PAUL RICŒ UR LEITOR DE HUSSERL[1]

Marcos NALLI[2]

RESUMO: O objetivo deste artigo consiste em inventariar de que modo Paul Ricœur lê e se apropria de elementos da filosofia husserliana em seu projeto hermenêutico. Assim, busca-se primeiramente caracterizar em linhas gerais a história da hermenêutica contemporânea. Num segundo momento, estabelece-se uma primeira delimitação da hermenêutica de Ricœur caracterizando alguns de seus problemas centrais. Por fim, num terceiro momento, procuramos observar como Ricœur retoma a filosofia husserliana para dar conta de suas próprias reflexões hermenêuticas.

PALAVRAS-CHAVE: Ricœur; Husserl; Fenomenologia; Hermenêutica; Mundo do Texto.

Introdução

Antes de qualquer coisa, urge precisar aqui qual é o nosso objetivo com este artigo: basicamente, consiste em inventariar de que modo Paul Ricœur lê e se apropria de elementos da filosofia husserliana em seu projeto hermenêutico. Obviamente, em face da exigüidade de tempo e espaço para um trabalho mais detalhado, deteremo-nos apenas em alguns de seus artigos – alguns sobre sua concepção hermenêutica; outros, estudos específicos sobre a filosofia husserliana. Esta delimitação se faz necessária por dois motivos óbvios: primeiramente, porque a obra de Ricœur, já bastante extensa, e suas tematizações sobre sua concepção hermenêutica ainda gera frutos. E em segundo lugar, porque são muitos os textos que versam explicitamente sobre a filosofia de Edmund Husserl; para tanto, basta observar que Paul Ricœur foi o tradutor e, por assim dizer, o introdutor[3] das Ideen I em solo francês; e recentemente, mais precisamente em 1986, foi publicado em livro uma coletânea de artigos, intitulado A l’École de la Phénoménologie que, mesmo assim, não reúne a totalidade dos estudos ricœurianos sobre Husserl.

Deste modo, para contemplar nosso objetivo, procuraremos primeiramente caracterizar em linhas gerais a história da hermenêutica contemporânea. Num segundo momento, visaremos uma primeira delimitação da hermenêutica ricœuriana caracterizando alguns de seus problemas centrais. Por fim, num terceiro momento, procuraremos observar como Ricœ ur retoma a filosofia husserliana para dar conta de suas próprias reflexões hermenêuticas.

Caracterização genérica da hermenêutica contemporânea

Ainda que pareça razoavelmente passível de delimitação, a hermenêutica é, em si mesma bastante problemática. Tanto em termos conceituais, quanto nas formas que assume dentro de sua própria história. Se historicamente considerarmos suas formas mais antigas, ou clássicas, o que prontamente encontramos é um ímpeto técnico que visa solucionar um problema que não é propriamente filosófico, mas sim principalmente teológico-religioso – no sentido em que o fenômeno religioso ainda dizia respeito à intimidade do ser-humano como tal, uma vez que lhe era fundamental compreender e interpretar os textos sagrados adequadamente à sua vida. Grosso modo, isto valia tanto para interpretar os oráculos – gregos e latinos –, quanto as Sagradas Escrituras cristãs. Neste contexto, Agostinho de Hipona é um dos casos paradigmáticos (Gadamer, 1992a, p.95; Coreth, 1973, p.5ss). Ora, tais mensagens não eram claras e evidentes por si mesmas; isto é, seu sentido era de difícil compreensão, carecendo de um processo de decifração – daí o seu ímpeto técnico, com a qual a hermenêutica clássica (e a hermenêutica em geral) se relaciona; como Gadamer atesta:

A hermenêutica designa antes de tudo uma práxis artificial. Isto sugere como palavra complementar a tecné. A arte de que aqui se trata é a do anúncio, a tradução, a explicação e a interpretação, e inclui obviamente a arte da compreensão que subjaz no que se requer quando não está claro e inequívoco o sentido de algo. (Gadamer, 1992a, p.95)

Schleiermacher e a reabilitação filosófica da hermenêutica

Contudo, a hermenêutica só vai ganhar contornos teóricos mais definidos com Schleiermacher e seu projeto de uma hermenêutica universal. Até ele, especialmente na cristandade, a discussão limitava-se a resolver o problema “prático” e efetivo de como interpretar as passagens obscuras da Sagrada Escritura. Com ele, porém, a hermenêutica galga o estágio de uma teoria da compreensão e da interpretação até então jamais visto, e com ele a hermenêutica ganha estatuto filosófico (Gadamer, 1992a, p.100; 1993, p.237-252; Coreth, 1973, p.18). Vejamos um pouco mais detidamente em que consiste este projeto de uma hermenêutica universal, consoante à exposição de Gadamer.

Diversamente de Espinosa (Gadamer, 1993, p.233s e 237), para Schleiermacher o problema da incompreensibilidade ganha um significado outro e universal. Primeiramente, deve-se observar que Schleiermacher estabelece um deslocamento daquela para a problemática do mal-entendido. A questão do mal-entendido obriga uma interpenetração entre interpretação e compreensão de tal forma que aquela perde seu estatuto pedagógico para se restringir a um problema de compreensão. Mas a compreensão não é um processo que se dá desregradamente, cujo “mecanismo” é automático e imediato – donde, Schleiermacher exige que se desenvolva um cânon regulativo do compreender, uma “verdadeira preceptiva do compreender” com vistas a evitar o mal-entendido. O mal-entendido, e não o obscuro ou o mistério, é o que determina o incompreensível. Este não é portanto o que não pode ser compreendido, mas o que num processo comunicativo não teve êxito. Estas regras hermenêuticas, estas regras da “arte de evitar o mal-entendido” (Schleiermacher; citado por Gadamer, 1993, p.238) são de duas ordens: regras gramaticais e regras psicológicas. Gadamer se detém apenas em considerar estas últimas em sua exposição, para poder explicitar o que há de mais específico em Schleiermacher.

Com este procedimento de estabelecer regras gerais ao processo de compreender, Schleiermacher autonomiza o compreender, conferindo-lhe um caráter metodológico, face a Teologia – e ao determiná-lo como núcleo de sua concepção hermenêutica, vinculada à idéia de evitar o mal-entendido (fenômeno do insucesso na conversação), ele recoloca o compreender não na ordem do deciframento e revelação da literalidade das palavras, da Sagrada Escritura, “senão também a individualidade do falante ou do autor” (Gadamer, 1993, p.239). Daí porque seu grande mérito consiste em conferir regras psicológicas à hermenêutica. Este traço mais “genuíno” de Schleiermacher, segundo Gadamer, consiste – grosso modo – num processo de reconstrução do ato criador, um ato de adivinhar o gênio criador de outrem, “uma reconstrução que parte do momento vivo da concepção, da ‘decisão germinal’ como do ponto de organização da composição” (Gadamer, 1993, 241). Neste sentido a criação é entendida não como uma coisa pronta e acabada, mas como uma obra de arte, uma construção estética, um pensamento poético – cuja objetividade é dada por sua idiossincrasia frente um pensamento objetivo comum, de uma coletividade. Trata-se portanto de compreender um pensamento individual que, como tal, é livre e “destituído” das amarras comunitárias em seu ato criativo. Mesmo na comunicação e na conversação, onde esta individualidade se apresenta em relação com outras individualidades, este gênio estético, criativo e livre se faz patente:

A conversação não é mais que uma estimulação recíproca da produção de idéias (e seu fim natural não é outro que o progressivo esgotamento do processo descritivo), uma espécie de construção artística na relação recíproca da comunicação. (Gadamer, 1993, p.242)

Arte poética e arte de falar se correspondem em Schleiermacher como formas de comportamento do sujeito/indivíduo; e hermenêutica corresponde aqui tanto a um processo reconstrutivo tanto do ato artístico quanto do ato de falar, enquanto apreensão do próprio sujeito de tais atos. Ora, como tais atitudes sempre são a expressão de uma individualidade, e como sempre se dão em comunidade, ou melhor, em alguma forma de comunhão, trata-se pois de atitudes gestadas em cogenialidade – donde separar o que é exclusivo a um gênio livre e criativo e o que é próprio a toda a comunidade, “determinada” por regras, é bastante difícil. Assim, todo compreender consiste sempre num procedimento em dupla via, que se revela como um processo circular quando se atenta para suas inter-relações: o processo hermenêutico consiste tanto num processo de apreender o comum que se revela na expressão do ato criador individual, uma vez que cada individualidade traz em si algo dos demais; como num processo de adivinhação do peculiar de alguém em relação à comunidade.

Ao aguçar deste modo a compreensão levando-a à problemática da individualidade, a tarefa hermenêutica se lhe estabelece como universal. Pois ambos extremos de estranheza e familiaridade estão dados com a diferença relativa de toda individualidade. O ‘método’ do compreender terá presente tanto o comum – por comparação – como o peculiar – por adivinhação –, isto é, haverá de ser tanto comparativo como divinatório. Em um e outro sentido seguirá sendo no entanto ‘arte’, porque não pode mecanizar-se como aplicação de regras. O divinatório seguirá sendo imprescindível. (Gadamer, 1993, p.244)

Deste modo, compreender na hermenêutica de Schleiermacher consiste num processo tanto re-criativo, no sentido que reproduz o ato de criação de um indivíduo, como num processo de estabelecimento de uma cogenialidade empática no ato poético da criação – que também é encontrado em Dilthey. Compreender é, portanto, um ato de identificação entre o autor e o intérprete (Coreth, 1973, p.114) onde este, na sua reconstrução interpretativa, deve ser capaz de compreender o autor melhor do que ele mesmo (Gadamer, 1993, p.246s; Coreth, 1973, p.121). Daí a possibilidade da comparação, onde se identifica uma individualidade ao mesmo tempo como sujeito e como outro.

De algum modo, estas intuições de Schleiermacher são caras para Ricœur, na medida que já coloca tanto a idéia de uma vinculação entre uma filosofia reflexiva e a hermenêutica, quanto já traz em germe a importância de uma superação hermenêutica da filosofia reflexiva, que postula uma concepção egocêntrica do sujeito. Isto se faz presente em vários textos de Ricœur, talvez pelo menos já desde 1965, com sua interpretação hermenêutica de Freud em Da Interpretação: Ensaio sobre Freud, onde no último capítulo, Ricœur discorre sobre sua teoria das esferas do sentido não libidinais; principalmente na esfera do valer/valor, na qual a objetividade a que se lança o homem e que o constitui se dá mediante a constituição mútua por “opinião”, onde o eu se constitui mediante o que vale para o outro (Ricœ ur, 1977, p.408). Mas não se trata, seguramente de uma repetição de Schleiermacher; pois para Ricœ ur não se trata de uma afirmação da subjetividade mediante o encontro empático com o alter-ego, mas da necessária perda da natureza egocêntrica atribuída ao sujeito para reencontrar a subjetividade em si mesma, isto é, descentrada (Ricœur, 1969, p.24; p.103-104; e p.132). Contudo, ainda não é o momento de refletirmos sobre as concepções hermenêuticas de Paul Ricœ ur; pois até agora não foi possível em nossa exposição estabelecer um nexo entre a fenomenologia e a hermenêutica e muito menos em determinar os termos em que Ricœ ur lê Husserl – e, por conseguinte, de que modo ele liga o “pai” da fenomenologia com sua hermenêutica.

A hermenêutica sob uma vertente epistemológica: Dilthey

Na história da hermenêutica contemporânea, cabe a Dilthey a tarefa de vincular de maneira mais incisiva hermenêutica e história; e em suas linhas gerais, de estabelecer uma linha de relação entre hermenêutica e ciência. Como é bem sabido, já quase beirando a trivialidade, Dilthey é o filósofo responsável pela equiparação e distinção entre ciências naturais e ciências do espírito (que, atualmente, apressamo-nos em renomear de “ciências humanas”), mediante a determinação e diferenciação de seus métodos respectivos: as ciências naturais explicam o objeto, enquanto as ciências do espírito compreendem o objeto. Em suma, Dilthey estabelece um jogo de equivalência e diferenciação entre explicar e compreender. É exatamente no conceito de “compreensão” – na sua completa distinção ao processo explicativo, pautado nas relações causais que caracterizam a natureza – que Dilthey busca determinar epistemologicamente as ciências do espírito em geral, e a história em particular: enquanto numa relação causal, a causa não se faz presente mediante seu efeito; diversamente a compreensão como compreensão de uma expressão, “o expressado mesmo está presente na expressão e é compreendido quando se compreende esta” (Gadamer, 1993, p.284).

Esta questão da compreensão se fez fundamental para Dilthey, uma vez que no compreender não ocorre uma distinção clara entre sujeito e objeto (já que sujeito do conhecimento toma a si mesmo como seu objeto de conhecimento); e porquanto é a partir da compreensão que ele pode intentar uma resposta à pergunta de como se eleva a experiência individual e seu conhecimento/consciência ao estágio de uma experiência histórica, considerando que a experiência é a “fusão da recordação e expectativa em um todo” na vida do espírito (Gadamer, 1993, 281). Em suma, a história consiste na história das experiências de vida do espírito; se há um objeto histórico, este é o que Dilthey denominou “experiência” (Erlebnis). Mas as experiências vitais tomadas individualmente restringem-se a um nível psicológico, carente de objetividade. Para ele, era fundamental uma configuração das experiências vitais não em conformidade a um indivíduo, mas ao que ele chamou de “espírito objetivo”, conceito tão próximo do conceito hegeliano de “Espírito Absoluto”, como Dilthey mesmo notou. E é apenas mediante o conceito de “espírito” que se pode colocar objetivamente a questão da consciência histórica enquanto uma consciência que compreende o encadeamento significativo das experiências vividas, passadas e vindouras, nas quais aquelas se refletem. É claro que para atingir tal nível, a consciência histórica tem que ultrapassar os limites de sua finitude relativa e galgar como possível o nível da “objetividade do conhecimento espiritual-científico” (Gadamer, 1993, p.295), que apenas difere do espírito absoluto hegeliano no sentido que sua consciência/autoconsciência não é especulativa mas histórica.

A possibilidade da superação histórica da individualidade subjetiva, e psicológica, se dá não pela ruptura com esta individualidade, mas em tomar o conceito de “vida” como conceito fundamental à sua concepção de “ciência do espírito”, e como ponto de partida de sua concepção histórica. A vida, como a totalidade das experiências do indivíduo tem uma natural tendência à estabilidade – cujo corolário é o conhecimento científico, a autoreflexão filosófica e a realização estética. O conhecimento histórico visa apreender de uma forma objetiva esta tendência à estabilidade (que acaba por se configurar como liberdade), já que a vida refere-se à reflexão.

Pois todas as formas de expressão que dominam a vida humana são em seu conjunto conformações do espírito objetivo. Na linguagem, nos costumes, nas normas jurídicas o indivíduo está já sempre elevado acima de sua particularidade. As grandes comunidades éticas em que vive representam um ponto fixo no qual se compreende a si mesmo frente à fluida contingência de seus movimentos subjetivos. Precisamente a entrega a objetivos comuns, o esgotar-se em uma atividade para a comunidade “libera o homem da particularidade e do efêmero”. (Gadamer, 1993, p.297)

E neste objetivo de superar o subjetivo e o relativo, tanto as ciências naturais quanto às ciências do espírito não se identificam mas compartilham da mesma comunidade genuína, a da tendência natural de realização da vida. E ao reportar a esta idéia de uma comunidade, Dilthey retoma Schleiermacher no sentido de que a hermenêutica é uma espécie de deciframento que deve estabelece o nexo de uma íntima unidade entre os membros, entre o leitor e o autor, entre o historiador e o mundo histórico enquanto um texto que exige uma postura de deciframento (Gadamer, 1993, p.302s; e 1982, p.50).

Novamente poderíamos pensar uma analogia entre Dilthey e Ricœur, uma vez que este retoma a polêmica sobre a distinção entre compreender e explicar, pelo menos duas vezes, a saber, em seu artigo “Explicar e Compreender”, publicado em Du Texte à l’Action, e também em Le Discours de l’Action, capítulo IV, seção C. Mas ao que parece, a tematização de Ricœur se faz mais patente como uma leitura hermenêutica (e sob alguns aspectos fenomenológica) da filosofia analítica, especialmente de G. H. von Wright e sua teoria da ação, expressa em Explanation and Understanding, de 1971 (Ricœ ur, 1989b, p.170; e 1977, p.104). Mesmo assim, a despeito desta especificidade, Ricœur, refletindo sobre seu próprio projeto hermenêutico (do texto) percebe o mérito de Dilthey:

No espírito de um Dilthey, o mais típico representante alemão da teoria do Verstehen, no início do século, não se tratava, de modo nenhum, de opor um obscurantismo romântico qualquer ao espírito científico proveniente de Galileu, de Descartes e de Newton, mas de dar à compreensão uma respeitabilidade científica igual à da explicação. Dilthey não podia, pois, limitar-se a fundamentar a compreensão na nossa capacidade de nos transferirmos para um vivido psíquico estranho com base em signos que outrem dá para serem apreendidos, quer sejam os signos directos do gesto e da fala ou os signos indirectos constituídos pela escrita, pelos monumentos e, de um modo geral, pelas inscrições que a realidade humana deixa atrás de si. Só teríamos direito de falar de ciências do homem se, sobre este ‘compreender’, se pudesse edificar um verdadeiro saber que conservasse a marca da sua origem na compreensão dos signos, mas que, todavia, tivesse o carácter de organização, de estabilidade, de coerência de um verdadeiro saber. (Ricœur, 1989b, p.164s; cf. também Ricœ ur, 1969, p.8s)

Reconfiguração ontológica da hermenêutica: Heidegger

É com Heidegger que, de fato ocorre uma radical aproximação entre fenomenologia e hermenêutica, já desde Ser e Tempo (1927), principalmente se atentarmos para alguns parágrafos extremamente importantes para o deslocamento ontológico da hermenêutica, como por exemplo (mas não exclusivamente) o § 7, “O método fenomenológico da investigação”, e os §§ 31 e 32, “Ser-aí é compreensão” e “Compreensão e interpretação” respectivamente. Em suma, é com ele que de fato se pode falar numa hermenêutica fenomenológica, ou numa fenomenologia hermenêutica.


Com Heidegger – assim como também com Gadamer, como observa Ricœ ur – ocorre uma veemente atitude de ruptura, de fratura da clausura da linguagem, pautada na “convicção da precedência dum ser-a-dizer em relação ao nosso dizer” (Ricœ ur, 1989a, p.45; cf. também Ricœ ur, 1969, p.20). A descoberta de Heidegger se dá a partir de uma inflexão para com a filosofia husserliana, e de certo modo também com relação à Dilthey, no sentido que deixa de priorizar a questão da compreensão deslocando-se para a questão de seus fundamentos. Sua descoberta consiste, basicamente, e perceber no círculo hermenêutico do compreender uma positividade ontológica. Mais do que estipular metodicamente o processo hermenêutico da compreensão, o que Heidegger faz é refletir sobre a estrutura ontológica subjacente ao próprio compreender, cujo principal mérito é uma superação radical da velha e tradicional dicotomia entre sujeito e objeto, bem como uma superação da filosofia reflexiva.

A faticidade do ser-aí, a existência que não é suscetível nem de fundamentação nem de dedução, é o que deve erigir-se em base ontológica do delineamento fenomenológico, e não o puro ‘cogito’ como constituição essencial de uma generalidade típica: uma idéia tão audaz como comprometida. (Gadamer, 1993, p.319)

O comprometimento de Heidegger não é nem com a filosofia transcendental de Husserl nem tampouco com a filosofia vitalista de Dilthey, mas sim com uma recuperação positiva da ontologia, superando sua história de esquecimento gradativo do Ser, isto é sua história metafísica, que deve previamente ser “destruída”. Sua descoberta é que o humano tem uma estrutura ontológica fundamental que antecede sua condição subjetiva e, portanto, supera também a clássica oposição entre sujeito e objeto. Esta descoberta é fundamental porque restabelece a intrínseca e necessária ligação entre este ente fundamental – o ser-aí (Dasein) – e o núcleo da ontologia, o Ser. E esta união, que é a união da pergunta pelo Ser e por seu sentido, é uma união que se dá no tempo, antes mesmo de se dar na história. Esta pergunta pelo Ser exige uma postura específica: a compreensão e o deciframento do Ser pelo ser-aí. Mas a compreensão não é somente um procedimento para Heidegger, e sim um modo de ser, o modo de ser fundamental e originário do ser-aí: “compreender é o caráter ôntico original da vida humana mesma” (Gadamer, 1993, p.325). Isto porque todo o compreender visa ao mesmo tempo um algo e o agente do visar, isto é, todo compreender é um compreender-se, que se dá na temporalidade do ser-aí. Por isto, todo ato de compreender consiste numa pré-compreensão de seus pré-juízos e seus pré-conceitos, ou seja, de tudo aquilo que este ente traz em sua história individual antes do próprio pôr-se em atitude compreensiva. É exatamente esta tematização das pré-condições do compreender que permite uma objetividade da compreensão. Mas não se trata de aceitar estas précondições, mas sim de também compreendê-las devidamente numa disposição de abertura ao visado hermeneuticamente.

A tarefa hermenêutica – conclui Gadamer – se converte por si mesma em uma exposição objetiva, e está sempre determinada em parte por este. Como isso a empresa hermenêutica ganha um solo firme sob os pés. Quem quer compreender não pode entregar-se desde o começo à sorte de suas próprias opiniões prévias e ignorar o mais obstinada e conseqüentemente possível a opinião do texto. (...) uma consciência formada hermeneuticamente tem que mostrar-se receptiva desde o princípio para a alteridade do texto. Mas esta receptividade não pressupõe nem ‘neutralidade’ frente às coisas nem tampouco auto-aniquilamento, senão que inclui uma matizada incorporação das próprias opiniões prévias e prejuízos. O que importa é o se encarregar das próprias antecipações, com a finalidade de que o texto mesmo possa apresentar-se em sua alteridade e obtenha assim a possibilidade de confrontar sua verdade objetiva com as próprias opiniões prévias. (Gadamer, 1993, 335s)

Mas é justamente nessa exposição da pré-estrutura da compreensão em termos ontológicos que Ricœ ur identifica uma limitação da hermenêutica heideggeriana (e, de certo modo também de Gadamer). Ele a identifica como a via curta de se fundar a hermenêutica na fenomenologia, uma vez que desconsidera todas as discussões metodológicas das hermenêuticas sobre a interpretação correta, restringindo-a a uma ontologia em que o compreender é mais que um modo de conhecer, e sim um modo de ser. “O problema hermenêutico torna-se assim uma província da Analítica deste ser, o Dasein, que existe compreendendo” (Ricœ ur, 1969, p.10). Que esta inflexão de uma abordagem epistemológica para uma abordagem ontológica da hermenêutica tenha seu aspecto revolucionário, disto Ricœur não discorda. Contudo, aí onde se dá esta revolução mesma, ocorrem também dois problemas que Heidegger simplesmente desconsidera. Primeiramente, a hermenêutica fundamental, de recorte heideggeriano, desconsidera por completo os problemas epistemológicos inerentes à hermenêutica – e já devidamente considerados (o que não quer dizer devidamente respondidos) antes mesmo de Heidegger – suprimindo-os. Ao deslocar a hermenêutica do problema da consciência histórica para o da compreensão originária, Heidegger não esclarece os termos em que a compreensão histórica é uma forma derivada da compreensão ontológica/originária. Em segundo lugar, Heidegger não consegue resolver de forma satisfatória como o compreender passa do estatuto de uma forma de conhecer para uma forma de ser, já que o compreender enquanto resultado da Analítica do Dasein, enquanto um modo de ser, consiste já sempre num modo de se conhecer como tal (Ricœ ur, 1969, p.14). Para Ricœ ur, a tentativa desesperada de Heidegger de prescindir da linguagem é infrutífera e fadada ao fracasso, justamente porque a linguagem é o próprio núcleo da hermenêutica. E é na via longa de uma hermenêutica centrada na linguagem que se deve buscar uma fundamentação fenomenológica à hermenêutica – caminho este seguido por Ricœ ur.

Mas antes de discutirmos a concepção filosófica de Ricœur, convém considerar ainda um dos méritos de Heidegger para a sua retomada crítica da filosofia reflexiva. Segundo Ricœ ur, um dos méritos de Heidegger está na sua reformulação da questão do sujeito. Com sua Analítica do Dasein, Heidegger formula uma teoria do sujeito destituída de um traço egocêntrico, comum às filosofias da consciência clássicas desde já, pelo menos, Descartes e seu dualismo ontológico. A novidade que Heidegger possibilita é “uma nova filosofia do ego, no sentido que o ego autêntico é constituído pela questão mesma” (Ricœur, 1969, p.224). Esta nova filosofia do sujeito postula tanto uma recuperação da questão do Ser e de seu sentido como centro dessa nova concepção filosófica, quanto uma retomada do sujeito como um ente questionante, instigado pela questão do Ser. O sujeito não pode aqui ser compreendido enquanto o ego, consciência que se descobre como clara e evidente, mas enquanto um ente instigado pela dúvida e pela necessidade ôntica/ontológica de compreender – o foco filosófico-hermenêutico se desloca do “eu penso” para o “eu sou”. É deste modo que a Analítica do Dasein recoloca sob uma nova ótica a possibilidade de uma filosofia do sujeito, a saber, não em termos antropológicos, mas sim ontológicos. A primazia do Dasein não coincide com a precedência idealista da consciência, porquanto aquela – diferente desta – não consiste numa condição fundamental às coisas e ao mundo, mas sim na constatação de que o Dasein é o único instigado pela questão do Ser; e é por esta mediação (à questão do Ser) que o Dasein, ou a nossa subjetividade, se constitui como tal.

A especificidade do modelo Ricœ uriano de hermenêutica

É exatamente a partir dessa tematização do sujeito que podemos situar a especificidade de Ricœ ur na história da hermenêutica. Ele mesmo se coloca na tradição do que denomina “filosofia reflexiva”: “Por filosofia reflexiva, entendo, em linhas gerais, o modo de pensamento proveniente do Cogito cartesiano, através de Kant e da filosofia pós-kantiana francesa, pouco conhecida no estrangeiro e da qual Jean Nabert foi, par mim, o pensador mais marcante” (Ricœur, 1989a, p.37). Em suas linhas gerais e mais radicais, a filosofia reflexiva consiste na possibilidade da compreensão de si enquanto sujeito do conhecimento, ético e estético (Ricœur, 1989a, p.37; e Iwata, 1994, p.101).

Na ótica de Jean Nabert, o conceito fundamental é exatamente o conceito de “reflexão”, porque é a partir dele que se constituem o sujeito mesmo, bem como seus campos de imanência à sua atividade espiritual. Para ele, a reflexão é constituída de dois traços fundamentais, a saber: (a) é pela reflexão que o sujeito toma consciência e apreende a si mesmo, de uma forma constante e renovável, o que lhe dá um caráter de intemporalidade no presente da reflexão; (b) a reflexão se dá a partir de uma afirmação inicial, radical porque originária enquanto fundante da consciência da existência do sujeito, e que se liga da forma mais íntima a sua própria existência (Iwata, 1994, p.104s). E como já para Nabert esta tomada de consciência passa pela reflexão da afirmação original – “eu sou” –, quer dizer que o ato mesmo de constituição do sujeito é um ato mediado pelo signo (Ricœur, 1969, p.213; Iwata, 1994, p.104 e 107). Mas se em Nabert o signo ocupa apenas uma função coadjuvante face à precedência do “ato do espírito”, com Ricœ ur o papel do signo como mediador da própria consciência e da constituição do sujeito, do “si”, ganha todo o destaque necessário a um termo que se torna chave à sua concepção hermenêutica, enquanto uma tomada de posição crítica à filosofia reflexiva, sua tradição. Ou dito de outro modo, a filosofia reflexiva tem que se tornar hermenêutica: “porque a reflexão não é uma intuição de si para si, ela pode ser, ela deve ser, uma hermenêutica” (Ricœ ur, 1969, p.221).

No sentido do papel que cabe ao signo para a filosofia reflexiva de Ricœur, Gagnebin – em seu artigo “Uma filosofia do cogito ferido: Paul Ricœur” – define assim o que considera a questão central da obra do filósofo francês: “A questão central da obra, pois, poderia ser tematizada como a tentativa de uma hermenêutica do si pelo desvio necessário dos signos da cultura, sejam eles as obras da tradição ou, justamente, as dos contemporâneos” (Gagnebin, 1997, p.261). Contudo, onde ela identifica um “desvio”, parece-nos mais condizente em admitir uma mediação, uma vez que não se trata nem de um “mal necessário”, nem de uma espécie de alternativa que é escolhida por suas vantagens pragmáticas frente a outras possibilidades – o que implica numa certa concepção pejorativa da mediação do signo. Parece-nos muito mais que a mediação dos signos é o único caminho possível para este projeto de uma filosofia hermenêutica do sujeito, conforme sua fórmula hermenêutica, expressa em “Da interpretação”: “não há compreensão de si que não seja mediatizada por signos, símbolos e textos; a compreensão de si coincide, em última análise, com a interpretação aplicada a estes termos mediadores” (Ricœ ur, 1989a, p.40).

Além disto, vale considerar a filosofia de Ricœur ainda numa outra perspectiva que lhe é extremamente próxima. Claude Geffré situa Ricœ ur no âmbito da crise da hermenêutica no contexto cultural francês, a partir do advento e também do paroxismo de algumas vertentes estruturalistas e neo-estruturalistas em seu privilégio da leitura em detrimento da interpretação hermenêutica (Geffré, 1989, p.36-40). Segundo ele, o deslocamento hermenêutico de Ricœur consiste em colocar-se tanto em reserva diante das hipóteses de base da “hermenêutica romântica e psicologizante”, isto é, as propostas hermenêuticas tanto de Schleiermacher e Dilthey, bem como da leitura estruturalista. No que diz respeito aos primeiros, Ricœ ur supera-os reportando-se às valiosas contribuições de Heidegger e Gadamer, que despsicologizam o processo de compreender para “mundanizá-lo”. Contudo, estes seguiram o que Ricœ ur denominou a “via curta” de fundar a hermenêutica na fenomenologia. E não há como menosprezar as contribuições estruturalistas no campo da leitura dos textos, sem necessariamente ter que aderir às suas interpretações (formais) do sentido como efeito derivado do sem-sentido.[4] O que implica em seguir o que ele chamou de via longa de fundação fenomenológica da hermenêutica, isto é, seu projeto filosófico. Conforme a interpretação de Geffré,

Ricœ ur procura ultrapassar o dilema entre a distância, ligada à objetividade do texto, e a proximidade ou a pertinência, ligada à compreensão histórica. Ele se esforça, por isso, para escapar à alternativa que ainda está presente no próprio título da grande obra de Gadamer: verdade e método (...) o título de Gadamer exprime uma alternativa e que, de fato, sacrifica uma teoria epistemológica da interpretação à hermenêutica, no sentido epistemológico. Ricœ ur faz um esforço desesperado para conciliar os dois. De um lado, dá razão ao estruturalismo, ao aceitar passar pela longa via dos métodos exegéticos, a fim de estabelecer a objetividade do texto. Mas, do outro, resiste à desconstrução do sentido praticada pelo estruturalismo. Ele não renuncia, com efeito, à compreensão hermenêutica, isto é, finalmente, à procura da verdade. Mas, para ele, o texto como obra é que mediatiza a verdade a compreender. (Geffré, 1989, p.49)

É neste contexto de luta teórica entre a via curta da hermenêutica, de cunho ontológico – na qual se elimina a pretensão de se estabelecer uma epistemologia da hermenêutica – e o desconstrucionismo enquanto vertente mais radical do estruturalismo lingüístico (entenda-se, segundo Geffré), que Ricœur constrói sua teoria da via longa, bem como seu conceito de “mundo do texto”. É a partir destas reflexões propositivas que Ricœ ur pode estabelecer uma conexão entre a fenomenologia husserliana e sua concepção hermenêutica. Mas antes de adentrarmos nesta questão mais específica, vejamos sucintamente em que consiste sua teoria da via longa.

A via longa da fundação fenomenológica da hermenêutica

Obviamente, quando Ricœ ur critica Heidegger considerando sua abordagem ontológica da compreensão como uma via curta – que ele não pretende seguir –, não quer dizer que ele a descarte por completo. Apenas julga que ela é demasiadamente apressada em culminar numa ontologia, direta, sem a necessidade de alguma forma de mediação. Ricœ ur também visa, ao menos de uma forma pressuposta, uma ontologia. Mas ele visa uma ontologia da compreensão enquanto esta requer uma semântica e uma forma reflexiva; isto é, enquanto ela passa pela mediação do signo e, por conseguinte, a partir dela possibilitando uma reflexão nos termos já apresentados aqui (Ricœ ur, 1969, p.10s).

Com Heidegger, já assistimos a uma conversão da epistemologia da hermenêutica numa ontologia da compreensão. Em vez de buscarmos os cânones metodológicos da interpretação, reconhecemos que na compreensão e na interpretação há um sujeito que se descobre como ser-interpretante. Ou seja, a compreensão passa a consistir em um modo de ser de nós mesmos. Ricœ ur chama a atenção para o fato de que esta descoberta não pode prescindir da linguagem; e mais que isso, depende dela (ainda que não exclusivamente) para chegar com êxito a tal descoberta (Ricœ ur, 1969, p.14s). A tal ponto que mais tarde, em “Da interpretação”, ele diz em termos mais genéricos, já recorrendo a uma teoria da mediação dos signos (para instaurar uma especificidade de sua hermenêutica, a mediação do texto): “Mediação pelos signos, por ela é afirmada a condição originariamente linguística de toda a experiência humana” (Ricœ ur, 1989a, p.40).

A apresentação da via longa em 1969, com “Existência e hermenêutica”, já trabalha com a tese da mediação da linguagem. Entretanto, sua exposição limita-se a uma “teoria” do símbolo, em virtude da necessidade de apreender hermeneuticamente o sujeito que se constitui por relações lingüísticas bastante complexas; comportando duplos sentidos e até mesmo expressões multívocas,[5] a despeito dos modelos artificiais construídos pelos lógicos onde reina o princípio da univocidade. Ainda que sua noção de “símbolo” permaneça a mesma – a saber, “toda estrutura de significação onde um sentido direto, primário, literal, designa além disso um outro sentido indireto, secundário, figurado, que apenas pode ser apreendido através do primeiro” (Ricœur, 1969, p.16), isto é, as expressões de duplo sentido, quer criados por uma cultura quer criados metaforicamente por um indivíduo em particular (Ricœ ur, 1989a, p.41) – sua teoria hermenêutica se mostrou por demais limitada; exigindo, portanto, tanto de uma melhor tematização, na qual se compreendesse que há antes uma mediação pelos signos e de que, por fim, mediante uma definição restritiva em termos de extensão, mas de ganhos teóricos consideráveis (definição intensiva), culminasse numa descoberta da mediação pelos textos; que é o que ele estabelece, quase vinte anos depois, com Du texte à l’Action (1986). É precisamente nesta redefinição da mediação da linguagem enquanto mediação pelos textos que Ricœur dá uma de suas maiores contribuições ao movimento hermenêutico, a despeito da crise da fenomenologia diante do movimento de reviravolta da voga estruturalista.

A mediação do texto

É justamente a partir de seu diálogo com o estruturalismo que Ricœ ur pode falar de “mundo do texto”. Obviamente, como veremos, o seu diálogo com o estruturalismo é apenas parte do processo, mas não tem um papel exclusivo, já que não basta para sua teoria do mundo do texto. Seguramente, há também um papel fundamental da fenomenologia – com Husserl e Heidegger – na elaboração da mesma.

Com o conceito de “mundo do texto”, Ricœ ur pode manter a devida distância do movimento estruturalista, apreendendo aspectos teóricos fundamentais do mesmo, sem se deixar confundir, nem inebriar, por alguns de seus radicalismos. No caso do conceito de “mundo do texto”, Ricœ ur atribui ao discurso um elemento fundamental do ponto de vista semântico, e que foi recusado como relevante, ou ao menos relegado a um plano secundário pela semântica estruturalista: a existência de uma referência para a qual todo o discurso – enquanto um sistema de signos estruturado – sempre se remete. Para o estruturalismo, via de regra, o que importa é considerar o discurso como um sistema de signos, cujo impacto teórico digno de nota consiste em tomá-lo autonomamente frente aos âmbitos não-lingüísticos, ou extra-lingüísticos. Em outros termos, o estruturalismo limita-se a uma análise do texto, desconsiderando por completo sua relação com a realidade, e considerando o “texto como jogo diferencial de significantes” (Geffré, 1989, p.50). Ao tomar como central em sua teoria hermenêutica da mediação pelo texto, Ricœur ainda sustenta a importância da referência,bem como o fato de que para ele o texto diz algo acerca da realidade; ou dito melhor, ele é um conjunto específico de signos que porta significado.

Mas este dizer algo sobre a realidade não deve ser compreendido no velho sentido proposto pelas hermenêuticas romântica e psicologizante. Este dizer algo sobre a realidade, este exigir um mundo como referência, não considera uma intencionalidade do autor, quer dizer subjacente ao texto – uma espécie de pré-texto – que deve ser desvelado a partir da interpretação hermenêutica do mesmo. O texto não é hermeneuticamente considerado como fruto de uma criação genial, mas como um dado que tem sua própria autonomia e independência. Deste modo, mediante o conceito de “mundo do texto”, é como se Ricœ ur ficasse a meio caminho entre dois extremos radicais: entre a autonomia absoluta do discurso e a dependência absoluta do texto do autor. Ainda que ele considere o texto como autônomo em relação ao gênio criador, o texto reclama uma referência para significar.

A alternativa da intenção ou da estrutura é vã. Porque a referência ao texto – o que chamo a coisa do texto ou o mundo do texto – não é nem uma nem outra. Intenção e estrutura designam o sentido; o mundo do texto designa a referência do discurso, não o que é dito, mas aquilo sobre que ele é dito. A coisa do texto é o objeto da hermenêutica. E a coisa do texto é o mundo que o texto desdobra diante de si. (Ricœ ur, “Herméneutique de l’idée de révélation”, p.38-39; apud Geffré, 1989, p.51)

Uma referência que não é do mesmo tipo do proposto pelas concepções logicistas da linguagem, com sua redução da referência da linguagem a uma relação entre palavra (nome) e objeto. Não se trata para ele, seguramente, de estabelecer uma relação bipolar entre nome e objeto; até porque muitas vezes, o “objeto” não está empiricamente dado no campo de nossas sensibilidades (como no empirismo de Russell), ou não está dado no campo lógico dos fatos (cf. o Tractatus Lógico-Philosophicus de Wittgenstein). “Deus”, por exemplo, se enquadra neste aspecto referencial da linguagem nos moldes propostos por Ricœ ur, que exige uma atenção redobrada aos textos, modelos de signos que implicam em relações bem mais complexas de concatenação semântica do que as previstas numa análise lógica de funções proposicionais.

É neste sentido que Ricœur situa o paradigma do texto nos quadros conceituais do discurso. Ora, “o discurso é acontecimento de linguagem”, diferenciando-se tanto da própria língua quanto dos signos da língua na medida que, dentre outras características, “enquanto os signos da língua remetem apenas para outros signos no interior do próprio sistema, e enquanto a língua dispensa o mundo como dispensa a temporalidade e a subjectividade, o discurso é sempre acerca de qualquer coisa. Refere um mundo que pretende descrever, exprimir, representar” (Ricœur, 1989d, p.186). Este mundo referido pelo texto (linguagem escrita) não é o resultado de um jogo ostensivo, em que o objeto é mostrado quer por atos, quer por signos; isto é, o que Ricœ ur chama de Umwelt. O mundo do texto – Welt – é o conjunto de

referências não situacionais que sobrevivem ao desaparecimento dos precedentes e que, doravante, se oferecem como modos possíveis de ser, como dimensões simbólicas do nosso ser-no-mundo. Tal é, para mim, o referente de toda a literatura: já não o Umwelt das referências ostensivas do diálogo, mas o Welt projectado pelas referências não ostensivas de todos os textos que nós lemos, compreendemos e de que gostamos. (...) é este alargamento do Umwelt às dimensões do Welt que nos permite falar das referências abertas pelo texto; seria melhor dizer que estas referências abrem o mundo. Mais uma vez a espiritualidade do discurso se manifesta pela escrita, libertando-nos da visibilidade e da limitação das situações, abrindo-nos um mundo, a saber, novas dimensões do nosso ser-no-mundo. (Ricœ ur, 1989d, p.190)

A interlocução com Husserl no âmbito da mediação do texto

Apesar do evidente tom heideggeriano dessa concepção de “mundo” em sua teoria referencial não-ostensiva do texto, procuraremos mostrar agora o quanto ela também é devedora da fenomenologia husserliana, sem contudo perder de vista a sua singularidade. Vale relembrar aqui que Ricœur, embora compartilhasse com Heidegger da tese geral de seu projeto hermenêutico – a saber, a de investigar a possibilidade do compreender numa ontologia hermenêutica –, distinguia seu próprio projeto da pretensão heideggeriana acerca dos fundamentos da hermenêutica no aspecto metodológico, isto é, de que para o filósofo francês não se pode prescindir da mediação da linguagem para fundamentar, ou enraizar como ele mesmo diz algumas vezes, a hermenêutica na fenomenologia. Ou dito de outro modo, para Ricœ ur não se poderia abrir mão de uma abordagem acerca da linguagem com mediação necessária e inevitável para o compreender (e mesmo para o ser, em particular, ser-no-mundo). E neste caso específico, “linguagem” consiste num projeto hermenêutico que contemple a mediação pelo texto como modelo privilegiado (Ricœ ur, 1989a, p.45).

No âmbito deste projeto de fundar a hermenêutica na fenomenologia é que se deve buscar demarcar a leitura Ricœ uriana da filosofia de Edmund Husserl.[6] Ainda que pareça precipitado, parece-nos que a leitura que

Ricœur efetua da filosofia de Husserl tem algumas peculiaridades que merecem ser destacadas. A primeira delas, e a mais evidente – e se considerarmos sua introdução e tradução à Ideen I, e se considerarmos os textos contidos em A l’École de la Phénoménologie, bem como também “Fenomenologia e Hermenêutica: no rastro de Husserl” –, é de que Ricœ ur concentrou sua atenção não na fase estático-descritiva da fenomenologia husserliana;mas sim principalmente na sua fase genética, ou como alguns comentadores também denominam, sua fase transcendental,[7] que tem como seus principais elementos, a apresentação e defesa tanto de uma teoria da constituição quanto de uma redefinição explícita da fenomenologia em termos idealistas.

A contraposição hermenêutica às teses idealistas da fenomenologia

No já mencionado artigo “Fenomenologia e Hermenêutica: no rastro deHusserl”, Ricœur apela a uma estratégia argumentativa de contrapor seu projeto hermenêutico às prinipais teses idealistas da fenomenologia husserliana. O seu intuito geral consiste, vale lembrar, em interrogar “sobre o destino da fenomenologia, hoje”; postulando duas teses gerais: (a) a hermenêutica desbaratou as teses do idealismo husserliano; e (b) entre hermenêutica e fenomenologia há uma pertença mútua, em que uma pressupõe a outra (Ricœ ur, 1989c, p.49s).

Ricœ ur identifica cinco teses idealistas na fenomenologia de Husserl, principalmente a partir da leitura do Nachwort às Ideen. E opõe a cada uma delas uma releitura hermenêutica.[8]

A primeira tese idealista da fenomenologia husserliana consiste em postular que “o ideal de cientificidade que a fenomenologia reivindica, não está em continuidade com as ciências, a sua axiomática, o seu empreendimento fundacional: a ‘justificação última’ que a constitui é de outra ordem” (Ricœ ur, 1989c, p.51). Ricœ ur se contrapõe a esta tese afirmando “seu limite fundamental na condição ontológica da compreensão” (Ricœur, 1989c, p.54). O idealismo husserliano esbarra numa concepção limitada da relação sujeito-objeto, que restringe extremamente os alcances de sua descoberta da intencionalidade. O que a hermenêutica descobre para aquém do empreendimento fundacional do idealismo husserliano é que toda fundamentação e justificação reclamam como seu precedente uma relação que não é a do tipo sujeito-objeto, mas sim a relação de pertença que engloba tanto um sujeito pretensamente autônomo e um objeto pretensamente adverso: antes de qualquer subjetivação ou objetivação, há a própria experiência hermenêutica da “pertença” (Ricœ ur toma este conceito de Gadamer), ou de “ser-no-mundo” (a expressão é de Heidegger).

A segunda tese idealista da fenomenologia husserliana consiste em que “a fundação principal é a ordem da intuição; fundar é ver” (Ricœur, 1989c, p.52). A intuição é imediata. Ricœ ur observa que esta tese é o exato contraditório da tese hermenêutica de que toda a compreensão é necessariamente mediatizada por uma interpretação. Ora, a tese da intuição só tem validade no contexto específico da fundação numa subjetividade transcendental (como se pode deduzir da terceira tese); mas a descoberta da hermenêutica é de que antes que se instaure “axiomaticamente” um sujeito, ele se funda na relação de pertença. Ou dito de uma forma mais clara, a subjetividade se instaura no âmbito de uma relação que sempre a precede – não em termos lógicos ou em termos históricos, mas em termos hermenêuticos e ontológicos (Ricœ ur, 1989c, p.56). Neste sentido, toda interpretação e toda compreensão têm um caráter universal ante a constituição do sujeito e do objeto: o sujeito apenas se coloca diante de um objeto no contexto específico da pertença, onde se instaura o círculo hermenêutico entre o leitor e os múltiplos sentidos de um texto (para além das intenções originais do autor), numa relação de inúmeras e renováveis polissemias – o que implica na intrínseca incompletude da tarefa hermenêutica. O ideal husserliano da intuição fundante, ou do que Gadamer chama de “mediação total” – ou seja, de uma imediatez original – é contraposto pela descoberta hermenêutica de que “toda interpretação coloca o intérprete in medias res e nunca no início ou no fim. Nós surgimos, de certo modo, a meio de uma conversa que já começou e na qual tentamos orientar-nos, a fim de podermos também fornecer-lhe o nosso contributo” (Ricœ ur, 1989c, p.58).

A terceira tese idealista na afirmação de que “o lugar da intuitividade total é a subjectividade. Toda transcendência é duvidosa, só a imanência é indubitável” (Ricœ ur, 1989c, p.52). A hermenêutica descobre que, a despeito da tese idealista da fenomenologia husserliana, imanência também é duvidosa, uma vez que não se pode contar com uma subjetividade apodítica e precedente a tudo e a todos; já que também ela é instaurada no próprio ato hermenêutico da compreensão e da interpretação. Assim como Husserl exigia uma crítica do objeto que culminasse numa teoria da Dingkonstitution (constituição da coisa), a hermenêutica Ricœuriana – valendo-se tanto da crítica das ideologias quanto da psicanálise – efetua uma crítica do sujeito, coextensiva àquela proposta por Husserl. Esta crítica do sujeito só é possível a partir da denúncia e do abandono da tese husserliana de que o conhecimento de si não é presuntivo. O que a hermenêutica descobre é que o conhecimento de si é sim presuntivo, porquanto é um conhecimento que se dá sempre no âmbito precedente da relação, caracteristicamente lingüística – o sujeito se constitui sempre na relação comunicativa falando de algo para alguém, na qual este “algo” também pode ser o próprio sujeito, quer enquanto um dos pólos da conversação, quer enquanto o assunto da discussão.[9] Um caso bastante paradigmático pode ser encontrado na literatura: Luigi Pirandello, em Um, Nenhum e Cem Mil, conta-nos a história do homem que se descobre a partir de uma observação de sua esposa acerca de seu nariz.

A quarta tese postula que “a subjectividade, assim promovida à categoria do transcendental, não é consciência empírica, objecto da psicologia” (Ricœ ur, 1989c, p.52). É exatamente recorrendo à teoria do texto como modelo hermenêutico, que se pode questionar de forma radical o primado da subjetividade que, aliás, já vem sendo gestada desde a crítica à primeira tese idealista de Husserl. Uma vez que o texto não é uma extensão da força criadora da subjetividade, de um autor, mas sim que seu sentido é dado a partir da diferença entre o que ele diz – a saber, sobre o “mundo que ele abre e descobre” – e como diz para alguém (o leitor), a tarefa fundamental da hermenêutica consiste na descoberta polissêmica deste dizer o mundo. Mas como já vimos, este dizer o mundo não se pauta nem se restringe à teoria artificial, porque lógica, da referência de primeiro grau (a relação de nomeação). A teoria hermenêutica da mediação pelo texto, ainda que admita a teoria fenomenológica da intencionalidade, não aceita sua hipóstase da subjetividade. Deste modo, a teoria do texto desloca a questão da intencionalidade para a tarefa de dizer o mundo, “já não como um conjunto de objectos manipuláveis, mas como horizonte da nossa vida e de nosso projecto, numa palavra, como Lebenswelt, como ser-no-mundo” (Ricœur, 1989c, p.62). Ainda que Ricœ ur não o diga explicitamente, o dizer o mundo enquanto uma proposta e uma explicitação do ser-no-mundo, ou do Lebenswelt, é um dizer constitutivo. Não mais no sentido, porém, em que remete a uma subjetividade como condição fundamental da constituição (uma vez que o texto é autônomo em relação ao seu autor), mas também não no sentido de que o mundo é dado previamente. Para Ricœ ur, o dizer o mundo é uma constante atividade de configuração e refiguração.

A quinta e última tese do idealismo husserliano estabelece que “a tomada de consciência que sustenta a obra de reflexão desenvolve implicações éticas próprias: pelo facto de que a reflexão é o acto imediatamente responsável de si” (Ricœ ur, 1989c, p.54). Esta tese conta com imediatez do sujeito e, portanto, de sua primazia. É justamente estas imediates e primazia que são postas em xeque pela hermenêutica de Ricœ ur, mediante sua teoria da mediação hermenêutica do texto. Mais do que instaurar, a subjetividade é termo final da mediação do texto, porquanto é nele que desemboca o processo da compreensão. Daí o motivo que o ato da subjetividade, enquanto ato final, é um ato de apropriação (Aneignung) da compreensão, mantendo-se devidamente à distância tanto da subjetividade original (o gênio criador), como instância determinante do sentido; quanto do mundo dado quotidianamente como evidente e conjunto de objetos manipuláveis (Ricœ ur, 1989c, p.63). Mas é nesta apropriação compreensiva do texto que se pode efetivamente realizar uma hermenêutica do si: é mediante o texto que se realiza um compreender-se; a condição de próprio da subjetividade se realiza mediante a constatação de que subjetividade se realiza mediante o texto enquanto dizer o mundo, o mundo no qual se insere e ao qual pertence esta subjetividade. Mas para se originar esta compreensão ontológica de nós mesmos mediante o texto, urge que a apropriação do texto implica numa “distanciação de si para si” (Ricœ ur, 1989c, p.64).

Epílogo: dizer o mundo enquanto constituição hermenêutica do mundo

Entretanto, as críticas hermenêuticas de Ricœ ur ao idealismo husserliano não podem ser interpretadas como uma crítica radical, do tipo que refuta todo um corpo teórico. A crítica Ricœ uriana consiste muito mais apropriadamente numa recuperação da filosofia husserliana sem deixar de lhe ser crítica, isto é, no sentido de refutar seu idealismo. Ricœ ur rompe com a filosofia husserliana mas não com seu método e sua teoria. De maneira mais clara: Ricœ ur se apropria tanto da análise intencional (o método) quanto da teoria da constituição do sentido; mas dispensa os pressupostos idealistas de Husserl.[10] É exatamente em sua relação com a fenomenologia husserliana que se pode definir o empreendimento de Ricœ ur nos seguintes termos: “ele tende a se desfazer do idealismo transcendental em proveito de uma hermenêutica dos textos, a qual implica uma forma de desapropriação do eu [je], em proveito de uma reapropriação do si [soi]” (Stevens, 1990, p.11).

A nosso ver, um caso patente dessa apropriação crítica da fenomenologia husserliana, dispensando apenas seu idealismo, é a teoria Ricœ uriana da mediação do texto. A teoria da mediação do texto se constrói a partir de uma teoria do signo e da língua: é-lhes correlata, porém sem se confundir com elas, justamente por sua natureza referencial. O texto, enquanto um discurso, se refere ao mundo, dizendo-o. Não se refere ao mundo, contudo, de modo similar ao discurso oral, que pode recorrer às formas ostensivas para garantir sua significação.[11] O texto, enquanto um discurso escrito, não aponta para uma dada situação de objetos e dados empírico-sensíveis. O texto remete às referências não-situacionais, abertas e projetadas pelo texto, enquanto “dimensões simbólicas do nosso ser-no-mundo” (Ricœur, 1989d, p.190).

Apesar do tom heideggeriano da expressão “ser-no-mundo”, a ênfase deve cair na idéia de dimensão simbólica. Enquanto tal, o mundo não é a totalidade dos objetos radicalmente diversos da subjetividade, mas sim a totalidade simbólica na qual a subjetividade está imersa, para além de uma situação, em seu ato compreensivo de um texto. É exatamente neste sentido que o mundo do texto é constituído pelo texto enquanto seu referencial. O dizer o mundo que o texto efetua é um constituir o mundo a partir da relação compreensiva que se estabelece entre o texto e o leitor, uma relação que estabelece a pertença a partir do distanciamento entre o texto e o leitor.

Ora, esta idéia da constituição simbólica como configuração e refiguração do mundo é seguramente uma idéia de origem husserliana. Ela aparece em vários momentos da fenomenologia genética de Husserl (e até em algumas passagens da fase estática), principalmente nas Ideen II, onde a teoria da constituição é apresentada em sua forma mais acabada, e nas Meditações Cartesianas – texto-chave para seu idealismo. Tanto numa quanto na outra obra, Husserl se vale de uma teoria ambígua da constituição, como adverte o próprio Ricœ ur em seu estudo acerca das Ideen II. A constituição é por um lado um exercício de análise intencional, que sempre parte, como seu “guia transcendental”, do “sentido já elaborado em um objeto que tem uma unidade e uma permanência diante do espírito” (Ricœ ur, 1987a, p.88). Por outro lado, e é aí que se evidencia o idealismo husserliano, este sentido só o é para uma consciência, e numa consciência; o que implica numa decisão metafísica radical:

O retorno ao Ego conduz a um monadismo segundo o qual o mundo é primordialmente o sentido desdobra meu Ego. Husserl, assumindo lucidamente a responsabilidade do ‘solipsismo transcendental’, tenta encontrar uma saída no conhecimento de outrem que dever realizar este extraordinário paradoxo de constituir ‘em’ mim o ‘estranho’ primeiro, o ‘outro’ primordial: aquele que, subtraindo-me do monopólio da subjetividade, reorganiza em torno dele o sentido do mundo e inaugura a peripécia intersubjetiva da objetividade. (Ricœ ur, 1987a, p.89)

É neste duplo jogo da constituição enquanto analise intencional e da constituição de relações entre o Ego em três aspectos/níveis[12] – constituição da natureza material, constituição da natureza animada, e constituição da natureza espiritual – na consciência, que se pode caracterizar aquilo que Ricœ ur denominou de idealismo metodológico e idealismo doutrinal da fenomenologia husserliana. E é justamente a questão tematizada da intencionalidade que possibilita uma chave de leitura do caráter referencial do texto na leitura hermenêutica de Ricœ ur.

A temática da intencionalidade é explicitada por Ricœ ur em sua análise das Meditações Cartesianas, a partir da Segunda Meditação, § 14, em conjunto com a teoria da epoché. E como tal, pela temática da intencionalidade, é que a fenomenologia transcendental se apresenta como uma filosofia do sentido:

a exclusão do mundo [epoché] não suprime a relação ao mundo mais precisamente a faz surgir como superação do Ego para um sentido ‘que se porta nele’. Reciprocamente é a redução transcendental que interpreta a intencionalidade como visada de um sentido e não como algum contato com um exterior absoluto. (Ricœ ur, 1987c, p.173)

Portanto, Husserl descobre e desenvolve da forma a mais completa possível em seu aspecto idealista essa idéia da intencionalidade reinterpretada à luz da redução transcendental. Afinal o Ego que ele postula não equivale ao cogito cartesiano, dado como evidente de uma forma prévia a tudo o mais. O Ego husserliano, enquanto idéia, só tem sua evidência garantida a partir da constatação de suas cogitações, isto é, a partir da intencionalidade de suas vivências. O que não implica na precedência de um externo ao Ego, mas sim que há uma coincidência entre a constituição da realidade e do Ego:

Se toda realidade transcendental é a via do eu [moi], o problema de sua constituição coincide com a auto-constiuição do Ego e a fenomenologia é uma Selbstauslegung (uma interpretação de Si [Soi]), mesmo quando ela é constituição da coisa, do corpo, do psiquismo, da cultura. O eu [moi] não é simplesmente o pólo sujeito oposto ao pólo objeto (§ 31), ele é englobante: tudo é Gebilde da subjetividade transcendental, produto de sua Leistung. (Ricœ ur, 1987c, 194)

Uma dinâmica análoga, Ricœ ur mesmo o reconhece, acontece com sua hermenêutica, a partir da “dialética” entre a distanciação e a pertença no âmbito da mediação do texto. Contudo, onde Husserl ainda coloca o Ego transcendental no centro de sua fenomenologia, Ricœur assume radicalmente o descentramento do sujeito – de algum modo já preconizado por Husserl enquanto superação do dualismo cartesiano, mas reconsiderado no contexto da teoria do sujeito transcendental, enquanto o universo de sentido possível – colocando como uma espécie de resultado da mediação do texto. O dizer o mundo do texto, constitui o mundo enquanto dimensão simbólica na em medida que interage com uma subjetividade. Não numa relação de exterioridade, mas numa relação de inserção; da inserção da subjetividade no mundo constituído simbolicamente pelo dizer do texto – tal como a teoria da constituição do mundo, expressa nas Ideen II e complementada pela Krisis, culmina numa teoria da constituição do mundo enquanto constituição da Lebenswelt. Não é à toa que Ricœ ur compreende a Lebenswelt como um pressuposto, e mais do que isso, como ”o paraíso perdido da fenomenologia” (Ricœ ur, 1989a, p.38).

O dizer o mundo, a natureza referencial do texto, é assim, muito diversa da tarefa de nomear o mundo. No dizer o mundo, o que o texto faz é constiui-lo simbolicamente, sem necessariamente exigir uma subjetividade como instância prévia de sentido e como sua condição fundamental. Mas sim estabelecendo um locus compreensivo a cada vez que lemos um texto, bem como estabelecendo um plexo de possibilidades de sentido que configuram e reconfiguram nossas ações e experiências (Ricœ ur, 1989a, p.30); e que, portanto, também constituem a nós mesmos, enquanto imersos neste mundo simbólico, enquanto ser-no-mundo. Daí a inevitável natureza ontológica da hermenêutica enquanto um processo de auto-reflexão do sujeito, sempre a partir de suas mediações culturais e, especificamente, textuais. É nestas mediações e por meio delas, suas criações, que o próprio sujeito se constitui; não como um processo de auto-constituição, mas como resultado de um algo que se lhe tornou externo e autônomo: o texto.[13] E esta constituição de si se dá enquanto compreensão de si:

Não há compreensão de si que não seja mediatizada por signos, símbolos e textos; a compreensão de si coincide, em última análise, com a interpretação aplicada a estes termos mediadores. Ao passar de um para outro, a hermenêutica liberta-se progressivamente do idealismo com o qual Husserl tentara identificar a fenomenologia. (...) O papel da hermenêutica, dissemos nós, é duplo: reconstruir a dinâmica interna do texto e restituir a capacidade de a obra se projectar para fora na representação de um mundo que eu poderia habitar. (Ricœ ur, 1989a, p.40 e 43)

ABSTRACT: The objective of this article consists of inventorying that way Paul Ricœur reads and he appropriates of elements of the philosophy of Husserl in his hermeneutical project. Like this, it is looked for firstly to characterize in general lines the history of the contemporary hermeneutic. In a second moment, we established a first delimitation of the hermeneutic of Ricœur characterizing some of their central problems. Finally, in a third moment, we tried to observe like Ricœur retakes the husserlian philosophy to give bill of their own hermeneutical reflections.

KEYWORDS: Ricœ ur; Husserl; Phenomenology; Hermeneutic; World of the Text.

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STEVENS, Bernard. L’Évolution de la Pensée de Ricœur au Fil de son Explication avec Husserl. Études Phénoménologiques. Louvain-la-Neuve (Belgique): Centre d’Études Phénoménologiques. VI (11), 1990: 9-27.



[1] Nossos sinceros agradecimentos, à Prof.a Jeanne Marie Gagnebin, pela sua amabilidade em ler e criticar o artigo. Entretanto as limitações do texto são de nossa inteira responsabilidade.

[2] Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina-UEL. Artigo recebido em jun/06 e aprovado para publicação em nov/06.

[3] O trocadilho é proposital. Ele se refere tanto ao fato de que a tradução das Ideen I ao francês foi acrescida de uma introdução bastante interessante, como ao fato de que, graças a este empreendimento de Ricœur o público francês teve acesso em sua língua a este texto de Husserl, filósofo fundamental à filosofia francesa do Pós-Guerra. Infelizmente, não pudemos contar com o texto desta introdução para incorporá-la a nosso estudo.

[4] Talvez seja interessante lembrar o que Michel Foucault (1994, p.601s) disse, num tom evidentemente estruturalista, sobre a sua geração e sobre si mesmo, contraposta à posição defendida por Ricœur, mas que, por contraste, talvez evidencie a posição do hermenêuta francês: “Durante os anos cinqüenta, como todos aqueles de minha geração, eu estava preocupado, a exemplo de nossos novos mestres, e sob a sua influência, pelo problema da significação. Todos nós fomos formados na escola da Fenomenologia, pela análise das significações imanentes ao vivido, das significações implícitas da percepção e da história. (...) E eu creio que, como em todos aqueles de minha geração, se produziu em mim, entre os anos cinqüenta e cinqüenta e cinco, uma sorte de conversão que parecia insignificante, por um lado, mas que na realidade, por outro, nos diferenciou profundamente: a pequena descoberta, ou se preferir a pequena inquietude que estava na origem; foi a inquietude frente às condições formais que podem fazer que a significação apareça. (...) E, após 1955, nós nos consagramos principalmente à análise das condições formais do aparecimento de sentido.”

[5] Introduzimos aqui este neologismo para não incorrermos apressadamente na noção de vaguedade lingüística e conceitual, e para enfatizar a possibilidade dos múltiplos sentidos que pode assumir a linguagem em toda sua força simbólica, fundamental para o exercício hermenêutico.

[6] Saliente-se, porém, que está para além de nossas pretensões considerar e analisar a obra de Ricœur integralmente. Nosso objetivo é bem mais modesto, uma vez que pretendemos apenas situar como Ricœ ur lê a obra de Husserl no contexto específico de sua teoria hermenêutica da mediação do texto à compreensão ontológica de si. Para uma exposição mais detalhada dessa relação entre Ricœur e Husserl, parece-nos mais apropriado recomendar a leitura do interessante artigo de Bernard Stevens, “L’évolution de la pensée de Ricœ ur au fil de son explication avec Husserl” (1990).

[7] Obviamente isto é passível de ser questionado. Mas nosso intuito em afirmar qual a fase de Husserl que interessa a Ricœ ur não implica que ele apenas leu os textos da fase genética e transcendental, isto é, a fase idealista de Husserl; mas sim que seguramente é a fase que mais lhe gerou possibilidades de interlocução, sempre com vistas a superar o idealismo husserliano sem perder, contudo, o mérito de suas intuições “metodológicas”. Sobre a sua leitura, por exemplo, das Investigações Lógicas o texto mais lógico da fase estática da fenomenologia husserliana, ainda que visando suplantar o idealismo das Meditações Cartesianas, conferir de Ricœ ur a seção 2 de seu artigo “Fenomenologia e hermenêutica” (Ricœ ur, 1989c, p.71-76).

[8] Nós nos limitaremos em apresentar as citações referentes às teses idealistas de Husserl para, em seguida, reconstruirmos a crítica hermenêutica de Ricœ ur a tais teses.

[9] O que a hermenêutica pode fazer é, pautando-se na crítica das ideologias, refletir sobre a influência de outros elementos estranhos – a ideologia – na apreensão do objeto cultural. É neste sentido que Ricœur recorre ao conceito de “distanciação” como correlato e corretivo da pertença – ele também define a distanciação como um momento da pertença – que implica não numa alienação (como Gadamer supõe a partir do conceito de “Verfremdung”), mas numa mediação criadora, tendo o texto como seu modelo. Para tanto, conferir Ricœ ur, 1989c, p.61.

[10] Considerando, obviamente, o modo como Bernard Stevens define a fenomenologia: “Com efeito, a fenomenologia husserliana é indissoluvelmente: um método, uma teoria e uma doutrina filosófica. É de um lado um método descritivo: a análise intencional. É, em seguida, uma teoria da constituição do sentido: uma problemática da significação completada pela redução. É enfim uma doutrina filosófica: o idealismo transcendental” (Stevens, 1990, p.10s).

[11] Há uma limitação teórica de Ricœ ur neste ponto, apesar da pouca relevância a sua teoria do texto. É que ele deixa de considerar o fato de que a designação por extensão, apesar de seu aparente primitivismo, não garante semanticamente uma relação entre nome e objeto, mas sim de que é já como parte integrante de um discurso que ela funciona adequadamente, como Wittgenstein já havia descoberto com sua teoria dos jogos de linguagem, e sua precedência semântica. O que é um pouco estranho se considerarmos o fato de que Wittgenstein não é estranho para Ricœ ur, que escreveu um artigo aproximando Husserl e o filósofo austríaco. Para tanto, cf. de Paul Ricœur, “Husserl and Wittgenstein on Language”, in: Phenomenology and Existentialism, edited by E. N. and M. Mandelbaum, Johns Hopkins Press, 1967; citado por Bernard Stevens.

[12] Isto porque a teoria da constituição tal como apresentada nas Ideen II deve ser lida tanto como uma exposição genética, quanto uma exposição estrutural da constituição do mundo.

[13] Claro que para Ricœ ur o sujeito não apenas se constitui mediante o texto, mas através de símbolos e signos culturais em geral. Contudo é ao texto que Ricœ ur confere o caráter paradigmático para sua hermenêutica.