PRESSUPOSTO ÉTICO DA ALTERIDADE NA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA À LUZ DO SOFISTA DE PLATÃO[1]

 

Luiz Rohden[2]

Leonardo Marques Kussler[3]

 

RESUMO: A teoria filosófica de Gadamer comporta a proposta da hermenêutica filosófica enquanto um projeto ético. Embora o autor não tenha focalizado essa relação, de forma sistemática, almeja-se, aqui, explicitar e aprofundar a noção de alteridade como pressuposto ético fundamental da hermenêutica gadameriana, à luz do Sofista de Platão. Para tanto, na primeira seção, abordam-se a estrutura e as formas de interação do conceito de outro, tal como apresentado por Platão, no Sofista, que trata de aspectos da identidade, da diferença, da coexistência do eu e do outro enquanto princípios metafísicos. Em um segundo momento, propõe-se uma percepção possível da apropriação de Gadamer relativamente aos conceitos platônicos os quais dialogam entre si, por meio da dialética, a partir da subjetividade moderna. Dessa maneira, justifica-se que os traços fundamentais da ética hermenêutica têm base em princípios não autoexcludentes, visto que não se exige o assujeitamento do outro como condição da formação e da manutenção identitária de si. Por fim, reconduz-se a hipótese de que o outro hermeneuticus é tão importante quanto o eu hermeneuticus para a compreensão de si e do mundo, em uma relação copartícipe, a qual não nega diferentes modos de ser para se afirmar com significativas implicações pessoais e sociopolíticas.

 

Palavras-chave: Hermenêutica Filosófica. Hermenêutica Ética. Alteridade. Gadamer. Platão. Sofista.

 

A possibilidade de que o outro tenha razão é a alma da hermenêutica.

(GADAMER apud GRONDIN, 1991, p. 160).

 

INTRODUÇÃO: ESTADO DA QUESTÃO

Hans-Georg Gadamer é leitor e intérprete de Platão, a ponto de se autodenominar platônico, e sua leitura apropriadora lhe rendeu o epíteto de Sócrates contemporâneo. Ao elevar a hermenêutica ao status de filosofia, consideramos pertinente e decisivo, pois, rememorar algo e refletir sobre os corolários da apropriação que Gadamer fez de Platão e que lhe facultou suplantar a visão canônica estreita de hermenêutica enquanto simples técnica de interpretação textual.

A presente reflexão situa-se no bojo do projeto de elaborar a concepção de hermenêutica ética. Como sabemos, esse tema não foi objeto específico de atenção de Gadamer, embora tenha escrito sobre a ética dialética, em sua tese de habilitação sobre o Filebo de Platão, na qual desenvolveu a reflexão sobre a mistura de dois ingredientes: saber e prazer. Essa relação de boa mistura proposta por Platão entre ambos, Gadamer designou de apropriada [das Angemessene], “[...] isto é, o que é medido para servir à situação, o apropriado ou, resumidamente, ‘o meio entre os extremos’.” (SMITH, 1988, p. 83). Aqui, o propósito é explicitar e explorar uma dimensão do projeto mencionado, a saber, alguns traços dos princípios metafísicos de identidade e de alteridade e suas relações delineadas no Sofista de Platão, que reverberam na hermenêutica gadameriana na feição de pressupostos éticos.

Da metafísica de Platão, a qual pode ser assentada sobre cinco gêneros autônomos e, ao mesmo tempo, em tempos diferentes, inter-relacionados, interdependentes e entrelaçados entre si – constituindo o ser, também, em sua pluralidade, pressuposto que não existe apenas o ser, mas há também o não ser –, desdobra-se sua proposta ética de mesmo teor ou matiz similar (ROHDEN, 2016). E, conforme a argumentação de Lima Vaz (2011), não há como definir a ideia platônica como algo cindido da prática, visto que o constructo metafísico platônico se dá por meio dos mo[vi]mentos dialéticos que se assentam nas práticas dialógicas interpessoais do real. Assim, na metafísica platônica, delineia-se uma proposta ética erigida sobre os princípios da identidade e da alteridade – identificados por [τ]αὐτόν e ἕτερόν –, que existem de forma independente, porém, relacionada, tecendo o ἦθος humano com implicações pessoais, sociopolíticas e ecológicas.

A hipótese ora advogada é de que Gadamer presume a existência de dois princípios metafísicos, a saber, identidade e alteridade, mesmo que isso não tenha sido afirmado explicitamente, até onde sabemos. Além disso, nossa hipótese se orienta pela presunção da existência dos dois princípios metafísicos dispostos em Platão, os quais reverberam na existência paritária dos princípios de eu hermeneuticus e outro hermeneuticus, sem absolutização ou hegemonia de um ou de outro.

Sustentaremos que, a partir do Sofista de Platão, encontramos a delineação e a discussão da atribuição relacional entre o eu e o outro, embora Gadamer não tenha enfocado ou realizado isso, de forma clara e sistemática. Nossa hipótese é de que Gadamer se apropria de um aspecto da metafísica platônica e seus desdobramentos éticos na construção da concepção de hermenêutica filosófica. Assim como os princípios metafísicos da identidade e da alteridade, as concepções do eu e do outro, em Gadamer, não se excluem, tampouco se sobrepõem entre si, uma vez que se encontram em relação dialética, tensional, interminável. Ao se apropriar da filosofia grega, com intuito de redimensionar a noção de subjetividade moderna, em função da relação dialética com a alteridade, Gadamer incorporou a relação simétrica e dialética entre identidade e alteridade preconizada por Platão no Sofista. Dito de outra forma, a fundamentação ética da hermenêutica parte de uma dupla principiológica que não é autoexcludente, pois, quando considera o eu e o outro, não elimina um, para que se forme ou se justifique o outro, tampouco reconhece o outro como condição exclusiva para a existência e a constituição do eu. Isso se ratifica na proposta ética gadameriana efetivada mediante o diálogo, o qual pressupõe que o outro pode não apenas ter direito, mas razão.

Junto a isso, justificaremos que o pressuposto acima se desdobra e se replica, na hermenêutica filosófica de Gadamer, na roupagem terminológica dos princípios irrefutáveis, de validade e vigência, do eu hermeneuticus e do outro hermeneuticus, que, tal como os princípios platônicos, se encontram em relação de participação, de κοινωνία, de intercâmbio, de mistura entre si aplicáveis tanto à composição e à compreensão do real quanto à constituição do ἦθος autêntico, humano, que nos torna mais felizes, que nos realiza mais plenamente e que poderá nos livrar ou, infelizmente, apenas retardar nossa autodestruição ou destruição planetária, na medida em que continuarmos insistindo em pautar nossa práxis pelo princípio da identidade absoluta, do solus ipse moderno, o qual ignora, exclui e até destrói o outro.

Para sustentarmos nossa hipótese, fazemos esta reflexão, assentada sobre a seguinte estrutura: inicialmente, caracterizaremos os gêneros ou princípios metafísicos platônicos e os pressupostos éticos gadamerianos da identidade e da alteridade. A seguir, desenvolveremos como eles se relacionam ou se articulam: no caso de Platão, a relação entre os princípios é de participação, de κοινωνία, de mistura mediante a dialética, e, no caso de Gadamer, a relação entre os pressupostos é de fusão de horizontes, de parceria, de respeito, de solidariedade em face do jogo dialógico. Ao final, indicaremos a importância e as implicações pessoais, sociais e ecológicas decorrentes dessa proposta prática de hermenêutica ética, em sua contraposição a toda forma de xenofobia, racismo, destruição da natureza, corporificada no movimento global das extremas-direitas políticas.

 

1 SOBRE OS PRINCÍPIOS ÉTICO-METAFÍSICOS EM PLATÃO E SOBRE OS PRESSUPOSTOS ÉTICOS EM GADAMER

 

1.1 SOBRE OS PRINCÍPIOS ÉTICO-METAFÍSICOS EM PLATÃO

No Sofista, Platão caracterizou os gêneros metafísicos da identidade e da alteridade dos quais não podemos abrir mão. Nosso interesse se restringe a explorar e destacar o princípio da alteridade e o tipo de relação com o gênero da identidade exposto no diálogo.

A discussão principal dos personagens Estrangeiro e Teeteto gira em torno do tema da existência do ser como potência [δύναμιν] ou como geração/devir [γένεσιν], além do aspecto de o corpo dos entes participar [κοινωνεῖν] na geração, por meio da sensação, e a alma participar da verdadeira substância [ὄντως οὐσίαν] (PLATÃO, 1905, 1921; Soph., 248 a-b). Há uma convergência de argumentos comumente vistos como opostos, especialmente no que se refere aos elementos do movimento e do repouso defendidos, respectivamente, pelas filosofias heraclitiana e parmenidiana. Diferentemente das argumentações oposicionais tradicionais proferidas pelos filósofos supracitados, a proposta do Sofista é pôr em xeque a impossibilidade de o ser compor-se por movimento e repouso, de sorte que o filósofo, enquanto dialético, deve defender, como na prece das crianças [παίδων εὐχήν], “[que] todas as coisas imóveis, movam-se [ὅσα ἀκίνητα καὶ κεκινημένα], o ser e o todo consistem de ambos” [τὸ ὄν τε καὶ τὸ πᾶν συναμφότερα]. (PLATÃO, 1905, 1921; Soph., 249 c-d).

Daí que, no Sofista, quando se usa o termo Ξένος para nomear o Estrangeiro, explicita-se o convidado de fora, ou seja, o outro que se mostra como bem-vindo e diferente daquele que o recepciona. A própria figura do personagem que representa um modo de pensar diferente é a de um estrangeiro, alguém com o pensamento estranho, alheio ao que se forma na percepção identitária própria – isto é, alguém com um modus existendi diferente do daquele local. Essa denominação não é acidental em Platão, pois é o outro, o diferente, o estranho que tem condições ideais de apontar outro caminho de uma compreensão mais apropriada e coerente do ser, no caso, de questionar e ampliar a noção do ser eleático.

Ao tratar da discussão da possibilidade do não ser, a grande dificuldade é dizer algo que não possui presença, na concepção grega, mesmo que não ser não corresponda a ser, porque, quando se forma um discurso sobre o não ser, institui-se o ἕτερον, o outro/diferente ­– o qual acaba por ser determinante na revisão de Platão da possibilidade de encarar a partícula negativa [μή] do ser [ὄν] como negação.

O ponto nevrálgico da discussão platônica está na possibilidade de alterar o sentido de ser – reestruturando a tradição e a doutrina parmenidiana. Nesse sentido, tal como Platão faz uma reconstrução das doutrinas do ser da tradição de sua época, Heidegger (1992, p. 444) a retoma, com base nas distinções dos pré-socráticos, Platão e Aristóteles, de maneira que, enquanto “[...] os eleatas afirmam que há um ser [...] Platão afirma que não, [pois] deve haver um ser múltiplo.”

O diálogo faz uma recapitulação dos mais importantes gêneros [γενῶν], que são o ser mesmo, o repouso e o movimento [τό τε ὂν αὐτὸ καὶ στάσις καὶ κίνησις] (PLATÃO, 1905, 1921; Soph., 254 d). O ser é misturado [μεικτὸν] com tais gêneros, na medida em que estes são/existem, isto é, cada um é outro [ἕτερόν] dos outros dois, mas idêntico a si mesmo [αὐτὸ δ᾽ ἑαυτῷ ταὐτόν] (PLATÃO, 1905, 1921; Soph., 254 d). Nesse sentido, há cinco gêneros: ser, repouso, movimento, mesmo e outro, e cada um deles é/existe através da participação no ser [διὰ τὸ μετέχειν τοῦ ὄντος] (PLATÃO, 1905, 1921; Soph., 256 a). Além disso, essa seção trata de nova possibilidade de não ser, de sorte que não seja tomado como contrário de ser, mas diverso – o que exime a necessidade de comprovar ou refutar a existência do não ser.

Ao tratar do ἕτερος, o alter latino, tende-se a pensar em dois lados da mesma moeda, a saber, de uma das muitas formas de dizer o ser, a qual não nega outros modos de afirmá-lo. Outro significado de outro, aqui, é o de um dos dois, que denota a função de um dos modos de dizer o real. Uma terceira acepção é o caso de outro na proposição de dependência, em que um depende do outro, com ideia de sequenciamento de um mesmo objeto. A ideia de seguinte, ou seja, subsequente, também é aceita e pensada quando se aborda esse conceito grego, assim como, quando se afirma outro do mesmo tipo, o termo também é usado dessa forma. Outra opção de tradução é um outro, no sentido de afirmar a similaridade de um com relação ao objeto que não é exatamente o mesmo, mas parecido, de uma mesma família conceitual, por assim dizer (LIDDELL; SCOTT, 1996).

Na perspectiva gadameriana, a noção de alteridade [Andersartigkeit] transparece sobremaneira na concepção de fusão de horizontes [Horizontverschmeltzung] presente no jogo entre quem compreende e o objeto a ser compreendido ou entre duas formas de compreensão díspares (HAMMERMEISTER, 2006, p. 67). A forma de compreensão do outro ou a outra forma de compreensão é balizada pelo princípio de alteridade, do outro que pode ter razão e que, certamente, pode ter fundamento em sua forma de veridicção, isto é, de dizer sua verdade.

Uma tradução diferente seria compreender outro por além do usual, o que é diferente, que insere a noção de pluralidade e de diferença enquanto comparação com algum parâmetro inicial. A ideia de contrariedade aparece igualmente, quando se utiliza outro para exprimir a ideia de diferente do que devia ser, inserindo, também, a informação de determinada moralidade, quando, por exemplo, se pensa na noção de diferente do que é bom. O outro também aparece nas formações frasais que significam lateralidade, como no caso de mão esquerda, a qual denota, historicamente, a mão não preferencial ou a outra mão. Por fim, ainda com essa última ideia, podemos conferir o significado de outra direção ou outro modo [de ser], no sentido de pensar diferentes direções.

O outro representa a forma do não ser, que, por sua vez, se opõe à natureza do ser e o ser dos entes. Trata-se de uma forma de ser, uma vez que ἕτερος participa das características de partes do outro tanto quanto é copartícipe do ser (O’BRIEN, 2013, p. 130), porque a ideia de outro, no Sofista, tem a intenção de atuar como uma função de algo que está em processo, isto é, dinamicamente, tem potencialidade de ser ato de forma diversa. Assim, o elemento temporal é de extrema importância, aqui, pois é com base nele que se compreende o fenômeno de uma categoria das formas de geração do ser, a saber, o outro, que pode existir e, em outro dado momento, não.

Isso se explica igualmente pela noção de predicação negativa anteriormente explorada, já que parte da argumentação do Estrangeiro, no Sofista, versa sobre a possibilidade de a negação; por exemplo, ser o elemento negativo de algo que é não significa a vacuidade ou a nulidade da existência, mas uma versão alternativa do que é. Os opostos, por assim dizer, são modos de negação relacional, como no caso de belo-feio, grande-pequeno, que poderiam ser expressos como belo e não belo, grande e não grande. O outro significa, aqui, de maneira especial, o diferente, aquilo que não corresponde como princípio de identidade com relação a algo de que se afirma alguma coisa.

É digno de nota mencionar o fato de que Platão tenha se utilizado de um personagem, o estrangeiro, o diferente, o outro, o de fora, para argumentar acerca da validade e da vigência do não ser, da alteridade, em contraposição ao conceito de identidade fechada, rígida, pura, exclusiva e excludente, corporificada no ser parmenidiano. Observe-se que a figura e a postura de um estrangeiro, no geral, representam o diferente, o outro, o estranho, o qual, quando se aproxima de nós, nos provoca, nos desacomoda, perturba, irrita, desestabiliza e, por isso, no geral, não é bem-visto nem bem-vindo, criando condições para reações xenofóbicas.

De acordo com Platão, o real é mistura, é movimento, e o estranho e o diferente participam dele. O distanciamento hermenêutico vivido e tematizado pelo estrangeiro possibilita o rompimento da unidade fechada, exclusiva e excludente da identidade dogmática eleática tradicional. Não precisamos desenvolver, aqui, o preço a ser pago pela palavra do outro, do diferente, em nossas vidas, mas nos interessa explicitar que – especialmente a partir dos argumentos elencados no Sofista – o ser é uma mistura de ser e não ser, identidade e alteridade, assegurados pela experiência e argumentação a respeito do outro corporificado no estrangeiro do diálogo de Platão.

 

1.2 SOBRE OS PRESSUPOSTOS ÉTICOS DA HERMENÊUTICA GADAMERIANA

 

A ênfase no outro sempre esteve presente nos escritos de Gadamer.

(RISSER, 1997, p. 15).

 

Assim como encontramos em Platão os princípios da identidade e da alteridade, em Gadamer, detectamos a existência e a efetividade dos pressupostos do eu hermeneuticus e do outro hermeneuticus, enquanto fundamentos da hermenêutica ética. À luz do Sofista, é possível justificar a centralidade do não ser relativo ao ser – da alteridade relativa à identidade –, isto é, do outro relativo ao eu moderno (cartesiano) na hermenêutica gadameriana, ao mesmo tempo que ambos se contrapõem à absolutização da filosofia da identidade, seja na forma da noção de Ser, em Parmênides, seja na de sujeito racional da modernidade. A centralidade da alteridade ou do outro acaba por reconfigurar a própria noção de identidade ou de sujeito.

 

1.2.1 O EU HERMENEUTICUS EM GADAMER

Gadamer é um crítico da absolutização do sujeito moderno, condensada na figura do cogito ergo sum cartesiano, com sua pretensão de conhecer e determinar o real apenas a partir da razão. Podemos afirmar isso, quando categorizamos a postura de alguém dogmático e/ou totalitário, o qual, via de regra, se apresenta como um indivíduo que pretende possuir a última palavra, dominar o discurso e, por meio dele, subjugar outrem. Nas palavras do autor: “Não há nenhuma proposição que diga tudo aquilo que alguém quer dizer. Há sempre ainda algo não dito, por detrás ou na própria coisa dita, seja porque ela se esconde, seja porque ela não foi corretamente explicitada.” (GADAMER, 2001, p. 90). Quem se recusa a continuar sua busca por uma compreensão mais ampla, que visa a ampliar a própria visão de mundo e a forma como o próprio modo de ser pode se tornar mais tolerante e compreensivo para com o outro, desconsidera a principal tarefa do próprio ser [do] humano. Enquanto seres finitos e limitados em nosso modo de dar sentido às coisas, a nós mesmos, a nossos semelhantes e aos que ainda nos são diferentes, a alternativa de deixar de se mover para desocultar o real e o que o cerca nos condiciona, como diria Aristóteles (1907; De anim., 415 a), a voltar ao estágio de animal ou até mesmo ao de planta, pois se trata de uma vida não examinada.

Gadamer nos legou um conjunto de traços próprios da postura do filósofo que nos permite configurar a noção de eu hermeneuticus, o qual incorpora a sensibilidade, a historicidade e a liberdade, no processo de compreensão e da práxis. Enquanto pressuposto da hermenêutica gadameriana, o eu hermeneuticus nos indica a necessidade de ouvir, de acolher, de deixar-se afetar até o nível de se abrir, de reconhecer e alterar sua perspectiva ou ponto de vista. Assim, no processo de compreensão universal com sentido, o primeiro estágio consiste em deixar o argumento do outro vir à luz, se manifestar, aparecer em sua verdade – exercício fenomenológico –, enquanto o segundo se traduz em acolher a posição do outro ao ponto de se deixar afetar por ela e, inclusive, quando for o caso, de mudar de postura. Esse é o reino da possibilidade, da poesia, da criatividade, da liberdade, em oposição à lógica do necessário, da coação, da escravidão, do totalitarismo. É graças, pois, à construção conceitual com o outro que podemos tecer um ἦθος em que se cultivam relações humanas saudáveis e responsáveis.

 

1.2.2 O OUTRO HERMENEUTICUS EM GADAMER

Embora não tenhamos conhecimento de que já se tenha desenvolvido tal proposta, sustentamos que, a partir de Gadamer, é da concepção platônica de metafísica que se justifica uma ética. Gadamer criticou e reconstruiu a noção de subjetividade moderna pela reapropriação da filosofia grega, mormente a platônica, estampada na sua proposta de hermenêutica enquanto exercício dialógico, em que direito e razão não podem ser postos em um dos lados da balança em detrimento do outro lado, mas precisam se articulados dialeticamente.

Sustentamos que os princípios metafísicos da identidade e da alteridade e sua articulação relacional, como compreendemos no Sofista, reverberam na postura relacional dialógica entre eu hermeneuticus – distinto do eu cartesiano, fixo, rígido que reifica, controla, domina, disseca – e o outro hermeneuticus. Tanto os princípios platônicos quanto os pressupostos gadamerianos possuem validade própria, autonomia, mas se encontram inter-relacionados, interdependentes e são complementares, pois o ser ou a realidade ou a vida é composição da relação dialética entre ambos, porque o que existe é ser e não ser, é o eu e o outro. O pressuposto da ação ética se estriba neste pressuposto basilar, a saber, do desejo e da liberdade do eu e do desejo e da liberdade do outro.

Basta um olhar atento sobre a hermenêutica gadameriana para percebermos um pressuposto basilar e próprio, a saber, a temática do outro, da alteridade. Já na gênese mitológica da hermenêutica, amparada na figura e na postura de Hermes, transparece a centralidade do outro, na medida em que o mensageiro divino é tradutor das mensagens de um para outro mundo e vice-versa; na sua práxis, ele institui pontes entre uma e outra margem, entre um e outro mundo, entre um e outro horizonte. Vista assim, não seria exagerado afirmar que a hermenêutica só existe porque há o outro, o não dito, a diferença, a negatividade, a finitude, a mortalidade. Se houvesse apenas um lado, um ser, não haveria necessidade de interpretar, compreender, traduzir!

Além de detectarmos a centralidade do outro, corporificado em um texto, em uma obra de arte, em um fato, Gadamer (1993a, p. 300) destaca a dimensão do outro enquanto pessoa aferível na retomada que fez da afirmação de Schleiermacher, para quem “[...] a arte da compreensão não é necessária somente para o trato com os textos, mas também no trato com pessoas.” Em outras palavras, como afirma Huang (2006, p. 199), precisamos de uma “[...] hermenêutica para a solidariedade humana, cujo principal propósito, em vez de compreensão de si, seja a compreensão do intérprete acerca do outro.”

Estamos totalmente de acordo com a afirmação de James Risser (1997, p. 15) a respeito da centralidade do outro na filosofia de Gadamer:

A ênfase no outro sempre esteve presente nos escritos de Gadamer. Ao recontar seu próprio itinerário filosófico, Gadamer nos diz que uma das motivações para sua hermenêutica filosófica foi a crise do idealismo que, durante sua juventude, originou-se com a crítica kierkegaardiana de Hegel. Nessa crítica, o significado da compreensão toma sua orientação do outro que invade meu egocentrismo e me dá algo para compreender.

 

A centralidade do outro, em Gadamer (1993b, p. 109), é assegurada em termos da lei positiva e em termos de isonomia argumentativa, ou seja, o outro como pressuposto da práxis hermenêutica possui direitos assegurados, contudo, pode ter razão: “[...] eu estou pensando na pressuposição de que o outro talvez não somente tem também um direito, mas talvez também poderia ter razão.” Ora, a participação central do outro no processo de compreensão evidencia-se na seguinte afirmação de Gadamer: “A possibilidade de que o outro tenha razão é a alma da hermenêutica.” (GADAMER apud GRONDIN, 1991, p. 160).

Seu discípulo Dennis J. Schmidt (apud GRONDIN, 1991, p. 160), retratou isso da seguinte forma: a hermenêutica “[...] anima-se por um profundo respeito pela alteridade”, acenando, assim, também para o modo próprio de se estabelecer a relação entre o eu hermeneuticus e o outro hermeneuticus. Com isso, é possível concluir que a centralidade do outro é clara e contundente, em Gadamer, lembrando que o outro representa o texto, a tradição, a natureza, o diferente, o alter ego, a antítese de uma tese, a pessoa.

Assim como encontramos, em Platão, os princípios metafísicos do ser e do não ser, em Hegel, tese e antítese – com a representação da dialética do senhor e do escravo –, em Gadamer, elucidamos a existência e a vigência dos pressupostos do eu hermeneuticus e o outro hermeneuticus, sem absolutização de um ou de outro. Com validade própria, autônomos e livres, esses pressupostos se encontram interdependentes, inter-relacionados; são complementares e portadores de direitos e da possibilidade de terem razão. Vejamos, agora, como se relacionam ou se articulam, entre si, esses pressupostos, na hermenêutica filosófica.

 

2 SOBRE O TIPO DE RELAÇÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS EM PLATÃO E OS PRESSUPOSTOS EM GADAMER

 

2.1 EM PLATÃO: RELAÇÃO DE PARTICIPAÇÃO, DE ΚΟΙΝΩΝΊΑ, DE MISTURA, MEDIANTE A DIALÉTICA

A argumentação platônica sobre ser e não ser não pretende lograr uma definição apofântica, unívoca e irrevogável, uma vez que a pretensão de separar tudo de tudo é antifilosófica, porque acaba por minar o diálogo e, por consequência, o discurso filosófico (PLATÃO, 1905, 1921; Soph., 260 a-b). Nesse sentido, a negação da existência de mistura/participação entre as coisas as separaria, cada uma, em um bloco discursivo hermético, privando-nos, seres de linguagem, de nos expressarmos. Há, pois, uma relação entre ambos que é de mistura, de participação, e não de imposição ou de pretensão de eliminação de um princípio.

Em Platão, o outro não tem necessidade de ser idêntico ou ser suprimido pelo ser. A possibilidade do outro está justamente na potencialidade de – independentemente do que se defina como outro, que é, basicamente, ser outro além do que é – ter essa propriedade com respeito à alteridade enquanto um tipo ou um gênero (AMBUEL, 2013, p. 261). Assim, compreendemos que o outro é o diferente, aquilo que não se iguala ao ser, que participa do ser, na medida em que existe essa oposição, contudo, que não se reduz em si mesmo, já que o outro existe em si mesmo e para outro, similarmente ao que Hegel compunha com relação ao papel da consciência, no percurso de sua Fenomenologia do Espírito.

Quando Platão trata das formas de gêneros diferentes e afirma que os três grandes gêneros são ser, repouso, movimento, e que os dois últimos não se misturam, também assegura que é possível coparticipação do ser com ambos os outros dois gêneros, de modo que cada um é diferente [ἕτερόν] do anterior, porém, idêntico a si mesmo [αὐτὸ δ᾽ ἑαυτῷ ταὐτόν] (PLATÃO, 1905, 1921; Soph., 254 d). De certa forma, podemos conceber, inclusive, que o outro é condição ontológica para um dos modos de apresentação e presentificação do ser. Outra explicação, nesse sentido, diz respeito ao elemento de participação do diferente com as coisas, porque o diferente se mostra enquanto a natureza de referência ao outro, mas não em relação a si mesmo (SELIGMAN, 1977, p. 261). Isso faz sentido, quando se pensa que o outro é um parâmetro para se formar a própria identidade do si mesmo, além de ser um ponto de referência com relação ao diferente, ao que pode ser semelhante, porém, não igual.

Para Platão, por conseguinte, o ser é misturado [μεικτὸν] com tais gêneros, na medida em que estes são/existem, isto é, cada um é outro [ἕτερόν] dos outros dois, mas idêntico a si mesmo [αὐτὸ δ᾽ ἑαυτῷ ταὐτόν] (PLATÃO, 1905, 1921; Soph., 254 d). Conforme já enfatizado anteriormente, há cinco gêneros: ser, repouso, movimento, mesmo e outro, e cada um deles é/existe por meio da participação no ser [διὰ τὸ μετέχειν τοῦ ὄντος] (Soph., 256 a). Como se vê, a relação entre os gêneros é de mistura, de participação, de κοινωνία, o que não implica negação, supremacia ou destruição de um ou de outro, visto que o real é uma constituição temporal mediante o movimento dialético.

 

2.2 EM GADAMER: RELAÇÃO DE PARCERIA, DE FUSÃO DE HORIZONTES, DE MÚTUA TRANSFORMAÇÃO, DE RESPEITO MEDIANTE O JOGO DIALÓGICO

Na hermenêutica filosófica, a relação entre os pressupostos não é de domínio, de controle, de destruição, de instrumentalização, de uso, de dissecação. Gadamer (1999, p. 364) tece duras críticas a esse tipo de relação, advertindo que o outro, assim como a tradição, “[...] não é simplesmente um evento que se pode conhecer e dominar pela experiência, mas é linguagem, isto é, fala por si mesma, como faz um tu. O outro não é objeto, mas se relaciona conosco enquanto um objeto”, propondo que “[...] também a tradição é um verdadeiro parceiro de comunicação, ao qual estamos vinculados como estão o eu e o tu.” A crítica gadameriana sobre essa relação reificadora, de matiz técnico-científico, fundamenta-se no imperativo kantiano, de modo que,

[...] moralmente falando, este tipo de relação com o tu está calcado na pura e simples referência a si mesmo [ao eu] e contradiz a determinação moral do homem. Sabe-se que uma das formas de interpretação que Kant dá ao imperativo categórico é que não se deve jamais usar o outro como meio, mas reconhecê-lo sempre como fim em si. (GADAMER, 1999, p. 364).

 

Sem o interesse ou a pretensão de se relacionar com o outro enquanto fim em si mesmo, o eu em questão o instrumentaliza, o que implode/contradiz o exercício de compreensão ético-filosófica do outro. Apenas quando não nos limitamos a controlar ou dominar o outro “[...] poderemos aprender ao experienciar repetidamente nossas próprias pré-concepções, a alteridade do outro em seu ser outro.” (GADAMER apud RISSER, 1997, p. 20).

Na relação entre o eu hermenêutico e o outro hermenêutico, não há absolutização deste sobre aquele nem vice-versa. Se, por um lado, tem-se a impressão de que Gadamer tenha concedido primazia ao outro, em detrimento do eu, respaldável pela célebre afirmação de “[...] que não é a história que nos pertence, mas nós a ela”, sabemos que a relação proposta entre o eu e o outro deve ser dialético-dialógica e não dialético-sintética (ROHDEN, 2004). A relação hermenêutica ética procurada, embora seja inevitável a existência de uma relação assimétrica em seu ponto de partida e de chegada, corporifica-se na prática do jogo ­– modelo estrutural por excelência da práxis hermenêutica –, em que a relação apropriada, responsável e salutar entre jogador e regras ou jogador e outros jogadores é sempre tensional, dialética. Dessa maneira, não se justifica, em Gadamer, uma absolutização do outro que faria o eu submisso a ele e vice-versa.

            Como vimos, a relação entre os pressupostos não é de dominação nem de absolutização, mas é de fusão de horizontes, de parceria, de respeito, de solidariedade, de troca, de intercâmbio, de cuidado de si e do outro, de aprendizagem e orientação da ação mútua – corporificada no jogo dialógico, circular, virtuoso. Assim como na criação de redes, a relação institui novos pontos de conexão entre os pressupostos mencionados. E quem se recusa a se relacionar dessa forma – como o dogmático, o ditador – na verdade, abstém-se de efetivar sua ἀρετή ou realização e liberdade propriamente humanas.

A relação proposta por Gadamer é de fusão de horizontes, e isso não pressupõe nem implica fundição do eu e do outro em uma unidade amorfa, na qual as diferenças são suprimidas. Embora a expressão fusão de horizontes pareça conter eliminação da diferença entre eu e o outro, o que Gadamer sugere é que argumentos e perspectivas de ambos se juntam, propiciando o alargamento do horizonte de ambos. A amplificação do horizonte do eu e do outro pressupõe uma visão mais próxima do todo e, consequentemente, na possibilidade de instituir uma práxis mais universal, mais justa, mais livre. Nas palavras de Gadamer (1992, p. 205, grifos nossos):

Quando se encontram duas pessoas e trocam impressões, há, de certo modo, dois mundos, duas visões do mundo e dois forjadores de mundo que se confrontam. Não é a mesma visão do mesmo mundo, como pretende o pensamento dos grandes pensadores com seu esforço conceitual e sua teoria bem elaborada.

 

Dito de outro modo, a relação de fusão não é de assimilação de um ou de outro que redunda na destruição de um dos pressupostos. De acordo com James Risser (1997, p. 16), “[...] a voz do outro não está sendo considerada como uma voz a ser assimilada [...] A compreensão não é uma simples assimilação à identidade, em que o que é estranho torna-se novamente familiar, como um retorno à identidade em um sujeito.” A relação é dialético-dialógica, de sorte que se parte e se mantém a diferença entre pressupostos com a ressalva de que, no retorno do movimento, ambos retornam afetados, com horizontes e possiblidade de uma práxis ampliada. Encontramos essa indicação em Schönherr-Mann (2004, p. 26), para quem “[...] a hermenêutica exige que a ética aceite a diferença que não pode ser extirpada de qualquer identidade.” Ainda conforme o autor, “[...] a compreensão deve de tal forma que a diferença também permaneça. Ou seja, só assim o outro tem possibilidade de permanecer, por assim dizer, em sua própria subjetividade.” (SCHÖNHERR-MANN, 2004, p. 182).

Na relação hermenêutica ética, na ocorrência da fusão de horizontes, a diferença é preservada, porque o que importa é salvaguardar e potencializar as idiossincrasias, a historicidade e a liberdades do eu e do outro. O que importa, portanto, é o jogo relacional que institui outras terceiras alternativas, nesse caso, mais universais que a particularidade dos pressupostos. No jogo, a diferença é sua condição de realização; nele, ela não é eliminada, mas é graças a ele que o real se movimenta, que a vida segue. Vista assim, a diferença, a qual reverbera o não ser sob ótica platônica, não é um problema a ser eliminado; já no mundo dogmático, no reino dos totalitarismos, é tida como uma realidade a ser extirpada. Em todo caso, na experiência ordinária, sentimos o quanto a diferença nos perturba, nos incomoda, nos tira da zona do conforto e da segurança. Isso explica, em parte, por que, do ponto de vista de uma ética utilitária, a diferença relativa à intenção do agente é ignorada, desrespeitada e desconsiderada. Em qualquer tipo de relação – seja afetiva, seja profissional – preservar e potencializar as diferenças envolvidas é uma arte extremamente difícil de ser realizada, porque implica a capacidade de conceder reconhecimento ao direito do outro e também ser capaz, talvez, de renunciar ou relativizar o argumento pessoal e ouvir – o que não significa conceder-lhe razão – o argumento do outro e vice-versa.

No jogo dialógico com o outro, “[...] suas objeções ou sua aprovação, sua compreensão e também seus mal-entendidos são uma espécie de ampliação de nossa individualidade e uma pedra de toque do possível acordo ao qual a razão nos convida.” (GADAMER, 1992, p. 206). O paradoxal é que, na relação hermenêutica de fusão, além do alargamento do horizonte do eu e do outro, amplifica-se ainda mais a diferença entre ambos; ou seja, quanto mais próximos e unos, mais distantes e diversos os pressupostos hermenêuticos. No diálogo, o jogo relacional acontece como uma mudança e ao mesmo tempo uma proximidade entre o eu e o outro, pois, nele, de acordo com Gadamer (2001, p. 232-233), “[...] os interlocutores já não são exatamente os mesmos quando se separam. Estão mais próximos um do outro.”

À esteira da filosofia platônica, parece não haver dúvidas acerca da relação exemplar do jogo dialógico que corporifica a relação responsável, profícua e saudável entre os pressupostos hermenêuticos, em Gadamer. Encontramos isso ratificado na resposta do próprio autor à pergunta “como se forma a linguagem no diálogo?”, ao que ele responde:

Que se considere o falar um simples seguir as regras me parece uma concepção muito estreita. Entendendo-se assim, não se capta sobre que descansa na realidade a convivência dos seres humanos, a saber: que é participação do outro. Este tipo de participação a conhecemos do pensamento dos gregos, em Platão como methexis [participatio], como koinonia ou mixis. Estas expressões nos recordam que na convivência não nos adonamos de alguém e que tampouco no pensar possuímos algo. Não devemos amarrar-nos a nossas palavras como a conceitos fixos quando dirigimos ao outro perguntas e sentimos a necessidade de um intercâmbio do perguntar e responder. (GADAMER, 2001, p. 228).

 

A relação, pois, entre os pressupostos, é de participação, de κοινωνία, de mistura de horizontes, preservando – e até potencializando – a diferença, ao mesmo tempo que se instaura uma terceira margem de pensamento e de práxis. A relação dialógica, de mistura de horizontes, “[...] sempre deixa marcas em nós. O que faz com que algo seja um diálogo não é só o fato de havermos ensinado algo novo, mas que tenhamos encontrado algo no outro que não havíamos encontrado ainda em nossa experiência de mundo.” (GADAMER, 1992, p. 206). Enfim, o que importa é aprender e tratar o outro e os outros “[...] como o outro de nós mesmos, a fim de podermos participar com o outro.” (GADAMER apud RISSER, 1997, p. 20).

 

3 IMPLICAÇÕES DO JOGO A PARTIR DOS PRESSUPOSTOS ÉTICOS

Vejamos corolários de ordem pessoal, social e ecológica decorrentes dos pressupostos e suas relações constituintes e constituidores da hermenêutica filosófica. Em termos pessoais, a proposta relacional, além de ampliar horizontes, efetiva a eudaimonia aristotélica ou nossa autorrealização. Pessoas egocêntricas, que só veem, pensam e agem em função de si mesmas, só em ser, no geral acabam por serem infelizes, frustradas, azedas, amarguradas. Tanto a compreensão universal da verdade quanto a prática de uma ação que nos torna mais humanos, felizes, livres, se assentam sobre uma concepção de filosofia fundamentada pelos princípios, autônomos e, ao mesmo tempo, em tempos diferentes, inter-relacionados participativamente, da identidade e da diferença corporificados nos pressupostos do eu [hermenêutico] e de outro [hermenêutico]. Isso se espelha na seguinte afirmação de Gadamer (apud RISSER, 1997, p. 16-17):

A última palavra para a hermenêutica filosófica não é a comunicação/transmissão do sentido como tal, mas a abertura infinita da comunicação na qual nós continuamos ganhamos acesso ao mundo no qual vivemos. No final, a hermenêutica filosófica trata da nossa autocompreensão; mas isso, como Gadamer insiste, tem pouco a ver com uma filosofia da subjetividade. Ao contrário, isso tem a ver com nosso modo de ser, de sentir-se em casa no mundo em que somos despertados pela voz do outro.

 

O eu incapaz e indisposto para olhar, para ouvir, para participar do horizonte do outro – representado na figura do dogmático, do ditador –, ao exercer o domínio sobre outro, implode a possibilidade de construção de um ἦθος, em que é possível e desejável sentir-se em casa no mundo. O problema é que, para Gadamer, “[...] apesar de todos os nossos progressos técnicos e científicos, não aprendemos suficientemente como se aprender a conviver, tanto com estes como com os próprios homens.” (GADAMER, 2000, p. 26). E a razão disso, como vimos, estriba-se na absolutização do eu e negação do outro – reverberando a concepção do ser parmenidiano – que pretendemos, aqui, descentralizar, ao colocar em jogo como a condição ímpar da compreensão da verdade e autorrealização.

Em termos sociais, as implicações da vigência dos pressupostos e suas relações são da defesa da inclusão, da pluralidade, da diversidade, da interdisciplinaridade, em contraposição a toda forma de xenofobia, de racismo, de preconceito. Essa implicação ética é clara, em Gadamer (2001, p. 223), e aparece na sua recomendação: “[...] temos que aprender a pensar de forma oikoumênica [...]. É a humanidade sobre este globo que tem que fazê-lo para aprender a conviver e talvez poder adiar, assim, a autodestruição.” É na tessitura de relações de troca, de participação, de fusão de horizontes que alargamos modos de viver que salvaguardam nossas liberdades individuais, ao mesmo tempo que tecemos redes relacionais saudáveis, responsáveis e que contribuem para nos sentirmos em casa, neste mundo. As crescentes ondas de ódio e de violência são movidas em posturas que absolutizam a unidade, em detrimento e destruição da pluralidade. A relação de fusão de horizontes entre o eu e o outro, em Gadamer, promove e fomenta o respeito, a amizade, a solidariedade – corolários próprios do jogo dialógico, espinha central da hermenêutica filosófica.

Se, por um lado, a nossa felicidade e autorrealização são frutos do exercício da participação com o outro, é possível extrair daí implicações político-ecológicas. Diante do crescente quadro da destruição planetária – em que Brumadinho e Mariana são apenas o iceberg dessa realidade – movida pela lógica unitária e unilateral do Eu moderno, o jogo dialógico dos pressupostos éticos apresentados aqui tem implicações significativas para a humanidade. Nas palavras de Gadamer (apud RISSER, 1997, p. 20), nós “[...] podemos talvez sobreviver como humanidade se pudermos aprender que não podemos simplesmente explorar nossos meios de poder e possibilidades efetivas, mas devemos aprender a parar e respeitar o outro como um outro, seja a natureza ou as culturas crescidas de pessoas e nações.”

Enfim, ao trazer à luz a centralidade do outro, na prática hermenêutica gadameriana, elucidamos e justificamos sua vocação ética, claramente contraposta a toda postura fundamentalista, totalitária e dogmática e com o escopo claro de promover a instituição de uma vida feliz, livre, que cria κοινωνία entre as pessoas e alimenta relações de participação, de parceria com a natureza. Ao explorar o pressuposto ético da alteridade, na hermenêutica de Gadamer, onde o outro tem, não apenas direitos, mas pode ter também razão, extraímos implicações sociopolíticas, porque isso evidencia e descontrói propostas teóricas de racismo, de sexismo, de homofobia, de xenofobia, posturas próprias de quem não leva a sério, em última instância, a possiblidade de que o outro possa ter direitos e razão. As escolhas políticas – corporificadas nas caricaturas políticas trumpianas ou bolsonarianas – estão arraigadas na defesa e na absolutização da unidade fechada, do mesmo, do igual, do idêntico e, por consequência, na exclusão, na eliminação, na destruição do outro.

À base das diferentes formas de fundamentalismos e fanatismos de matiz religioso, bem como de totalitarismos de tipo sociopolítico, de dogmatismos conceituais, há uma forma de lidar que visa a excluir e exterminar o outro, alicerçada por um tipo de Eu que não quer saber nem dos direitos nem das razões dos outros. Daí porque há uma urgência de aprendermos a virtude da hermenêutica, isto é, reconhecer e compreender o outro na esperança de uma solidariedade da humanidade como todo, mas, “[...] também, no que diz respeito a um viver junto e a um sobreviver com o outro, então – se isso não acontecer – não poderemos realizar as tarefas essenciais da humanidade, nem no que tem de menor nem no que tem de maior.” (GADAMER, 2000, p. 25). Importa, sim, tratar o outro como gostaria de ser tratado, mas se ressalve que o outro também precisa tratar o eu como gostaria de ser tratado. A constituição do ἦθος humano depende, pois, do tipo de relação entre eu e o tu, e, no caso, a partir de Platão, em Gadamer, mostramos que a felicidade, a criatividade e a liberdade dependem de relações de parceria, de participação e de compromisso mútuo.

 

Ethical presupposition of otherness in philosophical hermeneutics in the light of Plato’s Sophist

Abstract: Gadamer’s philosophical theory involves the proposition of philosophical hermeneutics as an ethical project. Although the author has not approached this relationship in a systematic way, we propose to explain and deepen the notion of otherness as a fundamental ethical presupposition of Gadamer’s hermeneutics in the light of Plato’s Sophist. Therefore, in the first section, we will discuss the structure and forms of interaction of the concept of otherness as presented by Plato, in the Sophist, which deals with aspects of identity, difference, coexistence of self and other as metaphysical principles. In a second moment, we will propose a possible perception of the appropriation of Gadamer with respect to the Platonic concepts that dialogue with each other through dialectic from the modern subjectivity. In this way, we will justify the fundamental traits of hermeneutical ethics are based on non-self-excluding principles, since it does not require the assumption of the other as a condition for the formation and maintenance of identity. Finally, we will return to the hypothesis that the other hermeneuticus is as important as the I hermeneuticus for the understanding of itself and of the world, in a co-relation that does not deny different ways of being to affirm itself with significant personal and socio-political implications.

Keywords: Philosophical Hermeneutics. Ethical Hermeneutics. Otherness. Gadamer. Plato. Sophist.

 

REFERÊNCIAS

AMBUEL, D. Difference in Kind: Observations on the Distinction of the Megista Gene. In: BOSSI, Beatriz; ROBINSON, Thomas M. (ed.). Plato’s Sophist revisited. Berlin: De Gruyter, 2013. p. 247-268.

ARISTÓTELES. De Anima. Translated by R. D. Hicks. Cambridge: Cambridge University Press, 1907.

GADAMER, H-G, L. La incapacidad para el diálogo. In: GADAMER, H-G. Verdad y Método II. Salamanca: Sígueme, 1992. p. 203-210.

GADAMER, H-G, L. Europa y la oikumene. In: GADAMER, H-G. El giro hermenéutico. Madrid: Cátedra, 2001. p. 219-238.

GADAMER, H-G. Wahrheit und Methode, Gesammelte Werke 2. Tübingen: Mohr Siebeck, 1993a.

GADAMER, H-G. Über die Verborgenheit der Gesundheit. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1993b.

GADAMER, H-G. Wahrheit und Methode, Gesammelte Werke 1. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999.

GADAMER, H.-G. Da palavra ao conceito. In: ALMEIDA, C. L. S. de; FLICKINGER, H.-G.; ROHDEN, L. Hermenêutica Filosófica: nas trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 13-26.

GEORGE, T. Responsibility to Understand. In: HEIDEN, G.-J. (ed.). Phenomenological Perspectives on Plurality. Leiden: Brill, 2014. p. 103-120.

GRONDIN, J. Einführung in die Philosophische Hermeneutik. Darmstadt: Wiss. Buges, 1991.

HAMMERMEISTER, K. Hans-Georg Gadamer. München: C. H. Beck, 2006.

HEIDEGGER, M. Gesamtausgabe – Band 19 – Platon: Sophistes [1924-25]. Frankfurt Am Main: Vittorio Klostermann, 1992.

HUANG, Y. Interpretation of the Other: A Cultural Hermeneutics. In: CHOUE, I.; LEE, S.; SANÉ, P. (ed.). Inter-regional Philosophical Dialogues: Democracy and Social Justice in Asia and the Arab World. Seoul: Unesco, 2006. p. 189-204.

LIDDELL, H. G.; SCOTT, J. An Intermediate Greek-English Lexicon (Greek Edition). 9. ed. Oxford: Oxford University Press, 1996.

LIMA VAZ, H. C. Platônica: Escritos de Filosofia VIII. São Paulo: Loyola, 2011.

O’BRIEN, D. Does Plato refute Parmenides? In: BOSSI, B.; ROBINSON, T. M. (ed.). Plato’s Sophist Revisited. Berlin; Boston: De Gruyter, 2013. p. 117-156.

PLATÃO. Platonis Opera, Vol. I – Euthyphro, Apologia Socratis, Crito, Phaedo, Cratylus, Theaetetus, Sophista, Politicus. Greek texts ed. by John Burnet. Oxford: Oxford University Press, 1905. (In 5 volumes).

PLATÃO. Plato in Twelve Volumes, Vol. 12 – Cratylus, Theaetetus, Sophist, Statesman. Translated by Harold N. Fowler. Cambridge: Harvard University Press; London: William Heinemann, 1921.

RISSER, J. Hermeneutics and the voice of the Other: re-reading Gadamer’s Philosophical Hermeneutics. New York: State University of New York Press, 1997.

ROHDEN, L. Hermenêutica filosófica: uma configuração entre a amizade aristotélica e a dialética dialógica. Síntese, v. 31, p. 191-212, 2004.

ROHDEN, L. Pressupostos e implicações éticas da metafísica dialética na Carta Sétima de Platão. Revista Archai: Revista de Estudos sobre as Origens do Pensamento Ocidental, n. 17, p. 13-35, 2016. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/archai/article/view/8677/7357. Acesso em: 02 out. 2020.

SCHMIDT, D. J. On the sources of ethical life. Research in Phenomenology, v. 42, p. 35-48, 2012. Disponível em: https://brill.com/view/journals/rip/42/1/article-p35_3.xml. Acesso em: 02 out. 2020.

SCHMIDT, D. J. O Texto e o Jardim: A leitura do Fedro de Platão sobre a Leitura e a Tarefa Ética da Hermenêutica. In: ROHDEN, L. (org.). Hermenêutica e Dialética: entre Gadamer e Platão. São Paulo: Loyola, 2014. p. 169-187.

SCHÖNHERR-MANN, H-M. Ethik des Verstehens; Perspektiven der Interpretation – Ein Überblick. In: SCHÖNHERR-MANN, H-M (hrsg.). Hermeneutik als Ethik. München: Wilhelm Fink, 2004. p. 181-205.

SELIGMAN, P. Being and Not-Being: An Introduction to Plato’s Sophist. The Hague: Martinus Nijhoff, 1974.

SMITH, P. C. The Ethical Dimension of Gadamer’s Hermeneutical Theory. Research in Phenomenology, v. 18, p. 75-91, 1988. Disponível em: https://brill.com/view/journals/rip/18/1/article-p75_5.xml. Acesso em: 02 out. 2020.

 

Recebido: 28/8/2019

Aceito: 22/9/2020


 

 



[1] O artigo contou com apoio de recursos do edital PQG 2017 e CNPq.

[2] Professor do Curso e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS – Brasil. Coordenador do PPG Filosofia e Pesquisador do CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6143-090X. E-mail: rohden@unisinos.br.

[3] Doutor em Filosofia e estágio pós-doutoral pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS – Brasil. Pesquisador Visitante DCR FAPEPI/CNPq na UFPI. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8876-8211. E-mail: leonardo.kussler@gmail.com.