RESENHA/REVIEW

Alessandra CANEPPELE[1]

GAMWELL, Lynn & SOLMS, Mark. From Neurology to Psychoanalysis: Sigmund Freud’s neurological drawings and diagrams of the mind. New York: State University of New York at Binghamton, 2006.

Em 2006 completaram-se cento e cinqüenta anos de nascimento de Sigmund Freud. Para comemorar essa data, vários eventos e publicações se espalharam pelo mundo. Entre elas, na New York Academy of Medicine, organizou-se uma exposição de manuscritos, originais e publicações de Freud que continham desenhos ou esquemas gráficos elaborados pelo próprio autor. Curada por Lynn Gamwell e comentada por Mark Solms, a exposição ganhou também o formato de livro contendo os fac-similes dos originais expostos. Assim como a exposição, o livro foi produzido pela Binghampton University Art Museum em cooperação com o Arnold Pfeffer Center for Neuso-Psychoanalysis at the New York Psychoanalytic Institute e a American Psychoanalytic Association. Sob o título From Neurology to Psychoanalysis – Sigmund Freud’s neurological drawings and diagrams of the mind, encontramos uma publicação que franqueia a todos o acesso a um material da obra de Freud normalmente entregue apenas a poucos especialistas. E novamente aqui, como também em outras publicações voltadas para as primeiras pesquisas de Freud ainda no campo da neurologia, devemos o acesso a esse material ao incremento crescente do que hoje compõem o campo de pesquisa nomeado neuro-psicanálise. Após um longo período em que aparentemente a psicanálise, assim como o próprio Freud, buscara apagar tal passado, ou, pelo menos, mantê-lo alheio ao campo do psicanalítico, hoje, dentro das instituições psicanalíticas, encontramos, pelo contrário, grupos preocupados em retomar tais raízes freudianas.

Nesse contexto, definem-se dois pontos através dos quais podemos abordar a publicação: um primeiro, referente ao valor do material biográfico e bibliográfico entregue a nós leitores e um segundo, delimitado pelo reconhecimento dos recortes e comentários acrescidos a esse material pelo grupo promotor da publicação.

O material publicado

No primeiro material gráfico, de valor apenas biográfico, encontramos os sofríveis desenhos, enviados em carta ao amigo Silberstein, dos pequenos animais que Freud estudava em Trieste um pouco antes de completar vinte anos e os desenhos publicados um ano depois das células observadas na dissecação de enguias. Como se pergunta Solms, “não é notável que o futuro descobridor do complexo de castração comece sua carreira científica procurando sem sucesso pelos testículos que faltam nas enguias?” (p.28) Certamente podemos reduzir à constatação do interesse freudiano pela diferença sexual em animais, que independe do acesso aos desenhos que o acompanham, o valor desse primeiro material.

Os dois materiais subseqüentes trazem os desenhos referentes às primeiras pesquisas freudianas em neurologia baseadas em estudos de um peixe e nas quais Freud se ocupa da histologia da célula nervosa. Para Solms, apoiado em Jones, a passagem de Freud para a pesquisa das células nervosas estaria de acordo com a tentativa de responder através de um conhecimento sobre a natureza da unidade celular nervosa dos seres vivos à controvérsia de sua época em relação à continuidade ou ruptura evolutiva entre os animais inferiores e superiores (p.34). Segundo o comentador, no segundo texto publicado sobre as células nervosas desse peixe, Freud descobriria como que um “missing link”[2] entre vertebrados e invertebrados, contribuindo para a “convicção da continuidade evolutiva de todos os organismos” (p.63). Infelizmente, em ambos os casos, o material iconográfico publicado não nos permite acompanhar as considerações de Solms sobre as conclusões de Freud – nele acompanhamos apenas a sucessão das figurações da anatomia celular e suas legendas.[3]

Em um terceiro momento encontramos as ilustrações do artigo publicado em 1882 sobre as células e fibras nervosas do camarão de água doce – artigo que seria reconhecido por historiadores da ciência como fundamental para a formação da doutrina dos neurônios (p.69). Para Solms, o Freud desse artigo foi por demais cauteloso, o que o impediu de chegar a propor o que outros concluiriam em seu lugar a seguir – mas, ainda para o comentador, o uso do conceito de neurônio no Projeto para uma Psicologia Científica, escrito três anos depois, não é alheio à importância que o autor reconhecia em seus próprios estudos para o desenvolvimento dessa doutrina. Sobre esse artigo Solms conclui chamando a atenção do leitor para a legenda que indica a novidade metodológica de Freud, a saber, a pesquisa de células vivas (p.67), atenção ao método que reapareceria a seguir na escolha de pesquisar o cérebro humano a partir daquele dos fetos e crianças, inaugurando uma nova técnica que, segundo Solms, lhe permitia passar da pura anatomia para uma anatomia funcional, quando então um conjunto de “estruturas e processos os quais eram anteriormente invisíveis repentinamente aparecem frente a ele” (p.70).[4]

No momento posterior à elaboração da teoria do neurônio e da passagem para um método capaz de observar as estruturas em funcionamento se inserem, então, os desenhos dos artigos dedicados à pesquisa das estruturas neurológicas do nervo acústico humano. Para Solms, Freud passa aqui da unidade da célula para os grupos e vias de associação entre essas e “simultaneamente desliza do animal para o sistema nervoso humano” (p.76). O percurso proposto pela publicação descreve nesse momento Freud como um pesquisador que a partir dos elementos mais primários do funcionamento nervoso foi gradativamente se ocupando daqueles mais complexos – percurso que desconsidera o grande esforço clínico desenvolvido concomitantemente por ele em seus trabalhos sobre a cocaína, sobre a atrofia muscular e a neurite cerebral. Encerrando a publicação dos trabalhos freudianos de neurologia que continham desenhos anatômicos, temos acesso às pranchas do artigo de 1886 intitulado Sobre a origem do nervo acústico. Segundo Solms, depois desse trabalho os escritos freudianos em anatomia se tornaram de um modo crescente “abstratos e teóricos” (p.83). Se nos dedicamos a acompanhar a própria seqüência de desenhos desse último artigo, evidencia-se a nós leitores a abstração na própria forma de representação escolhida por Freud: após as quatro primeiras figuras que buscam uma representação orgânica do objeto do estudo anatômico, o autor conclui com uma última figura inegavelmente alegórica, na qual a anatomia é representada abstratamente por figuras geométricas – linhas, círculo, quadrado, triângulo. Ou seja, o material iconográfico desse artigo permite que visualizemos graficamente o percurso freudiano.

Seguem, então, os desenhos que Freud fez para o texto Einleitung in die Nervenpathologie, escrito logo após sua estadia em Paris com Charcot e nunca publicado. Contando-nos que no texto ao qual pertencem os desenhos Freud anteciparia a tese sobre a não projeção pontual do corpo no córtex – defendida em 1891 no texto sobre as afasias e amplamente reafirmada já para a psicanálise em 1893 no estudo comparativo entre as paralisias histéricas e orgânicas, Solms conclui: “não é exageração dizer que esse insight é o ponto preciso no qual a mente [...] entrou no trabalho científico de Freud.” (p.91) Para além desses comentários, a escolha do título (Nervenpathologie) e a representação estilizada no primeiro desenho do que poderíamos reconhecer como um ser humano permitem ao leitor pensar no momento de encontro do percurso neurológico de Freud com o sujeito que já o ocupava em seu exercício clínico.

O material referente aos anos de 1891 e seguintes, quase todo publicado anteriormente nas obras completas de Freud ou em edições facilmente encontradas pelos leitores de Freud (por exemplo, o texto sobre as afasias), não acrescenta novidades, à exceção do fac-simile de uma página do manuscrito da conferência XXXI das Novas Conferências de Introdução à Psicanálise. Através da publicação desse podemos acompanhar como ainda ao final de sua vida Freud persistia como um eterno insatisfeito, propondo e repropondo a si mesmo a solução de seus enigmas, interrogando-se, mesmo que isso significasse abandonar o concluído para recomeçar de novo – interrogação que nesse trecho reafirma a concepção de eu como problemática, passível de ser reconstruída e realocada em diversos lugares.

Enfim, a publicação apenas dessa seqüência de desenhos freudianos parece conter um valor muito reduzido para a compreensão da obra do fundador da psicanálise. Caberia, então, buscar seu valor no contexto mesmo do recorte empreendido por aqueles que a promovem?

Os comentários de M. Solms

O título dado à publicação revela o espírito que a sustenta: aquele de uma continuidade entre neurologia e psicanálise. Assim Solms, em sua introdução, explicita a idéia de que Freud abandona os desenhos anatômicos apenas na medida em que, passando para a abordagem de objetos mais complexos, ou seja, das funções mentais, o desenhar de partes anatômicas pode ser substituído pelo esquematizar das funções dessas. Nesse contexto, embora o autor principie afirmando que “anatomia, naturalmente, é concernente ao concreto, às coisas físicas; psicanálise com a matéria fugaz e fugidia que nós chamamos “mente” (p.13), ele poderá concluir a seguir que “todo o trabalho de Freud foi uma tentativa de fazer isso [ou seja, realizar a tarefa da ciência de descobrir as coisas que não estão visíveis a olho nu, mas que trazem ordem para o mundo observável, descobrindo a “essência natural” por trás da aparência do fenômeno] em relação a uma particular parte do mundo, a saber o cérebro humano (ou sistema nervoso)”, o que , por sua vez, “estaria claramente refletido em seus desenhos” (p.15). Trata-se para o comentador, portanto, de afirmar uma continuidade entre estudo do cérebro e aquele da mente humana correlata à concepção da mera passagem do menos ao mais complexo em uma escala de elementos de natureza semelhante.

Solms concebe o conhecimento científico como unidade de conhecimento cujos métodos se modificam apenas em função do nível de complexidade no qual tomam o seu objeto – objeto que entre a neurologia e a psicanálise não é diferente ontologicamente (p.16), mas apenas em grau. A psicanálise, concebida sobre essa base unitária, contrapõe-se ao não saber do senso comum e à certeza da religião enquanto ciência cujo método não seria “fundamentalmente diferente do microscópio, em relação aos seus fins científicos. A racionalidade por trás dos dois métodos era estender tão longe quanto possível as capacidades observacionais de nossos sentidos” (p.17). Ele argumenta a favor de sua concepção mencionando um trecho da obra freudiana no qual esse escreve uma máxima repetida certamente em muitos outros momentos desta sobre o inelutável reconhecimento de que para todo o conhecimento o objeto em si mesmo resta incognoscível. Contudo, basta lermos outros trechos de Freud para constatarmos que tal pressuposto de fundo não o conduz a uma localização tranqüila do saber da psicanálise em identidade com o saber das outras ciências da natureza; pelo contrário. Elidir tal ambigüidade é prerrogativa do programa da neuro-psicanálise realizado na publicação de From neurology to psychoanalysis e certamente não condiz com o espírito inquieto que o próprio Solms enaltece em Freud.

Ora, as marcas dessa proposta podem ser lidas no material publicado. Recortemos dois momentos que explicitam a ação do projeto sobre a obra freudiana.

1-ruptura e continuidade epistêmica

No material que inaugura a publicação, Freud expressa ingenuamente, mas não obscuramente, sua percepção de uma diferença entre a ordem animal e a humano: “na zoologia, onde não há certidões de nascimento ... desde que as enguias não mantêm diários de cuja ortografia se poderia deduzir o gênero”, nesses casos, escreve Freud, resta apenas a demonstração pela anatomia (p.23). Reconhecendo o valor da palavra e, mais especificamente, daquela que tem a força do escrito na lei, Freud anuncia um outro lugar, diferente daquela da natureza animal, a partir do qual se poderia compreender a constituição da sexualidade humana. O silêncio do comentador sobre esse conteúdo da carta de Freud está de acordo com sua leitura continuista que deve desconsiderar a marcação, já nesse momento, do que poderia fazer uma diferença na passagem da neurologia para a psicanálise: basta-lhe apontar a continuidade temática (do sexual já presente nesses estudos de zooanatomia), mas não indicar como Freud já adivinha aí o propriamente humano como marcado pelo acréscimo de uma outra ordem.

Não atentando para a diferença inicial explicitada nesse trecho, Solms prenuncia como lerá na seqüência (p.84) a avaliação freudiana da inutilidade de seus estudos anatômicos para a compreensão psicológica: como sendo aquela da impossibilidade de explicar o complexo pelo simples, e não como diferença entre cérebro e “mente”. Do mesmo modo, a “continuidade evolutiva de todos os organismos” (p.63) postulada nos estudos anatômicos de 1878 de Freud justificará a interpretação da máxima psicanalítica de que o primitivo subsiste no atual como herança enquanto negação de uma ruptura na ordem constitutiva do sujeito da psicanálise. Apoiando-se na concepção certamente corroborada por Freud de que o mental nunca é etéreo, mas sempre suportado em um acontecimento somático, o continuísmo de Solms conclui apressadamente pela coincidência entre esses dois, eliminando a controvérsia do tema facilmente reconhecível na obra freudiana. E, na medida em que tal projeto de leitura dessa obra comporta também um movimento clínico, duplica-se a indagação sobre a legitimidade psicanalítica de tal simplificação.[5]

2-a ausência de um desenho de Freud

Dentro desse recorte interpretativo cabe compreender a surpreendente ausência de apresentação de um desenho de Freud: aquele presente no texto conhecido como Manuscrito M, anexado na carta enviada a Fliess em vinte e cinco de maio de 1897 (FREUD. Briefe an W. Fliess – 1887-1904. Frankfurt am Main: S. Fischer, 1985, p.263). Omitindo a existência desse desenho intermediário, Solms facilitará a manutenção de uma conexão direta entre o esquema da carta de seis de dezembro de 1896 e aquele publicado em 1900 em A Interpretação dos Sonhos assim explicitada: “a continuidade entre este diagrama e aquele metapsicológico subseqüente é claramente evidente” (p.115). Corroborando sua tese de que a mudança em Freud se dá apenas pela passagem da estrutura neurológica para a investigação das funções desta, Solms encontra uma continuidade imediata entre o desenho da carta que ele publica e aquele do livro sobre a interpretação dos sonhos e conclui que “a diferença...[entre seus desenhos] é mínima” (p.118). A marca exercida por essa interpretação sobre a obra de Freud torna-se evidente aqui na medida em que atentamos para o fato de que a carta ausente delineia justamente um conceito que para tantos conhecedores da obra freudiana é fundante da especificidade do campo psicanalítico: aquele de fantasia. Ou seja, para sustentar sua tese da continuidade, Solms elide o que entre esses momentos poderia introduzir uma ruptura epistêmica através da apresentação do esquema construído a partir da elaboração teórica do conceito de fantasia. Enfim, quando atentamos para a ausência do desenho da carta de 1897, o percurso de apresentação de Freud efetuado por Solms, aparentemente neutro, confessa explicitamente seu recorte.

Se em From Neurology to Psychoanalysis o que e o porquê se publica são inseparáveis, através do que essa publicação faz incidir sobre a obra freudiana vislumbramos os pressupostos e o programa de uma nova e forte tendência dentro do campo institucional da psicanálise, notadamente na América do Norte. Mas, para além dessa evidência, a leitura do percurso de Solms permite que relembremos a polêmica sobre os recortes das diversas outras leituras ditas fiéis à obra freudiana. Trata-se, portanto, de momento profícuo para a indagação sobre quanto do bebê parido por Freud cada uma de suas leituras joga fora junto com a água do banho depurativo que lhe pretende dar.



[1] Professora colaboradora e pós-doutoranda do Departamento de Lingüística da Universidade de Campinas-Unicamp com auxílio da Fapesp.Resenha recebida em set/06 e aprovada para publicação em nov/06.

[2] Solms coloca as palavras missing link entre aspas, como citação, mas sem colocar sua referência. Tais palavras poderiam se referir ao trecho da primeira carta escrita por Freud a Groddeck na qual, respondendo ao monismo de seu interlocutor, ele descreve em inglês o inconsciente como missing link entre corporal e espiritual. Como veremos a seguir, Solms descontextualiza essa expressão no interior do programa geral de leitura que ele propõe para a obra fundadora da psicanálise, na medida em que sua concepção de continuidade entre cérebro e mente é francamente contrária às próprias palavras de Freud nessa mesma carta nas quais ele pergunta a Groddeck “por que [ele] elimina a diferença entre espiritual e corporal” (in GRODDECK, G. O Homem e seu Isso.

São Paulo: Perspectiva, 1994, p.11).

[3] Solms está preparando a edição completa das obras ditas neurológicas ou científicas de Freud. Portanto, não se pode recriminar a ausência nessa publicação dos textos correspondentes aos desenhos, mas apenas lamentá-la e avaliar os resultados finais da presente apresentação parcial.

[4] Contudo, Solms não se refere ao fato de que já em 1879 Freud havia publicado um artigo cujo tema era o método para a investigação do sistema nervoso (Notiz über eine Methode zur anatomischen Präparation des Nervensystems, Zbl. med. Wiss, 17, n. 26, p.468). Ele também não comenta o fato de que dois anos após a publicação do trabalho em que Freud usa o método de investigação baseado em células vivas, ele publica três artigos voltados para a questão do método para o estudo das células nervosas. Enfim, basta a leitura de uma bibliografia completa das obras de Freud para sabermos como a indagação sobre o método sempre foi presente nessa – não precisamos da legenda de um desenho para reconhecê-la.

[5] Pode-se acompanhar tal movimento clínico por exemplo em KAPLEN-SOLMS. K. & SOLMS, M.. Clinical Studies in Neuro-psychoanalysis. Introduction to a depth neuropsychology. New York:

Karnac, 2000.