DA ARQUEOLOGIA ÀS REDES: JAMAIS FOMOS MODERNOS?[1]

 

Monica Loyola Stival[2]

 

Resumo: A noção de “rede” de Bruno Latour permite abrir uma perspectiva metodológica capaz de ultrapassar os limites da arqueologia de Michel Foucault. Para indicar o quadro conceitual em que a noção de arqueologia se instala, este artigo desenvolve uma discussão sobre a ciência moderna segundo a arqueologia de Foucault e segundo a posição de Gérard Lebrun, exposta em contraposição a Husserl (Krisis). A partir da questão principal que os une, malgrado diferenças importantes, a saber, o diagnóstico da dispersão das ciências positivas no início da modernidade – como início da modernidade –, será possível sugerir o interesse da noção latouriana de rede. E isso, mesmo mostrando que seu interesse implica exatamente o avesso do que insiste em sustentar Latour, o avesso da tese de que jamais fomos modernos.

 

Palavras-chave: Arqueologia. Redes. Foucault. Latour, Modernos.

 

INTRODUÇÃO

“Mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne destas histórias confusas.” (LATOUR, 2013, p. 9). As histórias confusas a que se refere Latour são aquelas que se pode destacar, por exemplo, do agrupamento de temas em um jornal, materializando quase casualmente perspectivas diversas sobre temas diversos, sugerindo linhas de cruzamento entre olhares industriais, políticos, científicos e outros. Na verdade, é exatamente essa espécie de taxinomia que se desmancha, explicitando as linhas que a distinção de saberes oculta obstinadamente. A rede cruza assim tramas que ordinariamente reviram “[...] toda a cultura e toda a natureza.” (LATOUR, 2013, p. 8).

Essa perspectiva aberta por Latour parece uma via possível para ultrapassar os limites da arqueologia de Foucault, em direção a outras abordagens metodológicas (STIVAL, 2019).[3] Aqui interessa, nesse sentido, exclusivamente a proposta de Latour em Jamais fomos modernos e a compreensão de Foucault da arqueologia, particularmente em A arqueologia do saber (1969), e não tanto o desenvolvimento das pesquisas de um e outro autor, porque esses dois textos são referências para compreender a leitura que ambos fazem da modernidade e o papel das ciências modernas na delimitação crítica – afirmada por Foucault e recusada por Latour – de uma modernidade como conjunto crítico específico. O que chamo de limite da arqueologia envolve justamente a compreensão de que o sentido crítico da arqueologia (jamais abandonado totalmente por Foucault, mesmo com o desenvolvimento de sua genealogia[4]) implica uma síntese “quase-transcendental”, nas palavras de Foucault, pois não possibilita abrir mão de um princípio arqueológico, o qual funciona como condição de delimitação de regularidades que circunscrevem uma episteme – no caso, a episteme moderna. Os limites de sua arqueologia dizem respeito, nesse sentido, ao estatuto da síntese que permite circunscrever uma episteme.

Trata-se, em Latour, de um modo diverso de apreensão dos acontecimentos, que transpassa as ditas “formações discursivas”, não mais segundo regularidades cujo nascimento e morte são cortes epistemológicos históricos. A perspectiva crítica foucaultiana se dissolve em Latour, numa espécie de análise de redes, a qual depende das relações, na medida em que estas rompem as fronteiras porosas de uma suposta interpositividade e, portanto, das formações discursivas descritas arqueologicamente. Não é por acaso que a noção de rede é “mais flexível que a noção de sistema”, noção esta que Foucault não deixou de usar para abordar sua arqueologia, na entrevista concedida a Madeleine Chapsal, em 1966.

Pensamos no interior de um pensamento anônimo e que constrange, que é aquele de uma época e de uma linguagem. Esse pensamento e essa linguagem têm suas leis de transformação. A tarefa da filosofia atual [...] é a de trazer à luz esse pensamento anterior ao pensamento, esse sistema anterior ao sistema (FOUCAULT, 2001, p. 543).

 

Latour afirma que o trabalho dos híbridos (digamos, por enquanto, que são objetos não-específicos) permanece, para os modernos, oculto, obscurecido pela separação estrita de “áreas”, de “ciências” ou, no limite, são reportados a três grandes dimensões: “[...] estes trabalhos continuam sendo incompreensíveis porque são recortados em três de acordo com as categorias usuais dos críticos. Ou dizem respeito à natureza, ou à política, ou ao discurso.” (LATOUR, 2013, p. 9). Imediatamente, o leitor de Michel Foucault retira seu autor desse perigo. Afinal, é verdade que o uso que faz Foucault de “discurso” não se confunde com o interesse pelo “texto autônomo” e abriga jogos de poder. Entretanto, na medida em que os acontecimentos, conforme Foucault, afetam os conceitos e não os homens,[5] de alguma maneira a esfera do discurso em que Foucault situa sua reflexão está aquém dos “peptídeos em si” (LATOUR, 2013, p. 10).

Essa diferença e suas consequências são o tema deste artigo, o qual procura indicar o interesse da noção de rede na superação da arqueologia de Foucault. Todavia, contrariamente ao que afirma Latour, isso talvez signifique que, sim, fomos modernos – como testemunham as análises de Foucault, Lebrun e Husserl, a respeito do estatuto das ciências modernas e, por isso, do sentido próprio da modernidade. Dentre elas, as ciências humanas, que não por acaso requeriam, em Foucault, um diagnóstico de seu sentido histórico balizado em uma arqueologia.

Afinal, a arqueologia de Foucault traz à tona uma crítica ao humanismo (MOUTINHO, 2004), invertendo a primazia do sujeito em primazia do discurso (STIVAL, 2015). Contudo, embora ele use diversas vezes o termo “rede” ou “trama” para falar das formações discursivas, em nenhum momento um arquivo poderia ser tomado ele mesmo como “sujeito”, como ator, abrindo a materialidade das coisas a uma existência autônoma e determinante, para além de matéria tomada como suporte de efeitos discursivos possíveis. Latour tem razão, ao observar que uma coisa é o acontecimento discursivo em que se articulam enunciados a respeito da bomba de ar no século XVII; outra coisa é explicar ou descrever “[...] o estabelecimento prévio de uma ligação entre Deus, o rei, o Parlamento, e determinado pássaro sufocando no recipiente fechado e transparente de uma bomba, cujo ar é aspirado graças a uma manivela acionada por um técnico.” (LATOUR, 2013, p. 26).

Foucault sustenta sua crítica ao “antropologismo”, em 1966 (As palavras e as coisas), a partir de uma distância intransponível entre “ser do homem” e “ser da linguagem”: “[...] jamais, na cultura ocidental, o ser do homem e o ser da linguagem puderam coexistir e se articular um com o outro.” (FOUCAULT, 2002, p. 468). Mesmo sem restituir a metafísica moderna. que apostaria na questão do ser do homem (como formula Kant, “Was ist der Mensch?”), o fato é que o “ser da linguagem” encerra uma dimensão discursiva autônoma, por assim dizer, em relação à natureza e ao descreditado “sujeito falante”. A materialidade do discurso está no enunciado enquanto fala, e a pergunta “quem fala?”, seja no horizonte da resposta autônoma da linguagem, por Mallarmé, seja na perspectiva exclusivamente interrogativa de Nietzsche (já que não se pode suspeitar, por hábito gramatical, que haja aí um sujeito requerido), é como a intuição da dimensão discursiva em seu limite.

Assim, embora simplifique o estatuto do discurso em Foucault, ele não está longe das “vertentes semióticas” criticadas por Latour, quando este nota, em esquema geral, que “Quer chamemos de ‘semiótica’, ‘semiologia’ ou ‘vertente linguística’, todas estas filosofias têm como objeto tornar o discurso não um intermediário transparente que colocaria o sujeito humano em contato com o mundo natural, mas sim um mediador independente tanto da natureza quanto da sociedade.” (LATOUR, 2013, p. 62).[6]

A caracterização da episteme moderna por Foucault (desde o final do século XVIII) sustenta-se, portanto, naquela distância, oposta à transparência entre ideia e mundo, na era da Representação (séculos XVII e XVIII). Logo, na modernidade, a dúvida tateante a respeito da direção pela qual pensar “quem fala?”, e com isso discutir o ser da linguagem, é no final das contas a principal condição interna – à modernidade assim definida – da própria arqueologia. Se ela entrevê sua fraqueza, um limite próximo, é talvez porque se instala, em seu modo essencial, no fundamento histórico de seu modo de ser. Por isso, este artigo pretende sugerir, a partir do estatuto da ciência moderna, que os limites da arqueologia podem ser questionados na direção das redes, que cruzam o espaço discursivo moderno e também, talvez, os limites históricos de uma episteme.[7]

Afinal, o que é uma ciência moderna? Uma formação discursiva autóctone, como sustenta a epistemologia? Uma formação discursiva situada em uma trama interpositiva de discursos, como aquela que compõe as “ciências humanas”, tal como descreve uma arqueologia? Uma tradução em rede de objetos e sujeitos cujos fios só são desatados, abstraídos, em um trabalho secundário em relação à mediação efetiva? É com base nesse horizonte de questões que se pode discutir a própria ideia de modernidade como episteme (Foucault) ou como Constituição a um só tempo vivida e incompleta (Latour). Isso significa que a forma como se compreende a dispersão das ciências modernas implica um quadro histórico ou outro, a partir do que se poderá pensar se efetivamente fomos modernos e – mais importante – que perspectiva metodológica enseja uma espécie de autoetnografia de nós mesmos. Portanto, o interesse em situar a perspectiva de Foucault sobre o nascimento das ciências modernas, quanto à leitura à qual ele se opõe (Husserl) ou que o sucede (Latour), está em marcar o sentido de “modernidade” na arqueologia e como arqueologia, no caso de Foucault. Disso depende a possibilidade de apontar o interesse da noção latouriana de rede face à arqueologia foucaultiana.

 

1 AS CIÊNCIAS MODERNAS CONFORME A ARQUEOLOGIA E/OU SEGUNDO AS REDES

Desde 1966, é significativo o conjunto de polêmicas em torno do tema da arqueologia. O volume Les mots et les choses – regards critiques 1966-1968 reúne considerações importantes sobre a arqueologia em Foucault, e tantos outros trabalhos procuraram mobilizar esse termo, para delimitar metodologicamente suas pesquisas, como, por exemplo, Alain de Libera e sua Arqueologia do sujeito. Outro exemplo de análise que mobiliza diretamente o pano de fundo da arqueologia é a de Gérard Lebrun, na medida em que este compreende As palavras e as coisas como uma “anti-Krisis”, em referência, segundo ele, ao adversário oculto do livro, Husserl.

Foucault e Husserl reconhecem uma transformação fundamental na ordem da razão que abre espaço à dispersão das ciências modernas, embora situem a questão em perspectivas históricas distintas. Trata-se do nascimento das ciências positivas, o qual Lebrun também toma como acontecimento central para a ciência moderna, situando-o em perspectiva histórica similar à de Foucault. Lebrun elogia a dispersão das ciências como Faktum digno de interesse, mobilizando a mesma periodização arqueológica de Foucault e mirando sua flecha no adversário racionalista, Husserl, que lamenta essa mesma dispersão das ciências modernas.

 

1.1  O QUADRO MODERNO DA ARQUEOLOGIA

Lebrun (2006, p. 134) assegura, em seu artigo “A ideia de epistemologia,” que, “[...] diante do Faktum das ciências positivas, existem duas atitudes possíveis, uma de origem cartesiana, outra de origem aristotélica.” Um representante da primeira atitude, racionalista por excelência, é Husserl, que está nomeadamente no horizonte polêmico de Lebrun, enquanto este assume a outra posição, designada por ele como aristotélica. A atitude racionalista envolve um diagnóstico desse Faktum como uma lamentável derrocada do ideal clássico de universalidade da razão. A outra atitude, aquela que Lebrun procura explicitar, nesse artigo, envolve um diagnóstico menos pessimista, ressaltando resultados “interessantes” dessa incontornável novidade na história da razão.

Não há dúvidas de que Husserl lamenta o declínio do ideal de universalidade da razão – universalidade que, para ele, deve ser recuperada, respeitando-se a necessidade de ressignificação dessa unidade, imposta pelas filosofias críticas de Hume e Kant. Husserl entende que Hume e Kant abrem uma luta de autocompreensão desse processo – para Husserl, processo de declínio ou fracasso –, tarefa na qual ele pretende tomar posição. Não se trata de uma posição resignada, mas do projeto radical de redesenhar a universalidade da razão. Projeto cuja dificuldade essencial está no Faktum anunciado por Lebrun: a dispersão da Ciência em ciências particulares, a dissolução da mathesis.

É esse mesmo movimento histórico que Foucault descreve, ao menos em um de seus “momentos” (sobretudo em Les mots et les choses, de 1966), como passagem – ou melhor, como ruptura – da episteme clássica à episteme moderna (final do século XVIII, início do XIX). Longe de refletir um declínio na história metafísica da razão, a passagem de uma episteme a outra descreve, para Foucault, o nascimento de uma nova configuração da racionalidade, na qual as ciências positivas se tornam independentes, autônomas, o que tem uma série de consequências decisivas. Uma delas, da qual Lebrun se ocupa no artigo “A ideia de epistemologia”, é a própria possibilidade da epistemologia. O divórcio irremediável entre ciência e metafísica fornece um objeto possível ao epistemólogo, em função da autonomia das ciências particulares.

A filosofia clássica, representada pelo ideal cartesiano de identificação de um método absoluto, se instala antes da derrocada da razão pela formalização excessiva da racionalidade técnica. É nesses termos que Husserl apresenta a história recente da razão – traçada do ponto de vista do Espírito, particularmente em A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, de 1936. Para Husserl, há uma crescente formalização do conhecimento da natureza, formalização que ganha progressivamente autonomia em relação ao modelo matemático, do qual Descartes é o representante maior. O ideal de universalidade envolvido no modelo matemático justifica a caracterização que Lebrun faz da atitude de Husserl como sendo “cartesiana”.

A matematização característica da época cartesiana significa a consideração filosófica da ciência particular como meio e momento no desenvolvimento metodológico do conhecimento, capaz, ao fim e ao cabo, de lançar luz sobre as questões que, de acodo com Husserl, realmente importam, questões “[...] decisivas para uma humanidade genuína” (HUSSERL, 2012, p. 3). Contudo, a partir da passagem do século XVIII ao XIX, o modelo matemático cede espaço à formalização cada vez maior da racionalidade científica, transformada então em cálculo de meios com fins de utilidade. Com a autonomia de cada ciência particular, passa-se a operar exclusivamente no campo simbólico, tornando a razão um jogo de signos. Esses jogos são o sintoma maior da decadência da razão para Husserl, enquanto Lebrun os vê como índice do interesse das ciências positivas. Para Lebrun, que a epistemologia esteja na moda “[...] é a indicação de que as ciências só se tornam divertidas quando as consideramos como jogos dos quais é preciso encontrar as regras e de que se tornam interessantes apenas quando não mais cremos na Verdade.” (LEBRUN, 2006, p. 144).

A moda da epistemologia é estreitamente ligada ao sucesso das ciências positivas. Nesse sentido, o fortalecimento progressivo das ciências particulares, na modernidade, parece contradizer o valor negativo atribuído por Husserl à dissolução da mathesis, porque parece estranho, à primeira vista, anunciar uma crise das ciências europeias precisamente na época em que elas parecem prosperar. Porém, Moura ressalta, no artigo “A invenção da crise”, que Husserl não ignora a prosperidade das ciências de seu tempo: “Husserl apresentará as ciências positivas como exemplos de cientificidade rigorosa: não existem problemas de fundamentos; não existem problemas de método; os conceitos científicos são universalmente aceitos.” (MOURA, 2001, p. 187).

O fracasso que Husserl descreve não diz respeito a fundamentos, métodos ou conceitos, mas está no nível da “existência humana”, na indiferença entre ciência e vida prática – pelo menos para o europeu moderno, na compreensão de Husserl. Ou, mais precisamente, na indiferença da ciência em relação à questão do sentido da existência humana. O ponto decisivo é a impossibilidade de remeter as configurações particulares de enunciados, que circunscrevem uma ciência, à significação que elas têm para a humanidade. Ao invés da restrição da racionalidade ao jogo simbólico de uma ciência, Husserl quer direcionar o olhar de seus pares à relação externa entre elas, capaz de compor um todo com sentido, uma racionalidade una.

Nas palavras de Husserl (2012, p. 3), ele se volta “[...] ao que a ciência em geral tinha significado e pode significar para a existência humana.” Husserl requer um lugar lógico, no qual esse significado existencial tome corpo, a partir do qual possa dar sentido – platônico – à liberdade e à história dos homens. Daí sua questão:

Pode o mundo, e a existência humana nele, ter na verdade um sentido, se as ciências só admitirem como verdadeiro aquilo que é deste modo objetivamente verificável, se a história não tiver mais nada a ensinar senão que todas as figuras do mundo espiritual, todos os vínculos de vida que a cada passo mantém o homem, os ideais, as normas, se formam e voltam a se dissolver como ondas fugazes, que sempre assim foi e será, que a razão sempre terá de se tornar o sem-sentido, a benfeitoria, uma praga? (HUSSERL, 2012, p. 3-4).

A inquietação que se vê a um passo do irracionalismo, do temido relativismo, precisa encontrar saída em uma reformulação do sentido da unidade da razão.

Ao invés de colocar-se imediatamente a tarefa de restabelecer a unidade da racionalidade, a fim de salvar o sentido da existência da humanidade, Lebrun nota que a possibilidade da epistemologia, aberta por essa transformação histórica, envolve uma noção de razão que, em si mesma, é a impossibilidade daquele projeto unificador. Lebrun procura mostrar como a epistemologia não era possível, no século XVII: “[...] haverá ao menos um sentido da palavra ciência que impossibilitaria a epistemologia?” (LEBRUN, 2006, p. 130). Ao responder “sim”, Lebrun (2006, p. 130) sustenta que é possível, justamente, “[...] dar o exemplo da ciência tal como a concebiam os pensadores do século XVII.” Ele vê nas Regras de Descartes uma refutação da noção de especialista como aquele que pratica uma ciência. Porém, desde o divórcio entre ciência e metafísica, no final do século XVIII e início do século XIX, o lugar do especialista parece irrefutável. A racionalidade envolvida na produção singular de enunciados e regras, própria a uma ciência, é essencialmente diferente da racionalidade que faz de cada ciência particular um meio, um exemplo para o Método (LEBRUN, 2006, p. 131).

O que tem de fracasso na era das ciências positivas? Aos olhos de Husserl, essa positividade, desgarrada de toda metafísica, perde tudo o que há de subjetivo e, com isso, o sentido da história humana, o sentido da liberdade. “Meras ciências de fatos fazem meros homens de fato.” (HUSSERL, 2012, p. 3). Husserl entende que a fenomenologia pode salvar o homem da despreocupação científica com o sentido que unifica os homens em uma “humanidade” racional. Porém, no discurso científico moderno, a noção de verdade desloca-se de um critério ontológico a um critério lógico, situando a questão da verdade na dimensão semântica. Essa é a dimensão que comporta o olhar do epistemólogo. Olhar que é totalmente insuficiente, quando se pretende encontrar a perspectiva a partir da qual se poderia estender a compreensão do sentido à humanidade. Em Husserl, essa perspectiva não pode, certamente, depender da postulação da unidade da mathesis (ela se torna possível por outro movimento, designado pelo termo “redução fenomenológica”). A dissolução da mathesis é o ponto central para o qual convergem Labrun, Husserl e Foucault.

Foucault (1966) também expõe a “des-matematização” como sintoma da dispersão das ciências, deixando para trás o ideal de unidade da mathesis cartesiana:

Na época de Descartes ou de Leibniz, a transparência recíproca entre o saber e a filosofia era total, a ponto de a universalização do saber num pensamento filosófico não exigir um modo de reflexão específica. A partir de Kant, o problema é inteiramente diverso; o saber não pode mais desenvolver-se sobre o fundo unificado e unificador de uma máthêsis (FOUCAULT, 2002, p. 340-341).

 

A possibilidade de distinguir episteme clássica e episteme moderna deve-se, em Foucault, à dissolução do ideal de universalidade produzido pelo fato empírico da dispersão da Ciência em ciências positivas, incluídas aí, agora, as ciências do espírito. É o caso da psicologia, com sua frágil unidade de objeto. Foucault, entretanto, não faz uma valoração dessa ruptura epistêmica, ao contrário de Husserl e Lebrun.

De todo modo, o fundamental, assegura Lebrun (2006, p. 135), é que agora a ciência, cada ciência, tem “[...] sua maneira própria de produzir enunciados ou regras que possibilitam sua edificação.” É essa produção “interna”, essa natureza “autóctone” das ciências modernas que Lebrun quer ressaltar, na contramão da perspectiva de Husserl – contramão quanto à valoração, não quanto à descrição da transformação histórica. Nenhum deles, incluindo Foucault, está disposto a recusar o Faktum das ciências positivas.

A validade dos enunciados não se mede mais pelas coisas no mundo, ontologicamente, mas logicamente, pela forma como são construídos os enunciados de uma ciência, pela trama epistêmica de um discurso ou pela trama interdiscursiva (como nas ciências humanas, segundo Foucault). Nesse sentido, Lebrun ressalta a contingência das próprias ciências e, sobretudo, as “escolhas e decisões” que participam da produção de uma ciência, vista então como um “corpus de fórmulas”. Trata-se da passagem da verificação à produção de enunciados como procedimento científico. Lebrun traz como exemplo o livro La logique du vivant, de François Jacob, o qual se refere à biologia atual como ciência “[...] ‘que não mais procura a verdade’, mas ‘constrói a ciência’.” (LEBRUN, 2006, p. 140).[8]

É a transição do sentido da verdade da ontologia para a lógica (embora a pretensão de Husserl se apoie na ideia de que a verdade se define na relação da linguagem com o mundo, ou seja, em certa ontologia), ou a autonomização da lógica em relação a uma ontologia cognoscível, que permite o surgimento da epistemologia. Constitui precisamente aquela formalização que, para Husserl, levou a cientificidade a abandonar o sentido da história. É a dissolução da possibilidade desse sentido que Lebrun comemora, mais à vontade que Husserl, nessa episteme moderna – mais claramente moderno que o racionalismo husserliano gostaria de ser.

A questão de Husserl pode ser recolocada de diversos modos, todos sempre reeditando uma alternativa incômoda. Como exemplo, vale passar pela questão formulada por Giacoia (2014, p. 22):

Assimilar os processos naturais a artefatos fabricados, fazendo desaparecer o sentido tradicional de natureza – sempre definido como o ‘não fabricado’, como o que cresce por si mesmo (physis), diferentemente dos produtos do produzir humano (tecné) –, tendo inserido a conditio humana num campo de objetividade teórico e metodológico configurado pela moderna tecnociência, não implicaria torná-la disponível para a racionalidade instrumental, com a lógica de operacionalização de meios com vistas a fins, privando-a, portanto, de sua autocompreensão ética tradicional, ligada a valores universais humanistas como autonomia e dignidade?

 

O racionalismo de Husserl pode ser entendido como uma maneira moderna do humanismo, entre outras, no sentido de procurar recuperar para a condição humana um sentido ético final, em assimetria em relação à “natureza”. É exatamente essa assimetria (Grande Divisão) que Latour permite repensar, quando discute o sentido moderno que se estende à natureza, alcançando uma reconfiguração das relações práticas que a crítica foucaultiana ao humanismo deixa escapar, ao elidir o problema da natureza e o problema do humanismo. A elisão dos termos natureza e cultura, em Foucault – cuja arqueologia está no plano semântico da discursividade das ciências modernas – deixa frestas importantes, ao contrário talvez da simetria latouriana, a qual, de alguma forma, possibilita descrever naturezas-culturas em um devir de relações abertas, em um fluxo de redes.

 

1.2  SOMOS, FOMOS OU JAMAIS FOMOS MODERNOS?

Na arqueologia foucaultiana, as positividades (formações discursivas, “ciências”) são descritas visando a surpreender a porosidade de suas fronteiras, reencontrando não mais um fundo racionalista, ao modo de Husserl, claro, mas um fundo comum na ordem do saber, no plano epistêmico, que é a racionalidade discursiva. Não se trata de um fundo sintético que remetesse à razão humana, mas de um fundo comum que remete à discursividade moderna, à gramática histórica de sua época. Essa época, moderna, se destaca pela desmatematização e pelo consequente nascimento das ciências positivas. Assim, as duas noções de modernidade, husserliana e foucaultiana, se opõem como soluções distintas, as quais, entretanto, aceitam um mesmo “problema”, um mesmo Faktum: a dispersão das ciências modernas, o nascimento das ciências positivas, uma autonomização das formações discursivas – isto é, agora nos termos de Latour, a “purificação”.

Contudo, Latour alude à purificação como a face visível da modernidade. “A Constituição moderna permite, pelo contrário, a proliferação dos híbridos cuja existência – e mesmo a possibilidade – ela nega.” (LATOUR, 2013, p. 40). Mas apresentar os híbridos – objetos que se dispersam entre esferas da ciência, política ou moral modernas – como o “impensado” da modernidade dá sentido a um só tempo a sua existência efetiva enquanto acontecimento e à transgressão da modernidade. Por conseguinte, seria preciso discutir se, efetivamente, como assinala Latour, jamais fomos modernos. Afinal, não é a Constituição moderna que está sendo disputada e reivindicada como Faktum por Husserl, Lebrun e Foucault? “Constituição” moderna refere-se à purificação que torna objetos específicos, à distinção de ciências específicas e regiões autônomas de saber.

Todavia, não parece ser possível recusar a existência daquilo mesmo que se descreve como Constituição moderna. É o que Latour (2013, p. 44) pretende, entretanto, afirmando que “[...] o mundo moderno jamais existiu, no sentido que jamais funcionou de acordo com as regras de sua Constituição, separando as três regiões do Ser das quais falei e recorrendo, separadamente, aos seis recursos da crítica.”

Latour refere-se a que regiões do Ser? Quais os seis recursos da crítica? Há para ele um triplo jogo entre transcendência e imanência – em relação à “natureza”, em relação à “cultura” e em relação a Deus. Esse jogo triplo entre transcendência e imanência, sempre no modo do paradoxo, seria colocado em prática pela Constituição. Reproduzo aqui o quadro que a descreve:

 

Primeiro paradoxo

A natureza não é uma constituição nossa: ela é transcendente e nos ultrapassa infinitamente.

A sociedade é uma construção nossa: ela é imanente à nossa ação.

Segundo paradoxo

Nós construímos artificialmente a natureza no laboratório: ela é imanente.

Não construímos a sociedade, ela é transcendente e nos ultrapassa infinitamente.

Constituição

1a garantia: ainda que sejamos nós que construímos a natureza, ela funciona como se nós não a construíssemos.

2a garantia: ainda que não sejamos nós que construímos a sociedade, ela funciona como se nós a construíssemos.

3a garantia: a natureza e a sociedade devem permanecer absolutamente distintas; o trabalho de purificação deve permanecer absolutamente distinto do trabalho de mediação.

 

Figura 1 – A Constituição moderna – Fonte: LATOUR, 2013, p. 37.

 

Se “o trabalho de purificação deve permanecer distinto do trabalho de mediação”, significa pelo menos que a purificação e a mediação passam a ser, na proposta de Latour, justapostas, combinando a purificação e a consideração dos híbridos que a contesta. Como a mediação contesta a purificação, já que a torna procedimento analítico posterior ao modo de existência dos eventos ou objetos, os enunciados formulados pela purificação estão em um nível abstrato quanto à materialidade híbrida dos acontecimentos. Assim, descrever as mediações revela algo mais do que se pode encontrar na descrição purificada (enunciados já classificados na própria formulação). Perdem-se as relações que são constitutivas dos objetos. Portanto, colocar em xeque a linha que distingue o plano em que natureza e cultura (sociedade) se confundem e o plano em que natureza e cultura se distinguem acarreta a necessidade de rever, de baixo para cima, toda a estrutura da Constituição.

A questão é que não se pode mais justapor representação e impensado, pois, quando este vem à luz, a representação altera-se necessariamente. Latour apresenta sempre paradoxos que não se diluem e que seriam pensados nesses termos, como ambiguidades. “Posso agora escolher: ou acredito na Constituição moderna, ou então estudo tanto o que ela permite quanto o que proíbe, o que ela revela e o que esconde” (LATOUR, 2013, p. 50); “Uma outra solução surge a partir do momento em que seguimos ao mesmo tempo a Constituição e aquilo que ela proíbe ou permite” (LATOUR, 2013, p. 51) (este seria o “não-moderno” ou “amoderno”). No entanto, no caso geral da Constituição moderna, considerar positivamente o que ela “proíbe” dissolve as linhas de sua estrutura. E isso é algo que Foucault mostra com clareza, a partir da discussão a respeito dos sistemas discursivos de exclusão. Não se pode ser aristotélico e sofista, ao mesmo tempo. Ou, nos termos de Lebrun, não se pode fazer epistemologia e reflexão racionalista sobre as ciências, ao mesmo tempo.

É verdade que há um elemento em jogo em Latour que está completamente ausente, de partida, da arqueologia de Foucault. Não há nenhuma noção de “natureza” em jogo na arqueologia, já formada como descrição de uma estrutura discursiva (envolve prática, mas não natureza). Há materialidade no plano dos enunciados, como na sofística:

E compreende-se por que a sofística, que conhecia por ontologia apenas os jogos do ser e do não-ser, não conhece por lógica senão a oposição do mesmo e do outro. É por isso que ela utiliza todos esses paradoxos do pensamento pré-socrático, mas deslocando-os ao nível único do discurso (FOUCAULT, 2011, p. 63).[9]

 

Outra coisa está em jogo na bomba de ar, no buraco de ozônio, no aquecimento global e sua resposta material pré-discursiva.

Os híbridos multiplicam-se, de sorte a dificultar o trabalho de purificação, segundo Latour (2013, p. 54):

Como Michel Serres, chamamos esses híbridos de quase-objetos, porque não ocupam nem a posição de objetos que a Constituição prevê para eles, nem a de sujeitos, e porque é impossível encurralar todos eles na posição mediana que os tornaria uma simples mistura de coisa natural e símbolo social.

 

Acontece que a mistura define esses quase-objetos, ou híbridos, de maneira que manter a intenção de conformá-los em um espaço próprio é alterar seu sentido existencial. Não se quer dizer com isso que há no horizonte uma nova universalidade – trata-se antes de percorrer o sentido amplo dos híbridos, cujos limites a própria pesquisa pode oferecer, se já liberada das fronteiras científicas modernas.[10] Para tanto, não é possível admitir a mania moderna da localização que o autor sustenta, como se mudando a casa alterássemos os moradores. De acordo com Latour (2013, p. 55), “[...] ao desdobrar as duas dimensões simultaneamente [moderna e não-moderna], talvez possamos acolher os híbridos e encontrar um lugar para eles, um nome, uma casa, uma filosofia, uma ontologia e, espero, uma nova constituição.”

Se não existe ainda como um conjunto específico de questões (Foucault está longe de ser um “pós-moderno”), se não sabemos o que poderia ser certo “pós-modernismo” nascente, por que temer o nascimento de algo depois da modernidade, no modo de um monstro tão terrível quanto risível? Latour evita a todo custo que já não sejamos modernos, o que implica – diante da morte da Constituição, como qualquer outra, histórica... – insistir que, então, jamais o fomos. Latour (2013, p. 55) teme “[...] naufragar no pós-modernismo.” A maneira como ele o caracteriza, a partir de Lyotard, é bastante conclusivo. Contudo, na falta de um nome que indique o nascimento de um modo de pensamento vinculado às redes e, nessa medida, desvinculado da constituição moderna, ao contrário do que Latour ele mesmo pretende, vale recusar a pecha de que jamais fomos modernos. Se não podemos claramente designar nosso presente, trata-se pelo menos de notar que manter a estrutura paradoxal da modernidade, ainda que enfatizando o que seria seu impensado, é algo recente, se não for algo novo. Afinal, houve um Faktum, o que a ideia de Constituição atesta.

Tem-se algo novo, no sentido de que nasce um acontecimento (objetos e enunciados, portanto), e a perspectiva metodológica que remete a redes e híbridos permite vislumbrar essa forma nascente. Está nisso, aliás, o interesse da noção de rede. Afinal, se “[...] os verdadeiros modernos sempre multiplicaram, na surdina, os intermediários a fim de tentar pensar o formidável crescimento dos híbridos ao mesmo tempo em que pensavam sobre sua purificação” (LATOUR, 2013, p. 61), então as redes não fariam mais do que retirá-los da surdina. Acontece que a existência efetiva (Wirklichkeit) dos híbridos acarreta a impossibilidade da purificação, e apenas por isso Latour pode desejar para eles um lugar, um nome, uma casa, uma filosofia, uma ontologia e, principalmente, uma nova constituição!

Se está em jogo uma antropologia simétrica por oposição a outra assimétrica, é porque esta última pôde ser descrita em sua efetividade (etnograficamente), pôde ver nascer a epistemologia ou o lamento moderno husserliano. Se o “fomos” supõe um “nós” que atravessa duas “ontologias históricas” distintas, isso já é um novo problema. Afinal, como observa o próprio Latour (2013, p. 45), a modernidade “[...] é muito mais que uma ilusão e muito menos que uma essência.” Uma ficção. Uma ficção histórica efetiva a respeito de modos de ser e, com isso, reflexivamente, a respeito de seu próprio modo de ser histórico – sua “ontologia histórica”, além da qual não há fundamento. A pergunta pelo ser é moderna, quando acusa seu esquecimento:

Quem esqueceu o Ser? Ninguém, nunca, pois caso contrário a natureza seria realmente ‘vista como um estoque’. [...] As redes estão preenchidas pelo ser. E as máquinas estão carregadas de sujeitos e de coletivos. Como é que o ente poderia perder sua continuidade, sua diferença, sua incompletude, sua marca? Ninguém jamais teve tal poder, senão precisaríamos imaginar que fomos verdadeiramente modernos (LATOUR, 2013, p. 65).

 

Imaginar que fomos verdadeiramente modernos? Aqui Latour gira em falso, pois é preciso admitir acontecimentos, como a modernidade: fomos, porque ela se define pela dispersão das ciências positivas, porque se define assim, segundo ele próprio, por ocultar os híbridos (impensado). Afinal, a modernidade não é a inexistência destes, mas a suposição epistêmica dessa inexistência. Assim, pode-se assinalar que a modernidade envolve “nova ontologia” apenas em relação ao modo de ser do sujeito moderno, no sentido de uma ontologia histórica identificada à episteme moderna. Afinal, como ele próprio realça, “[...] os modernos de fato diferem dos pré-modernos porque se recusam a pensar os quase-objetos como tais.” (LATOUR, 2013, p. 110).

A pergunta moderna, segundo Lebrun (2006, p. 141), seria: “[...] que pertinência pode ter essa escolha, uma vez que, diante da epistemologia, essa ciência se apresenta como um texto, e suas normas reguladoras como um aparelho retórico que os ‘praticantes’ dessa disciplina em particular aceitam, grosso modo, aqui e agora?” Nesse sentido, o humanismo seria apenas uma forma moderna de pensar ao avesso, numa “reflexão racionalista sobre as ciências”, o mesmo diagnóstico da dispersão das ciências positivas. Isso implica aquela pergunta que recorta um “aqui e agora” como modo específico do tempo, permitindo um recorte arqueológico de uma época como a modernidade.

Ainda que não seja adequado qualificar Foucault como um “pós-moderno” (se é que isso existe, já que parece verdade que “[...] o pós-modernismo é um sintoma e não uma nova solução.” (LATOUR, 2013, p. 50)), ainda assim Foucault parece compor o quadro resumido por Latour sob aquela etiqueta: “Racionalistas decepcionados, seus adeptos sentem claramente que o modernismo terminou, mas continuam a aceitar sua forma de dividir o tempo e não podem, portanto, recortar as épocas senão através de revoluções que se sucederiam umas às outras.” (LATOUR, 2013, p. 50). Não é por acaso que uma das questões mais frequentemente dirigidas ao livro As palavras e as coisas é a de saber o que autoriza o ponto de vista de Foucault, em relação à própria episteme moderna.

Por conseguinte, só pode haver “não-moderno”, quando se está face a acontecimentos desprendidos daquela maneira moderna de pensar seu próprio tempo, de recortar épocas como quase-transcendentais. Não significa vanguarda, crítica radicalizada nem fuga tresloucada (LATOUR, 2013, p. 51) – significa apenas conceder ao pensamento moderno a prerrogativa de sua própria antropologia (assimétrica?),[11] de sua própria descrição etnográfica (a dispersão das ciências positivas e alguma interpositividade descritível), de sua Aufklärung como pensamento sobre o próprio presente. Descrever redes possíveis enquanto acontecimentos que não se subtraem (como impensados, necessariamente) à Constituição é ultrapassar a modernidade, na medida em que o sentido histórico da purificação é vivido por ela como elemento de uma racionalidade específica, a qual abarcaria todo acontecimento no plano do saber.

A arqueologia permanece moderna, e o que resta dela na descrição genealógica de Foucault bloqueia, como último respiro moderno, a efetiva consideração metodológica das redes. As redes dependem de um efetivo “nominalismo em história”, inclusive para descrever como acontecimento em rede a autorrepresentação moderna. Apenas dessa forma o “relacionismo” de uma antropologia simétrica no tempo se torna viável, redescobrindo, a partir da diferença – “negação de uma relação” –, as relações que trazem consigo a contingência das medidas que engendram cadeias particulares, relativas. “Se deixarmos de ser totalmente modernos, ele [relacionismo] irá tornar-se um dos recursos essenciais para relacionar os coletivos, que tentaremos não mais modernizar.” (LATOUR, 2013, p. 112). O princípio arqueológico que destaca para nós um “Mesmo” é recolocado no tempo pela casualidade de sua gramática.

Apenas ultrapassando a arqueologia se pode ultrapassar a modernidade. É preciso radicalizar o projeto de um “nominalismo em história”, porque traços críticos da arqueologia são os últimos obstáculos para o mundo do “vinculum em si”, mundo em que todo princípio sintético se desfaz em favor das relações, das redes. O “nominalismo em história”, sublinha Foucault, seria uma tentativa metodológica (embora ele atenue posteriormente a escolha um pouco livre do termo “nominalismo”) de “[...] deixar de lado como objeto primeiro, primitivo, dado, um certo número de noções, como, por exemplo, o soberano, a soberania, o povo, os súditos, o Estado, a sociedade civil – todos esses universais que a análise sociológica, assim como a análise histórica e a análise da filosofia política, utiliza para explicar efetivamente a prática governamental.” (FOUCAULT, 2004, p. 4). Com isso, abandona-se a pressuposição de “universais históricos” como essências que deveriam organizar, de partida, qualquer análise. Nessa mesma direção, portanto, a proposta metodológica das redes não pode impedir-se de reconhecer “nosso mundo” como um mundo “tão pouco moderno”, uma vez que este “[...] deixou de ser moderno depois que substituímos cada uma das essências por mediadores, delegados e tradutores que lhe dão sentido.” (LATOUR, 2013, p. 127-128).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os modernos “[...] não se sentem distantes da Idade Média por alguns séculos, mas separados dela por revoluções copernicanas, cortes epistemológicos, rupturas epistêmicas que são tão radicais que não sobrou nada mais deste passado dentro deles – que nada mais deste passado deve sobreviver neles.” (LATOUR, 2013, p. 68).

Seria exagero subscrever esse diagnóstico de Latour, considerando a filosofia de Foucault. Nem mesmo no quadro da arqueologia seria preciso dizer que as rupturas epistêmicas significam que não “sobrou nada” de uma época a outra. Todavia, a formulação é interessante, por destacar a radicalidade do projeto arqueológico como projeto moderno, e a ambiguidade que se pode reconhecer na arqueologia é talvez sintoma do paroxismo que a caracteriza: último sentido da perspectiva crítica moderna, marcado por fronteiras que, no entanto, precisam se reconhecer porosas. É por esses poros que as redes atravessam a crítica e desenham a necessidade de pensar os acontecimentos, em sua singularidade histórica, em sua genealogia, sem o crivo de um sistema de condições de existência próprios de uma época. A arqueologia parece, assim, o sintoma da implosão da idade moderna.

A temporalidade da perspectiva crítica da história é, afinal de contas, uma escolha, um corte, uma arqueologia possível. Vale a observação de Latour, então, segundo a qual está em jogo uma temporalidade que é “[...] uma forma de classificação para ligar elementos. Se mudarmos o princípio de classificação, iremos obter uma outra temporalidade a partir dos mesmos acontecimentos.” (LATOUR, 2013, p. 74)[12].

Não se trata aqui de uma adesão imediata e completa ao programa de estudos proposto por Latour, mas da consideração da perspectiva metodológica implicada na noção de redes, em oposição à modernidade, para refletir sobre acontecimentos posteriores aos anos 1980. A noção de rede enseja colocar em xeque o tipo de princípio sintético que opera na arqueologia, sem com isso restaurar o estruturalismo propriamente dito, nem uma história linear ou dialética. Se podemos asseverar, com Latour (2013, p. 75), que “[...] é a seleção que faz o tempo, e não o tempo que faz a seleção”, então há algo da produtividade do olhar que permanece; mas, ao contrário da visada arqueológica, não se pretende reconhecer condições específicas de existência, conforme épocas do saber. Nada que um nominalismo em história, uma genealogia, não possa também realizar, caso leve a sério a constituição dos objetos pelos sujeitos e dos objetos como sujeitos, constituição dos sujeitos pelos objetos.

Imagino, originalmente, um turbilhão rápido no qual a constituição transcendental do objeto pelo sujeito se alimentaria, como por retroalimentação, da constituição simétrica do sujeito pelo objeto, em semiciclos vertiginosos e constantemente retomados, retornando à origem. (LATOUR, 2013, p. 83).

 

Essa espécie de perspectivismo antropofágico é o que permite desprender a arqueologia de seu sentido crítico moderno e rumar em direção às redes.

Foucault pode ser, talvez, efetivamente um etnógrafo da modernidade – esta que, juntamente com o homem, desaparece como um rosto na areia. Uma arqueologia parece ser o representante máximo da racionalidade crítica moderna, capaz de descrever o fundo sintético, não como híbridos, mas como função discursiva geral, própria de uma época específica – a modernidade, necessariamente. Se levarmos a sério a discussão de Latour, a conclusão será a de que uma arqueologia só poderia ser moderna, já que é a autodescrição mais bem acabada da purificação crítica.

Jamais fomos modernos? Parece ser preciso responder que sim: já se foi moderno, e já não o somos, quando o “impensado” da modernidade – os híbridos – vêm à luz como força centrípeta para a razão (não apenas científica), no século XXI. Se for isso, efetivamente, o que está em jogo, será preciso repensar o “sujeito” em termos de redes – não por acaso, algo que aparece em redes perspectivísticas, ou em redes virtuais, redes sociais, perpassando inteligência artificial e corpos ciborgues. Afinal, a questão do sujeito não se reporta mais à questão do homem, cujo rosto foi definitivamente apagado, juntamente com a própria razão que o desenhou.

Abre-se então uma nova possibilidade para se pensar a noção de “sujeito”, já que a dimensão discursiva que fechou a questão “quem fala?”, numa impossibilidade antropológica (privilégio do ser da linguagem em relação ao ser do homem), pode ser agora reaberta, na medida em que não se trata da questão “o que é o homem?”, mas talvez da questão “quem é homem/sujeito?”

 

FROM ARCHEOLOGY TO NETWORKS: HAVE WE NEVER BEEN MODERN?

Abstract: Bruno Latour's notion of “network” allows us to open a methodological perspective, which can go beyond the limits of Michel Foucault's archeology. To indicate the conceptual framework in which the notion of archeology is installed, this article develops a discussion of modern science according to Foucault's archeology and the position of Gérard Lebrun, as opposed to Husserl (Krisis). From the main question that unites them in spite of important differences, namely the diagnosis of the dispersion of the positive sciences in the beginning of modernity - as the beginning of modernity -, it will be possible to suggest the interest of the Latourian notion of network. And this, even showing that his interest implies exactly the reverse of what Latour insists on sustaining, the reverse of the thesis that we have never been modern.

 

Keywords: Archeology. Networks. Foucault. Latour. Modern.

REFERÊNCIAS

CANGUILHEM, G. Mort de l’homme ou épuisement du cogito? Critique, n. 242, juil. 1967.

FOUCAULT, M. Entretien avec Madeleine Chapsal. Dits et écrits (1954-1988), 2 v. Paris: Gallimard, 2001.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas (1966). Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Cours au Collège de France (1978-1979). Paris : Hautes Études, Gallimard, Seuil, 2004.

FOUCAULT, M. L’Archéologie du savoir (1969). Paris: Gallimard, 2008.

FOUCAULT, M. Leçons sur la volonté de savoir. Cours au Collège de France, 1970-1971. Paris: Gallimard, 2011.

GIACOIA JUNIOR, O. Nietzsche – o humano como memória e como promessa. 2. Ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2014.

HUSSERL, E. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 3. ed. São Paul: Editora 34, 2013.

LEBRUN, G. A ideia de epistemologia, In: A filosofia e sua história. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

LES MOTS et les choses – regards critiques 1966-196. Textes choisis et presentes par Philippe Artières, Jean-François Bert, Philippe Chevalier, Pascal Michon, Mathieu Porte-Bonneville, Judith Revel et Jean-Claude Zancarini, Presses Universitaires de caen, 2009.

MOURA, C. A. A invenção da crise. In: MOURA, C. A. Racionalidade e crise: estudos de história da filosofia moderna e contemporânea. São Paulo/Curitiba: Discurso Editorial/Editora UFPR, 2001.

MOUTINHO, L. D. Humanismo e anti-humanismo. Foucault e as desventuras da dialética. Revista Natureza Humana, São Paulo, v. 6, n. 2, dez. 2004.

SABOT, P. Lire Les Mots et les Choses de Michel Foucault, Paris: PUF, 2006.

STIVAL, M. Política e moral em Foucault: entre a crítica e o nominalismo. São Paulo: Loyola, 2015.

STIVAL, M. A arqueologia e seus limites. Revista Aurora, v. 31, n. 52, p. 2019, p. 278-303.

Recebido: 23/10/2019

Aceito: 30/4/2020


 



[1] Este artigo é parte dos resultados de pesquisa financiada por meio de bolsa produtividade PQ, pelo CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

[2] Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP – Brasil. Orcid: http://orcid.org/0000-0003-4159-7205. E-mail: stivalmonica@gmail.com.

[3] O presente artigo é uma continuidade da discussão apresentada em “A arqueologia e seus limites”. Naquele artigo (2019), tratou-se de mostrar o limite da noção de arqueologia, partindo sobretudo do livro de Foucault de 1969, A arqueologia do saber. A questão central é o estatuto da síntese do projeto crítico arqueológico, essencial para delimitar algo como uma “modernidade”.

[4] Sem dúvida, o caminho do próprio Foucault procura, nesse sentido, ultrapassar dificuldades próprias da arqueologia. Aqui pretendo explorar outra linha possível para essa superação, diferente daquela levada a cabo pelo próprio autor, a qual pude discutir em outras ocasiões.

[5] Como afirma Canguilhem, a arqueologia é “[...] a condição de uma outra história, na qual o conceito de acontecimento é conservado, mas onde os acontecimentos afetam conceitos e não homens.” (CANGUILHEM, 1967).

[6] Seria preciso aprofundar o comentário em outro momento, para fazer notar que, no quadro arqueológico, não se trata de “mediação”, mas de redução da natureza e do sujeito à dimensão discursiva. A ideia de mediação envolve pressupostos externos à arqueologia.

[7] Para mais detalhes sobre a noção de episteme, assim como outras noções centrais de As palavras e as coisas, ver SABOT (2006).

[8] Foucault analisa o livro de François Jacob, em Croître et multiplier, Dits et Écrits I, 81, p. 967 (FOUCAULT, 2001).

[9] Parece que é nesse sentido que Foucault poderá aludir a “ontologia histórica” de nós mesmos: ontologia de um modo de ser específico, na medida em que se considera um modo de ser histórico no plano discursivo em que ele é.

[10] Seria interessante desenvolver, nesse sentido, uma pesquisa a respeito do número crescente de propostas institucionais (particularmente as universitárias) interdisciplinares, ou reconfiguradas em áreas mais amplas que ciências particulares.

[11] A grande questão, para Latour, é evitar toda forma que imprima assimetrias, grandes e pequenas divisões, no que a modernidade foi pródiga. Mas por que a diferença, na história, precisaria ser a instituição de assimetrias? Que tenha sido assim na temporalidade revolucionária dos modernos não significa que a diferença tenha de ser sempre a instituição de uma assimetria.

[12] Não me parece que a descrição geral de Latour a esse respeito, particularmente no capítulo 3. Revolução, seja exaustiva, nem que descreva adequadamente a temporalidade arqueológica. Mas o central é a marca das revoluções e rupturas, para designar geralmente o que haveria de próprio à modernidade.