CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATOR: UMA INTRODUÇÃO AO PROJETO NIETZSCHIANO DA FISIOLOGIA DA ARTE

Ernani CHAVES[1]

RESUMO: Contemporâneo ao projeto da transvaloração de todos os valores, o esboço de uma “fisiologia da arte” adquire um papel central nos últimos escritos de Nietzsche. Trata-se de uma perspectiva que supõe uma superação tanto da “metafísica de artista” da fase inicial, quanto da crítica ao romantismo, da chamada segunda fase. Partindo da discussão a respeito da pertinência e do uso do termo fisiologia na obra de Nietzsche, este artigo pretende apresentar, nas suas linhas gerais, o alcance desse projeto para a discussão das relações entre arte e verdade, arte e ilusão. Ao final, procura-se apontar a importância dessa idéia de uma fisiologia da arte, a partir da referência à figura do ator.

PALAVRAS-CHAVE: fisiologia, estética, ilusão, ator.

I

Em um dos rascunhos de Nietzsche, escrito no início de 1888 e que visava um possível Prefácio ao Caso Wagner ele escreve, usando a terceira pessoa: “A refutação que este escrito faz de Wagner não é simplesmente estética: é, sobretudo, fisiológica. Nietzsche considera Wagner uma doença, um perigo público” (Nietzsche, 1986i, p.513).

Esta afirmação reitera uma outra, que apareceu um pouco antes e, desta vez, na obra publicada, mais exatamente em uma passagem da 3ª. Dissertação da Genealogia da Moral. O contexto é semelhante, só que agora o objeto imediato da crítica é a perspectiva de supressão da “sensualidade” no “estado estético”, proposta por Schopenhauer. Para Nietzsche (1986d; 1987), ao contrário, a sensualidade não é “suprimida” na arte – die Sinnlichkeit...nicht aufgehoben ist – mas apenas “transfigurada” – sondern sich nur transfiguriert – de tal modo que, ao penetrar na consciência, o “estímulo sexual” se perde. Faz-se necessário, desse modo, diferenciar entre “supressão” e “transfiguração”: ao invés de considerar, como Schopenhauer, que a “sensualidade” deva ser “suprimida” em nome de um “ideal” mais elevado, mais nobre (no caso o “ideal ascético”), Nietzsche considera que ela deve ser, ao contrário, “transfigurada” em nome de um determinado “tipo” de vida. No caso da vida ascética, essa transfiguração empobrece e degenera a própria vida. Entretanto, ele acrescenta entre parênteses, que esse tipo de questão e de investigação, diz respeito a um “conjunto de problemas ainda mais delicados, da até agora intocada, inexplorada fisiologia da estética” (Nietzsche 1986d, p.356; 1987, p.124).

Estas duas citações são os pontos de partida deste artigo, permitindonos formular, a partir delas, duas perguntas. A primeira: o que significa dizer que os problemas estéticos são, “sobretudo”, problemas fisiológicos? A segunda: o que significa, exatamente, uma “fisiologia da estética” ou ainda uma “fisiologia da arte”, nomenclatura largamente utilizada por Nietzsche nos fragmentos póstumos? Procurar entender o significado e o alcance dessa formulação de Nietzsche que, não por acaso, é feita no interior da malha conceitual de sua “última” filosofia, é o nosso objetivo maior. Isso implica, antes de tudo, reconhecer que não há nenhum desenvolvimento sistemático dessa questão na obra de Nietzsche, seja na obra publicada, seja na que permaneceu em estado de fragmento. Muito pelo contrário: esta é uma questão que, tal como a da “vontade de poder”, por exemplo, se encontra fundamentalmente presente, esboçada e até certo ponto desenvolvida, nos fragmentos póstumos, a partir de 1886, quando entra em cena.

A primeira aparição do projeto de uma “fisiologia da arte”, salvo engano, se dá por volta do final de 1886 e é bastante elucidativa da importância que o próprio Nietzsche atribuía a essa questão: “Para a fisiologia da arte” seria o título do segundo capítulo do terceiro livro da obra que Nietzsche planejava na época e cuja fortuna crítica é bastante funesta – A Vontade de Poder (Nietzsche, 1986h, p.284). Este terceiro livro teria também o significativo título de “Luta dos valores” e seria composto de três capítulos (aliás, todo o plano é absolutamente simétrico: são quatro livros divididos em três capítulos cada um): o primeiro, seria chamado de “Reflexões sobre o Cristianismo” e o terceiro, “Para a história do niilismo europeu”. Isso pode nos indicar que, de acordo com esse plano, o estudo da “fisiologia da arte” suporia entender a crítica do cristianismo para que se possa, então, ao final, reconstruir, genealogicamente, a história do niilismo europeu. É importante ainda ressaltar que o último plano que Nietzsche deixou desse livro, antes de abandonar a idéia de escrevê-lo, datado dos meses de julho e agosto de 1888, reproduz esse plano inicial (Nietzsche, 1986i, p.537). Assim sendo, podemos dizer que entre 1886 e 1888 o projeto de uma “fisiologia da arte” passa a representar um papel importante e decisivo nas considerações estéticas de Nietzsche.

Mas, devemos agora nos perguntar previamente, qual a especificidade do emprego do termo “fisiologia” e seus congêneres – em especial, o de “biologia” – no pensamento de Nietzsche, uma questão que não é nova entre os seus comentadores. Grosso modo, poderíamos dizer que a grande questão inicial, nesse caso, é tentar definir se há apenas um emprego “metafórico” do termo “fisiologia” ou se, ao contrário, em decorrência das inúmeras leituras de Nietzsche acerca do assunto, ele supõe, de fato, a importância de determinados “processos fisiológicos” na criação artística.

O ponto de partida dos intérpretes em geral, tem sido um considerável esforço para compreender as diferentes apropriações, na obra de Nietzsche, do termo “fisiologia”. Helmut Pfotenhauer, por exemplo, nos chama atenção para o fato de que, tendo em vista o século XIX, é preciso distinguir entre o uso “metafórico” do termo, presente em escritores como Brillat-Severin, Baudelaire e Balzac, os quais, ironicamente, tratam de questões da vida social e da arte, organizando “cientificamente seu discurso” e o uso a partir do discurso científico especializado, no qual “fisiologia” é, antes de mais nada, uma disciplina científica. Diante desse quadro, Pfotenhauer sugere que devido às suas inúmeras utilizações por parte de Nietzsche, devemos tomar “fisiologia”, de início, “literalmente”, isto é, como Physio-logie, ou seja, estudos dos diversos modos de tratar nossa natureza humana. Essa perspectiva nos possibilitaria, então, ouvir, desde os primeiros escritos de Nietzsche, os ecos de seu interesse pelas “fisiologias” (Pfotenhauer, 1985, p.399-400). Wolfgang Muller-Lauter, por sua vez, distingue pelo menos três usos do termo na obra de Nietzsche: o primeiro é aquele utilizado pelas ciências da época, com o qual Nietzsche estava familiarizado por meio de suas inúmeras leituras sobre o assunto; o segundo, onde o fisiológico é “o que determina de modo somático (e por isso fundamental) os homens”; o terceiro, mais propriamente filosófico, reúne fisiologia e interpretação, na medida em que os processos fisiológicos são considerados como a “luta dos quanta de potência que ‘interpretam’” (Müller-Lauter, 1999, p.21-22). Patrick Wotling, por seu turno, toma claramente o partido do uso “metafórico”, isto é, das fontes literárias, em detrimento das fontes advindas das ciências biológicas: “o que caracteriza seu texto [o de Nietzsche], é o uso literário da terminologia fisiológica, colocada a serviço de uma estratégia filosófica de escrita. Eis porque Stendhal, Balzac ou Baudelaire têm uma importância inteiramente diferente para compreender a démarche de Nietzsche, da de Roux e mesmo Claude Bernard” (Wotling, 1995, p.156).

O privilégio das fontes literárias também se encontra no trabalho de Guiliano Campioni. Segundo Campioni os “contornos rigorosos dos conceitos de décadence e fisiologia da arte são estabelecidos por meio da confrontação de Nietzsche com a ‘psicologia’ francesa”, representada, por exemplo, por literatos como Paul Bourget e Hypollite Taine, que caminhavam na esteira da herança de Stendhal (Campioni, 1994, p.477). Na recepção brasileira, Wilson Frezatti Junior parece ser o único que se ocupa dessas questões. Para ele, é necessário compreender o jogo que entretém na obra de Nietzsche os termos “fisiologia” e “biologia”, que ora aparecem como sinônimos, na medida em que ambos dizem respeito ao corpo e às funções orgânicas, ora não, quando levamos em conta o vínculo anteriormente destacado por Muller-Lauter entre processos fisiológicos e processos interpretativos. Nesse último caso, fisiologia não diz mais respeito apenas aos seres vivos, mas também ao “âmbito do inorgânico e das produções humanas, tais como o Estado, religião, arte, filosofia, ciência, etc.” (Frezatti Junior, 2005, p.58). Bárbara Stiegler, numa perspectiva bastante interessante, considera que as reticências dos comentadores em levar a sério os elementos biológicos do pensamento de Nietzsche, preferindo considerá-los como “metáforas”, se deve ao envolvimento histórico do pensamento de Nietzsche com o “biologismo” da ideologia nazista. Stiegler, ao contrário, não considera que a biologia seja apenas uma “fonte de metáforas”, nem um “cômodo instrumento para valorizar uma vida mais elevada”, procurando ao contrário investigar os “motivos filosóficos mais profundos, que levaram Nietzsche consagrar tanto tempo aos trabalhos dos biólogos” (Stiegler, 2001, p.8).

Além do livro de Stiegler, mais dois livros recentes se dedicaram ao mesmo tema: o de Gregory Moore (2002) e o de Ignace Haaz (2002). Na resenha de Martin Stingelin, acerca dos livros desses três autores (Stingelin, 2003, p.503-513), há uma clara preferência pelo trabalho de Stiegler. Isso significa dizer que não se pode mais ignorar as relações entre Nietzsche e a Biologia, a partir das fontes conhecidas e documentadas pelas suas leituras dos trabalhos dos biólogos mais importantes de sua época, situadas no contexto estratégico de sua crítica à filosofia moderna, de Descartes a Kant. Entretanto, isso não quer dizer que a questão está fechada, de tal modo que o elemento “metafórico” já não deve mais ser levado em consideração. Muito pelo contrário! O que Stingelin mostra é que em nenhum dos três livros por ele resenhados a “crítica da linguagem” em Nietzsche é considerada. Mesmo Stiegler também teria renunciado a investigar “os limites metafóricos das relações entre filosofia e biologia” no pensamento de Nietzsche. Assim sendo, se por um lado, não se pode mais desconhecer que Nietzsche levava a sério os seus estudos de Biologia, por outro lado, sua crítica ao pensamento moderno, implica também numa “crítica da linguagem”, que desde Verdade e Mentira no sentido extra-moral (1873) e das preleções sobre Retórica do semestre de inverno de 1872/1873, na Universidade da Basiléia, implicam numa rigorosa reflexão acerca do caráter “metafórico” da linguagem. Nessa perspectiva, o caminho mais fértil seria não privilegiar esta ou aquela perspectiva, mas combinar o rigoroso estudo das fontes com a indispensável consideração do estatuto “metafórico” da linguagem.

Partindo dessas questões, podemos então formular duas perguntas importantes: uma, mais geral, que tentará responder como se relacionam, no pensamento de Nietzsche, os planos da cultura e da fisiologia, da cultura e da biologia; outra, mais específica, que se dirige ao entendimento do papel privilegiado do plano da estética, no interior dessa ligação entre biologia, fisiologia e cultura.

Para tentar responder a estas questões, pelo menos provisoriamente no escopo deste artigo, retomaremos, de início, dois aspectos importantes que envolvem o projeto nietzschiano de uma “fisiologia da arte”, tal como ele os formulou nos seus fragmentos póstumos e na obra publicada, entre 1886 e 1888. Isso implicará também mostrar que essa questão já está colocada em seu pensamento desde os primeiros escritos. Entretanto, num segundo momento, realizaremos uma delimitação no interior desse conjunto, para examinar mais de perto, um aspecto da estética tardia de Nietzsche que, a nosso ver, só pode ser corretamente compreendido no interior do projeto de uma “fisiologia da arte”: a análise do problema do ator.

II

Podemos dizer, sem correr o risco do equívoco ou do exagero, que a obra de Nietzsche é, fundamentalmente, uma reflexão sobre as relações entre arte e verdade. A “justificação estética do mundo”, que ele defende em seus primeiros escritos, é sua primeira fórmula para justificar o papel determinante da arte. Em um fragmento póstumo, escrito entre o começo do ano e o verão de 1883, ou seja, às portas do Zaratustra, a propósito das relações entre arte e verdade, dizia Nietzsche: “Minha primeira solução foi a justificação estética da existência. Mas, a própria ‘justificação’ não deveria ser necessária! A moral pertence ao reino da aparência”. Na “Tentativa de Autocrítica”, prefácio escrito à edição de 1886 do Nascimento da Tragédia, o olhar retrospectivo confirma, mais uma vez, a prioridade dessa idéia: “Já no prefácio a Richard Wagner é a arte – e não a moral – apresentada como a atividade propriamente metafísica do homem; no próprio livro retorna múltiplas vezes a sugestiva proposição de que a existência do mundo só se justifica como fenômeno estético” (Nietzsche, 1986a, p.17; 1992, p.18).

Segundo Volker Gerhardt, numa argumentação de procedência kantiana, a idéia de uma “justificação estética do mundo” radicaliza a mudança auto-crítica da metafísica moderna, ultrapassando o “primado da razão prática” por meio do “primado de uma posição estética” (Gerhardt, 1984, p.375), sem entretanto desvencilhar-se ainda definitivamente das fronteiras impostas por uma fundamentação metafísica. Assim sendo, à “justificação estética da existência” corresponderia uma “metafísica de artista”, que Nietzsche, no mesmo prefácio de 1886 citado acima, considera como a “idéia principal” do seu primeiro livro: uma “metafísica” que, ao invés de privilegiar o ser e a essência, privilegia a ilusão, o erro, a “transfiguração” própria da arte. Se uma “metafísica de artista”, por sua vez, não necessita de uma justificação moral, dever-se-ia perguntar por que Nietzsche não a manteve no decorrer de sua obra, que é marcada pela tarefa de separar arte e moral. A resposta talvez esteja nas posições oscilantes de Nietzsche a respeito da arte e na sua posição crítica diante da metafísica, que se encontra nas obras do chamado “segundo período” de obra, iniciado com Humano, demasiado humano.

No §153 deste livro, intitulado, significativamente, “A arte torna pesado o coração do pensador”, Nietzsche problematiza a dificuldade, mesmo para o “espírito livre”, de livrar-se da “necessidade metafísica”, de tal modo que este será posto à prova, para sabermos se conseguirá libertar-se do desejo de ter de volta a “amada perdida”, seja ela a “religião ou a metafísica” (Nietzsche 1986b, p.145; 2000, p.118-119). Além disso, duas idéias, tão caras à tradição, as de “gênio” e “inspiração” são também muito criticadas no livro. Os grandes artistas, diz o §155, não são aqueles movidos pela “memória imitativa”, mas “os que foram grandes trabalhadores”, os que criam “incansáveis”, à custa de um esforço e não das “intuições repentinas”, das “chamadas inspirações” (idem, p.147; p.119-120). A relação entre arte e ciência não é apenas relativizada, mas invertida: no Nascimento da Tragédia, o “homem teórico” (e o “homem de ciência”) se opunha ao artista, enquanto agora, tal como o diz, explicitamente o §222, “o homem científico é a continuação do homem artístico” (idem, p.186; p.152). Essa seqüência de aforismos, que finaliza o Quarto Livro de Humano, demasiado humano, intitulado, não por acaso, “Da alma dos artistas”, tem seu corolário no §223, intitulado de “Crepúsculo da arte”. Num tom melancólico, Nietzsche anuncia aqui, a seu modo, o “fim da arte”, que em breve nada mais seria do que “uma lembrança comovente das alegrias da juventude” e o artista, nada mais do que um “vestígio magnífico”. Melhor dizendo: o fim de um tempo – na sua própria vida e na de sua época – onde ainda se acreditou ser possível “o nascimento da tragédia do espírito da música”, ou seja, do “espírito helênico”.

Esse momento de ruptura ou ainda de “crise”, cujo resultado é Humano, demasiado humano, como o próprio Nietzsche diz no Ecce homo, teve uma conseqüência extremamente importante para nossos propósitos: “Uma sede abrasadora me tomou: a partir de então ocupei-me apenas de fisiologia, medicina e ciências da natureza” (1986f, p.325; 1985, p.109), escreve ele. Isso não quer dizer, entretanto, que o inicio de uma ocupação com a “fisiologia” signifique uma ausência total desse tema na obra anterior. Ao contrário, ainda nos anos de 1870-1871, Nietzsche já se referia a “processos fisiológicos”, no bojo de sua “metafísica de artista”:

A vontade, como a maior de todas as dores, se produz a partir de um arrebatamento (Verzückung), idêntico ao puro contemplar e ao produzir da obra-de-arte. Qual é o processo fisiológico? Em algum lugar, uma ausência de dor deve ser produzida – mas como? Produz-se aqui a representação (Vorstellung), como meio para este arrebatamento superior. O mundo é então ambos ao mesmo tempo, é cerne de uma vontade aterradora e como representação, é o mundo fechado da representação, do arrebatamento. A música prova o quanto o mundo inteiro, na sua multiplicidade, não é mais sentido como dissonância. (Nietzsche, 1986g, p.166)

Desse modo, o que vai acontecer a partir de Humano, demasiado humano, é uma intensificação das leituras “científicas” e não propriamente a sua descoberta. Com isso, tal como o fragmento acima reproduzido nos mostra claramente, a pergunta pelos “processos fisiológicos” que estava a serviço da “metafísica de artista” exige, a partir da ruptura com Wagner e Schopenhauer, uma resposta em consonância com o seu tratamento científico.

Mas é também nesse mesmo período que Nietzsche inicia a sua leitura de Stendhal, que já no De l’amour, considera sua investigação uma “fisiologia do amor” (Chaves, 2005). Entretanto, conforme assevera Patrick Wotling, a originalidade de Stendhal é fazer intervir a fisiologia na análise da arte. Assim, ele fará uma espécie de “genealogia do prazer estético”, que pode ser reduzida, em última instância, a um conjunto de processos fisiológicos. Desse modo, numa passagem da Vida de Rossini, livro bastante conhecido de Nietzsche, Stendhal associa prazer musical e uma “teoria da irritação”:

Rossini encontra este justo grau de claro-escuro harmônico, que irrita docemente a orelha sem fatigá-la. Ao me servir da palavra irritar, falo a linguagem dos fisiologistas. A experiência prova que a orelha tem sempre necessidade (na Europa, pelo menos) de repousar num acorde perfeito; todo acorde dissonante lhe desagrada, lhe irrita (aqui, fazer uma experiência com o piano vizinho) e cria a necessidade de retornar ao acorde perfeito. (Wotling, 1995, p.157)

Essa referência a Stendhal é importante para que possamos compreender que esses dois aspectos caminham juntos a partir daí: por um lado, o interesse pelas ciências da vida, incluindo-se explicitamente a fisiologia; mas por outro, a descoberta, por meio de Stendhal, da utilização “metafórica” da fisiologia, quando aplicada à arte.

Essas rápidas referências que fizemos aos escritos da primeira e da segunda fase do pensamento de Nietzsche mostram, com precisão, que, à semelhança de outras temáticas, o projeto de uma “fisiologia da arte” não surge de uma hora para outra, mas está sendo pacientemente elaborado. Além disso, como vimos, as referências à fisiologia encontram-se diretamente acopladas aos grandes temas e questões que Nietzsche está tratando à época, de tal modo que o recurso à fisiologia não é nem secundário, nem gratuito; ao contrário, essas referências também demarcam, com bastante precisão a passagem de uma “metafísica de artista” para o projeto de radicalização de crítica da metafísica, iniciado em Humano, demasiado humano.

Nesse projeto, Nietzsche reencontra, mais uma vez, a filosofia de Kant. Não esqueçamos que Kant representou um papel fundamental para o “jovem” Nietzsche, de tal modo que na “Tentativa de Autocrítica”, ele lamentava que, no período do Nascimento da Tragédia ainda não possuísse uma linguagem própria para expressar suas “intuições” e, por isso, ainda precisava de fórmulas kantianas e schopenhaurianas que, aliás, atentavam, diz ele, contra Kant e Schopenhauer (Nietzsche, 1986a, p.19; 1992, p.20). Fundamentalmente e por meio de Schopenhauer, Nietzsche acatava a crítica kantiana da impossibilidade do conhecimento da “coisa em si”. Ora, não por acaso, a confrontação de Nietzsche com Kant na última fase do seu pensamento, acopla diretamente Kant e Schopenhauer. Podemos perceber claramente esse ponto, se lembrarmos o começo da 3ª. Dissertação da Genealogia da Moral, onde Nietzsche, em nome de Stendhal, faz a crítica do “desinteresse” do juízo estético. Resumindo, a crítica de Nietzsche à estética kantiana se dirige a dois pontos principais: o primeiro, ao fato de que a estética kantiana é, exclusivamente, uma estética da recepção, isto é, que privilegia o ponto de vista do espectador na análise do belo. O segundo ponto considera a estética kantiana como sendo apenas uma expressão derivada do idealismo. Grosso modo, a Crítica da Faculdade do Juízo é para Nietzsche uma espécie de documento acerca da psicologia do espectador moderno que se aplica, quando muito, a uma cultura em particular. Ou seja, além da crítica do “desinteresse”, Nietzsche ataca a idéia de “universalidade” (Wotling, 1995, p.158). Sabemos que a confrontação de Nietzsche com Kant não pode ser compreendida em toda a sua extensão, a partir de uma exposição tão simples quanto a que estamos fazendo agora. Nosso objetivo no momento é apenas o de indicar o quanto o projeto de uma “fisiologia da arte”, ao distanciar-se de Kant, aumenta igualmente sua distância em relação à “metafísica de artista” dos primeiros escritos de Nietzsche. Isso não quer dizer, por conseguinte, que aceitamos, pura e simplesmente, as críticas de Nietzsche a Kant. Insistimos apenas em destacar que, de um ponto de vista estritamente filosófico, ou seja, a partir da ligação entre processos fisiológicos e processos interpretativos, o projeto de uma “fisiologia da arte” precisa confrontar-se com a estética kantiana. Estabelecidos os balizamentos mais gerais da “fisiologia da arte”, passemos às nossas considerações sobre o problema do ator.

Neste caso, a pista fundamental a ser seguida é a da relação tensa e ambivalente que Nietzsche terá com a figura e a obra de Richard Wagner, em especial após a publicação de Humano, demasiado humano. A atitude crítica, como se sabe, só fará crescer nas últimas obras. A perspectiva de Nietzsche é de que a obra de Wagner funciona como um verdadeiro sismógrafo da época. Isso justificaria, para ele mesmo, a importância concedida à publicação do Caso Wagner. Wagner, diz ele, desde o “Prólogo” deste que é um de seus últimos escritos, é “o guia mais experimentado no labirinto da alma moderna”, o “mais eloqüente perito da alma”, através de quem “a modernidade fala sua linguagem mais íntima: não esconde seu bem nem seu mal, desaprendendo todo pudor” (Nietzsche, 1986h, p.12; 1999, p.10). Neste contexto, verdadeiro campo minado, que Nietzsche interpreta por meio do conceito de décadence, ou seja, como um processo de degeneração, de decomposição, permitindo-lhe unir os extremos que se tocam, a décadence artística de Wagner e a décadence fisiológica dos gregos, iniciada por Sócrates (Müller-Lauter, 1999, p.18), o problema do ator (ou do comediante) ganha um destaque especial.

III

De um modo geral podemos resumir a tese de Wagner no seguinte: contra o teatro burguês do luxo e da moda, que utilizava o ator como uma virtuose mecânica e como um escravo a ser humilhado, é necessário retomar, como modelo do ator, a figura do arlequim, do palhaço, que era representada nos teatros de fantoche montados nas feiras e nos mercados. No teatro de marionetes, Wagner reconhecia uma espécie de manifestação do “gênio do povo”, cuja “espontaneidade” se opunha ao domínio das máscaras e das convenções próprias aos franceses. A nascente sociologia alemã, com Ferdinand Tönnies, traduzirá a posição de Wagner na famosa distinção entre Gemeinschaft (comunidade) e Gesellschaft (sociedade): a primeira, representada pela ligação wagneriana entre “gênio” e “povo” e a segunda, bastante identificada com a civilização da moda e do teatro do luxo e da frivolidade, que Rousseau já havia criticado quase um século antes.

Nietzsche retoma a idéia de que a grande arte do ator provém das representações populares, mas recusa, terminantemente, o elemento romântico presente em Wagner, qual seja, a ligação entre gênio e povo. Para ele, a origem da capacidade de comunicação por parte do ator, não está na sua conexão natural com a comunidade à qual pertence, mas nas formas de vida que surgem exatamente quando acontece a dissolução dos laços comunitários, deixando seus membros na carência e impelindo-os à luta pela sobrevivência. O aforismo 361 do Livro V de A Gaia Ciência, intitulado, não por acaso, de “O problema do ator” é uma mostra disso. Aqui, neste aforismo, Nietzsche faz uma espécie de genealogia do “instinto do ator”, de suas múltiplas facetas surgidas ao longo da história, sempre ambivalente, ao mesmo tempo dissonante e adaptado, com suas muitas máscaras, ao meio em que vive. O contrário se dá como o instinto de “diplomata”, que poderia ser também um ator, mas que prefere apenas a adaptação, renegando a dissonância, enquanto apaziguador de conflitos. Por isso, Nietzsche afirma, sempre de uma maneira polêmica, que o judeu é o ator por excelência, pois reúne com bastante sofisticação e sutileza, a dissonância e a adaptação. Entretanto, o aforismo termina com uma referência às mulheres, que radicalizam a visada, posta pelo problema do ator, do artista em geral, que é o da aparência, o da ilusão em sra relação às supostas verdades. Se o ator embaralha essas cartas, é a mulher, por sua vez, que expressa a mais absoluta incapacidade de adaptação. Daí todos os esforços para adaptá-la. Em seu longo artigo a respeito desse aforismo, Babette Babich afirma que esse esforço se expressa nos “milagres da moda, dos cosméticos, dos romances (canções de amor, filmes, propaganda)” (Babich, 2000, p.39).

Em conseqüência disso, a questão do “teatral” e do “histrionismo” se tornará cada vez mais importante para Nietzsche. Segundo Campioni, a avaliação de Nietzsche acerca do ator e do teatro em seus últimos textos, realizada por meio de uma análise fisiológica da ilusão, é inseparável da cultura francesa que lhe era contemporânea (Campioni, 1994, p.474, nota 23). No Anticristo, de Renan, por exemplo, a figura de Nero é apresentada como Histrio; em Paul Bourget, a ligação entre teatro e décadence é bastante clara; em La Faustin, dos irmãos Goncourt, encontra-se a caracterização do público do teatro como uma “massa estúpida”. Esta ligação com os “psicólogos franceses” destaca a importância da articulação entre os conceitos de décadence e o de fisiologia da arte. A décadence, um processo de degeneração que não atinge apenas o corpo, mas também a cultura e as instituições, da qual a obra de Wagner é, no plano estético, a maior expressão, encontrará na “fisiologia da arte”, o procedimento que a dissecará. Em outras palavras, é preciso fazer uma fisiologia do ator!

É no Caso Wagner que podemos encontrar os esboços de uma tal fisiologia. Aqui, ao transportar o conceito de décadence, que Paul Bourget havia utilizado para analisar a literatura, para o campo das artes em geral, Nietzsche vai considerar Wagner a figura do Histrio por excelência. Assim sendo, Wagner é definido não como músico, mas como um “grandíssimo ator”, um “incomparável histrio, o maior mímico, o mais espantoso gênio teatral que tiveram os alemães”, que ao esboçar seus enredos “é sobretudo ator” (Nietzsche, 1986e, p.29; 1999, p.24). Wagner como Histrio significa, antes de mais nada, que a figura do ator, do comediante, usa a máscara do decadente e sua expressão só pode ser compreendida por uma “fisiologia da histeria”. Aqui, a referência à histeria não é fortuita, ocasional, muito menos desprovida de fundamento. Ao contrário: desde que começou a freqüentar a partir do começo dos anos 1880, durante o inverno, por motivos de saúde, a Riviera francesa, Nietzsche acompanhava com muito interesse o grande debate francês a respeito da histeria. Sem nunca ter ido a Paris, sem nunca ter assistido às famosas apresentações das “doentes” por Charcot e seus discípulos na Salpêtriere, ele conhecia com bastante profundidade o debate acerca dos novos tratamentos para as doenças dos nervos, em especial a histeria. Sua fonte principal é um eminente aluno de Charcot, o psiquiatra Charles Fere (1852-1911), de quem Nietzsche leu pelo menos dois livros: Dégénérescence et criminalité (que ainda se encontra no espólio da sua biblioteca particular, em Weimar) e Sensation e mouvement (Grzelczyk, 2005).

O que a “fisiologia da histeria” mostra para Nietzsche? Um processo de “transfiguração”, onde um evento traumático encontra sua descarga na inervação somática. No ataque histérico, na “crise” induzida pela hipnose nos grandes espetáculos proporcionados por Charcot, essa inervação, descontrolada, atinge seu clímax num corpo totalmente dominado pelo excesso. Incapaz de se movimentar, na crise histérica induzida pela hipnose, a paciente dobra o corpo para trás, inclina a cabeça até quase tocar o chão, como uma contorcionista circense, na famosa “posição em arco”. Os olhos semi-cerrados, o sorriso tímido, entretanto, deixam transparecer algo que não escapava a Charcot e seus alunos, mas que apenas Freud irá levar adiante com a máxima radicalidade: é a sexualidade recalcada que se expressa nessa desorganização corporal.

Mas, Nietzsche já tinha levantado, a sua maneira, essa hipótese. Não por acaso, O Caso Wagner procura mostrar a exaustão, que os temas wagnerianos giram em torno da castidade, da pureza e da inocência, contra os perigos do corpo, do pecado, da devassidão. Sua análise das figuras femininas de Wagner não deixa de enfatizar o elemento sexual. No caso do ator, que é o que nos importa neste momento, a fisiologia da histeria revela duas coisas fundamentais: primeiro, o reino das máscaras e sua teatralização para o grande público, como uma das marcas de uma modernidade cujo progresso, cuja evolução, ao contrário do ufanismo da época, é justamente o declínio, a décadence; segundo, a transfiguração dos afetos no excesso: como a histérica, o histriônico se contorce, desfigura o rosto e o corpo para se expressar “melhor”, com mais “verdade”, para que a platéia possa acreditar que não está diante de um ator, mas do próprio personagem por ele “encarnado”. Com isso, Nietzsche dá continuidade ao debate que Diderot havia colocado no Paradoxo do Comediante, ao mesmo tempo em que abre ainda mais as portas, para o futuro debate, em torno da mesma questão e no mesmo diapasão da crítica de Wagner, que se encontra em Brecht. Entretanto, é sob o olhar do “psicólogo” Nietzsche que a questão, neste momento foi esboçada. Para Nietzsche (como para Freud), ao tentarem desembaraçar as histéricas e os histriônicos, de suas prováveis máscaras, para mostrar uma verdade profunda, seus prepostos, seja o psiquiatra, seja o “hipnotizador”, o “mago”, o “feiticeiro” Wagner, acabam por revelar o que não deveria ser revelado: que essa “verdade profunda” não é o “outro” dessa contorção excessiva, mas a sua própria expressão. No caso de Nietzsche, desde sempre, expressão cabal e perfeita do “labirinto da alma moderna”.

ABSTRACT: Together with the project of revaluation of all values, the schema of a “physiology of art” gains a central role in Nietzsche’s last writings. That’s a perspective that supposes a defeat both of the “artist’s metaphysics” of the initial period and of the critique of romanticism that characterizes a second moment. Taking as a starting point the discussion about the pertinence of utilization of the term physiology in Nietzsche’s work, this article intends to present, in general terms, the reaching of this project to the discussion of the relations between art and truth, art and illusion. In conclusion, the intention here is to show the importance of this idea of a physiology of art taking as a reference the figure of the actor.

KEYWORDS: physiology, esthetics, illusion, actor.

Referências bibliográficas

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[1] Professor Associado I do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Pará-UFPA. Artigo recebido em mar/07 e aprovado para publicação em mai/07.