A POLÍTICA NA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO

Odílio Alves AGUIAR[1]

RESUMO: O artigo enseja discutir os dilemas e as possibilidades da política na atual configuração societária. Partiremos da definição de sociedade do conhecimento como sociedade em rede apresentada pelo sociólogo Manuel Castells e, em seguida, exporemos os conceitos arendtianos de totalitarismo e ação, importantes para uma reflexão sobre a política nos dias atuais. Abordaremos as implicações da questão judaica na teoria política arendtiana, na qual sobressai uma perspectiva agônica do poder, isto é, o poder não como lugar das forças anônimas, sistêmicas, reprodutoras do status quo, mas de fundação, resistência, civilidade e revelação dos homens como agentes. O pensamento de Hannah Arendt mostra-se fecundo para compreensão das vias de acesso às práticas que repõem, na sociedade do conhecimento, a política na sua significação original.

PALAVRAS-CHAVE: política; sociedade do conhecimento; Manuel Castells; Hannah Arendt.

É consensual nas ciências humanas que as atuais sociedades sofreram forte influência, nas suas organizações, do conhecimento cientificamente produzido. A incidência do conhecimento científico na vida social não é nova. Trata-se de um processo que emergiu com o iluminismo, atravessou a modernidade e chegou até nós. Vivemos o apogeu da modernização cuja característica principal, para além da complexidade inerente à sociedade moderna, reside na inovação tecnológica como critério para medir o desenvolvimento social e o progresso técnico. Vale dizer, a sociedade do conhecimento é a forma contemporânea de explicitação e realização da sociedade fundada na idéia de progresso. A estrutura dessa sociedade foi desvelada por Marx, e seus valores, tendencialmente secularizantes, por Weber. Nossa pretensão aqui não é abordar a dimensão estrutural das sociedades modernas, mas, prendendo-nos  à sua figura mais recente, verificar suas alterações em relação à conceituação clássica (weberiana e marxiana) e a configuração da esfera política nessa nova formação social.

Seguiremos a acepção de sociedade do conhecimento como sociedade em rede proposta pelo sociólogo Manuel Castells ou sociedade da informação ou da informática usada por outros autores, por exemplo, Adam Schaff. Castells, na obra A Sociedade em Rede, recentemente publicada, defende que o impacto da revolução na tecnologia da informação compara-se à passagem do modo agrário para o modo industrial de desenvolvimento. Para o autor, a penetrabilidade desse novo modo de desenvolvimento em todas as esferas das atividades humanas propiciou a remodelagem das comunidades em ritmo acelerado, gerando novas relações entre economia, Estado e sociedade, alterando a geopolítica global e reestruturando o capitalismo (cf. Castells, 2005, p.39-40 e p.43).

Segundo Castells, a matriz tecnológica presente no industrialismo é hegemonicamente energética e o seu resultado aparente é a automação dos processos de trabalho. A grande novidade trazida pela Revolução Industrial foi a substituição da força humana pelas máquinas e a descoberta do controle científico das potências da natureza. Esse controle é visto, ainda, nesse modelo, como multiplicação e extensão da força humana.

O industrialismo substituiu a exclusividade da terra e apresentou a fábrica, a produção em série, como o lugar da extração do excedente. No entanto, a tecnologia permanece entendida como objeto, ferramenta, meio através do qual a força humana é potencializada. A dignidade da tecnologia é restrita, instrumental e ligada ao processo de transformação da matériaprima em mercadoria. Castells defende que mudanças tecnológicas significativas vão ocorrer e aperfeiçoar o padrão industrial e, em todas elas, cada vez mais o conhecimento é incorporado à matriz industrial. No entanto, o objetivo primeiro, a produtividade, é pensado como derivado da expansão na produção de novas fontes de energia. Foi assim com o surgimento da máquina a vapor e sua substituição pela eletricidade e, recentemente, pela energia nuclear.

Muitas nuanças marcam o modo industrial de produção. Inicialmente o investimento pesado foi feito na produção das máquinas e, a partir da década de 1950, na produção de objetos de consumo, provocando a explosão do consumo de massa. No entanto, depois da revolução da informação, o industrialismo foi substituído pelo informacionalismo como padrão de desenvolvimento. Qual sua origem e especificidade? A constituição da sociedade do conhecimento vai se realizando na medida em que não apenas o processo produtivo, mas o conjunto das relações estabelecidas no interior das sociedades passa a pressupor a mediação cibernética. Nesse sentido, diferentemente do que afirma Adam Schaff, o ápice da revolução informacional não é a automação da produção (unmanned factories) e dos serviços (cf. Schaff, 1995, p.22), mas a cobertura e a intermediação das conexões produtivas, institucionais e pessoais por processos informatizados, algum tipo de inteligência artificial e computadorizada. A matriz deixa de ser a energética e passa a ser a cibernética. O que se busca potencializar não é a força, mas a mente humana. Para isso, a tecnologia da informação desdobra-se em conformidade com o setor: microeletrônica, computação, telecomunicação, radiodifusão, optoeletrônica, engenharia genética e nanotecnologia. O específico desse arco tecnológico é que não está relacionado diretamente à transformação da matéria-prima, mas do conhecimento. A busca deixa de ser pelos insumos baratos de energia, para os insumos baratos da informação. A capacidade de reter, processar e transmitir informações vai se transformar na chave da produtividade econômica, do poder político e da inserção social. Adam Schaff chega a comparar o valor da informação ao peso da propriedade no capitalismo clássico (cf. idem, p.53-60). Nesse paradigma, as tecnologias deixam de ser ferramentas e se metamorfoseiam em processos que podem ser reconfigurados sem destruir o sistema que os constituem. O usuário pode, se o desejar, transmutar-se, também, em criador.

O sistema estruturante das tecnologias da informação é uma rede na qual joga papel fundamental a internet. Castells diz, por isso, que a sociedade da informação é uma sociedade em rede. Para ele, a crise do petróleo na década de 1970, mais a crise estrutural do Welfare State e a guerra fria são os fatores que propiciaram a receptividade das novas tecnologias de informação como forma de reestruturar e rejuvenescer o sistema capitalista cambaleante (cf. Castells, 2005, p.56). Tudo começa com o surgimento do transistor. Com ele, possibilitou-se o processamento de impulsos elétricos em rápidas velocidades. Depois inventou-se o circuito integrado (CI) e daí o microprocessador que é um computador que usa um único Chip no qual se integram memória e velocidade. Desde o aparecimento do primeiro computador para cá os saltos são enormes. O mais significativo e recente deles, nesse processo todo, vai resultar no surgimento da internet. Inicialmente, tratava-se de descobrir uma forma de não permitir que os soviéticos tomassem de assalto ou destruíssem o sistema americano de comunicação em caso de deflagração de uma guerra entre os dois paises. Pensada como um equivalente eletrônico da tática maoísta de dispersão das forças de guerrilha, a internet resultou numa arquitetura de rede que não pode ser controlada a partir de nenhum centro e é composta por milhares de redes de computadores autônomos com inúmeras maneiras de conexão (cf. idem, p.44). Os avanços das telecomunicações através das fibras óticas e a lazer possibilitaram o funcionamento dos computadores em rede e transformaram o processamento e armazenamento de dados centralizados em sistema compartilhado e interativo (cf. idem, p.81). A capacidade de conexão, armazenamento e transmissão da teia mundial compartilhada transformaram-na em verdadeiro sistema de processamento de dados. O volume do tráfego de informação exige expansão acelerada e gigantesca da capacidade dos computadores e, nesse sentido, estão sendo feitos grandes investimentos em nanotecnologia. Trata-se da eletrônica molecular pensada para superar os limites físicos dos Chips de silício e prenuncia uma era de computadores cem bilhões de vezes mais velozes do que um microprocessador comum como o Pentium. Comenta-se, por exemplo, que o projeto genoma humano só será bem sucedido com computadores com essa capacidade de processar e armazenar informação.

Quais as implicações do modo informacional de desenvolvimento na vida social? Podemos destacar, entre outras, alterações significativas no campo da economia, nas relações sociais e na política. Houve uma reestruturação do capitalismo, caracterizada por maior flexibilidade de gerenciamento, descentralização das empresas, fortalecimento do Capital, declínio dos movimentos trabalhistas, concorrência e integração global dos mercados. Do ponto de vista econômico, chama atenção, de modo particular, a alteração na forma de extração da mais-valia. Na teoria clássica, a mais valia é pensada em função da quantidade de tempo expropriado do trabalhador pelo capitalista. É daí que é retirado o excedente e, por conseqüência, o lucro. Na sociedade do conhecimento, a mais-valia não é obtida através da exploração direta do trabalhador ou do uso periférico da técnica na produção. Trata-se, no modo informacional de produção e desenvolvimento, da produção da mais-valia, da obtenção do lucro a partir do conhecimento e da técnica, do fato de que a geração da produção e da riqueza está atravessada de ponta a ponta pelo paradigma cibernético. Essa talvez seja a razão do desemprego, da centralização, circulação especulativa do capital e da permanência dos buracos negros de miséria espalhados no mundo inteiro, desde as regiões mais pobres até as periferias dos grandes e ricos centros urbanos. Assim sendo, embora a sociedade tenha se alterado e continue mudando bruscamente, o capitalismo conseguiu manter-se e sair fortalecido com a revolução informacional.

Já do ponto de vista social, é crescente o processo de virtualização das relações. Cada vez mais o acesso ao mundo é mediado pela internet. A web veio a ser o espaço cuja freqüência é símbolo da inserção social, da mesma forma como as praças nas antigas cidades e os shoppings centers ainda hoje. A rede tornou-se lugar privilegiado de visibilidade. Não ter acesso à rede conectada de computadores pode ser um sinal de marginalização ou alienação. Cada vez mais os contatos sociais, econômicos e institucionais exigem o acesso a alguma forma de processadores informatizados, como os celulares, binas, pagers, computadores etc.

Quanto ao aspecto político, dimensão que nos interessa particularmente nesse artigo, cabe esclarecer que nossa intenção não é apresentar as exigências tecnológicas para que as instituições políticas venham a estar up to date em relação à sociedade do conhecimento. Não se trata de apresentar os elementos imprescindíveis a uma gestão científica da política, como por exemplo, o uso do marketing, da pesquisa de opinião, da estatística, dos meios de comunicação e da rede na efetivação dos plebiscitos e dos outros tipos de votações nos regimes representativos nem lugar de disputa dos votos dos eleitores. Para nós, o importante é indagar em que medida essa nova forma social altera e como isso se dá em relação às formas de governo, tanto nas suas formalidades quanto regime, forma de instituição e modo de ser da sociedade (cf. Lefort, 1991). Isto é, de que maneiras as instâncias definidoras e deliberadoras em relação à vida comum se efetivam. Trata-se, portanto, de indagar a respeito da legitimidade do poder nessa nova forma de sociedade. Pleiteamos, com isso, seguir um leitmotiv no qual a política, o encontro público e conflitante dos cidadãos, é de fundamental importância e não pode ser ultrapassada por procedimentos meramente formais. Recuperar o sentido da política no seu aspecto agônico, participativo, é o grande desafio posto a essa esfera na sociedade do conhecimento. Esse é o motivo pelo qual iremos nos ater à pensadora judia-alemã Hannah Arendt.

Na nossa compreensão, Arendt antecipa em suas obras elementos importantes para a elucidação da trama urdida na modernidade e cujo resultado será a sociedade do conhecimento. De modo que, embora não tenha abordado explicitamente essa formação social, nossa autora nos propicia subsídios importantes para entendermos as mudanças que vão ocorrer na constituição do poder na sociedade informática.

A tarefa de pensar as alterações profundas ocorridas no modo de exercer o poder tem ocupado a mente dos melhores dos nossos pensadores políticos contemporâneos. Fatos e conceitos estão sendo examinados, destacando-se entre eles: espetacularização, globalização, biopoder e império (Cf. Agamben, 2002; Mouffe, 2005; Hardt & Negri, 2003; Debord, 1999). Nessa linha, Arendt, na sua obra Origens do Totalitarismo, antecipa elementos conceituais essenciais na direção da percepção e compreensão do surgimento nos tempos atuais de formas de governo sem política. Embora a idéia de domínio total, as vezes, venha pensada, nessa obra, em relação ao controle ideológico dos indivíduos, enquanto vontade, consciência e pessoa jurídica, a percepção do papel das massas nas formas totalitárias de governo se faz presente como uma espécie de desvio no interior do próprio pensamento da autora que ultrapassa o conceito tradicional de dominação e antecipa a idéia de dominação como controle das condições (sobre a categoria totatlitarismo em Arendt, cf. Aguiar, 2001). Trata-se de uma linha de raciocínio unânime entre os estudiosos do poder hoje: seu exercício não obedece à perspectiva estratégica clássica. Não se trata mais de mandar, oprimir, eliminar, persuadir as vontades particulares. O paradigma da vontade, típico do padrão que concebia o poder como soberania, não explica mais os meandros e delineamentos constitutivos do poder na atualidade. O exercício do poder na sociedade do conhecimento tem se mostrado como passando por uma atuação sobre as condições em que acontecem a vida, a informação, as relações, a produção e a cultura. O poder é, deste modo, definido como a capacidade de estruturar o campo de ação do outro, de intervir no domínio de suas ações possíveis e não diretamente sobre sua vontade. Concebe-se a população, um ente estatístico, e sobre ela age-se. A família deixou de ser a célula mater da sociedade. Isso fez aparecer o fenômeno recente em que as pessoas se sentem individualmente livres, com amplas possibilidades de escolhas, mas sem poder algum, completamente impotentes. O poder, a dominação, não é mais pensado como controle da consciência e da vontade das pessoas, mas das suas condições e possibilidades de ação. No encadeamento estrutural-sistemático em que o poder vai se erguer perdem importância as lideranças, os partidos, os sindicatos e todas as outras formas institucionais que encarnavam ou simbolizavam a centralidade da vontade, a capacidade de organização e da consciência na política. O processo de virtualização, típico da sociedade em rede, não vai se importar com quem está no poder, mas com a reprodução do sistema gestor que opera e controla as condições gerais em que ocorrem a produção das mercadorias, as relações humanas, a circulação das informações e o consumo na atualidade. É como se o poder perdesse o seu centro, não para enfraquecer-se, mas para adquirir a ubiqüidade e inviabilizar uma estratégia de ação contra ação. Atuando sobre as condutas e comportamentos estatísticos, essa forma de poder deixa a vontade e a consciência livres, mas, também, impotentes e descartáveis.

Para captarmos o valor heurístico da reflexão arendtiana e entendermos a política na sociedade do conhecimento, cumpre partir de uma consideração de seu pensamento na linha proposta por Richard Bernstein na obra Hannah Arendt and the Jewish Question na qual a questão judaica (die Judenfrage) é tomada como ponto de partida da sua reflexão (cf. Bernstein, 1996) ou como ela mesma escreveu a Jaspers: “Eu tenho recusado abandonar a questão judaica como o ponto focal do meu pensamento histórico e político” (Arendt & Jaspers, 1992, nº 34, p.31). Trata-se, evidentemente, na autora, não de uma perspectiva etnocêntrico-essencialista a atravessar seus escritos, mas das circunstâncias pessoais e histórico-políticas em que ela viveu (cf. Aguiar, 2001a, p.323-336). O que provocou o espanto no seu pensamento, e isso ocorreu em 1933 quando ela soube de Auschwitz, foi o surgimento dos campos de concentração, pela primeira vez na história da humanidade, como instituição emblemática da forma totalitária de governar. O holocausto, o genocídio, a solução final transformaram-se em maneira de resolver os problemas e conflitos presentes nas sociedades européias do início do século. O que incomodou Hannah Arendt não foi o fato dos judeus terem sido executados, mas a percepção de que o que estava acontecendo ultrapassava a forma totalitária de governar ou, em outras palavras, a nova forma de governo baseada nos campos de concentração trazia para o mundo contemporâneo a novidade radical do fim da política. Quem sabe seja esse o sentido das suas palavras ao afirmar que “talvez os verdadeiros transes do nosso tempo somente venham a assumir a sua forma autêntica – embora não necessariamente a mais cruel – quando o totalitarismo pertencer ao passado” (Arendt, 1990, p.512). Se pessoalmente nossa autora foi vítima da forma totalitária de governar, perigo maior ela anteviu ao perceber a dimensão proto-totalitária das sociedades contemporâneas, isto é, a pretensão de domínio total como marca profunda do totalitarismo ultrapassa sua vigência histórica particular e, de alguma forma, pode penetrar as atuais formas democráticas de governar.[2] A ambição de controle, domínio e manipulação podem estar respaldadas pelas nossas atuais instituições na medida em que os homens deixam de ter e querer um lugar na política. Sem esse espaço, facilmente tornam-se controláveis, previsíveis e supérfluos, sem utilidade e espontaneidade. O ideal da funcionalização e automatização da vida exibe como insignificante o contato entre os homens como seres humanos e torna-os meras funções sociais, coisas. Esse é o sentido essencial dos campos de concentração. Eles apresentam como possível uma forma de vida humana sistematicamente gerenciada, tecnologicamente controlada. A tendência ao domínio e ao controle total da sociedade, não diretamente sobre as vontades, mas atuando nas condições da existência, inviabilizando os contatos político-organizacionais e espontâneos das pessoas, transforma-se no grande perigo das sociedades altamente tecnologizadas, embora isso não possa ser concebido como um destino, mas como um perigo, uma tendência que exige a nossa atenção. A apatia pelos problemas comuns, o cerceamento das instituições que tradicionalmente exerciam uma função agônica, como os sindicatos, movimentos e outros organismos comunitários, e a idéia cada vez mais aceita pela opinião pública de que as instâncias especializadas resolverão todos os nossos problemas estão propiciando uma incapacidade para lidar politicamente com os conflitos e as diferenças internas e externas às comunidades nacionais e incrementando o uso da força e da violência no nosso cotidiano.

A idéia básica que está agregada à experiência totalitária e que poderemos retirar do conceito arendtiano de totalitarismo diz respeito a um governo com ambição de domínio total, no sentido de manipulação e controle das populações, colonização dos territórios e, também, à pretensão de uma solução única, tecnologicamente articulada, para os conflitos e embates humanos. Extinguem-se, assim, os espaços agônicos nos quais os homens e grupos poderiam lutar para verem reconhecidas as suas pretensões e ambições políticas. Nivela-se, desse modo, a dimensão plural dos seres humanos e a diversidade de posições que eles ocupam na terra. Aplainam-se sistemática e abstratamente as diferenças reais e conflitantes entre os homens justificando-as pelas necessidades de expansão da força, da governabilidade e da eficácia.

Nessa direção, Arendt detecta com sutileza e inteligência a instrumentalização por parte dos governos totalitários, pela primeira vez na história da cultura política ocidental, da propaganda comercial como forma de comunicação política. Trata-se de uma das heranças mais comuns na prática política atual pertencente ao lastro legado pela ambição manipuladora totalitária. O pensamento de Arendt, desde Origens do Totalitarismo até suas últimas obras, está prenhe de elementos que contrapõem espetacularização, fabricação propagandística de imagem, à idéia de uma visibilidade articulada políticamente (Cf. item “A propaganda totalitária”, idem, p.390-413 e capítulo “A mentira na política – Considerações sobre os documentos do pentágono”, Arendt, 1973, p.9-48). A substituição da visibilidade pela espetacularização é um dos traços da política contemporânea e está relacionada à perda da capacidade de agir dos homens e da política como espaço de luta pelo reconhecimento, limitado pela lei.[3]

É esse sentido agônico que Arendt enseja imprimir às lutas do povo judeu (sobre a idéia de agônico, cf. “Natureza e significado do jogo como fenômeno cultural” e “O jogo e o direito”, Huizinga, 2004). A falta de uma visão e organização política obnubilou a compreensão da importância da ação política para emancipação do povo judeu. É por isso que Arendt não se acomodou numa visão abstrata dos direitos humanos e que adquiriu importância capital, nos seus escritos, a diferença proposta por Bernard Lazare entre o pária consciente e o parvenu (cf. Arendt, 1987, e Arendt, 1991). A diferença entre a esfera econômico-social e a política é, sem dúvida alguma, marcada por essa influência de Lazare que lhe foi passada no seu período universitário por Kurt Blumenfeld (cf. excelente biografia de Arendt em Young-Bruehl, 1997), um dos mais influentes lideres sionistas na Alemanha na década de 1920. O parvenu só pensa na própria sobrevivência, não possui senso algum da dimensão política dos seus direitos. Para ele a sobrevivência do povo judeu é uma questão filantrópica. Tenta desesperadamente escapar ao status de pária e ser aceito pela sociedade. É um escalador social. Ao assimilar-se acaba por aceitar o anti-semitismo. Rahel Vernhagen, personagem dos salões berlinense na belle epoque, biografada por Arendt, foi por algum tempo uma parvenu, tentou ser aceita pela alta sociedade, mas acabou se rebelando e afirmando a si mesma como judia e agindo como pária consciente (cf. Arendt, 1994). Esse tem consciência da dimensão política da sua luta que era o ponto fraco do povo judeu. De algum modo, essa falta de cultura política dificultou a organização da resistência judaica à solução final. Também não deu um encaminhamento político diferenciado para o novo organismo político nascido em 1948 para abrigar e proteger politicamente o povo judeu: o Estado de Israel, razão pela qual Arendt distanciou-se da política prática e passou a dedicar-se à sua vida de escritora e professora. Sem esse pano de fundo judaico, dificilmente podemos entender a luta teórica empreendida por Hannah Arendt, após a experiência totalitária, para recuperar o sentido da política, o teor e dimensão agônica do conceito de ação que é chave no seu pensamento político.

O atual procedimento das forças hegemônicas que focam a dominação sobre as condições de atuação das pessoas, grupos e nações tem-se mostrado enormente eficaz. Políticos e movimentos da resistência vêm tentando criar novas condições e ampliar a capacidade de alterar tal situação. No entanto, têm prevalecido, nesse campo, resistências primitivas, desorganizadas, no melhor dos casos, étnico-nacionalistas com pouca capacidade de ir adiante, de ultrapassar a cegueira e o ódio que as gestaram.

Arendt nos oferece o conceito de ação como um elemento compreensivo de suma importância para esclarecer as complicações semânticas e práticas surgidas com a modernidade. Esse conceito foi pensado e desenvolvido pela autora logo após a escrita de Origens do Totalitarismo e faz parte do seu denso arsenal reflexivo elaborado na tentativa da recuperação da política após os tormentos totalitários entificadores de formas não políticas de governo. O principal texto em que aparece sua reflexão sobre a ação é A Condição Humana. Constituem pano de fundo dessa obra não só o totalitarismo, mas também uma visão da modernidade como um momento histórico-politico-econômico-cultural no qual se alteram valorativamente as diversas dimensões da vida, prevalecendo a economia, as tarefas humanas ligadas à reprodução biológica, à vida privada, à dominação da natureza, à produção do consumo de massa, à formalização e à institucionalização das relações entre as pessoas etc. A sociedade do conhecimento, de certa forma, aperfeiçoa essa linha. Assim sendo, podemos dizer que se mantêm para essa nova formação social as exigências de recuperação da política posta por Arendt. A eliminação da perspectiva agônica na política, sua transformação em mera instância encarregada da administração é algo explicitamente denunciado por Arendt ao longo de toda sua bibliografia. Trata-se de uma forma eficaz de proibir o envolvimento das pessoas nas questões relacionadas ao destino comum. Tornar as questões públicas temas para especialistas é tornar os cidadãos incompetentes para opinar sobre o que diz respeito a todos e deixar sem a atenção dos cidadãos a razão de ser dos embates públicos: a estruturação política da vida comunitária.

Arendt liga política a identidade. Pensar a política na chave da identidade é a única forma de superar a sua redução a meio, a instrumento e retomar sua dimensão agônica. A obra A Condição Humana inicia chamando atenção para a diferença entre imortalidade e eternidade como modo de encarar a relação homem-mundo e aponta a primeira como um conceito político-agonístico em contraposição ao conceito metafísico-cristão de eternidade da vida. Na imortalidade, a vida adquire sentido na medida em que adquire permanência na memória da comunidade, em que é narrável de geração para geração; na eternidade, a verdadeira vida se realiza após a morte, pois é eterna. Critérios diferentes balizam esses dois modos de conceber a existência humana: numa prevalece como critério a bondade; na outra a excelência, a disposição para lutar e disputar um espaço na memória da comunidade. O primeiro pode ser satisfeito na mais absoluta solidão; o segundo, apenas enquanto se compete por um lugar que está além da vida comum, cotidiana e que pode dar um sentido humano à vida da comunidade. No critério da excelência o que está em jogo não é o biológico, não é a redução da atividade humana a função, não é o interesse econômico, mas o soerguimento de um lugar para revelação do quem. A polis, na compreensão de Arendt, foi esse espaço criado para propiciar a uma maior quantidade de cidadãos a possibilidade de mostrar o valor pessoal, quem eram e o que eram capazes de realizar. A criação da política no seu significado originário remetia a essa superação do período em que apenas os heróis podiam ser dignos de permanecer na memória da comunidade. A política funciona, assim, como o lugar apropriado para revelação da identidade dos membros da comunidade. Com isso, a comunidade transforma-se num agon, num espaço privilegiado para a disputa pelo reconhecimento no qual os melhores e excelentes serão reconhecidos como tais.

Desse modo, Arendt não comunga com a visão atual na qual a ação é uma capacidade dos cientistas e tecnólogos, mas a única atividade exercida diretamente entre homens. Agir não pode ser confundido, como fez a modernidade, com fabricar (work) ou trabalhar (labor). O resultado da ação não é a produção de um objeto ou de algo para ser consumido, mas a revelação da identidade de um agente e a criação de teias de relações humanas. Assim, se a política é relacionada à identidade, no entanto, a identidade não vem reduzida à sua dimensão étnica, mas na sua articulação com o ordenamento comunitário em suas dimensões jurídicas, culturais e linguísticas. Vale dizer, a identidade politicamente pensada não é substancial, natural, realiza-se num campo em que os conflitos, as lutas têm sua legitimidade e limite na manutenção da pluralidade que compõe o espaço público e é por ele protegida. Nesse espaço, a violência e a força são transfiguradas em competição e luta pela excelência. A competição econômica perde a possibilidade de revelar publicamente a identidade pessoal e, por isso, não atribui importância à esfera pública.

O capítulo sobre a ação em A Condição Humana estrutura-se sobre categorias que precisam ser recuperadas nos dias atuais para que possamos reaver o sentido da política. As principais são identidade, pluralidade e capacidade de iniciar algo novo. É como se Arendt estivesse nos alertando que a superação da atual crise da política não pode ser vencida pela conversão dos corações dos políticos, mas pela elaboração de espaços públicos capazes de acolher a demanda identitária de todos os seres humanos. Os sistemas econômicos e tecnológicos atuais podem se revelar eficientes em muitas coisas, mas têm se mostrado incapazes de criar um espaço de revelação civilizada das identidades, razão pela qual o tribalismo tem convivido com as mais altas exigências instrumentais da racionalidade técnica. Essa racionalidade tende a nívelar e aplainar todos os conflitos, lutas e propor um modo prosaico de vida em que a tensão para ser alguém, para se constituir como uma subjetividade e identidade próprias é administrado e encaminhado para o consumo de prestígio, ou seja, para a aquisição de objetos e coisas como substitutos do combate inerente à constituição da identidade.

A rejeição dos conflitos é acompanhada pela rejeição da pluralidade como condição humana. Para Arendt, a pluralidade humana é uma realidade ontológica, inerente ao fato dos homens, e não o homem, habitarem a terra. Vale dizer, não vivemos sozinhos no mundo e temos que dividi-lo com outras pessoas. A política é a forma apropriada de lidar com as competições e conflitos entre os homens e não uma forma de desconhecê-los. Vários autores da atualidade têm chamado atenção para o fato da prioridade da governabilidade na política contemporânea ter, por um lado, evitado os conflitos, pautando-se numa perspectiva consensualista do poder e, por outro lado, apelarem para violência como forma de eliminar as tensões existentes.

Arendt é um autora otimista, para ela, enquanto existirem seres humanos perdura viva a capacidade de iniciar. Mesmo em situação da vigência de manipulabilidade geral, que é a grande aposta da atual estratégia que privilegia a atuação dominadora sobre as condições da ação, o homem retêm a capacidade de romper o status quo e iniciar algo novo. Iniciar é a característica fundamental da ação. É nisso que ela se diferencia das demais atividades humanas e é o motivo pelo qual a redução do ser humano a um passivo consumidor de apetrechos não é plausível.

Uma leitura atual da realidade político-cultural-econômica mundial sinaliza para a incapacidade do consumo destrutivo acomodar as demandas identitárias da população. Essa talvez seja a ocasião de se firmar uma perspectiva mais ampla em que se conjuguem a necessidade de criação de espaços que revelem e protejam a identidade das pessoas bem como limite o poder destrutivo do consumismo e da economia atual sobre o planeta terra.[4]

Finalizando, podemos verificar, pelo exposto, que o pensamento de Hannah Arendt valoriza enormemente a visibilidade e, assim fazendo, sinaliza para um dos maiores perigos da sociedade em rede que é a virtualização das pessoas e das relações humanas. Sem espaços de aparição, sem o contato direto entre os seres humanos, corremos o perigo de ver disseminado entre nós a cultura do medo e crescer a dificuldade de lidar com os conflitos. O resultado é o retorno de formas não civilizadas, como a força e a violência, como estamos presenciando, para resolver as tensões humanas, profundamente coadjuvadas pelas descobertas e potências tecnológicas. Desse modo, a retomada da política numa sociedade altamente tecnologizada passa pela compreensão e aceitação de um lugar limitado, específico, para a tecnologia e a economia como condição do surgimento de lugares apropriados ao aparecimento de homens ativos e individualidades generosas, capazes de incidir e cuidar do mundo, preparando-o para gerações vindouras.

ABSTRACT: The article is intended to discuss the dilemmas and possibilities of the politics in the existing models of society. The notion of network society introduced by Manuel Castels and the concepts of totalitarianism and action conceived by Hannah Arendt will ground the theoretical work present here. It will approach the implications of the Jewish Question in the arendtian political theory. In this theory rises an agonic perspective of the power, that is, the power is not a place for anonyms forces, systemics, reproducers of the status quo, but of

the foundation, resistance, civility and disclosure of the men as agent. The Hannah Arendt’s thought is important to help us to access the practices that replace, in this society of knowledge, the original significance of the politics.

KEYWORDS: politics; society of knowledge; Manuel Castells; Hannah Arendt.

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[1] Professor Adjunto do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará-UFC. Artigo recebido em mar/07 e aprovado em jun/07.

[2] As análises de Arendt dos governos totalitários iniciam tomando-os como usurpações das correntes subterrâneas da civilização ocidental, passam pelo conceito de ideologia e apontam para elementos, como por exemplo, o conceito de população e massa, que somente se explicitarão na teoria do biopoder e do império desenvolvidas por autores como Giorgio Agamben e Antonio Negri.

[3] Existe uma tendência a interpretar o pensamento de Hannah Arendt na chave do consenso. No entanto, os conceitos mais importantes do seu pensamento como imortalidade, pluralidade, desobediência civil, ação, juízo etc justificam a compreensão agônica da sua reflexão aqui encetada.

[4] Consumo destrutivo foi uma fórmula apresentada por Mészaros para abordar as demandas das populações e as possibilidades da economia na sociedade de massa. Trata-se, em linhas gerais, da prevalência de produção de objetos com vida útil curta e que gera desperdício e destruição da natureza. Cf. Mészáros, 1989.