PROPEDÊUTICA DO CONCEITO DE DEMOCRACIA

 

Luis Uribe Miranda[1]

 

Resumo: O presente artigo parte da caracterização da filosofia como migração e desterritorialização, tendo como fio condutor o conceito de democracia. Para tal, realizou-se uma propedêutica não exaustiva do conceito, mostrando a plurivocidade semântica adquirida em diferentes momentos da história da filosofia. Após as críticas do conceito de democracia liberal de Norberto Bobbio, abre-se a possibilidade para pensar a democracia a partir das análises de Roberto Esposito. Contudo, a tese de Roberto Esposito segundo a qual a comunidade é uma ausência, uma falta, um nada do nada, permite pensar que a democracia, ao menos na primeira fase do pensamento do filósofo italiano, também se caracteriza por essa falta, mas que, ao mesmo tempo, é justamente nela que habita a sua possibilidade de se manifestar como uma democracia por vir.

Palavras-Chave: Migração. Desterritorialização. Democracia. Roberto Esposito. Comunidade/Imunidade.

 

INTRODUÇÃO

A filosofia política italiana, como atestam as publicações a esse respeito, nos últimos anos, tem se mostrado muito fecunda e pertinente para pensar, tanto a política quanto a condição da democracia, na época contemporânea.[2] Uma filosofia política que, através de uma revisão dos conceitos e categorias filosóficas para pensar o político, tem revelado certos pontos problemáticos e aberto novos caminhos, interpretações e ressignificações de conceitos que nos permitem pensar a condição de nossas sociedades, num mundo que, ao mesmo tempo que defende a democracia, é capaz de limitar a vida e impor, algumas vezes pela força, suas visões de mundo.

O conceito de democracia e a sua semântica dentro da filosofia política, assim como o conceito de filosofia como migração e desterritorialização e suas relações com a comunidade, é o que interrogamos neste escrito. Ora, que a filosofia possui um caráter migratório, isto é, que se tem cultivado e desenvolvido para além das fronteiras na qual surgiu originariamente, em outros territórios e culturas, parece uma tese que pode ser compartilhada sem grandes dificuldades (JARA, 2011, p. 126-127). A maior parte das chamadas filosofias nacionais, particularmente na contemporaneidade, evidencia essa característica de migração e desterritorialização que as permeiam e, fruto desse entrecruzamento, consegue se desenvolver. Uma prova dessa desterritorialização e migração são as filosofias francesa e italiana (FERRAZ, 2017, p. 147-148), as quais, por sua vez, tornam patente a problematicidade do uso do termo filosofias nacionais, em um contexto de desterritorialização da filosofia.

A desterritorialização da filosofia, ou melhor, a dialética territorialização- desterritorialização, implica uma terra, mas que não pode ser compreendida como a fixação de uma raiz étnica ou antropológica; se assim fosse, ela seria só um polo da dialética. Roberto Esposito, no livro Pensiero vivente, originalmente publicado em 2010, interpreta a questão nos seguintes termos:

[…] il riferimento de Deleuze alla terra non rimanda alla fissità di un quadro immobile nel tempo, alla ineluttabilità di una radice etnica o anche solo antropologica. Al contrario implica una dialettica complessa di cui il territorio non è che uno dei due poli, cui corrisponde sempre un movimento, contrario e simultaneo, di deterritorializzazione, cioè di rottura dei confini territoriali e di estroflessione verso l’esterno. Fuori di tale oscillazione – dal doppio impulso dal centro alla periferia e viceversa – non si dà vera filosofia. (esposito, 2014, p. 18).[3]

 

A desterritorialização, como movimento contrário e simultâneo à territorialização, segundo Esposito, será esse processo de voltar-se para o externo e fazer acontecer uma verdadeira filosofia. Nesse sentido, a verdadeira filosofia, como o fruto de um processo de desterritorialização, não coincide com a nação. No exemplo da filosofia italiana, seguindo o raciocínio de Esposito, isso vale, sobretudo, pelo fato de que ela surge antes dos chamados estados nacionais na modernidade, gerando uma condição de longa ausência (ESPOSITO, 2014, p. 26). Assim, a filosofia, como migração e desterritorialização, põe em questão a tese segundo a qual a filosofia é um proprium, uma propriedade nacional, mostrando os riscos de um nacionalismo filosófico.

O conceito de democracia, submetido à reflexão filosófica, tem um destino similar ao da filosofia. A desterritorialização da democracia, tanto na sua versão grega clássica quanto na moderna e contemporânea, aparece evidente após o fenômeno da globalização, que coincide com o processo no qual a comunidade acontece como um nada em comum, como uma relação caracterizada pela falta de um lugar comum. Em outras palavras, desenvolveremos a tese de que a filosofia se caracteriza pela sua condição de migração e desterritorialização, o que significa que, se aceitarmos a tese de Roberto Esposito, para a qual a comunidade é uma ausência, uma falta, um nada do nada, então podemos pensar que a democracia, ao menos na primeira fase do pensamento de Esposito, também se caracteriza por essa falta, mas que, ao mesmo tempo, é justamente nessa falta que habita a sua possibilidade de se manifestar como uma democracia imprópria, ou seja, não compreendida em seu sentido de propriedade privada de uma determinada comunidade.

A propedêutica do conceito de democracia, a partir de uma metodologia de hermenêutica de textos, pretende, de maneira não exaustiva, explicitar as diferentes semânticas que o conceito democracia adquire, em diferentes momentos históricos, com o escopo de evidenciar a sua plurivocidade. Levando em consideração a origem grega do conceito democracia, parece-nos pertinente fazer um percurso demonstrando a crítica de Aristóteles e, desse modo, realçar a multiplicidade de sentidos que a democracia tem, mesmo para os gregos. Faremos também uma passagem pela crítica do filósofo italiano do direito Norberto Bobbio, para quem as promessas da democracia liberal têm presente a imperfeição do sistema democrático liberal que, na prática, pode favorecer aos que possuem o poder econômico e, também, privilegiar a grupos sociais em detrimento de outros, gerando inequidade social. Por último, destacaremos a crítica do filósofo italiano Roberto Espósito, em dois momentos. Em primeiro lugar, mostraremos a análise sobre o conceito de democracia, a partir de um texto da sua primeira fase de pensamento, e, em segundo lugar, apresentaremos a vinculação desse conceito com o de comunidade, da segunda fase do pensamento de Esposito, a fim de salientar uma leitura positiva do niilismo, a qual pode remeter a pensar a democracia como aquela por vir.

 

1 SEMÂNTICAS DO CONCEITO DE DEMOCRACIA

Democracia pertence a esse conjunto de palavras que, por força do uso, acaba tendo múltiplos significados, os quais, em alguns casos, podem ser contraditórios. Os diferentes empregos da palavra, na época contemporânea – e não poderia ser de outro modo –, não guardam relação direta com sua origem grega. Nesse sentido, a semântica do conceito de democracia não exaustiva, que apresentamos a seguir, não tem como escopo uma volta romântica para outras épocas históricas, com o intuito de encontrar seu sentido originário; ao contrário, trata-se de expor os diversos sentidos e significados que a palavra democracia adquire, através do tempo, e que podem nos servir para repensar ou ressignificar seu uso, na filosofia política contemporânea.

 

2 A SEMÂNTICA GREGA

Para os gregos, o primeiro sentido da palavra democracia não é aquele que o caracteriza como o governo do povo, de acordo com o uso comum que os conceitos de povo e democracia terão, na modernidade. Segundo Luciano Canfora (2013, p. 1-2), Heródoto conta o debate suscitado entre os nobres persas, por volta dos anos 522/521 a.C. (ao menos 10 anos antes das reformas de Clístenes), sobre a melhor forma de governo; entre elas, estaria a tentativa de instituir, na Pérsia, a democracia. Essa tentativa foi proposta pelo nobre persa Otanes e consistia em uma volta para o costume da “igualdade”, que tinha vigorado na antiguidade persa. A tentativa fracassou, mas Otanes obteve um estatuto especial de independência para seus descendentes (CANFORA, 2013, p. 3).

Logo, mesmo que essa experiência persa fracassasse, ela poderia ser compreendida como uma protodemocracia, pois põe em relação dois elementos típicos da ação política grega: a independência (entendida como soberania plena) e a democracia. Mas, na Atenas clássica, a democracia se diz com relação à questão da cidadania, ou seja, enquanto comunidade de homens de armas. Com efeito, o termo democracia deriva da palavra grega Demokratìa, composta de dèmos (povo) e kràtos (poder e superioridade na força física). É oportuno lembrar que, na pólis grega, ser cidadão implicava, também, ser guerreiro, estar preparado fisicamente para defender a pólis numa guerra. Eis, pois, o sentido grego de kràtos como poder e superioridade física dos homens de armas. Por conseguinte, a democracia não se diz de todos os que moram em Atenas, contudo, só dos cidadãos atenienses, os homens de armas, livres e dos estratos sociais nobres.

O segundo sentido de democracia grega era aquele da interpretação que os nobres faziam desse tipo de governo: o governo ou poder do povo. Todavia, não tinha o sentido moderno do termo. A democracia era o poder dos despossuídos, no sentido pejorativo de povo, como pobres e sem patrimônio (CANFORA, 2013, p. 10).

Um terceiro sentido é aquele que Tucídides (2001, p. 109) põe na boca de Péricles (V século), no nº 37 do Livro II da História da Guerra do Peloponeso, a famosa oração fúnebre:

Vivemos sob uma forma de governo que não se baseia nas instituições de nossos vizinhos; ao contrário, servimos de modelo a alguns ao invés de imitar outros. Seu nome, como tudo, depende não de poucos, mas da maioria, é democracia. Nela, enquanto no tocante às leis todos são iguais para a solução de suas divergências privadas, quando se trata de escolher (se é preciso distinguir em qualquer setor), não é o fato de pertencer a uma classe, mas o mérito, que dá acesso aos postos mais honrosos; inversamente, a pobreza não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à cidade, seja impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua condição. Conduzimo-nos liberalmente em nossa vida pública, e não observamos com uma curiosidade suspicaz a vida privada de nossos concidadãos, pois não nos ressentimos com nosso vizinho se ele age como lhe apraz, nem o olhamos com ares de reprovação que, embora inócuos, lhe causariam desgosto. Ao mesmo tempo que evitamos ofender os outros em nosso convívio privado, em nossa vida pública nos afastamos da ilegalidade principalmente por causa de um temor reverente, pois somos submissos às autoridades e às leis, especialmente àquelas promulgadas para socorrer os oprimidos e às que, embora não escritas, trazem aos transgressores uma desonra visível a todos.

 

Na oração de Péricles, segundo Tucídides, a democracia é um modelo de governo para os outros povos que consiste no governo da maioria, onde todos são iguais perante a lei, o mérito é o critério para aceder aos postos importantes, a pobreza não é empecilho para servir a cidade e na vida pública se age livremente, afastando-se das ilegalidades, pois são submissos às autoridades e às leis para socorrer os oprimidos.

O expresso por Péricles, segundo Tucídides, dá conta das reformas de Clístenes, que tinha implementado algumas leis em Atenas, caracterizando a democracia: a) implementou a assembleia popular (Ekklesía), b) instaurou a isonomia (igualdade perante a lei), seguindo com esse o feito pelo Arconte Sólon, o qual, por sua vez, com a tentativa de equilibrar a disputa entre os ricos oligarcas e os pobres, com a eunomia ou boa lei, aboliu a escravidão por causa de dívidas e reformou as unidades de peso e medidas (critério para a divisão das terras e, desse modo, determinar as classes sociais conforme a terra e a produção de grãos), favorecendo aos pobres e equilibrando socialmente a Pólis, questão não isenta de críticas pela oligarquia e aristocracia.

Das reformas de Clístenes deriva a ideia da democracia direta, pois os cidadãos de Atenas (excluídos escravos, mulheres e estrangeiros) reuniam-se em assembleia na Àgora para discutir publicamente os assuntos da Pólis e tomar decisões por meio do voto público. Os cidadãos que participam das assembleias são pagos pela sua função pública. Embora a democracia, em termos políticos, fosse considerada um acontecimento positivo, no âmbito da filosofia, ela permaneceu sendo pensada em termos negativos.

 

3 PRIMEIRA PASSAGEM: A CRÍTICA DE ARISTÓTELES

Como sabemos, Aristóteles, no livro I da Política, considera que toda Pólis ou cidade é uma koinonía ou comunidade (2019, 1252a1, p. 29). Segundo o estagirita, koinonía é uma comunidade de casas, ou melhor, de famílias que por natureza existem. Dessa maneira, a primeira comunidade é a família (2019, 1252b10, p. 31), que, por sua vez, é a base da comunidade política ou Pólis. Isto é possível, porque o homem por natureza é um animal político (2019, 1253a5, p. 33).

No livro VI da obra supracitada, Aristóteles realizou uma análise da democracia como forma de governo. Partindo da afirmação de que a origem das formas de governo, entre elas a democracia, é o acaso (2019, 1316b35, p. 257), Aristóteles (2019, 1317a40, p. 258) afirma que “[...] o fundamento do governo democrático é a liberdade.” Mas, para o estagirita, “[...] é próprio do conceito de liberdade uma parte governar e ser governada [por períodos].” (2019, 1317b1, p. 259), seguindo o afirmado nos primeiros livros dessa obra, segundo o qual a escravidão é de natureza e o homem livre pode governar escravos e participar da coisa pública. Nesses termos, Aristóteles (2019, 1317b1, p. 259) introduz o conceito de justiça junto ao de igualdade como central na democracia, a fim de se obter a soberania: “[...] a justiça democrática tem a igualdade como princípio, que existe conforme o número, mas não conforme o mérito, e porque isso é justo, é necessário que o povo seja soberano.” A referência de Aristóteles à questão do número, que também aparece na oração de Péricles como sinônimo de democracia, tem relação com a maioria e com os pobres, pois o que é bom para a maioria é o justo na democracia e garante a igualdade entre os homens (2019, 1317b5, p. 259). Aristóteles (2019, 1317b5-10, p. 259) lembra que, “[...] nas democracias, acontece de os pobres serem mais soberanos que os ricos; pois são em maior número, e a opinião que a maioria tem é soberana.”

Por outra parte, uma segunda característica da democracia (a primeira é a liberdade), segundo Aristóteles (2019, 1317b10, p. 259), “[...] é viver como se quer”, ou seja, viver liberalmente, como dizia Péricles, e eleger seus magistrados. Assim, no trilho de Aristóteles (2019, 1317b15-30, p. 259-260), a democracia tem as seguintes características: a) eleger todas as magistraturas, b) todos governam, c) as magistraturas são eleitas por sorteio, d) as magistraturas não são próprias dos que pagam impostos mais altos e também não dos que pagam pouco, e) que o mesmo homem não exerça a magistratura duas vezes, f) que as magistraturas sejam exercidas por pouco tempo, g) que todos os cidadãos exerçam a justiça, h) que a assembleia seja soberana sobre todos os assuntos e i) que nenhuma magistratura seja soberana sobre nada.

Uma vez esclarecidos os fundamentos e as caraterísticas da democracia, Aristóteles realiza a sua crítica. Primeiro, contrapõe democracia a oligarquia. De acordo com Aristóteles (2019, 1317b35-40, p. 260), “[...] a oligarquia se define pela linhagem, pela riqueza e pela educação, as caraterísticas democráticas parecem ser contrárias a isso, sem linhagem, pobreza e trabalho manual”, o que, na sua visão, compromete a aplicação da justiça, pelo fato de a participação em assembleias, conselhos, magistraturas ser paga, pois os pobres necessitam do dinheiro para pagar as suas refeições. Em segundo lugar, ainda sobre a questão dos pobres, critica o conceito de igualdade por maioria. Escreve Aristóteles (2019, 1318a5-10, p. 260): “[...] pois igualdade é que os pobres não governem mais que os ricos, nem sejam os únicos soberanos, mas todos igualmente conforme o número; pois assim poderia se considerar que nessa forma de governo existe igualdade e liberdade.” Na mesma linha de raciocínio, Aristóteles (2019, 1318b5, p. 262) afirma que “[...] os mais fracos sempre buscam a igualdade e a justiça, enquanto os mais fortes não se preocupam com nada disso”, fazendo uma relação com a oligarquia como sendo o seu contrário.

Contudo, o cerne da crítica de Aristóteles à democracia concentra-se no conceito de justiça. Para o estagirita (2019, 1317b1, p. 259), “[...] a justiça democrática tem a igualdade como princípio, que existe conforme o número, mas não conforme o mérito.” A justiça por número é chamada de aritmética, ou seja, pela quantidade (maioria), enquanto a justiça por mérito é chamada geométrica ou de proporção. A justiça por proporção é analógica para Aristóteles, procurando uma medida entre a aritmética da maioria pobre da democracia e a aritmética da minoria rica da oligarquia. Essa é a razão pela qual Aristóteles se voltava sobre a questão do mérito. Assim escreveu:

Portanto, essa forma de governo é a mais justa de acordo com a justiça democrática, ou mais de acordo com o número? Pois os democráticos dizem que isso é justo, o que parece bom à maioria, enquanto para os oligárquicos, é o que parece bom a maioria rica; pois dizem que se deve julgar de acordo com a quantidade da riqueza. (ARISTÓTELES, 2019, 1318a15-20, p. 261).

 

A contraposição entre democracia e oligarquia, como polos extremos entre formas de governo, se centra na questão da justiça, dado que a justiça como igualdade, para Aristóteles, geraria desigualdades e injustiças. Nas palavras dele (2019, 1318a20-25, p. 261): “E ambas as noções do que é justo contém desigualdade e injustiça; pois se é o que parece bom à minoria, isso é uma tirania […], se é o que parece bom à maioria numérica, cometeram injustiças ao confiscar as propriedades dos ricos, que também são a minoria, como foi dito antes.” A justiça, para Aristóteles, nesse sentido, não acontece nem na democracia, nem na oligarquia; nem a justiça numérica ou aritmética, todavia, na justiça por mérito ou analógica, porquanto meia entre os extremos. A justiça como justa medida, a proporção, é uma virtude que poderia instaurar a felicidade da Pólis sob a forma de aristocracia.

 

4 AS SEMÂNTICAS POSTERIORES

Na época latina, a palavra democracia não aparece, embora, no livro De Republica, Marco Túlio Cícero, seguindo os clássicos gregos e em particular Platão, faça uma distinção entre as Civitas popularis. Uma seria uma forma de governo livre e justa e, na outra, governaria a licença e a parte economicamente mais fraca da população (CHIGNOLA, 2005, p. 206). Na época medieval, por sua vez, a palavra democracia não aparece no vocabulário jurídico e político institucional, mesmo que tenha circulado entre os doutos e se tornado um lugar comum das análises filosófico-literárias, as quais, na sua maioria, replicam as análises dos gregos e, em particular, de Platão e Aristóteles, onde a democracia tem o sentido de um sistema de governo constitucional antigo (CHIGNOLA, 2005, p. 206). Nessa perspectiva, o conceito de democracia, nas épocas latina e medieval, que muitas vezes não aparece, continua a ter um sentido negativo, dada a forte influência do pensamento platônico nas análises dessas épocas. É preciso esperar até o século XVIII, para que o conceito de democracia ganhe relevância política no modo como a conhecemos em nossos tempos.

Dois são os termos da tradição romana que, ao entrelaçar-se com o de democracia, marcarão o destino moderno desse conceito. Primeiro, o conceito de Soberania popular ou Traslatio imperii da lei ulpiana,[4] segundo a qual é o povo, o detentor originário da soberania popular, a conferir o poder ao príncipe. Segundo, o conceito de república como a forma constitucional da democracia, em oposição ao poder monocrático do monarca tal e como aparece no livro I, nº 58, dos Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, de Maquiavel. Diz o secretário florentino:

Conchiudo, adunque, contro alla comune opinione; la qual dice come i popoli, quando sono principi, sono varii, mutabili ed ingrati; affermando che in loro non sono altrimenti questi peccati che siano ne’ principi particulari. Ed acusando alcuno i popoli ed i principi insieme, potrebbe direi l vero; ma traendone i principi, s’inganna: perché un popolo che comandi e sia bene ordinato, sarà stabile, prudente e grato non altrimenti che un principe, o meglio che un principe, eziandio stimato savio: e dall’altra parte, un principe, sciolto dalle leggi, sarà ingrato, vario ed imprudente più che un popolo [...] come fece Roma dopo la cacciata de’ re, ed Atene da poi che la si liberò da Pisistrato. Il che non può nascere da altro, se non che sono migliori governi quegli de’ popoli che quegli de’ principi. (MAQUIAVEL, 2018, p. 450-451).[5]

 

Logo, soberania popular e república mostram o caráter de titularidade da primeira e o exercício de soberania da segunda: as chamadas formae imperii (titularidade da soberania) e formae regiminis (exercício da soberania), conforme o teórico do absolutismo Jean Bodin (1530-1596), no seu livro Os seis livros da república de 1576 (BODIN, 1986). Mesmo assim, o conceito de democracia, ainda nos primórdios da modernidade, permanece sendo usado na linguagem culta e fora da realidade social.

No século XVIII, o conceito de democracia se transforma no modo de expressão do caráter político do homem, na contraposição entre República e Monarquia. Essa virada, teorizada por Fauchet, em 1791 (CHIGNOLA, 2005, p. 206) e Jean-Jacques Rousseau, no Contrato Social de 1762, marcará o caráter positivo do termo democracia com os Jacobinos, para os quais, independentemente se é direta ou representativa, a democracia é a expressão da sociabilidade ou caráter político do homem como virtù pública ou, nas palavras de Robespierre, do amor da igualdade (CHIGNOLA, 2005, p. 206). Depois da Revolução Francesa, com o fim do experimento político-democrático dos Jacobinos, o caráter positivo do termo democracia começa um declínio até que, em 1848, será associado ao terror, particularmente nos territórios anglo-saxões do continente americano.

Os processos de constitucionalização do poder e a estabilização das instituições representativas no século XIX, particularmente nas repúblicas do continente americano, permitirão a retirada do conceito de democracia do repertório político-linguístico jacobino e a sua instalação no vocabulário jurídico, sob a forma de Estado de direito, de matriz liberal, como sinônimo de soberania popular. A democracia jacobina cede seu posto para a democracia liberal, a qual, por sua vez, deixa para trás o conceito de democracia direta e instala o conceito de democracia representativa, com fundamento no liberalismo.

Dessa maneira, segundo Chignola, o conceito de democracia liberal elimina paulatinamente a) a permanência da democracia pura ou direta, b) a conexão necessária com os pequenos estados e as formações sociais simples e c) a contraposição tradicional com os ordenamentos aristocráticos ou monárquicos (2005, p. 207). A partir das elaborações de Benjamin Constant, André de Tocqueville e John Stuart Mill, o conceito de democracia se entrelaça com as instituições representativas do Estado liberal. Nessa visão de democracia liberal, a participação no poder está assegurada pelos Direitos políticos, porém, o direito de fazer as leis não é competência do povo, reunido em assembleia como na antiga Grécia, porém, de um corpo restrito de representantes eleitos pelos cidadãos através do voto: eis o nascimento, no Estado liberal, da democracia indireta, representativa ou parlamentar. Isto é, que o povo, em condições de igualdade e reconhecimento constitucional dos seus rituais fundamentais, exercita o poder soberano, através de seus representantes.

Na concepção liberal de democracia, a participação no poder está garantida pelos direitos políticos. Nas palavras de Norberto Bobbio (2018, p. 38-39),

[...] os direitos à base dos quais nasceu o Estado liberal e foi construída a doutrina do Estado de direito em sentido forte; isto é, do Estado que não apenas exerce o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos “invioláveis” do indivíduo [...] Disto segue que o Estado liberal é o pressuposto não só histórico, mas jurídico do Estado democrático. Estado liberal e Estado democrático é interdependente [...] Em outras palavras: é pouco provável que um Estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que um Estado não democrático seja capaz de garantir as liberdades fundamentais.

 

Desse modo, na medida em que o Estado liberal se afirma, a democracia se torna uma caraterística fundamental da legitimidade das instituições políticas, e a liberdade, cerne do liberalismo, um direito fundamental para a participação política. Entretanto, o conceito de democracia como representação e a liberdade como um direito geram uma ampliação dos direitos civis e políticos: a) o sufrágio universal, b) o voto feminino e c) o aumento dos representantes nos órgãos de governo ou de carga eletiva (Senado, Câmara dos deputados, Presidente da República e entes locais). A democracia, por conseguinte, não tem um valor em si mesma e pode, certamente, ser considerada um procedimento ou um conjunto de regras formais, ou técnicas, como Weber, Kelsen e Schumpeter afirmam, criticando o conceito naturalístico de democracia como um valor in se.

Na segunda metade do século XIX, a palavra democracia cada vez mais vai adquirindo o sentido de igualdade social, que, ao mesmo tempo, se expressa no princípio constitucional da igualdade dos cidadãos e que vai dar lugar aos chamados direitos sociais, como a saúde, habitação, condições de trabalho e segurança social dos indivíduos. Surge, por conseguinte, o conceito de democracia social, que liga os movimentos sociais com a democracia e se torna de uso comum, para formular a crítica radical do conceito de democracia puramente política e burguesa, institucionalizado a partir da raiz liberal. Essa extensão do conceito de democracia aos movimentos sociais, tanto na versão filosófico-utopista quanto no modelo da organização constitucional do poder, serviu para indicar uma forma política de democracia direta, na qual o povo, uma vez abolida a propriedade privada e a exploração do trabalhador, toma o controle coletivo dos meios de produção – questão verificada na Comuna de Paris e na revolução bolchevique, na Rússia, e que desembocará numa crítica radical do conceito formal de democracia subjacente nos sistemas liberais.

Com base nessas conquistas sociais, o conceito de democracia se torna, durante o século XX, o elemento irrenunciável de todo e cada movimento político. Tanto os movimentos liberais, socialistas, conservadores, quanto os católicos ou de uma outra confissão religiosa, todos sem exceção, se autodefinirão democráticos. A razão dessa autodefinição radica em compreender a democracia não como uma ideologia, porém, como um conjunto de regras procedimentais de validade universal para a constituição dos governos, dos acordos e das decisões políticas vinculantes para toda a comunidade. Trata-se de uma definição mínima das regras do jogo político democrático. Nas palavras de Norberto Bobbio (2018, p. 35),

[...] o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos [...] Por isto, para que uma decisão tomada por indivíduos (um, poucos, muitos, todos) possa ser aceita como decisão coletiva é preciso que seja tomada com base em regras (não importa se escritas ou consuetudinárias) que estabeleçam quais são os indivíduos autorizados a tomar as decisões vinculatórias para todos os membros do grupo, e à base de quais procedimentos.

 

A definição das regras mínimas do jogo político democrático permitiu a configuração definitiva, quer do ponto de vista material (o reconhecimento dos direitos), quer formal (conjunto de regras), do conceito de democracia política moderna e possibilitou que doutrinas políticas antinômicas e antagônicas pudessem coexistir e conseguir acordos políticos.

Na teoria política contemporânea, o conceito de democracia é o ponto de partida de toda ação política possível, a ponto de tornar-se um marco axiomático do agir e do pensamento político. No entanto, na segunda metade do século XX, após os nefastos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, a democracia poderia estar caracterizada do seguinte modo: por um lado, a democracia aparece com um marcado acento normativo, isto é, como um conjunto de universais procedimentais genéricos, aceites, inclusive com ênfases morais, como regras do jogo democrático na democracia dos proprietários, segundo John Rawls[6] ou, como um modo de expressão ou comunicação, no caso de Habermas, com a finalidade de conseguir uma democracia dos consensos ou acordos, através do diálogo numa comunidade de comunicação (2015, p. 64-84) . Por outro lado, a democracia aparece como um mercado político, no qual acontecem as negociações entre os indivíduos ou entre partidos políticos, como nas teorias pluralistas e econômicas da democracia (SARTORI, 1957; DAHL, 1989), chegando inclusive a instaurar novos procedimentos de governo. Finalmente, no âmbito do neomarxismo, subsistem as análises críticas das contradições internas que a democracia mantém, mesmo na época da globalização.

 

5 SEGUNDA PASSAGEM: A CRÍTICA DE NORBERTO BOBBIO

O filósofo Norberto Bobbio, no seu já celebre livro O futuro da democracia, dirige uma crítica à democracia liberal, mostrando que existe uma distância entre os ideais democráticos e a democracia real. A referida distância consiste no fato de que os primeiros não conseguiram cumprir suas promessas, gerando uma distância cada vez maior entre os ideais democráticos e o que acontece nas democracias reais. Nas análises de Bobbio, seis foram as promessas não cumpridas pelo ideal de sociedades democráticas e que transformaram as sociedades democráticas atuais ou democracias reais, revelando as suas grandes diferenças.

A primeira promessa não cumprida é a transformação da sociedade democrática de um poder centralizado a outro pluralista. Enfatiza Bobbio (2018, p. 43):

O modelo ideal de sociedade democrática era o de uma sociedade centrípeta. A realidade que temos diante dos olhos é a de uma sociedade centrífuga, que não tem apenas um centro de poder (a vontade geral de Rousseau) [...] A sociedade real, subjacente aos governos democráticos, é pluralista”.

 

A segunda, derivada da primeira, diz respeito à transformação da representação política em representação dos interesses, nas sociedades democráticas. Bobbio (2018, p. 44-45) a expressa nos seguintes termos:

O princípio sobre o qual se funda a representação política é a antítese exata do princípio sobre o qual se funda a representação dos interesses, no qual o representante, devendo perseguir os interesses particulares do representado, está sujeito a um mandato vinculado. [...] a proibição de mandatos imperativos tornou-se uma regra constante de todas as constituições de democracia representativa [...]. Jamais uma norma constitucional foi mais violada que a da proibição de mandato imperativo. Jamais um princípio foi mais desconsiderado que o de representação política.

 

A representação política, dessa forma, deixa de ser representação da soberania popular, dos eleitores, no caso de Senadores e Deputados, e passa a ser a representação dos interesses corporativos dos partidos políticos.

A terceira, refere-se à persistência das oligarquias. Assinala Bobbio (2018, p. 47-49):

Considero como terceira promessa não cumprida a derrota do poder oligárquico [...] A democracia representativa, que é a única forma de democracia existente e em funcionamento, é já por si mesma uma renúncia ao princípio da liberdade como autonomia [...]. Naturalmente, a presença de elites no poder não elimina a diferença entre regimes democráticos e regimes autocráticos.

 

Em outras palavras, o modo como foi implementada a democracia representativa já implica a renúncia da autonomia, pois se delega aos representantes a tarefa de fazer as leis que os governarão, tornando nula a distinção entre governantes e governados, e, nesse sentido, se mantém a oligarquia no poder.

A quarta promessa não cumprida é a não ocupação dos espaços onde se exerce o poder político e, nesse sentido, concluir o processo de democratização. A limitação do espaço do poder gerado pela empresa e o aparato administrativo deram origem a uma relação de poder ascendente e descendente que ainda perdura (BOBBIO, 2018, p. 50). Assim, o espaço para o exercício real do poder, nas democracias representativas, parece ser cada vez menor. Um sintoma dessa falta de espaços é o número baixo de mulheres nos lugares de direção, na tomada de decisões e na representação política, que, sem dúvidas, não só significa que o processo de democratização não está concluído, senão que, mais radicalmente, a democracia representativa avança em sentido contrário aos princípios democráticos e põe em questão o sentido mesmo da democracia como sistema de governo.

A quinta promessa não cumprida “[...] pela democracia real em contraste com a ideal é a eliminação do poder invisível” (BOBBIO, 2018, p. 51). Trata-se da presença cada vez maior, nas esferas do poder instituído, desse poder invisível (máfia, grupos religiosos, empresários, narcotraficantes, milicianos etc.), em contraposição ao poder visível, o qual consegue controlar e limitar o poder do Estado. Todavia, esse controle é igualmente exercido pelo Estado com relação aos cidadãos, porque, por um lado, mantém em segredo muitas das suas ações, que, se fossem públicas, gerariam múltiplos escândalos e, por outro, consegue controlar capilarmente a vida dos cidadãos, através dos dispositivos técnicos. Escreve Bobbio (2018, p. 54):

Não por acaso, a política dos arcana imperii caminhou simultaneamente com as teorias da razão de Estado, isto é, com as teorias segundo as quais é lícito ao Estado o que não é lícito aos cidadãos privados, ficando o estado, portanto obrigado a agir em secreto para não provocar escândalo [...]. Inútil dizer que o controle público do poder é ainda mais necessário numa época como a nossa, na qual aumentaram enormemente e são praticamente ilimitados os instrumentos técnicos de que dispõem os detentores do poder para conhecer capilarmente tudo o que fazem os cidadãos.

 

Nesse âmbito, o controle que exerce o Estado sobre os cidadãos põe em xeque a própria institucionalidade democrática. Se, por um lado, a liberdade era o princípio da democracia representativa liberal, agora esse princípio é derrubado em favor da segurança e o controle da cidadania e, por outro lado, se a democracia representativa liberal consistia no estado de direito, no momento em que o que é lícito ao estado não é lícito aos cidadãos privados, significa que a própria institucionalidade democrática liberal está em xeque e que os cidadãos precisam se cuidar dos controles dos controladores, porque as sociedades democráticas foram transformadas em sociedades de controle.

A sexta e última promessa não cumprida pelos ideais democráticos, segundo a análise de Norberto Bobbio, concerne à educação para a cidadania. É bom lembrar que, inclusive na tradição grega e depois na época moderna, a educação sempre foi considerada como tendo uma função social, a formação dos cidadãos. Bobbio (2018, p. 57) faz a seguinte análise:

A educação para a cidadania foi um dos temas preferidos da ciência política americana nos anos 1950, um tema tratado sob o rótulo da “cultura política” [...] Nas democracias mais consolidadas assistimos impotentes ao fenômeno da apatia política, que frequentemente chega a envolver cerca da metade dos que têm direito ao voto.

 

O fenômeno da apatia que verificamos eleição após eleição, mesmo desenvolvendo uma educação para a cidadania, mostraria que a democracia foi reduzida à participação puramente eleitoral, pelo poder governamental.

Se aceitamos a crítica de Norberto Bobbio sobre a distância que existe entre os ideais democráticos e a democracia real, para além de concordar ou não com a democracia liberal, podemos pensar que a democracia, justamente por ser promessa, não se realiza, colocando a democracia no âmbito de uma teologia política. Ademais, essa distância pode ser compreendida como a ausência ontológica da democracia, como o não acontecer da democracia ou, também, como a chance que se abre para a democracia acontecer a partir da falta e vincular essa reflexão política com o niilismo.

 

6 TERCEIRA PASSAGEM: A CRÍTICA DE ROBERTO ESPOSITO

Roberto Esposito, no seu livro Dieci pensieri sulla politica, publicado em 2011 (e republicado em 2012, em formato e-book), dedica uma de suas análises ao conceito de democracia. em um ensaio intitulado, justamente, democracia. Um texto, como declara o próprio Esposito, no prefácio da edição de 2011, que tinha sido publicado em 1993, sob o título Nove pensieri sulla politica, que, para o filósofo italiano, encerrava a primeira fase de seu trabalho filosófico e abria uma segunda fase, centrada sobre a antinomia comunidade/imunidade e uma redefinição do paradigma biopolítico (2012, p. 1).

No ensaio democracia, a tentativa do filósofo italiano é, partindo da desconstrução da contraposição entre mito e democracia, que parecia evidente, no século XIX e na primeira metade do século XX, haja vista que o mito se referia ao totalitarismo, apontar que a democracia, assim como a comunidade depois, é o acontecimento de uma ausência presente, uma falta no cerne mesmo da democracia. Nessa ausência, nessa falta, radica, ainda na primeira fase de Esposito, a sua possibilidade como categoria central, para pensar a política contemporânea.

Conforme muitos pensadores da política do século XX, segundo Roberto Esposito, a contraposição entre mito e democracia é um fato evidente. Não seria preciso demonstrar que o mito, enquanto referência ao totalitarismo da Segunda Guerra Mundial é diametralmente oposto às concepções de democracia. Ressalta Esposito (2012, p. 1-2):

Il mito – nella sua accezione politica – è normalmente inteso come il rischio mortale che dall’esterno insidia le sorti della democrazia e la democrazia, per contro, come il regime che più di ogni altro è capace di resistere all’attacco del mito, di dissolverlo nella razionalità delle proprie procedure e di restaurar la naturale trasparenza della politica.[7]

 

Segundo essa caracterização, a democracia teria força para resistir ao totalitarismo que a assedia e evidencia, desse modo, o nexo orgânico entre mito e totalitarismo e o uso que ele faz do mito, para destruir a democracia (ESPOSITO, 2012, p. 2), mas também indica, ao mesmo tempo, que a democracia pode, através da sua racionalidade procedimental, dissolver o mito e fazer transparente a política como humanismo militante – atitude política natural, depois das atrocidades do nazismo, que faz a recuperação do conceito clássico de humanidade. Todavia, a chamada racionalidade procedimental e técnica própria da democracia liberal, lembra Esposito, será criticada por Ernst Cassirer como contrária ao humanismo e procedimentalmente técnica. Nas palavras de Esposito, “Cassirer [...] ad esprimere il carattere antiumanistico del mito politico contemporaneo – e a contrapporlo tanto più violentamente alla democrazia – è la sua nuova connotazione ‘tecnica’.” (2012, p. 4).[8]

Nesse sentido, com Cassirer, começa a se estabelecer uma contraposição forte entre democracia e mito, pois esse último conseguiria desmontar a democracia, através da técnica. A nova aliança entre mito e técnica implicará, para Cassirer, a aceitação da democracia como um valor em si mesmo. Segundo Esposito (2012, p. 5-6), é a vitória da racionalidade técnica, própria dos totalitarismos:

Ad essa Cassirer contrappone il potenziale antimitico della rinata democrazia. Tale potenziale è precisamente il valore che egli assegna a quest’ultima secondo una bipolarità concettuale che vede ad un polo il nesso di democrazia e valore e all’altro quello di tecnica e mito. Il valore della democrazia – o, in senso più enfatico, la democrazia come valore – è opposto alla tecnica del mito e al mito come tecnica.[9]

 

Assim, a passagem, realizada por Cassirer, da democracia liberal, dominada pela racionalidade procedimental técnica, para a democracia como valor, permite a Esposito fazer uma crítica radical da categoria de democracia e de seu aparente oposto, o totalitarismo, quando pergunta:

[...] è così netta la barriera che divide democrazia e totalitarismo o i due regimi si dispongono su una linea in movimento che può continuamente squilibrarsi e rovesciare l’uno nell’altro, come Tocqueville aveva precocemente intuito e rubricato nel concetto di «dispotismo democratico»? Conosciamo la risposta che la cultura liberal-iluministica ha dato e continua sempre più rumorosamente a dare a questo quesito: la democrazia è l’altro dal totalitarismo e il totalitarismo l’altro dalla democrazia. (Esposito, 2012, p. 7).[10]

 

A rigor, a pergunta de Esposito, com indiscutíveis consequências filosóficas e políticas, tem a coragem de pôr em questão a condição metafisico-axiológica da democracia como valor em si mesmo. O fundo da questão é se a condição democrática pode ser permanente ou se ela admite, in se, a possibilidade da sua destruição no totalitarismo ou, em outras palavras, se a possibilidade da destruição da democracia reside em um elemento externo, o totalitarismo, do qual ela deve ter cuidado e se defender constantemente, ou se o totalitarismo já habita no interior da democracia. A resposta de Esposito (2012, p. 8), com clara referência a Platão, não admite duplas interpretações: “[...] il totalitarismo non è l’altro, ma il rovescio, della democrazia [...] dove il rischio è rappresentato dal fato che il totalitarismo, benché opposto alla democrazia, riposa in germe dentro di essa e non al suo esterno[11], eliminando, pois a dicotomia de amigos internos e inimigos externos.

A reflexão de Esposito põe em questão o princípio da democracia liberal, segundo o qual a democracia é um valor absoluto que tem que ser aceite e defendido contra o uso mítico do totalitarismo. O mito político, na análise de Esposito (2012, p. 12-13),

[...] non è, come vorrebbe la concezione umanistica suesposta, quella tecnica che sottrae alla democrazia il suo valore essenziale, ma la stessa attribuzione di valore che sottrae la democrazia alla sua inessenzialità tecnica, che la rivalorizza in termine di essenza, di umanità, di libertà, di progresso. Non ciò che le impedisce di rappresentare il bene ma ciò che glielo prescrive [...] È quel compimento che è mitico e insieme totalitario.[12]

 

O potencial totalitário da democracia liberal reside, seguindo as análises de Esposito, não tanto no fato de a democracia tornar-se técnica, como pensava Cassirer, quanto na sua tentativa de converter a democracia em valor absoluto em termos de essência. Numa primeira definição de democracia, Esposito afirma (2012, p. 29) que “[...] democrazia è la liberazione del politico dalla propria autovalorizzazione, dal credersi, definirsi, attribuirsi valore. Dalla sua intenzione-presunzione di rappresentare l’Uno, il Bene, la Giustizia.”[13] Quando a democracia é transformada essencialmente em valor absoluto, acredita-se ter o poder de representar e prescrever o bem e, consequentemente, o direito de estabelecer os limites do bem o do mal, dos amigos e dos inimigos, e fazer a guerra para defender ou implantar a democracia, inclusive, em outros países e continentes.

A transformação da democracia em valor absoluto, na sua realização essencial, abre o caminho para a ontologização da comunidade e o estabelecimento da distinção nítida entre o próprio como propriedade, a comunidade e o diferente, os outros que estão fora da comunidade. Esse processo, lido em chave nietzschiana por Esposito, é chamado de niilismo, no sentido de atribuir valor a isso que não tem valor. Nas palavras de Esposito (2012, p. 30):

La valorizzazione della democrazia è al contrario parte integrante del destino nichilistico cui è affidato il nostro tempo, come all’origine della posizione che sto provando a delineare aveva spiegato Nietzsche [...] è proprio l’autointerpretazione etica della politica che, presentandosi come incarnazione del valore, in realtà ne costituisce la più potente dissoluzione.[14]

 

O niilismo político, próprio da tentativa de estabelecer a democracia como valor absoluto, aparece justamente sob a forma da interpretação ética da política, dando lugar a sua dissolução na paradoxal tentativa de afirmá-la, em termos ontológicos.

A questão da comunidade, na leitura de Esposito, é o topos para pensar filosoficamente a democracia como inessencial. Assim, se a democracia é inessencial e, por consequência, irrealizável, pode-se entrever que a comunidade também o é. Seguindo o raciocínio, Esposito afirma: “La questione è posta da Rousseau dentro la semantica della comunità. È questo il valore che la democrazia deve incarnare. Se il valore è il mito della democrazia, la comunità è il contenuto del suo valore.” (2012, p. 15).[15] Isto é, que a democracia como valor, seu caráter mítico e niilista, teria seu fundamento na comunidade enquanto ela é seu conteúdo.

Desse modo, a democracia seria, ao mesmo tempo, necessária e impossível. Necessária, como referência simbólica e ideal regulatório, e impossível, como realização política efetiva, seguindo nesse ponto Rousseau. Assinala Jean-Jacques Rousseau, no livro III do Contrato social: “Prendendo il termine nel suo significato rigoroso, non è mai esistita e non esisterà mai una vera Democrazia” (2011, p. 29)[16], confirmando dessa maneira o caráter impossível da democracia e a sua tendência a tornar-se totalitária na comunidade tal e como acontece na filosofia de Marx (ESPOSITO, 2012, p. 25-26). Assim, Esposito (2012, p. 33-34) declara, com força, que

[...] democrazia non è il ritorno della comunità nella dimensione politica, ma l’affermazione eroica della sua definitiva impoliticità. Il suo referente – e insieme il suo orizzonte di determinazione: ciò che le assegna termini definiti – non è più la comunità, ma la sua assenza. E anzi si potrebbe arrivare a dire che democrazia non è altro dall’assenza di comunità.[17]

 

Em outras palavras, que a persistência da democracia, política ou social, não tem a sua salvação em um retorno à comunidade originária, para a qual a democracia é um valor absoluto, senão na aceitação da ausência essencial da comunidade. A ausência essencial da comunidade não pode ser pensada como o acontecimento efetivo do totalitarismo; trata-se, pois, de pensar a democracia a partir da ausência da comunidade; ou seja, da sua impropriedade ou imunidade, na sua dimensão impolítica. Em consequência, a democracia está vazia de comunidade como valor absoluto. Nas palavras do filósofo italiano: “La comunità non è né il valore, né il fine, né il contenuto della democrazia. Questa è letteralmente vuota di comunità: stretta nei suoi confini finiti, nella sua pura definizione.” (ESPOSITO, 2012, p. 45).[18]

Ora, a democracia é vazia de comunidade justamente porque, na comunidade, acontece uma ausência ontológica ou, melhor, seu ser consiste em não ser um ente. A falta da comunidade é, ao mesmo tempo, a negação da democracia como valor absoluto, que também pode ser lido em termos de niilismo. No entanto, o niilismo em Esposito, nessa primeira fase, parece estar mais perto da imunidade e de Nietzsche, pelo fato de que a comunidade perde seu valor, falta o fim; isto é, o acontecimento do niilismo como transvaloração dos valores (NIETZSCHE, 2008, p. 9-11).

No livro Communitas. Origine e destino della comunità, publicado pela primeira vez em 1998, iniciando a segunda fase de seu pensamento, Roberto Esposito faz uma desconstrução do conceito de comunidade, o qual, na nossa leitura, possibilita compreender as análises precedentes sobre a democracia e sua relação com a comunidade. Na introdução desse livro, intitulado provocativamente Niente in comune (Nada em comum), Esposito mostra que a comunidade, que deveria ser comum, de todos e propriedade de ninguém, transforma-se em propriedade nas filosofias comunitárias ou, seguindo os raciocínios precedentes, torna-se valor próprio. Enfatiza Esposito (2006, p. VIII): “La verità è che tutte queste concezioni sono unite dal presupposto irriflesso che la comunità sia una ‘proprietà’ dei soggetti che accomuna.[19] Uma propriedade, inclusive como valor, na qual eles são os proprietários do seu comum. Nas palavras de Esposito (2006, p. VIII-IX), que não deixam lugar a dúvidas:

O anche, con una terminologia, solo apparentemente diversa, un bene, un valore, un’essenza che – a seconda dei casi – si può perdere e ritrovare come qualcosa che ci è già appartenuta e dunque ci potrà tornare ad appartenere [...] Che ci si debba appropriare del nostro comune (per comunismi e comunitarismi), o comunicare il nostro proprio (per le etiche comunicative) il prodotto non cambia: la comunità resta legata a doppio filo alla semantica del proprium [...] è comune ciò che unisce in un’unica identità la proprietà – etnica, territoriale, spirituale – di ciascuno dei suoi membri. Essi hanno in comune il loro proprio; sono i proprietari del loro comune.[20]

 

Posto isso, com o objetivo de tomar distância da semântica da comunidade como proprium, Esposito (2006, p. X) destaca que

[...] il primo significato che i dizionari attestano del sostantivo communitas – e dell’aggettivo corrispondente communis – è quello che assume senso dall’opposizione a ‘proprio’. In tutte le lingue neolatine, ma non solo, ‘comune’ (Commun, común, common, kommun) è ciò che non è proprio.[21]

 

Nesse segmento, a comunidade é o que não é próprio, o que não pertence a ninguém e, em consequência, faz referência ao público como oposto ao privado. Contudo, para além da distinção entre público e privado, Esposito propõe que comunidade deriva etimologicamente do latim munus, indicando uma caracterização social de dever, deixando como evidentes as acepções de onus e officium e privilegiando o donum. Nessa linha, Esposito (2006, p. XI) afirma:

Ma la specificità del dono espresso dal vocabolo munus – rispetto all’uso del più generale donum – ha appunto l’effetto di ridurre la distanza iniziale e di riallineare anche questa significazione alla semantica del dovere. Il munus, infatti, sta al donum come la «specie al genere» (Ulp., Dig. 50.16.194), perché significa sì ‘dono’, ma un dono particolare, «distinto dal suo carattere obbligatorio, implicito nella radice *mei- che denota ‘scambio’.»[22]

 

Se o munus está para o donum como a espécie para o gênero, pode ser afirmado que a especificidade do munus da comunidade reside no donum, nisso que se doa (mesmo que munus também signifique ofício e obrigação). O que define inessencialmente a comunidade que, enquanto munus, se doa é, precisamente, seu dever, não como uma obrigatoriedade tout court, de dar e não receber (ESPOSITO, 2006, p. XII), no sentido de lhe devo alguma coisa e não me deve alguma coisa. Portanto, pode-se chegar à afirmação, negando a semântica da comunidade como propriedade, que “[...] communitas é o conjunto de pessoas unidas não por uma ‘propriedade’, mas, precisamente, por um dever ou por uma dívida. Não de um ‘mais’, mas de um ‘menos’, por uma falta.” (ESPOSITO, 2006, p. XIII).

Seguindo o raciocínio de Esposito, a falta da comunidade é que, ao mesmo tempo, a constitui. A comunidade enquanto munus é isso que se dá, o que se deve, esse nada que une a comunidade; o nada como o que se tem em comum ou, num sentido heideggeriano, como o ser-aí-com. Eis o sentido da expressão nada em comum da comunidade e que a liga ao niilismo,[23] pois a comunidade é isso que não é ou, melhor, o nada que é. Frisa Esposito (2006, p. 149):

Il niente non è, insomma, la condizione o l’esito della comunità – il presupposto che la libera alla sua ‘vera’ possibilità – bensì il suo unico modo de ser. La comunità, in altre parole, non è interdetta, oscurata, velata – ma costituita dal niente. Ciò vuol dire semplicemente che essa non è un ente. Né un soggetto collettivo, né un insieme di soggetti.[24]

 

Ora, se a comunidade é o conteúdo da democracia e a comunidade é um nada em comum, como temos mostrado até aqui, segue-se que a democracia está constituída por esse nada que é a falta de comunidade. O nada da democracia é um nada político. Afirma Esposito (2012, p. 60):

La democrazia non educa né si educa. Essa non fa che aprire – e aprirse a – quello spazio di libertà che coincide con un’inessenzialità irrimediabile: e cioè con nient’altro dalla propria esistenza. Essa conserva amorosamente le trace del proprio “niente politico”.[25]

 

Em outras palavras, que o nada pertence à inessencialidade da democracia, o que faz que ela, ao mesmo tempo, se doe, não como um ente em si, contudo, como um nada político, como isso que ontologicamente falta.

A democracia, de acordo com Esposito, não é própria da comunidade, mas da imunidade. Nesse sentido, a democracia, esvaziada do seu conteúdo axiológico e metafisico na categoria da comunidade, ou seja, da sua perda de obrigatoriedade do dom, pode ser pensada como democracia imunitária. Argumenta Esposito (2018, p. 13-14):

Tale connotazione ho creduto di poterla rinvenire nell’idea di “immunizzazione” derivata, per estensione, dal termine latino immunitas, appunto legato a quello di communitas della relazione, nel primo caso negativa e nel secondo positiva, con il lemma munus: se i membri della communitas sono vincolati dalla stessa legge, dallo stesso onere o dono da dare – i significati di munus – immunis è, invece, chi ne è esente o esonerato; chi non ha obblighi rispetto all’altro.[26]

 

Uma democracia compreendida nesses termos, enquanto imunitária, é imune a qualquer obrigação, pois seus membros estão radicalmente exonerados das obrigações para com os outros. A tentativa de Esposito, com todas as cautelas que o caso exige, consistiria em imunizar até as últimas consequências a comunidade, a partir da relação ontológica de ambas, através do munus, porque nesse movimento in extremis[27] a comunidade deixa de ser um proprium e se cumpre a passagem do meu mundo ao mundo, do fechamento comunitário à abertura imunitária, quebrando dessa maneira a lógica da democracia liberal, cujo conteúdo residia na comunidade como valor. Esposito (2018, p. 70-71) ressalta:

Si sa che l’immunizzazione funziona attraverso l’assunzione del “germe” comunitario che si vuole neutralizzare. E se provassimo a rovesciare l’operazione? Se provassimo a ripensare la comunità proprio a partire dal compimento del processo di inmunizzazione? In fondo un mondo senza esterno – del tutto inmunizzatto – è necessariamente anche senza interno.[28]

 

Assim, una comunidade com substrato metafísico no valor da propriedade arrisca, no seu fechamento em si mesma, ficar sem mundo por consequência da lógica imunitária. A democracia imunitária, como consequência do nada em comum da comunidade e seu tornar-se imunidade, paradoxalmente, poderia ser a chance para a democracia, para sua proteção no entrelaçamento do próprio com o impróprio. A quebra do caráter ontológico da comunidade abre novas perspectivas para pensar o futuro da democracia como sendo uma ausência.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No percurso desta propedêutica do conceito de democracia, temos focalizado as diferentes semânticas e sentidos que o conceito adquiriu, nas diferentes etapas do pensamento filosófico. Apresentamos, em três passagens, as críticas de Aristóteles, Norberto Bobbio e Roberto Esposito, no que diz respeito ao referido conceito. O objetivo deste escrito, conforme consta nos parágrafos precedentes, é desenvolver a tese de que a filosofia se caracteriza pela sua condição de migração e desterritorialização, o que implica que, se aceitamos a tese de Roberto Esposito, segundo a qual a comunidade é uma ausência, uma falta, um nada do nada, podemos pensar que a democracia, ao menos na primeira fase do pensamento do filósofo acima indicado, também se caracteriza por essa falta, mas que, ao mesmo tempo, é justamente nela que habita a sua possibilidade de se manifestar como uma democracia imprópria, ou seja, não compreendida em seu sentido de propriedade privada de uma determinada comunidade, porém, como uma democracia por vir.

Diante de reflexão exposta e do desenvolvido nesta pesquisa, até agora, podemos nomear as seguintes conclusões preliminares:

Primeiro, que uma filosofia compreendida como migração e desterritorialização não é fruto de uma vontade de potência, de querer que a filosofia tenha essa condição. Ao contrário, a sua condição de migração e desterritorialização é um fato evidente e presente em toda a história da filosofia ocidental. A desterritorialização da filosofia, ou melhor, a dialética territorialização-desterritorialização pressupõe uma terra, como afirmam Deleuze e Esposito, mas que não pode ser compreendida como a fixação de uma raiz étnica ou antropológica; se assim fosse, ela seria só um polo da dialética. A desterritorialização, como movimento contrário e simultâneo à territorialização, conforme Esposito, será esse processo de voltar-se para o externo e fazer acontecer uma verdadeira filosofia.

Portanto, a sobrevivência da filosofia e suas possibilidades de desenvolvimento fora das fronteiras nas quais se originou, isto é, a sua migração e desterritorialização, são atestadas pelas diferentes filosofias nacionais desenvolvidas em muitos países e línguas nas quais é exercida. Essa condição da filosofia faz patente e torna evidente que a filosofia não é um proprium e, por conseguinte, não existe uma língua privilegiada para seu exercício e, ainda menos, uma nação, país ou território que possa impetrar o direito de propriedade e soberania sobre ela. Por isso, o fato da existência de traduções de filosofia reforça, sobretudo, este caráter de impropriedade da filosofia. Logo, a filosofia como migração e desterritorialização na era da globalização, seu caráter impróprio, apresentou-se como uma possibilidade pertinente para se pensar a condição da democracia, após o chamado fim da comunidade.

Segundo, que a democracia, tal como a conhecemos até agora, é fruto de muitas disputas, teóricas e políticas, as quais marcam seu destino. A democracia chamada direta dos gregos e a representativa dos modernos confirmam como o referido conceito vai se revestindo de uma semântica que se reduz a mero jogo político e jurídico, o qual, em muitos casos, esconde uma estratégia governamental de controle dos cidadãos, para favorecer certos grupos de poder presentes, inclusive, na própria institucionalidade democrática, como afirmava Norberto Bobbio.

A distância que se estabelece entre os ideais democráticos e as democracias reais, marcadas a ferro e fogo pelo liberalismo, evidencia a rachadura ontológica presente no conceito de democracia e que, certamente, desvela o risco de tornar-se totalitária, por meio de refinados mecanismos e dispositivos de controle da cidadania. Dessa forma, a democracia liberal representativa mostra a sua contradição in se, pois, na medida em que proclama e defende a liberdade, ela se torna, ao mesmo tempo, totalitária, pois, defendendo a liberdade própria, como valor em si mesmo, ataca a liberdade dos outros, estabelecendo uma distinção radical entre o próprio e o impróprio, cuja relação em Esposito é evidente, privatizando dessa maneira o que, em princípio, era de todos, a comunidade, e transformando a democracia em seu contrário: o totalitarismo.

Terceiro, que as análises filosóficas de Roberto Esposito, quanto a comunidade, são pertinentes para pensar o futuro da democracia. Por um lado, a comunidade analisada a partir de communitas e de communis, o comum, revela com clareza que a comunidade é isso que é comum e, por conseguinte, não pertence a ninguém. Assim, a comunidade não é a propriedade de ninguém, não é, como a filosofia, um proprium, pois seu ser consiste em uma ausência essencial, um nada em comum que contém o munus, um dar-se que habita no cerne da comunidade. Por outro lado, porque a democracia, como a comunidade, ao não ser propriedade de ninguém, ao não ser um valor em si mesmo capaz de representar o Uno, o Bem e a Justiça, se torna imprópria, imune aos outros, quebrando desse modo a distinção radical entre dentro e fora, si mesmo e outro, ricos e pobres, identidade e diferença, nacionais e estrangeiros.

O chamado fim da comunidade, que, ao mesmo tempo, é a dissolução da democracia no seu nada em comum, paradoxalmente, abre as possibilidades da sobrevivência da comunidade e da democracia, a condição de aceitar a sua imunidade, mas também, como temos realçado, em parágrafos precedentes, que a sua possibilidade de ser pensada filosoficamente só acontecerá, pela condição de aceitar a condição imprópria da filosofia; isto é, sua condição de migração e desterritorialização, gerando, por conseguinte, uma democracia migrante e desterritorializada.

Quarto, que aceitar o fim da comunidade e a dissolução da democracia, com base no nada em comum, como mostrado a partir das análises de Roberto Esposito, implica, também, outorgar carta de cidadania ao niilismo como categoria política. O niilismo, conforme temos enfatizado no desenvolvimento do artigo, se refere ao nada da comunidade porque, para Esposito, é o nada que permite a relação entre o niilismo e a comunidade. Na sua primeira fase, o nada vinculado aos valores na sua acepção nietzschiana é aceito, mas, na sua segunda fase, a partir de Communitas, o nada é a relação entre comunidade e niilismo, ensejando a reivindicação do ser-aí-com. Contudo, será necessário pensar as relações, implicações e consequências que podem derivar da tentativa de pensar politicamente o niilismo. É uma tentativa não isenta de riscos, mas que permanece como um desafio para a filosofia política contemporânea.

 

PROPAEDEUTIC OF THE DEMOCRACY CONCEPT

 

Abstract: This article starts from the characterization of philosophy as migration and deterritorialization, having as a guiding thread the concept of democracy. To this end, a non-exhaustive propaedeutic of the concept was carried out showing the semantic plurivocity acquired at different moments in the history of philosophy. After the criticism of Norberto Bobbio's concept of liberal democracy, the possibility opens up to think about democracy based on Roberto Esposito's analysis. However, Roberto Esposito's thesis that the community is an absence, a lack, nothing at all, allows us to think democracy, at least in the first phase of the Italian philosopher's thought, is also characterized by this lack, but at the same time it is precisely in it that lies its possibility of manifesting itself as a democracy to come.

 

Keywords: Migration. Deterritorialization. Democracy. Roberto Esposito. Community/Immunity.

 

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Recebido: 13/8/2019

Aceito: 25/6/2020

 


 

 



[1] Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), São Luís, MA – Brasil. Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia Italiana – GEPFIT. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-0765-7932. E-mail: luis.uribe@ufma.br.

[2] O presente artigo é fruto do projeto de pesquisa PVCHU2349-2020, intitulado Filosofia política italiana. A propósito da relação entre niilismo e política. O projeto, coordenado pelo autor, ainda está em andamento na Universidade Federal do Maranhão – UFMA.

[3] “[...] a referência de Deleuze à terra não concerne à fixação de um quadro imóvel no tempo, à inevitabilidade de uma raiz étnica ou mesmo só antropológica. Pelo contrário, implica uma complexa dialética, da qual o território é apenas um dos dois polos, que sempre corresponde a um movimento, contrário e simultâneo, da desterritorialização, isto é, da ruptura das fronteiras territoriais e da extroversão exterior. Fora dessa oscilação - do impulso duplo do centro para a periferia e vice-versa - nenhuma verdadeira filosofia é dada.” (esposito, 2014, p. 18, tradução nossa).

[4] A referência é ao jurista romano do século II, Eneo Domitius Ulpianus (150-228 d.C.).

[5] “Concluindo, portanto, contra o senso comum; o qual diz como as pessoas, quando são príncipes, são distintas, mutáveis e ingratas; afirmando que nelas não estão de modo algum esses pecados que são particulares nos príncipes. E acusando alguns povos e príncipes ao mesmo tempo, eu poderia dizer a verdade; mas retirando os príncipes, se engana: porque um povo que comanda e é bem ordenado será estável, prudente e grato não ao contrário de um príncipe, ou melhor, que um príncipe, ainda que estimado, sábio: e por outro lado, um príncipe, destituído das leis, será ingrato, diverso e imprudente mais que um povo [...] como fez Roma depois da destituição do rei, e Atenas depois que se libertou de Pisistratus. O que não pode nascer por outro, senão que são melhores governos àqueles do povo do que àqueles dos príncipes.” (MAQUIAVEL, 2018, p. 450-451, tradução nossa).

[6] Sobre as relações do conceito de democracia dos proprietários com os de justiça e autorrespeito, em John Rawls, pode-se conferir o capítulo 4 de Aguayo Westwood (2018, p. 89-99).

[7] “O mito – na sua acepção política – é normalmente entendido como o risco mortal que, do lado de fora, arma o destino da democracia, e a democracia, por outro lado, como o regime que mais do que qualquer outro é capaz de resistir ao ataque do mito, de dissolvê-lo na racionalidade dos próprios procedimentos e de restaurar a transparência natural da política.” (ESPOSITO, 2012, p. 1-2, tradução nossa).

[8] “Cassirer [...], ao expressar o caráter anti-humanista do mito político contemporâneo – e a contrapô-lo tanto mais violentamente a democracia – é a sua nova conotação «técnica».” (ESPOSITO, 2012, p. 4, tradução nossa).

[9] “A ela, Cassirer contrapõe o potencial antimítico da renascida democracia. Esse potencial é precisamente o valor que ele atribui a esta última segundo uma bipolaridade conceitual que vê, em um polo, o nexo de democracia e valor, e no outro, o de técnica e mito. O valor da democracia – ou, no sentido mais enfático, a democracia como valor – é oposto à técnica do mito e ao mito como técnica.” (ESPOSITO, 2012, p. 5-6, tradução nossa).

[10] “[...] é tão clara a barreira que divide democracia e totalitarismo ou os dois regimes se dispõem em uma linha em movimento que pode continuamente desequilibrar-se e inverter um em outro, como Tocqueville tinha precocemente intuído e registrado no conceito de «despotismo democrático»? Conhecemos a resposta que a cultura liberal-iluminista deu e continua sempre mais rumorosamente a dar a esse quesito: a democracia é o outro do totalitarismo e o totalitarismo é o outro da democracia.” (ESPOSITO, 2012, p. 7, tradução nossa).

[11] “O totalitarismo não é o outro, mas o avesso, da democracia [...] onde o risco é representado pelo fato que o totalitarismo, embora oposto a democracia, descansa em germe dentro dela e não no seu externo.” (ESPOSITO, 2012, p. 8, tradução nossa).

[12] “Não é, como eu gostaria, a concepção humanística, acima descrita, a técnica que subtrai à democracia o seu valor essencial, mas a mesma atribuição de valor que subtrai à democracia a sua inessencialidade técnica, que a revaloriza em termos de essência, de humanidade, de liberdade, de progresso. Não o que a impede de representar o bem, mas o que lhes prescreve [...] É realização que é mítica e ao mesmo tempo totalitária (ESPOSITO, 2012, p. 12-13, tradução nossa).

[13] “Democracia é a libertação do político de sua própria autoavaliação, de acreditar, definir, atribuir valor. Por sua intenção-presunção de representar o Uno, o Bom, a Justiça.” (ESPOSITO, 2012, p. 29, tradução nossa).

[14] “A valorização da democracia é, ao contrário, parte integrante do destino niilista ao qual é confiado o nosso tempo, como a origem da posição que estou tentando delinear tinha explicado Nietzsche [...] é justamente a auto-interpretação ética da política que, apresentando-se como encarnação de valor, na realidade lhe constitui a mais potente dissolução.” (ESPOSITO, 2012, p. 30, tradução nossa).

[15] “A questão é posta por Rousseau dentro da semântica da comunidade. É este o valor que a democracia deve encarnar. Se o valor é o mito da democracia, a comunidade é o conteúdo do seu valor,” (ESPOSITO, 2012, p. 15, tradução nossa).

[16] “Tomando o termo no seu significado rigoroso, nunca existiu e nunca existirá uma verdadeira Democracia.” (ESPOSITO, 2011, p. 29, tradução nossa).

[17] “Democracia não é o retorno da comunidade na dimensão política, mas a afirmação heroica da sua definitiva impoliticidade. O seu referente – e junto o seu horizonte de determinação: o que lhe atribuiu termos definitivos – não é mais a comunidade, mas a sua ausência. E aliás se poderia chegar a dizer que democracia não é outra coisa pela ausência de comunidade.” (ESPOSITO, 2012, p. 33-34, tradução nossa).

[18] “A comunidade não é nem o valor, nem o fim, nem o conteúdo da democracia. Ela é literalmente vazia de comunidade: estreita em seus confins finitos, na sua pura definição.” (ESPOSITO, 2012, p. 45, tradução nossa).

[19] “A verdade é que todas essas concepções são unidas pelo pressuposto confuso de que a comunidade é uma ‘propriedade’ dos sujeitos que se acomuna.” (ESPOSITO, 2006, p. VIII. Tradução nossa).

[20] “Ou mesmo, com uma terminologia, só aparentemente distinta, um bem, um valor, uma essência que – a segunda dos casos – se pode perder e reencontrar como algo que já nos pertenceu e, portanto, poderá tornar a nos pertencer [...] Que devemos nos apropriar da nossa comunidade (por comunismos e comunitarismos), ou comunicar o nosso próprio (pelas éticas comunicativas) o produto não muda: a comunidade permanece ligada em duplo fio à semântica do proprium [...] é comum o que une em uma única identidade a propriedade – étnica, territorial, espiritual – a cada um de seus membros. Eles têm em comum o seu próprio; são os proprietários da sua comunidade.” (ESPOSITO, 2006, p. VIII-IX, tradução nossa).

[21] “O primeiro significado que os dicionários atestam do substantivo communitas – e do adjetivo correspondente communis – é o que assume o sentido da oposição por sua ‘própria conta’. Em todas as línguas românicas, mas não apenas, ‘comunidade’ (commun, común, common, kommun) é o que não é próprio.” (ESPOSITO, 2006, p. X, tradução nossa).

[22] “Mas, a especificidade do dom expresso pelo vocábulo munus – referente ao uso do mais geral donum – tem o efeito de reduzir a distância inicial e de realinhar também essa significação à semântica do dever. O munus, com efeito, está para o donum como a «espécie está para o gênero» (Ulp., Dig. 50.16.194), porque significa sim ‘dom’, mas um dom particular, «diferente do seu caráter obrigatório, implícito na raiz *mei- que denota ‘troca’».” (ESPOSITO, 2006, p. XI, tradução nossa).

[23] O niilismo aqui não faz referência ao nada do niilismo apontado e criticado por Nietzsche como característica da modernidade, porém, ao nada da comunidade. Para Esposito, é o nada que faz a ponte entre comunidade e niilismo. Contudo, ressalta-se que, em Esposito, existiriam dois nadas: o primeiro, apontado por Nietzsche, vinculado à transvaloração dos valores e aceitado por Esposito, na sua primeira fase; o segundo, o nada que une a comunidade ao niilismo, como nada do nada ou a falta da falta, que Esposito desenvolve no apêndice de Communitas, ou seja, na segunda fase da sua filosofia.

[24] “O nada não é, em suma, a condição ou o êxito da comunidade – o pressuposto que a libera a sua ‘verdadeira’ possibilidade – embora o seu único modo de ser. A comunidade, em outras palavras, não é interditada, obscurecida, velada – mas constituída pelo nada. Isto quer dizer simplesmente que ela não é um ente. Nem um sujeito coletivo, nem um conjunto de sujeitos.” (ESPOSITO, 2006, p. 149, tradução nossa).

[25] “A democracia não educa nem se educa. Ela não faz mais que abrir – e abrir-se a – o espaço de liberdade que coincide com uma inessencialidade irremediável: e isso é com nada mais de sua própria existência. Ela conserva amorosamente os rastros do próprio ‘nada político’.” (ESPOSITO, 2012, p. 60, tradução nossa).

[26] “Essa conotação eu pensei que poderia encontrar na ideia de ‘imunização’ derivada, por extensão, do termo latino immunitas, já ligado ao de communitas da relação, no primeiro caso, negativa, e no segundo, positiva, com o lema munus: se os membros da communitas são vinculados pela mesma lei, pelo mesmo ônus ou dom para dar – os significados de munusimmunis é, em vez disso, quem está isento ou isento de; quem não tem obrigações em relação ao outro.” (ESPOSITO, 2018, p. 13-14, tradução nossa).

[27] É bom ressaltar que, no texto Democrazia immunitaria (publicado originalmente na Revista Micromega, n. 4, 1999), Esposito se coloca a questão, mas não afirma ser essa a forma de evitar tal deriva. Aliás, logo em anos posteriores, por exemplo, em Immunitas. Protezione e negazione della vita (2002) Esposito abandona totalmente essa hipótese e sublinha que o excesso de imunização nega a vida.

[28] “Sabe-se que a imunização funciona através da assunção do ‘germe’ comunitário que se quer neutralizar. E se tentássemos derrubar a operação? Se tentássemos repensar a comunidade a partir da realização do processo de imunização? Afinal, um mundo sem um estranho – totalmente imunizado – é necessariamente também sem interno.” (ESPOSITO, 2018, p. 70-71, tradução nossa).