Liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica

 

Gustavo Hessmann Dalaqua[1]

 

Resumo: O artigo busca elaborar um conceito de liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica, mediante engajamento crítico com as obras de Paulo Freire, Amílcar Cabral e Augusto Boal. No pensamento dos três autores, democracia, liberdade e desenvolvimento de si constituem uma tríade de mútua influência, de sorte que o pleno exercício de quaisquer desses itens é impossível, na ausência de qualquer um dos outros dois. Trata-se de mostrar, ademais, a maneira pela qual a opressão é compreendida nos trabalhos dos três pensadores como o oposto da liberdade, e a injustiça epistêmica, como uma dimensão psíquica da opressão.

 

Palavras-chave: Democracia. Liberdade. Paulo Freire. Amílcar Cabral. Augusto Boal.

 

Introdução

O propósito deste trabalho é elaborar um conceito de liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica, mediante análise dos trabalhos de três pensadores políticos do século XX: Amílcar Cabral, Augusto Boal e Paulo Freire.[2] Nossa hipótese é a de que, no pensamento dos três autores, democracia, liberdade e desenvolvimento de si constituem uma tríade de mútua influência, de sorte que o pleno exercício de quaisquer desses itens é impossível, na ausência de qualquer um dos outros dois.

Opressão é um conceito central nos trabalhos de Boal, Cabral e Freire. Embora os três autores geralmente não apresentem uma definição precisa para o termo[3], uma leitura conjunta de suas obras permite estabelecer que, para eles, a opressão designa qualquer ato que cerceia o livre desenvolvimento de si – isto é, o desenvolvimento pleno das capacidades cognitivas e estéticas que compõem o eu de cada cidadão.[4] A opressão se dá não só por meios materiais, como violência física e exploração econômica, como também por vias psíquicas, donde a insistência dos três autores em afirmar que a liberdade exige resistir à injustiça epistêmica, identificada no corrente trabalho como uma dimensão psíquica da opressão.

O conceito de injustiça epistêmica ganhou trânsito na ética e filosofia política contemporâneas, especialmente após a publicação de Epistemic Injustice, livro no qual Miranda Fricker (2007, p. 1) define o termo como qualquer “mal [wrong] cometido a alguém especificamente em sua capacidade epistêmica”. A injustiça epistêmica distorce e limita o conhecimento que os indivíduos têm, tanto da realidade político-social circundante quanto de si próprios. Conforme mostraremos, ambas as distorções se retroalimentam: é porque têm seus desejos manipulados e se veem impedidos de se conhecer e tomar decisões autônomas que as pessoas não conseguem conhecer plenamente a realidade.

Dada a época em que foram escritos, não surpreende que o termo “injustiça epistêmica” não apareça nos textos de Boal, Cabral e Freire. Não obstante, nossa hipótese é a de que o termo designa o mesmo fenômeno que, sob diferentes nomes, os três filósofos analisaram, em suas respectivas obras. Ao passo que Boal tematiza a injustiça epistêmica, quando apresenta suas concepções de “colonialismo cultural”, “invasão dos cérebros” e a metáfora do “tira na cabeça”, Cabral problematiza o mesmo fenômeno, ao tratar daquilo que chama de “mentalidade colonialista” e “alienação cultural”. Freire, por seu turno, denuncia a injustiça epistêmica como perpetuadora da opressão e inimiga da liberdade democrática, ao apontar a metáfora da “sombra” e ao criticar o que chama de “invasão cultural” e “mentalidade colonialista” (cf. DALAQUA, 2019a).

Para Boal, Cabral e Freire, a hierarquização é um elemento central da opressão. Enquanto processo de diferenciação social que classifica os cidadãos em “inferiores” e “superiores”, a hierarquização compreende: i) a postulação de diferenças entre oprimido e opressor; ii) a valorização dessas diferenças, em proveito do opressor; iii) a absolutização dessas diferenças como atributos imutáveis que justificam a posição subalterna do oprimido perante o opressor. Segundo veremos, a hierarquização é um dos motivos pelos quais os três autores opunham a liberdade democrática à opressão: ao hierarquizar os cidadãos, a opressão nega a igual liberdade que todos têm para participar e influenciar os rumos da política.

Ao abordarem a questão da liberdade, Boal, Cabral e Freire a relacionam de maneira íntima à democracia. De fato, o exercício pleno da liberdade boalina, cabralina e freiriana reclama democracia, de sorte que liberdade, para eles, é sempre liberdade democrática. Na esteira dos três autores, entenderemos por liberdade democrática a ação coletiva dos cidadãos, a qual emerge a partir de sua interação como seres dotados de igual valor e poder para influenciar e transformar o mundo da política.

O que leva Boal, Cabral e Freire a avizinharem democracia e liberdade? A resposta é, justamente, a compreensão que eles têm de que o regime democrático ofereça uma vereda de resistência à injustiça epistêmica e à opressão. Mais do que uma forma de governo com eleições periódicas e competitivas, a democracia, para eles, é o regime político no qual os grupos oprimidos conseguem resistir à injustiça epistêmica e à opressão que se lhes acomete. Ao dar vazão à resistência à injustiça epistêmica e à opressão em geral, a democracia permite que os cidadãos e cidadãs desenvolvam capacidades cognitivas e estéticas. Ao fazê-lo, a democracia favorece a manutenção da liberdade, tal qual Boal, Freire e Cabral a pensam, haja vista eles afirmarem o desenvolvimento de si como um componente essencial da liberdade.

Empregamos, no parágrafo anterior, o verbo resistir, e não superar, porque, de acordo com Boal, Cabral e Freire, a opressão e a injustiça epistêmica dela resultante não são passíveis de serem eliminadas de uma vez por todas. Na vida coletiva, a opressão de um ou outro grupo sobre outros grupos sociais, cedo ou tarde, acaba se manifestando. Por conta de sua origem histórico-social, cidadãos provenientes de diferentes grupos sociais têm compreensões conflitantes do que deve ser feito pelo poder público. Do conflito entre as diferentes posições políticas segue-se o ímpeto para a opressão, a vontade de cercear a conduta daqueles que obstruem a execução do curso de ação que se deseja seguir. É por terem ciência do caráter inextirpável da opressão e do conflito político que Boal, Cabral e Freire defendem a democracia. O regime democrático é melhor que os outros, não porque elimina de vez a opressão – expectativa que os três autores julgam descabida –, mas sim porque, ao dar visibilidade e problematizar as exclusões existentes, oferece recursos para que as mesmas sejam contestadas e minoradas.

Além do ceticismo no que diz respeito à eliminação completa da opressão, outro ponto em comum entre os três autores é a ideia de que a opressão se exerce de várias maneiras. Longe de adotarem uma visão essencialista e estática da identidade humana, Cabral, Boal e Freire pensam o sujeito como uma articulação precária de identificações sociais que se interseccionam. Os três pensam a identidade humana sob uma abordagem construtivista, no sentido em que a concebem como um construto histórico passível de alteração. Justamente porque é resultado de um conglomerado de posições sociais diferentes e cambiáveis, é possível que o mesmo sujeito, sob diferentes aspectos de sua identidade, aja como oprimido e opressor. Um trabalhador negro que tem o costume de agredir a esposa, por exemplo, pode ser considerado tanto oprimido quanto opressor, a depender da faceta de sua identidade que destacamos para análise. A opressão é um conceito eminentemente relacional.

A opressão pode se dar sob vários eixos: raça, gênero, sexualidade, origem geográfica, classe social, religião etc. Por mais distintos que sejam, comum a todos os eixos de opressão é a hierarquização das pessoas. Toda prática opressora se fundamenta em uma hierarquia social que postula “o mito da inferioridade ‘ontológica’ destes [i.e., dos oprimidos] e o da superioridade daqueles [i.e., dos opressores]” (FREIRE, 2017b, p. 189). Para deixar o opressor confortável em seu papel de dominador e docilizar os oprimidos com vistas a garantir que eles não resistam à opressão, cria-se o mito de que há um defeito inscrito no próprio ser dos oprimidos, o qual justifica sua dominação pelos “superiores” (os opressores), tidos como detentores de qualidades que são ausentes nos “inferiores” (os oprimidos).

A hierarquização realça o caráter político das práticas opressoras. A opressão é um conceito político, no sentido em que invoca e mobiliza identidades coletivas (“nós” vs. “eles”) que se constituem em mútua oposição. Essa característica da opressão reflete-se em nosso uso corrente do termo: quando um homem agride outro, porque este pisou em seu pé, não dizemos que ele o oprimiu. Nesse caso, o mais comum é dizermos que o homem agrediu ou violentou o outro, não que o oprimiu. Agressões de caráter puramente idiossincrático, as quais não remetem a identidades coletivas rivais, não constituem atos de opressão. Opressão é sempre opressão entre grupos.

Por conta de seu caráter eminentemente político, a opressão comporta uma dimensão simbólica que é ausente em agressões que não mobilizam identidades coletivas rivais. Toda opressão impõe e reforça uma certa imagem do sujeito oprimido que o inferioriza perante o opressor, imagem esta que se reporta a modos coletivos de se imaginar os diferentes grupos sociais. O marido que agride a esposa, porque considera sua vontade de contrariá-lo uma insolência para com sua posição de homem da casa, é um exemplo claro de agressão que se qualifica como opressão, pois mobiliza e reforça um padrão de hierarquização social que inferioriza um grupo de cidadãos, ao mesmo tempo em que superioriza outro.

            Enquanto prática sistêmica de hierarquização social, a opressão só permanece operante porque conta com algum grau de adesão dos oprimidos. Como enfatiza Boal (1999, p. 289), “[...] uma opressão, seja de que tipo for, só ocorre porque, em maior ou menor medida, conta com a aceitação da vítima. [...] Oprimem-nos porque estamos dispostos a fazer concessões.” Para que se mantenha vigente ao longo do tempo, a opressão precisa que as pessoas aceitem a hierarquização social que a fundamenta. Se os oprimidos deixam de agir conforme o papel subalterno que a dimensão simbólica da opressão lhes aloca, as práticas opressivas não conseguem se sustentar.

Em suma, o objetivo do corrente trabalho é o de evidenciar o modo como o conceito de liberdade democrática, como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica, marca presença nas obras de Boal, Cabral e Freire. No que segue, apontaremos, em ordem cronológica, como tal concepção de liberdade aparece no pensamento dos três autores.

 

1 Liberdade democrática em Paulo Freire

            Freire (2014, p. 123) se definia sobretudo como “pensador para a democracia”. No documentário “Paulo Freire contemporâneo”, o cineasta Toni Venturi mostra uma entrevista na qual Freire declara que, desde muito cedo, suas ambições eram mais “gulosas” do que a formulação de um sistema de alfabetização. O filósofo esclarece que não se sente diminuído por aqueles que reduzem seu trabalho ao método de alfabetização que criou, haja vista o mesmo ter tido um impacto tremendamente libertador, na vida de muita gente. Não obstante, é fato que a insistência de se ler Freire só como um pedagogo da alfabetização deixa de lado o pensamento profundamente rico sobre democracia e liberdade que ele nos legou.

            Na filosofia política contemporânea – mais especificamente, na teoria democrática – Freire é frequentemente ignorado (SOKOLOFF, 2017, p. 116). Seguindo o exemplo de William Sokoloff (2017), que, em Confrontational Citizenship, dedica um capítulo à teoria democrática freiriana, abordaremos Freire como um filósofo da democracia, deixando de lado, portanto, facetas mais conhecidas de sua obra (como, por exemplo, sua proposta de alfabetização de adultos). Nosso objetivo principal será ressaltar como a concepção de liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica foi formulada por Freire, já no início de sua trajetória filosófica. Para tanto, examinaremos a obra Educação como prática da liberdade (1965).

            Um dos primeiros livros publicados pelo filósofo, Educação como prática da liberdade denuncia a injustiça epistêmica como mecanismo de opressão, logo no “Esclarecimento” com o qual Freire abre a obra. Lançando mão de uma metáfora que utilizaria até o fim da vida, Freire (2017a, p. 53) ali esclarece que a opressão incute nos oprimidos uma “sombra”, i.e., uma imagem depreciativa de si mesmo que demove os oprimidos de desenvolver suas capacidades cognitivas e estéticas. Ademais, Freire (2017a, p. 53) estabelece que “[...] expulsar esta sombra pela conscientização é uma das fundamentais tarefas de uma educação realmente libertadora.” Em suma, a liberdade freiriana exige expulsar, por meio do processo de “conscientização”, a “sombra” do opressor internalizada pelo oprimido.[5]

            A “participação” do povo na política é, para Freire (2017a, p. 75), uma fonte de “conscientização”. Freire (2017a, p. 76) rejeita a concepção minimalista da democracia que, conforme sustenta Luis Felipe Miguel (2014, cap. 1), tende a reduzir o regime democrático ao mecanismo eleitoral. Mais que um sistema de governo, o que caracteriza “as democracias autênticas” é a manutenção de “condições especiais para o desenvolvimento ou a ‘abertura’ de sua consciência [i.e., a dos cidadãos]” (FREIRE, 2017a, p. 79). O desenvolvimento de capacidades cognitivas e estéticas que alargam a consciência dos cidadãos constitui, conforme Freire, o fulcro da liberdade. É por compreender que tal desenvolvimento se consolida apenas mediante a participação equânime do povo na política que Freire entrelaça democracia e liberdade.

Por que motivo Freire ancora a liberdade no desenvolvimento de capacidades cognitivas e estéticas que alargam a consciência dos cidadãos? A resposta da indagação nos ajudará a compreender o argumento, apresentado na seção inicial de Educação como prática da liberdade, de que a liberdade exige expulsar, por meio da conscientização, a sombra do opressor alojada na mente do oprimido.

A fim de responder à pergunta, notemos, primeiro, que a participação política, para Freire, não se exerce somente pela via eleitoral. Sem deixar de dar valor ao sufrágio, Freire assevera que a participação se exerce sobretudo pela deliberação pública, do diálogo entre cidadãos provenientes das mais diversas posições político-sociais. Ao tomarem parte na deliberação pública, os cidadãos alargam sua consciência, porque adquirem “disposições mentais” que lhes permitem enxergar o mesmo tema político através de perspectivas diferentes (FREIRE, 2017a, p. 101). Quando participam da discussão democrática, os cidadãos são confrontados com perspectivas diferentes e concluem – por vezes, à revelia – que o modo como um determinado assunto se lhes assemelha não corresponde com a perspectiva de outro indivíduo que provém de um meio sociocultural diferente.

No capítulo dois de Educação como prática da liberdade, Freire (2017a, p. 108-109) anota que a “democracia que, antes de ser forma política, é forma de vida, [...] não nasce e nem se desenvolve a não ser dentro de certas condições em que o homem seja lançado ao debate, ao exame de seus problemas e dos problemas comuns.” Na esteira de John Dewey, filósofo citado na conclusão do livro, Freire sustenta que a participação democrática se exerce por meio “do debate e da análise dos problemas” comuns que afligem os cidadãos (FREIRE, 2017a, p. 123). Mais ainda, Freire evoca a filosofia de Dewey, porque também postula que a participação democrática gera proveitos epistêmicos.[6] A participação democrática, argumenta Freire, produz “sabedoria” (FREIRE, 2017a, p. 96).

Esse alargamento da mente e da sensibilidade, facilitado pela “participação democrática”, equivale ao processo de conscientização (FREIRE, 2001, p. 38). O desenvolvimento cognitivo e estético dos cidadãos os conduz à liberdade, porque, ao lhes franquear o poder de habitar múltiplas perspectivas, concede-lhes a capacidade de expulsar a “sombra” – quer dizer, a visão depreciativa dos oprimidos formulada pelos opressores, a qual, uma vez internalizada pelos primeiros, assegura aos segundos a incontestabilidade de seu domínio. Ao participar de um debate no qual os diversos grupos sociais do demos estão presentes, o cidadão ganha a oportunidade de se descolar da perspectiva hegemônica ditada pelo opressor, que até então atravancava o livre desenvolvimento de sua personalidade.[7]

Segundo Freire (2017a, p. 84), a “matriz verdadeira da democracia” corresponde àquela que, zelando pela liberdade, desenvolve as capacidades humanas – ou, o que dá no mesmo, corresponde àquela na qual floresçam “formas de vida altamente permeáveis, interrogadoras, inquietas e dialogais, em oposição às formas de vida ‘mudas’ [...] das fases rígidas e militarmente autoritárias, como infelizmente vivemos hoje [1965].” Prenunciando um tema que elaboraria a contento em Pedagogia do oprimido, Freire indica que a democracia requer quebrar a cultura do silêncio que aflige os oprimidos.

A verdadeira democracia, segundo Freire, é a que exorta os cidadãos a cultivarem “uma mentalidade permeável” (FREIRE, 2017a, p. 91). Em Educação como prática da liberdade, os adjetivos “permeável”, “crítico”, “flexível”, “inquieto”, “dialógico” e “plástico” são empregados de modo indiferenciado para qualificar a liberdade democrática. Todos eles buscam sublinhar que a liberdade, na visão do filósofo, constitui o reverso da opressão, porque, ao passo em que esta se caracteriza por uma “mentalidade [...] colonialista”, aquela põe em marcha “uma consciência popular democrática, permeável e crítica” (FREIRE, 2017a, p. 106-107).[8]

O que aqui se chama de mentalidade colonialista se relaciona ao que, no início de Educação como prática da liberdade, é denominado sombra. Tanto uma quanto outra abortam a liberdade democrática, na medida em que, manipulando a constituição psíquica do oprimido, infundem nele o desejo ardente de querer ser como o opressor. Em vez de contestar as métricas que o opressor inventou para subjugá-lo, o oprimido adere a elas e tenta realizá-las o máximo possível. A internalização da “sombra” – ou, como reforçaria Cabral, cinco anos mais tarde, o cultivo de uma “mentalidade colonialista” – garante que os desejos e emoções do oprimido sejam formados, de modo a fazê-los aceitar a opressão como algo natural. Quando vive sob o jugo da “sombra”, o oprimido se compraz ao se conformar à opressão e crê que, quanto mais se ajusta às normas ditadas pelo opressor, tanto mais valioso e superior ele é. Assim como Boal e Cabral, Freire entende que, ao negar aos oprimidos um conhecimento completo da situação opressiva na qual vivem, a injustiça epistêmica camufla a opressão, diminuindo, pois, a probabilidade de que os oprimidos se revoltem.

 

2 Liberdade democrática em Amílcar Cabral

            Neste item, analisaremos a contribuição de Cabral, no que tange à concepção de liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica. Portanto, examinaremos alguns panfletos que o idealizador da democracia cabo-verdense e guineense escreveu e principais trabalhos que apresentou, em conferências universitárias e encontros políticos. Alguns desses escritos constam em Return to the Source, coletânea publicada por um grupo de acadêmicos e ativistas africanos e afrodescendentes, alguns meses após o assassinato de Cabral. Outros constam em A arma da teoria – obra mais extensa do autor, composta por dois volumes, A prática revolucionária e Unidade e luta.

            No discurso que abre a coletânea Return to the Source, Cabral (1973, p. 19) descreve a luta do povo cabo-verdense e guineense por democracia como “luta por progresso e liberdade contra [...] a opressão” praticada pelos portugueses. Além disso, afirma que tanto a liberdade quanto o progresso frutificam quando “o povo tem [...] meios de afirmar sua personalidade e habilidade para moldar seu destino e dirigir sua própria vida” (Cabral, 1973, p. 24). O exercício da liberdade democrática desenvolve a personalidade de um povo, porque permite a criação de uma nova consciência:

[...] à medida que lutávamos, começamos a criar todos os aspectos de uma vida nova – [...] uma vida cheia de [...] liberdade e democracia, na qual o povo recuperou sua dignidade. [...]. Com efeito, o resultado mais importante da luta, é a nova consciência dos homens, mulheres e crianças do país (CABRAL, 1973, p. 24-25).

 

Cabral caracteriza essa nova consciência, concomitante ao exercício da liberdade democrática, como resultado de uma “ação cultural” na qual o povo consegue “retornar aos caminhos ascendentes de sua própria cultura” (Cabral, 1973, p. 43). Tal qual Freire (1977), Cabral entende que a opressão se transmite não só por meios materiais como também culturais.[9] A opressão colonialista, assevera ele, “tem a necessidade vital de praticar a opressão cultural” (CABRAL, 1973, p. 43). Cabral (1973, p. 45) identifica a opressão cultural que repudia com o que chama de mentalidade colonialista:

A experiência da dominação colonial mostra que, em seu esforço para perpetuar a exploração, os colonizadores não só criam um sistema para reprimir a vida cultural do povo colonizado como também provocam a alienação cultural [...]. Como resultado desse processo [...] uma parte considerável da população, qual seja, a pequena burguesia urbana ou rural, assimila a mentalidade colonialista, considera-se superior ao seu próprio povo e ignora ou menospreza os valores culturais dele. [...] Uma reconversão dos espíritos – do enquadramento mental [mental set] – é, portanto, indispensável para a verdadeira integração do povo no movimento de libertação. Esta reconversão – no nosso caso, reafricanização – pode ocorrer antes da luta, mas completa-se apenas com ela.

 

Cabral entendia que, na Guiné-Bissau e Cabo Verde, a opressão colonial atingia seu paroxismo na pequena burguesia, que, à diferença do grosso do povo, dominava o idioma português e tinha uma familiaridade maior com a cultura lusitana. Segundo Cabral, o grosso do povo, nesses dois países, era campesino e, por ter pouco contato com os portugueses, sofria menos com a opressão cultural. Já a pequena burguesia, graças ao contato frequente com os portugueses, era mais oprimida, sob o ponto de vista cultural. O fato de falar português e de conhecer os hábitos europeus a alienava culturalmente, isto é, afastava a pequena burguesia da cultura africana. Afinal, juntamente com a cultura europeia, a pequena burguesia adquirira o conhecimento de que a cultura africana seria inferior à lusitana (VILLEN, 2013, p. 174). À medida que internalizava a mentalidade colonialista, a pequena burguesia tendia a se afastar da cultura africana e a privilegiar o contato com a cultura europeia. Nesse sentido, a mentalidade colonialista perpetua injustiça epistêmica, pois, ao impor ao colonizado uma imagem depreciativa de si e da cultura africana, leva-o a ignorar a realidade circundante e frustra o pleno desenvolvimento de suas capacidades cognitivas. Daí que, conforme aponta um comentador, Cabral identificasse a mentalidade colonialista e a opressão dela resultante com a atrofia da “criatividade da cognição” (GIBSON, 2013, p. 27).

            No livro A prática revolucionária, Cabral esclarece quais são os três princípios essenciais que orientam seu pensamento sobre a democracia. São eles: i) “o princípio da crítica e da autocrítica”; ii) “o princípio da direcção colectiva”; iii) “o princípio do centralismo democrático e da democracia revolucionária” (CABRAL, 1977, p. 161).[10] No que compete ao primeiro princípio, cabe ressaltar que Cabral apregoava que os cidadãos de uma democracia deveriam cultivar “uma abertura epistêmica” (RABAKA, 2009, p. 271; 2014, p. 301; cf. também SANTOS, 2019, p. 115-117). Para que uma democracia se consolide ao longo do tempo, é preciso que os cidadãos se reconheçam como seres igualmente falíveis, incapazes de tomar posse de uma verdade absoluta que os isente da tarefa de ter que analisar os diversos modos pelos quais os assuntos públicos são vistos pelo povo. Daí a exortação de Cabral (1977, p. 162): “Desenvolv[a] em todos [...] o espírito da autocrítica”. Enquanto regime calcado na igual liberdade de todos para dirigir os rumos da vida pública, a democracia deve fomentar o espírito crítico entre os cidadãos, e não encorajá-los a “obedecer cegamente sem pensar” (Cabral, 1977, p. 163).

            No que diz respeito ao segundo princípio, Cabral (1977, p. 162) explica:

Direcção colectiva quer dizer direcção, mando ou comando feito por um grupo de pessoas e não uma só pessoa ou por algumas pessoas do grupo. Dirigir colectivamente, em grupo, é estudar os problemas em conjunto, para encontrar a sua melhor solução, é tomar decisões em conjunto, é aproveitar a experiência e inteligência de cada um, de todos para melhor dirigir, mandar e comandar. [...] Dirigir colectivamente é coordenar o pensamento e a acção dos que formam o grupo, para tirar deles o melhor rendimento no cumprimento das tarefas do grupo.

 

Cabral concebe a democracia como uma prática de resolução de problemas. A democracia é melhor do que os outros tipos de regimes, porque tira proveito do conhecimento localizado de cada cidadão, a fim de gerar decisões capazes de responder aos problemas comuns de maneira satisfatória. Uma vez que deixamos cidadãos provenientes de diversos grupos sociais liderarem a coisa pública, a tendência é que as decisões políticas que eles realizem sejam melhores do que aquelas que seriam tomadas, monocraticamente, por um indivíduo só.

            Ao esclarecer o que entende pelo princípio do centralismo democrático e democracia revolucionária, Cabral (1977, p. 163) revela que a democracia que defende é representativa:

Centralismo democrático quer dizer que o poder de decisão, de dar palavras de ordem, de estabelecer tarefas – de dirigir – está concentrado em órgãos ou entidades centrais, com funções bem definidas, mas que essas decisões, palavras de ordem etc. devem ser tomadas democraticamente, com base nos interesses e na opinião dos representantes das massas, com base no respeito pela opinião e pelos interesses da maioria. Quer dizer que cada decisão relativa a um problema novo deve ser tomada depois de uma ampla e livre discussão por parte dos órgãos nela interessados ou da base ao topo [...]. Centralismo porque o poder, a capacidade de decidir e de dirigir, está concentrado em órgãos especiais e nenhum outro órgão ou indivíduo pode usar desse poder. Democrático porque o exercício do poder por esses órgãos não depende apenas da vontade dos que mandam, mas baseia-se nos interesses e na opinião expressa pela maioria.

 

O tipo de democracia defendido por Cabral alia representação política e participação popular. As decisões devem ser tomadas após ampla e livre discussão em órgãos que propiciam a “institucionalização de estruturas que ligam o povo e os dirigentes [políticos] de modo que a participação popular e o controle dos dirigentes sejam facilitados de todos os modos possíveis” (CABRAL apud RUDEBECK, 1974, p. 146-147). Os representantes devem tomar as decisões políticas com base nos interesses do povo e, quando necessário, as decisões devem ser concretizadas após um processo deliberativo, o qual, indo da base ao topo, envolve não só os representantes como os próprios representados. Cabral descreve esse tipo de regime de democracia revolucionária:

No quadro da democracia revolucionária, o poder vem do povo, da maioria, e ninguém deve ter medo de perder o poder. [...] No quadro da democracia revolucionária e nas condições concretas de nossa luta, devemos aumentar cada vez mais a força do povo, avançar com coragem para a conquista do poder pelo povo, para a transformação radical (na base) da vida do nosso povo [...]. Não ter medo do povo e levar o povo a participar em todas as decisões que lhe dizem respeito – está é a condição fundamental da democracia revolucionária (CABRAL, 1977, p. 164).

 

No quadro da democracia revolucionária, sustenta Cabral (1977), o “dirigente” não é o “dono do poder”, mas sim apenas seu ocupante temporário. Em última instância, o poder pertence ao povo. Portanto, o povo deve ser instado a participar de todas as decisões que lhe concernem. A democracia revolucionária, conforme Cabral, em resumo, é um tipo de governo representativo e participativo, que, transformando radicalmente as estruturas econômicas, sociais e psíquicas que perpetuam a opressão, promove a liberdade democrática compreendida como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica.

 

3 Liberdade democrática em Augusto Boal

Até muito pouco tempo, os trabalhos de Boal costumavam ser negligenciados no campo da filosofia política.[11] Via de regra, o pensamento boalino é abordado exclusivamente sob o prisma de sua teoria estética. Semelhante limitação afigura-se injustificada, quando lemos que o objetivo maior da estética do oprimido boalina era, justamente, aprofundar a democracia. “A estética do oprimido é um método artístico que pretende ajudar a restaurar a ideia original e humanística de democracia” (BOAL, 2009, p. 132). Como sustentaremos neste item, a estética do oprimido boalina oferece um conjunto de técnicas artístico-culturais que visa, sobretudo, a promover a liberdade democrática, por meio da resistência à opressão e à injustiça epistêmica.

            Na Estética do oprimido, Boal alude à polis ateniense e afirma que a democracia compreende tanto isonomia (igualdade perante a lei) quanto isegoria (igual capacidade de falar em público). Para Boal, a adoção da fórmula “uma cabeça, um voto” é, no que tange à democracia, condição necessária, porém não suficiente. A democracia requer também que todos os cidadãos possam participar em pé de igualdade no fórum público das opiniões. Isto é, a democracia requer que todos os cidadãos tenham paridade participativa, não apenas na eleição dos representantes, mas também no processo de formação da opinião pública que influencia e controla o comportamento dos políticos eleitos. “Para mim, na democracia [...] qualquer um pode dizer: ‘Pare, eu quero poder falar’. Isto que é democracia, isto que é liberdade, e é por isso que eu luto” (BOAL apud MORELOS, 1999, p. 38).

            Por que Boal associa liberdade e democracia? Grosso modo, Boal associava ambas, porque julgava ser a democracia o único regime político que possibilitava aos cidadãos resistir à injustiça epistêmica e à opressão em geral, facultando-lhes, portanto, poder para se desenvolverem. Na esteira de Paulo Freire (1994, p. 184) e de maneira análoga a Cabral, Boal identificava a liberdade com o desenvolvimento das capacidades cognitivas e estéticas dos cidadãos.[12]

            A estética do oprimido dá forte destaque a um tipo de injustiça correlato à injustiça epistêmica: a injustiça estética.[13] Ao passo que a injustiça epistêmica diz respeito aos prejuízos que um agente sofre especificamente, no que tange à sua capacidade epistêmica, a injustiça estética denota os prejuízos ocasionados à sua capacidade estética. Ambas estão relacionadas: quando nossa capacidade de sentir e de ser afetado por algo é atrofiada, nosso conhecimento também acaba sendo prejudicado. A opressão prejudica não somente nossa capacidade de conhecer a realidade social, mas também de senti-la.

            Seguindo Boal (2009, p. 25), compreendemos a estética, em um sentido alargado, como a percepção resultante tanto dos sentidos quanto da inteligência. Recusando a separação clássica entre noética (domínio da inteligência) e estética (domínio do sensível) e a dicotomia razão vs. emoção, Boal estabelece que a estética trata do “conhecimento sensível” (Boal, 2009, p. 26). “A sensibilidade”, explica mais à frente, é também “atividade cognitiva” (Boal, 2009, p. 83). Assim, doravante, usaremos, quando apropriada, a expressão “estético-epistêmica” para designar o entrecruzamento entre o campo da estética e o da epistemologia.

            Logo após apresentar o conceito de conhecimento sensível, Boal introduz a distinção entre pensamento sensível e pensamento simbólico. Enquanto o primeiro consiste em “uma forma de pensar não-verbal [...] que orienta o contínuo ato de conhecer e comanda a estruturação do conhecimento sensível”, o segundo resulta da interpretação em palavras do primeiro, sendo por isso que o designaremos, por vezes, de pensamento discursivo (Boal, 2009, p. 26-27). Boal afirma que, apesar de o pensamento simbólico poder se abstrair do sensível, este tem precedência sobre aquele: “o ato de pensar com palavras tem início nas sensações e, sem elas, não existiria, embora delas se desprenda e se autonomize” (Boal, 2009, p. 27).

            Uma tese central de Boal é a de que opressão afeta não apenas o pensamento discursivo, mas também o sensível. Nesse sentido, a luta contra a opressão e em prol da liberdade democrática exige trabalhar sobre ambos os tipos de pensamento:

O pensamento sensível, que produz arte e cultura, é essencial para a libertação dos oprimidos, amplia e aprofunda sua capacidade de conhecer. Só com cidadãos que, por todos os meios simbólicos (palavras) e sensíveis (som e imagem), se tornam conscientes da realidade em que vivem e das formas possíveis de transformá-la, só assim surgirá, um dia, uma real democracia (Boal, 2009 p. 16).

 

Para Boal, a luta contra a opressão é também uma empreitada estético-epistêmica, pois, para mudar a realidade, é necessário conhecê-la e senti-la de maneira ampla. Tal conhecimento sensível, contudo, não se dá de forma imediata, por causa da existência da injustiça estético-epistêmica:

No mundo real em que vivemos, através da arte, da cultura e de todos os meios de comunicação [...], os opressores controlam e usam a palavra (jornais, tribunas, escolas...), a imagem (fotos, cinema, televisão...), o som (rádios, CDs, shows musicais...), monopolizando esses canais, produzindo uma estética anestésica – contradição em termos! –, conquistam o cérebro dos cidadãos para esterilizá-lo e programá-lo na obediência, no mimetismo e na falta de criatividade. [...] Esta comunicação unívoca introduz simbólicas cercas de arame farpado nas cabeças oprimidas, embalsamando o pensamento e criando zonas proibidas à inteligência. Abre canais sensíveis por onde inocula a obediência não contestatória, impõe códigos, rituais, modas, comportamentos [...] políticos e sociais que perpetuam a vassalagem (BOAL, 2009, p. 17-8).

 

Valendo-se de uma expressão freiriana, Boal afirma que a opressão se perpetua através de “cercas de arame farpado” incrustradas nas cabeças dos oprimidos (FREIRE, 1994, p. 153). Os opressores usam a palavra, a imagem e o som, a fim de anestesiar as capacidades estéticas e cognitivas dos oprimidos, de sorte a torná-los vassalos que apenas obedecem, sem jamais contestar.

            A relevância política da injustiça estético-epistêmica deve-se principalmente à obstrução da cidadania que ela provoca. “A castração estética vulnerabiliza a cidadania obrigando-a obedecer mensagens imperativas da mídia [...] sem pensá-las, refutá-las, sequer entendê-las” (BOAL, 2009, p. 15). De acordo com Boal, o exercício pleno da cidadania requer o exame crítico das normas sociais e leis e a capacidade de poder contestá-las. Não por outro motivo, a estética do oprimido visa a “amplificar todos os níveis da percepção [...] para que nossas escolhas sejam conscientes” (Boal, 2009, p. 160).

            A relevância política da injustiça estético-epistêmica, para Boal, também se observa no fato de sua existência ir contra a democracia. Na visão do autor, uma “real democracia” só é viável, quando os cidadãos conseguem dominar os pensamentos sensível e discursivo (Boal, 2009, p. 16). Só com o “pleno e livre exercício das duas formas humanas de pensar, só assim será possível a liberação consciente e solidária dos oprimidos e a criação de uma sociedade democrática – no seu sentido etimológico” (Boal, 2009, p. 18-9). Compreendida em seu sentido etimológico próprio, como “poder do povo”, a democracia demanda resistência à injustiça estético-epistêmica, ato político que, a um só tempo, minora a opressão e desenvolve o ser humano (Boal, 2009, p. 78).

            Boal associa a democracia com a multiplicidade estética, ou seja, com a pluralidade de se perceber e sentir um mesmo fenômeno. Segundo ele, a democracia é o regime no qual predomina “o respeito e a valorização do indivíduo, todos os indivíduos, com suas opiniões, necessidades e idiossincrasias. Nessa franca liberdade reside a democracia” (Boal, 2009, p. 131). Intimamente relacionado, a esse respeito, à pluralidade humana, consta a convicção de que os problemas políticos sejam analisados “por todos os lados e não por um lado só” (Boal, 2009, p. 124). Enquanto regime que enseja a livre manifestação e a troca dos pensamentos sensível e discursivo, a democracia reconhece e potencializa a multiplicidade das opiniões humanas.

Boal insiste em que não existe uma única maneira correta de se ver e compreender um fenômeno político-estético e explica que nossa compreensão de algo será tão mais completa, quanto mais “lados” examinarmos, isto é, quando mais tomarmos em conta os diferentes modos pelos quais um dado fenômeno se faz sentir e compreender (Boal, 2009, p. 125). A “estética democrática” propugnada por Boal é aquela que, reconhecendo a multiplicidade dos pontos de vista do demos, constantemente instiga os cidadãos a alargar sua compreensão dos fenômenos estético-políticos e a expandir sua capacidade de imaginar a sociedade (BoAl, 2009, p. 167). Ao fazê-lo, “o fatalismo do beco sem saída, que tantas vezes se instaura em nossas vidas, é substituído pela paleta das opções imaginadas” (Boal, 2009, p. 241). A estética democrática – ou o que dá no mesmo, a estética do oprimido – alarga os limites do possível. Nisso, opõe-se ao “sectarismo”, posição antidemocrática por excelência, a qual “brutaliza” a percepção dos cidadãos (Boal, 2009, p. 66).

            De acordo com Boal, a vivência continuada com a opressão faz com que a percepção do oprimido se encontre envolta em uma “realidade encouraçada” (Boal, 2009, p. 106). Para superar essa cristalização da percepção, é necessário “desenvolver nossas capacidades perceptivas e criativas atrofiadas” (Boal, 2009, p. 118). Semelhante desenvolvimento, que permite aos oprimidos resistir à injustiça estético-epistêmica, é um dos objetivos principais da estética do oprimido (Boal, 2009, p. 106, 158).

                A estética do oprimido quer superar o entorpecimento do pensamento sensível, a fim de nos propiciar “a mais profunda compreensão do mundo e da sociedade, e de nós mesmos” (Boal, 2009, p. 119). Assim como a injustiça epistêmica, a injustiça estética nos impede de desenvolver e conhecer o nosso eu. Por conseguinte, para resistir a ambos os tipos de injustiça, a estética do oprimido busca ir “ao âmago do ser humano e revelá-lo”, por meio do desenvolvimento de todas as capacidades que o singularizam (Boal, 2009, p. 137). É somente ao me engajar em práticas que desenvolvem as capacidades que singularizam a minha pessoa que eu posso descobrir quem realmente sou e conhecer de maneira plena o mundo que me rodeia. O conhecimento de si e o conhecimento do mundo caminham lado a lado: “A estética do oprimido é uma proposta que trata de ajudar os oprimidos a descobrir [...] a si mesmos; a descobrir o mundo, descobrindo o seu mundo; nele, se descobrindo” (Boal, 2009 p. 170 – cf. p. 203). A injustiça estética rouba dos oprimidos a habilidade de se relacionar genuinamente com o mundo e com aqueles que nele habitam. Ao incutir neles o desejo de ser “clones dos opressores”, a injustiça estética impede os oprimidos de se conhecer, o que, por sua vez, frustra qualquer tentativa deles de interagir autenticamente com outrem (Boal, 2009, p. 73). Um dos motivos pelos quais a injustiça estética oprime os indivíduos é porque ela manipula seus desejos, de modo a limitar sua imaginação, através da convicção de que apenas os atributos de um único grupo – os “superiores” – são dignos de apreço e cultivo.

            O desenvolvimento de si – ou ainda, o desenvolvimento das capacidades epistêmicas e estéticas que foram atrofiadas pela injustiça estético-epistêmica provocada pela opressão – é fundamental para a democracia, na visão de Boal (2009, p. 162):

[...] quando às pessoas comuns se oferece a possibilidade de realizar um processo estético do qual foram alienadas, este processo expande suas possibilidades expressivas atrofiadas, aprofunda sua percepção do mundo, dinamiza seu desejo de transformá-lo. [...] Em uma democracia ideal, teremos que democratizar não apenas a política, através da mobilização popular, não apenas a economia solidária, não apenas a informação, não apenas a educação e a saúde, mas todas as artes, pois que fazem parte essencial de cada indivíduo, de cada grupo social, cada cultura e cada nação, e do harmônico desenvolvimento humano. Temos que nos desatrofiar.

 

A democracia, para Boal, denota não só uma forma de governo na qual o povo comanda a política, mas também um tipo de sociedade em que todos os cidadãos têm “condições e meios para desenvolver suas potencialidades em todas as direções” (Boal, 2009, p. 169). Assim como Freire e Cabral, Boal aposta na participação democrática como mecanismo privilegiado para a luta do povo contra a opressão: “Para que os oprimidos se libertem das injustiças que sofrem é necessário [...] a participação ativa na vida social e política” (Boal, 2009, p. 72). Só assim eles conseguem se livrar das cercas de arame farpado fincadas em suas mentes, superar a injustiça estético-epistêmica e praticar a liberdade.

 

Considerações finais

O objetivo deste artigo foi formular um conceito de liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica, a partir dos escritos de Paulo Freire, Amílcar Cabral e Augusto Boal. Tendo elaborado o conceito, a questão que se coloca é a de averiguar qual sua contribuição para nossa compreensão da realidade. Se, conforme sustentam Deleuze e Guattari (1992), o que caracteriza a filosofia é a criação de conceitos que nos dão acesso a novas compreensões do real, qual seria então a compreensão do real que o conceito aqui proposto nos permite construir?

            O conceito de liberdade democrática que propomos ajuda a compreender um aspecto da realidade que, recentemente, tem sido observado em alguns países: a eleição popular de líderes autoritários, quando não abertamente contrários à democracia. Um ambiente formalmente democrático, no qual os dirigentes políticos são eleitos pelo povo, não basta para concretizar a liberdade. Para além do estado democrático formal, a liberdade do povo exige meios de resistência à injustiça epistêmica, assim como à opressão, no geral. É somente ao exercer semelhante resistência que o povo consegue desenvolver as capacidades cognitivas necessárias ao cultivo da consciência crítica. Posto de modo inverso, o desenvolvimento de si não é possível, quando a injustiça epistêmica e a opressão se perpetuam sem qualquer resistência.

            Para finalizar, recordemos que a opressão se perpetua por vias não só psíquicas (como, por exemplo, a injustiça epistêmica) como também materiais (como, por exemplo, a exploração econômica). Resistir à opressão, portanto, exige transformar as bases, quer psíquicas, quer materiais que lhe servem de suporte. O fato de Freire, Cabral e Boal terem sido todos contra o capitalismo vigente não foi mera coincidência. Compreendida enquanto prática de resistência à opressão e à injustiça epistêmica, a liberdade democrática vai de encontro à exploração econômica que impede uma grande parcela dos cidadãos de se desenvolver.

 

Agradecimentos: Agradeço aos participantes do Grupo de Estudos Espinosanos, no qual uma versão anterior do trabalho foi apresentada, em 2019, na USP. Pela leitura comentada do texto, agradeço também a Claidon Moraes, Marilena Chauí e Thiago Stadler.

 

Democratic freedom, self-development, and resistance against oppression and epistemic injustice

 

Abstract: In this article, the author engages with the works of Augusto Boal, Amílcar Cabral, and Paulo Freire in order to elaborate a concept of democratic freedom understood as a process of self-development that requires resistance against oppression and epistemic injustice. In the political theories of these three authors, democracy, freedom, and self-development constitute a triad of elements that are mutually reinforcing. In addition, the author explains in what ways oppression curtails democratic freedom and why epistemic injustice corresponds to a psychic dimension of oppression.

 

Keywords: Democracy. Freedom. Paulo Freire. Amilcar Cabral. Augusto Boal.

 

Referências

BABBAGE, Frances. Augusto Boal. London: Routledge, 2004.

BOAL, Augusto. Aqui ninguém é burro! Rio de Janeiro: Revan, 1996.

BOAL, Augusto. 200 exercícios e jogos para o ator e o não-ator com vontade de dizer algo através do teatro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

CABRAL, Amílcar. Return to the Source: Selected Speeches by Amilcar Cabral. New York: Monthly Review Press, 1973.

CABRAL, Amílcar. A arma da teoria: unidade e luta I. Lisboa: Seara Nova, 1976.

CABRAL, Amílcar. A prática revolucionária: unidade e luta II. Lisboa: Seara Nova, 1977.

DALAQUA, Gustavo H. Democratic freedom as resistance against self-hatred, epistemic injustice, and oppression in Paulo Freire’s critical theory. Constellations, v. 26, n. 4, p. 525-537, 2019a.

DALAQUA, Gustavo H. Injustiça estética. Revista Limiar, v. 6, n. 12, p. 101-129, 2019b.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

FEINBERG, Walter; TORRES, Carlos Alberto. Democracia y educacíon: John Dewey y Paulo Freire. Cuestiones Pedagógicas, n. 23, p. 29-42, 2014.

FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. Tese de Concurso para a Cadeira de História e Filosofia da Educação. Recife: Universidade do Recife, 1959.

FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

FREIRE, Paulo. Cartas a Cristina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 41ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017a.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 64ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017b.

FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. Oxford: Oxford University Press, 2007.

GIBSON, Nigel C. No easy victories: some reflections on Amilcar Cabral’s legacy. In: MANJI, Firoze; FLETCHER, Bill (Eds.). Claim No Easy Victories: The Legacy of Amilcar Cabral. Dakar: CODESRIA/Daraja Press, 2013, p. 17-30.

HOWE, Kelly; BOAL, Julian; SOEIRO, José (Eds.). The Routledge Companion to Theatre of the Oppressed. London: Routledge, 2019.

LENIN, Vladimir Ilitch. Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

MORELOS, Ronaldo. Symbols and Power in Theatre of the Oppressed. 273 f. Dissertação (Mestrado em Artes). Queensland University, 1999.

PATERSON, Doug. Putting the “pro” in protagonist: Paulo Freire’s contribution to our understanding of forum theatre. In: EMERT, Toby; FRIEDLAND, Ellie (Eds.). “Come Closer.” Critical Perspectives on Theatre of the Oppressed. New York: Peter Lang, 2011, p. 9-20.

RABAKA, Reiland. Africana Critical Theory: Reconstructing the Black Radical Tradition, from W. E. B. Du Bois and C. L. R. James to Frantz Fanon and Amilcar Cabral. Lanham, MD: Lexington Books, 2009.

RABAKA, Reiland. Concepts of Cabralism: Amilcar Cabral and Africana Critical Theory. Lanham, MD: Lexington Books, 2014.

ROMÃO, José Eustáquio; GADOTTI, Moacir. Paulo Freire e Amílcar Cabral: a descolonização das mentes. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2012.

RUDEBECK, Lars. Guinea-Bissau. A Study of Political Mobilization. Uppsala: Scandinavian Institute of African Studies, 1974.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

SCHECHNER, Richard; CHATTERJEE, Sudipto. Augusto Boal, city councillor: legislative theatre and the chamber in the streets: an interview. TDR/The Drama Review, v. 42, n. 4, p. 75–90, 1998.

SOKOLOFF, William W. Confrontational Citizenship: Reflections on Hatred, Rage, Revolution, and Revolt. Albany, NY: SUNY Press, 2017.

VILLEN, Patricia. Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

VITTORIA, Paolo; VIGILANTE, Antonio. Pedagogias da libertação: estudos sobre Freire, Boal, Capitini & Dolci. Tradução de William Soares dos Santos. Rio de Janeiro: Quartet: FAPERJ, 2014.

ZITKOSKI, Jaime José. Ser mais. In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (Eds.). Dicionário Paulo Freire. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 369-371.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

__________________

Recebido: 28/09/2019

Aceito: 22/02/2020

 



[1] Professor no Colegiado de Filosofia da Universidade Estadual do Paraná. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9672-8703. Email: gustavodalaqua@yahoo.com.br.

[2] O agrupamento dos três autores lusófonos não é gratuito, pois, além de terem sido contemporâneos, há referências deles próprios aos trabalhos dos demais. Boal era leitor de Freire e reconhecia a grande influência deste, em sua obra. Cf. a entrevista de Boal concedida a Schechner e Chatterjee (1998, p. 89-90) e o ensaio “Paulo Freire, o mestre” (BOAL, 1996). Para análises da influência de Freire em Boal, ver Mutnick (2006), Paterson (2011) e Vittoria e Vigilante (2014). Freire, por sua vez, era leitor de Cabral e de Boal, tendo inclusive escrito um livro em homenagem ao pensamento cabralino (FREIRE, 1977). Já no que compete a Cabral, não é possível afirmar se ele conhecia os trabalhos de Boal e Freire. Seja como for, há análises que examinam as similaridades entre os pensamentos de ambos, dentre as quais se destaca o livro Paulo Freire e Amílcar Cabral: a descolonização das mentes (ROMÃO; GADOTTI, 2012).

[3] De todas as obras analisadas, apenas Pedagogia do oprimido oferece uma definição conceitual para “opressão”, como “ato proibitivo do ser mais dos homens” (FREIRE, 2017b, p. 60). Nesse sentido, a opressão denota todo ato que proíbe o ser mais dos cidadãos. Quanto ao conceito de ser mais, Freire (1994, p. 114, 184, 192) o define como “vocação ontológica do ser humano” – i. e., como vocação para desenvolver as propriedades cognitivas e estéticas que formam o ser humano – que apenas se exerce plenamente, mediante exercício da liberdade democrática. Sobre a relação entre “ser mais” e “liberdade” em Freire, ver o verbete “ser mais” no Dicionário Paulo Freire. Nele, afirma-se que a ideia de ser mais é um “processo de construção”, no qual o ser humano se aventura “curiosamente no conhecimento de si mesmo e do mundo” (ZITKOSKI, 2017, p. 369-370). Nota-se, desde já, que o engajamento do sujeito no processo de ser mais o ajuda a resistir à injustiça epistêmica, pois expande e aprimora seu conhecimento do mundo e de si mesmo.

[4] Por capacidades cognitivas, compreendemos nossas capacidades de conhecer e compreender algo. Por capacidades estéticas, denotamos aquelas que nos permitem sentir e imaginar algo.

[5] Segundo Romão e Gadotti (2012, p. 8), o que Freire chama de “conscientização” equivale ao que Cabral denomina “reafricanização dos espíritos”. No caso de Boal, podemos dizer que “conscientização” equivale ao que ele chamava de expulsão do “tira na cabeça”.

[6] Acerca da influência da epistemologia deweyana sobre a compreensão da democracia em Freire, ver Feinberg e Torres (2014).

[7] O itálico na frase serve para enfatizar a possibilidade de que um cidadão permaneça sob o jugo da “sombra” do opressor, mesmo após participar do diálogo democrático. Isso se observa, por exemplo, naquilo que Fricker (2007, p. 37) chama de “internalização residual”, fenômeno que ocorre, quando “um membro de um grupo subordinado permanece hospedeiro do que é uma espécie de sobrevida da ideologia opressora, mesmo quando suas crenças sobre o assunto progrediram de maneira genuína.” A fim de que a “sombra” seja de fato eliminada, é preciso que o oprimido altere não só as crenças epistêmicas como também os afetos que servem de suporte à opressão. Isso exige da parte do oprimido o desenvolvimento de novas capacidades cognitivas e estéticas, algo que um primeiro contato com um debate democrático não necessariamente assegura. Para uma análise de casos concretos que mostram como a internalização residual obstrui a resistência à injustiça epistêmica e à opressão, ver Dalaqua (2019b, p. 111-120).

[8] A associação que Freire aqui faz entre opressão e mentalidade colonialista é digna de destaque, pois se vale da mesma expressão que, em 1970, Cabral utilizaria para caracterizar a opressão. Outra passagem textual em que Freire (1959, p. 105) antecipa o vocabulário cabralino se encontra em Educação e atualidade brasileira, quando ele afirma que a opressão provoca “alienação cultural”.

[9] No livro que dedica a Cabral, Freire (1977, p. 25, 58) secunda a tese cabralina de que a opressão não ocorre apenas por força física, mas também por meio da alienação cultural, a qual atrofia as capacidades epistêmicas e estéticas dos oprimidos.

[10] Embora não o cite no texto que ora analisamos, Cabral toma de empréstimo de Lenin (2010) as expressões “centralismo democrático” e “democracia revolucionária”. Sobre a influência de Lenin no pensamento político cabralino, cf. Cabral (1976, cap. 7).

[11] Sobre o silêncio em torno dos argumentos teóricos de Boal, ver Babbage (2004, p. 36). Exemplos de trabalhos que abordam o pensamento de Boal, a partir de uma perspectiva político-filosófica, podem ser encontrados em Howe, Boal e Soeiro (2019).

[12] No ensaio “Paulo Freire, o mestre”, Boal (1996, p. 103) reforça sua compreensão da liberdade como isegoria, quando relaciona a opressão e a ausência de liberdade com a inexistência do poder equânime dos cidadãos para falar em público.

[13] Embora menos enfaticamente, os trabalhos de Freire e Cabral também põem em relevo a relação entre injustiça epistêmica e estética, ao tratarem da opressão cultural.