão dos problemas tratados. Pautar a distinção entre o “Tempetade e Ìmpeto” e o romantismo sobre a maior aproximação ou distanciamento da Filosofia não traz problemas sérios pois uma das características distintivas daquele movimento é a também a recusa da intromissão exagerada da Filosofia no plano da literatura, característica da literatura francesa do século XVIII.

[7] Embora com motivações estéticas bastante distintas, os admiradores mais ilustres de Winckelmann foram Johann Gottfried Herder, Johann Goethe e Friedrich Schlegel. Em escritos programáticos, expresaram a admiração pelo empreendimento winckelminiano. Este fato revela-se tanto mais significativo exatamente pela diversidade de tendências estéticas destes autores:. Mesmo quando o critica, como é o caso de Schlegel, não se deixa de ressaltar a grandiosidade do seu empreendimento. A este respeito, conferir: Goethe, 2000, p.96-129; Schlegel, 1997 (Fragmentos 149, 271 e 310 do Athenäum e fragmento 102 de Idéias).

[8] Os dois grandes exemplos da dimensão programática da arte para a educação do homem e a edificação da cultura foram Friedrich Schiller com sua obra Educação Estética do Homem e o próprio Nietzsche com a sua “metafísica de artista”.

[9] Este distanciamento de Nietzsche em relação a Winckelmann e a toda a tradição estética que interpretava a cultura grega a partir do princípio da serenidade não se reduz aos domínios da estética. Ele também seria o pressuposto para uma crítica das teorias da formação enquanto formação harmônica, na medida em que esta teoria da formação pressupõe, para as questões da formação, aquele princípio haurido dos domínios da estética.

[10] No sentido de “ser relativo a algo”, no caso, relativo ao símbolo. Ressalte-se aqui o sentido relacional da palavra, complementar à acepção mais usual de “tornar algo não absoluto”.

[11] Nietzsche desenvolveria estas questões nas obras Verdade e mentira no sentido extramoral; Humano demasiado Humano; Aurora e, especialmente, em A Gaia Ciência (1882/87) – GC I, §11.

[12] Para o Nietzsche de NT, menos essenciais.

[13] Uma das principais teses de NT, como de todo o pensamento nietzscheano posterior é pensar as produções teóricas a partir da vida, e não a partir do conceito.

[14] Isto mostra que Nietzsche procura fundamentar as suas “intuições”, e que o suposto caráter fantasioso de suas teses, assenta-se muito mais numa divergência de interpretação do que na falta de argumentos para sustentá-la.

[15] Isto não significa que Nietzsche concordasse integralmente com aquelas teses, pois para ele, os intérpretes anteriores sacrificaram a cultura grega ao apolíneo.

[16] É como se não lhe restasse outra alternativa senão crer na vida e viver.

[17] Estas questões foram desenvolvidas por Schopenhauer no Livro I da obra O mundo como vontade e representação.

[18] No §63 da obra O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer expressamente utiliza o termo Principium Individuationis (Princípio de Individuação), na célebre passagem do barqueiro confiante na frágil embarcação, citada por Nietzsche no §1 de NT. Ocorre, porém, que Schopenhauer não se refere em nenhum momento ao Uno Primordial, referindo-se, sim, em várias passagens dos seus escritos, ao sentimento da Unidade dos seres, condição para o advento da compaixão, segundo ele, “fenômeno ético fundamental”. A este respeito, conferir: Sobre o Fundamento da Moral; O Mundo como Vontade e Representação (Livro IV). Embora utilize a idéia schopenhaueriana da individuação, expressa no Principium Individuationis, e do dilaceramento, expresso no conceito de Vontade, Nietzsche concede-se uma liberdade significativa na sua nomeação. Mais do que uma simples liberdade terminológica verificar-se-á que se trata de uma transgressão e de uma crítica. Primeiro, por que há um paralelismo apenas aparente entre o Princípio de Individuação – Vontade e o Aplíneo – Dionisíaco; Segundo por que, como mostra Georg Simmel, a introdução no texto nietzscheano do conceito de Ur-Eine (Uno Primordial) permite superar uma série de problemas da teoria schopenahueriana da Vontade, decorrentes da dimensão metafísica deste conceito. Ou seja, de acordo com Simmel, Ur-Eine pode ser interpretado como um similar do conceito de Vida, marcadamente um conceito com conotações não metafísicas. A este respeito, conferir: Simmel, 1997 e Benchimol, 2002.

[19] Nietzsche pretendia mostrar que o impulso dionisíaco não era estranho aos gregos. Para tanto, buscava nas obras desta cultura, indícios que comprovassem tal máxima.

[20] A partir destas considerações, torna-se possível esclarecer a importância da teoria schopenhaueriana para os temas de NT, assim como, esclarece-se os motivos da falha imputada por Nietzsche aos seus antecessores: a flagrante cegueira para o dionisíaco.

[21] Esta pergunta, presente no §1do prólogo de NT, escrito por Nietzsche em 1886, é a “pedra de toque” do §370: “O que é romantismo”, pertencente ao Livro V de A Gaia Ciência, livro “acrescentado” aos quatro primeiros por ocasião da reedição da obra, também em 1886.

[22] No início do §7 de NT, lê-se: “Essa tradição nos diz com inteira nitidez que a ‘tragédia surgiu do coro trágico’ e que originariamente ela era só coro e nada mais” (Nietzsche, 1992, p.52).

[23] As reflexões iniciais a respeito das interpretações sobre a cultura grega conduziram-nos à constatação da supremacia das teorias que sustentavam-se no princípio estético da serenidade. Além de uma interpretação da cultura grega, tais teorias objetivavam responder à difícil questão dos cri-

[24] térios de definição da obra de arte. À questão: “Qual o critério para a definição do Belo?”, responderam: “o critério é a bela aparência, a forma!”. Por sua vez, a consideração do coro na tragédia grega possibilitou a Nietzsche o estabelecimento de uma crítica radical àquele postulado a partir da introdução da música enquanto manifestação do dionisíaco.

[25] Schopenhauer apresenta sua teoria estética no Livro III: “Segundo ponto de vista: A representação, considerada independentemente do princípio de razão. A idéia platônica: o objecto da arte”, da obra O mundo como vontade e representação. Segundo ele, aquilo que o artista se esforça por representar não diz respeito ao aspecto particular, fenomenal, e sim, à idéia (A este propósito, conferir todo o §46 da obra “O Mundo Como Vontade e Representação”). Todas as obras de arte, com exceção da música, representam a idéia, que são uma objetivação da vontade. A música, por sua vez, pelo fato de constituir-se com um grau de materialidade consideravelmente menor em relação às outras obras de arte – a música constitui-se em ondulação sonora – converte-se em objetivação da vontade, elevando-se a um estrato superior pois ocupa o mesmo nível de significação que as idéias. Para Schopenhauer, “[...] a música, que vai para além das idéias, é completamente independente do mundo fenomenal; ignora-o totalmente, e poderia de algum modo, continuar a existir, na altura em que o universo não existisse: não se pode dizer o mesmo das outras artes. A música, com efeito, é uma objectidade, uma cópia tão imediata de toda a vontade como o mundo o é, como o são as próprias Idéias cujo fenómeno múltiplo constitui o mundo dos objectos individuais. Ela não é, portanto, como as outras artes, uma reprodução das Idéias, mas uma reprodução da vontade como as próprias Idéias. É por isso que a influência da música é mais poderosa e mais penetrante que a das outras artes: estas exprimem apenas a sombra, enquanto que ela fala do ser” (Schopenhauer, 2005, p.340). Tais premissas marcam um ponto de viragem em relação às teorias estéticas anteriores que consideravam a arte plástica como a forma superior de arte.

[26] Poeta grego, cronologicamente situado no século V a.C., reconhecido pela tradição como o criador da canção popular.

[27] Para Nietzsche, a expressão máxima deste princípio existencial, encontra-se nas tragédias de Ésquilo e Sófocles, signo da aptidão grega para o dionisíaco, conseqüentemente, signo da tragicidade desta cultura.

[28] Tendo como característica a crítica ácida das instituições da polis, a Comédia utilizava, para tanto, de uma linguagem vulgar, representando situações vulgares, ordinárias, corriqueiras.

[29] Referindo-se ao artigo Genebra, de autoria de D’Alembert, publicado no Volume VII da célebre Enciclopédia, em sua Carta a D’Alembert, diz Rousseau: “Quantas questões por discutir encontro na questão que V. Sa. Parece resolver! Se os espetáculos são bons ou maus em si mesmos? Se podem aliar-se aos bons costumes? Se a austeridade republicana pode comportá-los? Se devem ser tolerados numa cidade pequena? Se a profissão de comediante pode ser honesta? Se as comediantes podem ser tão recatadas quanto as outras mulheres? Se boas leis bastam para reprimir os abusos? Se essas leis podem ser bem observadas? Etc. Tudo é problema também acerca dos verdadeiros efeitos do teatro...” (Rousseau, 1992, p.37). A este respeito, conferir: Salinas Fortes, 1997; Prado Jr., 1975 e Goldschmidt, 1971.

[30] A este propósito, vale citar a uma breve indicação dada por Salinas Fortes. Referindo-se a Rousseau, diz ele: “O exame dos ‘efeitos’ do espetáculo que vem logo em seguida acaba também por um elogio da dança em Esparta e das festas populares em Genebra. Da ornamentação da cena à francesa até à nudez das ‘jovens lacedemônias’, eis-nos, aliás, em face de um recuo às fontes de espetáculos – à dança, isto é, à música – que não deixa de ter uma grande analogia com aquela outra gênese que nos é exposta na ‘Origem da Tragédia’...” (Salinas Fortes, 1979, p.81).