DENNETT E CHALMERS: ARGUMENTOS E INTUIÇÃO
Gustavo LEAL-TOLEDO[1]
■ RESUMO: Chalmers e Dennett se encontram em lados opostos da discussão do problema da consciência. Para Chalmers, ela é um dado indubitável que não pode ser explicada em termos de outra coisa. Para Dennett, o que existe verdadeiramente são múltiplos julgamentos sobre nossa consciência. Cada um acusa o outro de circularidade. Isto só é possível porque a diferença entre estas duas teorias é verdadeiramente uma diferença de princípios. A mesma oposição que encontramos no aparato teórico encontramos também em suas pressuposições mais básicas e fundamentais. Este fato torna extremamente difícil escolher entre as duas ao mesmo tempo em que radicaliza a diferença entre elas. De um lado temos que argumentos podem refutar intuições, de outro temos que é preciso primeiro sondar nossas intuições para depois criar argumentos a partir delas. Entre um extremo e outro nos encontramos com o velho dilema de “o que vem primeiro?”. No entanto, mais importante do que escolher lados é mostrar o quanto é difícil escolher.
■ PALAVRAS-CHAVE: David Chalmers, Daniel Dennett, Qualia, Consciência, Zumbis, Eqüipolência.
O problema da consciência é abordado de inúmeras maneiras amplamente divergentes. Discute-se não só o que é a consciência como também como devemos estudá-la e até mesmo se ela existe ou não. Dentro desta discussão encontramos Daniel Dennett e David Chalmers em dois lados opostos e se acusando mutuamente. Ambos dizem que o outro sequer trata verdadeiramente do problema da consciência. Tal problema também foi chamado do problema das qualia, pois os termos qualia e consciência se confundem na filosofia da mente contemporânea. Ambos dizem respeito às experiências qualitativas e subjetivas que temos. A questão que será abordada aqui é o que é a consciência e como devemos estudá-la. Para isso serão apresentadas duas fortes teorias da filosofia da mente que se encontram em declarada oposição, a de Dennett e a de Chalmers. A divergência entre estas duas teorias é verdadeiramente uma divergência de princípios. No presente trabalho não será defendida uma teoria em detrimento da outra. O objetivo aqui visado é exatamente o oposto, o objetivo é mostrar o quão fundamentalmente difícil é escolher entre estas duas teorias.
Logo no início de seu livro The Conscious Mind, Chalmers deixa um de seus pressupostos bem claro, a saber, a consciência existe e deve ser levada a sério. Se alguém acha que a consciência é uma ilusão ou algo que simplesmente não existe, todo o resto dos argumentos apresentados não fará muito sentido. Levar a consciência a sério é um “divisor de águas” entre as teorias e não há meios e nem motivos para se tentar provar que a consciência existe. Segundo Chalmers “conhecemos a consciência mais diretamente do que conhecemos qualquer outra coisa e, por isso, nenhuma ‘prova’ seria apropriada” (Chalmers, 1996, pp.XII-XIII). Somos conscientes, sabemos disso, temos uma primeira noção do que é a consciência e devemos levá-la a sério. Os argumentos dele seriam justamente uma tentativa de fazer isso. O problema da consciência seria o chamado problema difícil em oposição aos problemas fáceis como, por exemplo, a questão da habilidade para categorizar e reagir a estímulos ambientais, da integração da informação através de um sistema cognitivo, etc. Tais problemas podem ser complicados, mas já teríamos ao menos uma idéia de como seria resolvê-los. Já o problema difícil exigiria uma solução tão nova quem nem sequer saberíamos como ela se pareceria.
Esta distinção entre estes dois problemas é importante porque a confusão entre os dois é comum. Assim, alguém pode começar questionando o problema da experiência qualitativa, mas acaba dando uma resposta sobre como um organismo consegue relatar seus estados internos. Esta pessoa começou com o problema difícil, mas deu a resposta de um problema fácil. Feita esta distinção abre-se o caminho para realmente tratarmos o problema difícil.
Chalmers nos mostra que a base do reducionismo e de todo o tipo de fisicalismo é a superveniência lógica dos estados qualitativos. Só assim podemos dizer que os fatos físicos implicam os fatos da consciência e esta, então, pode ser considerada como nada mais do que uma parte da física de nosso mundo. No entanto, a própria superveniência lógica o auxilia a refutar o materialismo, pois supervir logicamente significa supervir em todos os mundos possíveis. Se houver um mundo possível, fisicamente idêntico ao nosso, onde a consciência não supervêm, então, ela não supervêm logicamente nem naquele mundo nem no nosso. Quando isso acontece quer dizer que há algo no nosso mundo que garante tal superveniência e que este algo falta naquele mundo possível. Este algo são as leis que garantem a superveniência da consciência em nosso mundo, por isso tal superveniência é natural. Assim, a única coisa que temos que fazer para refutar o materialismo é pensar em um mundo fisicamente idêntico ao nosso só que sem estados qualitativos, um mundo zumbi. No entanto, se tal mundo for impensável ou contraditório, o materialismo não terá sido refutado.
Para deixar este argumento mais intuitivo podemos pensar o seguinte: considere um carro qualquer que tenha pneus e considere que estes pneus são físicos e fazem parte do carro. É impossível pensar e um carro fisicamente idêntico, partícula por partícula, a este carro, mas que não tenha pneus. Mas se pudermos pensar em um carro que é fisicamente idêntico a um carro com pneus, partícula por partícula, mas que não tem pneus, então estes pneus não são físicos. O mesmo acontece com os zumbis. Sé é possível pensar em um ser que, se comporta como um humano, funciona como um humano e tem exatamente a mesma estrutura física que um ser humano, mas não tem estados qualitativos, então estes estados qualitativos não podem ser nem o comportamento, nem o funcionamento e nem a estrutura física. Assim, para refutar o materialismo só precisamos saber se um ser fisicamente idêntico ao ser humano, mas sem estados conscientes, é concebível. Tal ser foi chamado de zumbi. Se um zumbi for concebível, tais estados conscientes não são físicos. É Chalmers quem nos diz que não consegue discernir nenhuma contradição no conceito de zumbi, ou seja, que zumbis são perfeitamente concebíveis.[2]
O importante aqui é ver que o papel do zumbi é um papel anterior a de toda e qualquer teoria. Primeiro devemos perguntar se um zumbi é concebível, depois devemos construir uma teoria que dê conta de tal resposta. Para Chalmers, as questões de possibilidade lógica são anteriores aos argumentos em geral.
O principal crítico dos zumbis é Daniel Dennett. Para Dennett, a única maneira séria de se tratar a mente é através do materialismo. O dualismo, de substância ou de propriedades, já teria sido descartado pelos avanços nas neurociências e na inteligência artificial. Além disso, Dennett é um funcionalista[3]. Estudar a mente seria, então, estudar o funcionamento do cérebro. A mente é o que o cérebro faz. Segundo Dennett, o estudo do cérebro nos mostra que não há nele um controle geral ou um lugar para onde tudo converge. A sua estrutura é, na verdade, a de vários grupos de neurônios trabalhando paralelamente, mesmo quando estamos fazendo algo simples como, por exemplo, observar uma figura colorida que se move. A pergunta que normalmente surgiria daí seria “como uma estrutura que funciona de maneira tão fragmentária pode dar origem ao fluxo contínuo da consciência que parecemos perceber?” E a resposta de Dennett foi inovadora, ele disse “ela não dá origem a tal fluxo”.
O mito do teatro cartesiano é como Dennett chama a teoria de que tal fluxo existe. É justamente tal mito que ele pretende derrotar. Quem acredita em tal mito acha que as experiências conscientes, nossa vida mental, acontecem em algum lugar, seja no nosso cérebro, seja em alguma substância mental. Para eles, a mente é como um palco interno por onde o fluxo da consciência passa. Seríamos, então, um observador que assiste a tal peça teatral. É como se houvesse em nosso cérebro uma tela onde nossas experiências fossem projetadas. Deste modo, quando observamos um quadrado azul que se movimenta da direita para a esquerda em um fundo amarelo, temos uma área do cérebro que percebe o azul, outra que percebe a forma do quadrado, outra que percebe o movimento e outra que percebe o amarelo. Mas também teríamos um lugar onde todo este processamento de informação converge, para então perceber um quadrado azul que se move em um fundo amarelo. Este lugar seria o lugar da consciência, seria o palco ou tela onde tudo se reúne, este seria o teatro cartesiano. O cérebro então deveria fazer sempre duas coisas: primeiro processaria a informação de cada coisa separadamente em suas respectivas áreas cerebrais e depois reuniria tudo para formar uma experiência consciente do conjunto. É o chamado problema da ligação (the binding problem). Só que não há no cérebro um lugar onde tudo se reúne ou onde tudo deve passar e, para Dennett, nem há necessidade de haver. Também não há necessidade alguma de toda a informação que já foi processada em áreas separadas do cérebro seja mais uma vez processada para se tornar uma experiência consciente, como se tudo tivesse que ser feito duas vezes.
Os detalhes da teoria de Dennett não são importantes para a presente discussão. Mas podemos perceber que, para o filósofo, não há um fluxo único da consciência, pois não há a reunião entre os diferentes circuitos especialistas. Cada circuito neural faz o seu diferente trabalho paralelamente aos outros circuitos e cada um cria seu próprio esboço que, na maioria das vezes, não terá muita importância. Mas alguns esboços deste pandemônio paralelo conseguem ter um papel funcional que vai comandar o comportamento de tal ser humano.
A cada momento vários esboços estão sendo criados e desenvolvidos, qual esboço será dito ou qual esboço comandará o comportamento depende de qual pergunta foi feita ou em qual situação a pessoa se encontra. A cada momento um esboço poderá ser mais forte do que o outro e nunca há o esboço que corresponda ao verdadeiro texto. Para deixar tal visão mais intuitiva, o que é extremamente difícil, podemos lembrar daquela situação comum onde só percebemos que estamos ouvindo um barulho quando ele para. Não poderíamos ter ouvido só depois dele ter parado, mas também não estávamos conscientes dele antes dele ter parado. Esta situação só é inusitada para quem acredita em um único fluxo da consciência. No modelo de Dennett, já tínhamos o circuito neural que estava criando o esboço sobre o barulho antes dele ter parado, ele só estava sendo muito pouco influente em nosso julgamento e nossa memória sobre o que estava acontecendo a nossa volta. O mesmo acontece quando só depois da, digamos, terceira batida de um sino, percebemos que ele está batendo, mas percebemos já sabendo que ele está na terceira batida. O esboço que estava contando estas batidas só estava tendo um papel muito pequeno a representar, o que muda depois da terceira batida do sino. Se alguém lhe perguntasse antes da terceira batida o que você estava fazendo, você poderia responder algo como “lendo”. Se alguém lhe perguntasse depois, você responderia “ouvindo o sino bater”. Assim Dennett pode dizer que “não há fatos fixos a respeito do fluxo de consciência que sejam independentes das sondagens particulares” (Dennett, 1991, p.138).
Tal teoria só poderia ter dado origem a uma maneira fundamentalmente diferente de tratar as qualia. Dennett foi inclusive considerado com alguém que não acredita nas qualia, o que não é exatamente verdade. O que ele diz é que isto que os filósofos, incluindo Chalmers, chamam de qualia, estas propriedades qualitativas intrínsecas, não existem. O que há são nossos julgamentos, nossas decisões, nossa memória, nossos pensamentos sobre as qualia e não as próprias qualia enquanto tais. Quando dizemos que ontem o céu estava um lindo azul não estamos nos referindo a uma propriedade qualitativa intrínseca de nossa mente e sim a uma memória de um julgamento. O que estamos dizendo é que lembro que ontem julguei que o céu estava um lindo azul. Assim, Dennett pode dizer:
Você parece achar que há uma diferença entre o pensamento (julgamento, decisão, defesa convicta) de que alguma coisa é rosa para você, e o fato de que algo realmente parece ser rosa para você. Mas não há diferença. Algo como “realmente parecer” não pode ser considerado um fenômeno para além do fenômeno de julgar de uma maneira ou de outra que algo é o caso. (idem, p.364)
Tal visão inovadora não passou despercebida. Chalmers considera que Dennett sequer tratou do problema difícil, para ele, Dennett só fez uma teoria da capacidade de reportar estados internos e comandar o comportamento (cf. Chalmers, 1996, p.114). Já Dennett diz que sua teoria é verdadeiramente uma teoria da consciência enquanto tal e explica tudo o que há para explicar sobre a consciência, pois “apenas uma teoria que explicasse os eventos conscientes em termos de eventos inconscientes poderia explicar a consciência” (Dennett, 1991, p.454). De outro modo, a teoria estaria pressupondo o que quer explicar. Assim, podemos dizer que Dennett estaria acusando teorias, como a que Chalmers posteriormente adotou, de circularidade. Elas pressuporiam certa noção de consciência para provar esta mesma noção de consciência.
Podemos notar claros sinais disso na própria obra de Chalmers. Como já foi dito, tal teoria só faria sentido para quem levasse a consciência a sério. Mas é claro que levar a sério aqui quer dizer levar a sério da maneira que Chalmers quer, pois com certeza Dennett não consideraria que não levou a consciência a sério em sua teoria. Assim Chalmers estaria pressupondo uma noção de consciência que daria no problema difícil e, posteriormente, no seu dualismo naturalista de propriedades. Por este motivo Chalmers chega a dizer, logo no começo de seu livro, que “o verdadeiro argumento do livro é que, se alguém leva a consciência a sério, deveria chegar à posição que exponho” (Chalmers, 1996, p.XII). Deste modo, podemos perceber o que poderia ser uma circularidade dentro do pensamento de Chalmers. Não chega a ser, então, uma surpresa descobrir que Chalmers chega a conclusão de que a consciência é uma entidade básica e primitiva de nosso mundo, que não poderia ser explicada em termos de outras entidades. A única coisa que poderíamos fazer é levá-la a sério. Ou seja, ele não explica a consciência, simplesmente a assume. Contra isso Dennett propõe uma teoria que tenta explicar a consciência por processos não conscientes. É claro que tal teoria só poderia nos dar uma perspectiva sobre os zumbis completamente diferente da de Chalmers. Falando sobre este tema, Dennett nos diz:
Algumas vezes, os filósofos agarram-se desesperadamente a hipóteses insuportáveis, correm até um penhasco, e atiram-se de cabeça. Então, como personagens de desenho animado, ficam parados no ar, até que percebem o que fizeram e a gravidade começar a funcionar. Isso aconteceu com os filósofos que adotaram o conceito de zumbi, uma noção estranhamente atraente que soma, em uma pilha só, quase tudo que eu acho que está errado no pensamento atual a respeito da consciência. (Dennett, 1995b, pp.322-3)
Dennett considera a discussão sobre zumbis verdadeiramente ridícula, uma vergonha para a filosofia. Foram expressões fortes como essas que o tornaram o principal rival não só dos zumbis, mas da própria discussão sobre os zumbis. Esta discussão, para Dennett, sequer deveria existir. Para ele, este é um conceito inútil com traços de antigos preconceitos.
No entanto, isto não quer dizer que a intuição (hunch)[4] dos zumbis não seja sedutora, mas o erro está em se deixar seduzir por tal intuição sem bons argumentos. O próprio Dennett afirma ser suscetível a tal intuição só que ele considera que argumentos são mais fortes que intuições (cf. Dennett, 1999). Do mesmo modo, parece que a Terra é chata e está parada, só que temos bons argumentos para mostrar que este não é o caso. Parece haver diferença entre algo em repouso absoluto e algo em movimento retilíneo uniforme, mas bons argumentos mostram que não há tal diferença. Também “ainda parece que estas teorias mecanicistas da consciência deixam algo de fora, mas isso, obviamente, é uma ilusão” (ibidem). Por mais sedutora que a intuição dos zumbis possa ser, teríamos bons argumentos para descartá-la.
Ao descartar os zumbis, Dennett está dizendo que não há este resíduo que sobra se compararmos um ser fisicamente idêntico a um ser humano comum, mas sem estados qualitativos, e um ser humano comum. Ou seja, não há diferença entre humanos e zumbis. Assim Dennett pode dizer:
Os zumbis são possíveis? Eles não são apenas possíveis, são um fato. Todos somos zumbis. Ninguém é consciente – não da maneira sistematicamente misteriosa que suporta doutrinas tais como o epifenomenalismo! Não posso provar que este tipo de consciência não existe. Também não posso provar que gremlins não existem. A melhor coisa que posso fazer é demonstrar que não há qualquer motivação respeitável para se acreditar nessas coisas. (Dennett, 1991, p.406)
Entretanto, o próprio Dennett também fala de um zumbi que seria “em princípio” indistinguível do homem, mas seria um verdadeiro zumbi. Para ele, dizer que zumbis poderiam ser em princípio indistinguíveis do ser humano, ou seja, dizer que zumbis físicos são logicamente possíveis, seria dizer que “a consciência é epifenomenal no sentido ridículo. Isso é simplesmente bobo” (idem, p.405). Podemos perceber então que Dennett, de certa forma, aceitou o argumento dos zumbis. Se zumbis físicos são possíveis a consciência é um epifenômeno. Isto é surpreendente! Temos aqui o principal crítico dos zumbis despercebidamente aceitando o argumento dos zumbis como um todo quatro anos antes de Chalmers ter escrito seu livro! Como já vimos, Dennett mesmo diz ser suscetível a intuição dos zumbis e esta é a prova de que estava falando a verdade. Só que, para Dennett, tal epifenomenalismo é simplesmente ridículo e inaceitável, pois a consciência não teria papel causal nenhum a representar e não poderia ter surgido dentro da evolução biológica. Como tal teoria não deve ser levada a sério, zumbis físicos não são possíveis. Desta forma, Dennett cumpre com o prometido, ele dá mais importância a um argumento contra o epifenomenalismo do que a intuição que nos leva aos zumbis.
A diferença com Chalmers se torna clara, pois este defende exatamente o oposto. Para Chalmers, primeiro temos que ver se zumbis físicos são concebíveis e só depois construir uma teoria que explique isso. Não só Dennett, mas Mulhauser (1998), Cottrell (1999), Kirk e muitos outros tem uma perspectiva crítica em relação aos zumbis. Mas Chalmers costuma dizer que tais críticas dependem das respectivas teorias de cada autor e que a questão dos zumbis deveria ser considerada antes das teorias, não depois. Aqui é Chalmers que tenta dizer que seus opositores sofrem de uma certa circularidade. Primeiro eles criam uma teoria e depois dizem que zumbis não são possíveis por causa de suas teorias. Mas, para Chalmers, se zumbis são concebíveis ou não é algo que deve ser pensado antes de se construir qualquer teoria. Deste modo, seus críticos estariam pressupondo o que estaria em questão, a saber, suas próprias teorias materialistas.
Temos, assim, dois filósofos na mesma direção, mas em sentidos opostos. Chalmers usa o argumento dos zumbis para provar o dualismo e Dennett usa a refutação do dualismo para refutar o argumento dos zumbis. Nada poderia deixar mais clara as diferenças e disputas entre estes dois filósofos do que isso. Um diz que devemos levar a consciência a sério e, fazendo isso, concluímos que zumbis são possíveis, logo o materialismo é refutado. O outro diz que devemos levar os argumentos contra o dualismo a sério e, por isso, zumbis não são concebíveis. Um diz que devemos primeiro olhar para nossas intuições fundamentais e primitivas e depois construir teorias a partir destas intuições. O outro diz que por mais cativantes que estas intuições possam ser, elas podem ser refutadas por bons argumentos. Os dois se acusam mutuamente de pressupor o que devem explicar. Acusações facilmente compreensíveis, já que o lugar da premissa de um é o lugar da conclusão do outro e vice-versa. Eles estão, literalmente, em oposição. É como se, neste caso, uma teoria fosse a outra lida de trás para frente.
De um lado, Chalmers poderia dizer que mesmo argumentos que visam refutar certas intuições primitivas estão baseados em outras intuições primitivas e, deste modo, as intuições vêm sempre antes dos argumentos. De outro lado, Dennett poderia dizer que não há uma intuição pura, separada de toda e qualquer teoria, que as intuições só aparecem dentro de uma determinada estrutura conceitual. A questão é “o que vem primeiro: teorias ou intuições?”. É uma verdadeira diferença de princípio no sentido literal, elas começam de pontos divergentes. Se a diferença é de princípio a questão deve ser “qual princípio devemos escolher para começar a nossa discussão?”. Mas o problema com diferenças de princípio é que para responder esta questão nós já temos que ter iniciado de algum ponto. Se já iniciamos é porque a questão já foi resolvida de algum modo que nós mesmos não sabemos qual foi. Não há um início antes do início. Nos encontramos, então, como o burro de Buridan, destinados a morrer de fome e sede, pois não conseguimos descobrir o que é mais fundamental naquele momento: beber ou comer.
O dilema aqui apresentado se aprofunda ainda mais, pois se chegarmos a conclusão que não temos critérios externos para escolher entre estas duas teorias estaríamos concordando com Dennett, uma vez que diríamos que não há nada externo a uma determinada teoria que possa nos permitir escolher entre uma e outra. Deste modo, as teorias viriam antes das intuições. Não existiria uma intuição básica, um ponto arquimediano, que servisse como critério irrefutável. Por isso mesmo poderíamos, como quer Dennett, usar um argumento para refutar uma intuição, não importando o quão fundamental ela pareça ser. Intuições seriam partes internas de teorias. Mas, se chegarmos a conclusão de que é possível escolher imparcialmente uma teoria, estaríamos concordando com Chalmers, pois estaríamos dizendo que há intuições anteriores a toda e qualquer teoria na qual deveríamos fundamentá-las ou que ao menos serviriam como critério para escolher entre duas teorias. Para Chalmers, este é exatamente o caso do argumento dos zumbis. O fato de que somos inegavelmente conscientes e de que podemos pensar em zumbis seria uma intuição anterior a toda teoria e que deveria servir como ponto de apoio para a escolha da teoria correta. Posto este dilema chegamos ao limite de não conseguir sequer escolher entre escolher e não escolher!
Assim a separação entre Dennett e Chalmers se apresenta com toda a força e o dilema está plenamente posto. A discussão racional termina diante de tal eqüipolência. Uma pessoa que ache que um certo conceito de consciência é um dado primário, imediato e irrefutável, tenderá a concordar com Chalmers. Alguém que ache que a consciência pode ser explicada em termos de outra coisa, tenderá a concordar com Dennett. O fato de que é possível passar de um lado para o outro é comprovado por casos como o do próprio criador do conceito filosófico de zumbis, Robert Kirk, que começou defendendo os zumbis e agora é um de seus maiores críticos (cf. Kirk, 1974a e 1974b para a defesa, e Kirk, 1999 para a crítica). No entanto, o que realmente faz com que uma pessoa em particular concorde com uma coisa ou outra é algo para o qual não tenho respostas.
■ ABSTRACT: Chalmers and Dennett are at opposite sides of the debate on the problem of conciousness. For Chalmres, conciousness is an unquestionable fact that cannot be explained by something else. For Dennett, what exists is really multiple judgements about our conciousness. Each author accuses the other of circularity. This is only possible because the difference between the two theories is actually a difference of principles. The same opposition that we find in their theoretical apparatus we also find on their more fundamental and basic premises. This feature .makes it very difficult to choose one of the two theories, while it also radicalizes the difference bewteen them. On one side we have arguments that can refute intuitions, on the other we find that that one must first scrutinize our intuitions to then create arguments based on them. Between the two extreems we meet with the old dilemma of “what came first?”. However, more important than to choose sides is to show how difficult the choice is.
■ KEYWORDS: Chalmers; Dennett; Qualia; Consciousness; Zombis; Equipolence.
CHALMERS, D.H. The Conscious Mind. Oxford: Oxford University Press, 1996.
COTTRELL, A. “Sniffing The Camembert: On the conceivability of zombies”. Journal of Consciousness Studies, v. 6, p. 4–12, 1999.
DENNETT, D.C. “Consciousness Explained”. Boston: Little, Brown and Company, 1991.
________. “The Unimagined Preposterousness of Zombies: Commentary on Moody, Flanagan, and Polger”. Journal of Consciousness Studies, v.4, p. 322-28, 1995.
________. “The Zombic Hunch: Extinction of an Intuition?”. In: Royal Institute of Philosophy Millennial Lecture. 28 nov. 1999. Disponível em http://ase.tufts. edu/cogstud/papers/zombic.htm <Acesso em 3 jan. 2004>.
LEAL-TOLEDO, G. O Argumento dos Zumbis na Filosofia da Mente: são zumbis físicos logicamente possíveis? 2005. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
MULHAUSER, G.R. Mind Out of Matter. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1998.
KIRK, R. “Zombies vs materialists”. Aristotelian Society Supplement, n. 48, p.135-52, 1974.
________. “Sentience and behaviour”. Mind, n. 81, 1974a, p.43-60.
________. “Why there couldn't be zombies”. Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary Volume 73, p.1-16, 1999.
[1] Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro-PUC-RJ sob orientação de Sérgio Luiz de Castilho Fernandes e com auxílio do CNPq. Artigo recebido em set/06 e aprovado para publicação em nov/06.
[2] Tratei com mais abrangência esta questão em minha Dissertação de Mestrado: LEAL-TOLEDO, 2005.
[3] Cabe aqui notar que, no que diz respeito a mente, excetuando-se a consciência, Chalmers também é um funcionalista.
[4] O termo hunch é de difícil tradução, pode significar um palpite ou uma crença intuitiva em algo.