FOUCAULT: UMA HISTÓRIA CRÍTICA DA VERDADE

Cesar CANDIOTTO[1]

RESUMO: O artigo versa sobre a possibilidade de uma história crítica da verdade no pensamento de Michel Foucault, ressaltando seu distanciamento do vínculo tradicional entre sujeito e conhecimento da verdade em benefício da articulação entre práticas históricas (práticas discursivas, práticas sociais e práticas de si) e produção de verdade. Destaca ainda em que aspectos sua investigação está inserida no projeto crítico inaugurado por Kant e em que medida, paradoxalmente, dele se afasta.

PALAVRAS-CHAVE: Foucault; Kant; Verdade; Sujeito; História.

A investigação de Michel Foucault é objeto de análise de diferentes domínios. Da psicologia à psiquiatria; da criminologia à sexologia, da sociologia às ciências políticas, da lingüística à antropologia. Entretanto, no entremeio de tais domínios perpassa um motivo filosófico indissociável de seu pensamento que é a problemática da verdade.

Os sistemas filosóficos tradicionais estabelecem um vínculo originário entre sujeito e conhecimento, de modo que a natureza do sujeito é designada como origem e fonte da verdade. Kant delimitara o alcance do conhecimento às formas a priori da sensibilidade e às categorias a priori do entendimento. Nada além do fenômeno pode ser conhecido, embora possa ser pensado. A crítica pergunta em quais condições pode haver enunciados verdadeiros – seja por suas condições formais, seja por suas condições transcendentais. Ela é a crítica dos limites e possibilidades do sujeito de conhecimento.

O fio condutor do pensamento de Foucault também é a problemática da verdade. No entanto, trata-se de tomar distância dos privilégios do sujeito de conhecimento para debruçar-se na produção histórica da verdade. Significa salientar a enunciação de discursos que funcionam entre diferentes práticas como justificação racional de verdade, como se fossem verdadeiros. Na arqueologia, analisa-se o jogo de regras estabelecido entre as práticas discursivas de uma época; na genealogia, como aqueles jogos atuam ao modo de legitimação para estratégias e táticas de poder presentes nas diferentes práticas sociais; na genealogia da ética, como eles funcionam na condição de auxiliadores nos diversos processos de subjetivação que se desdobram das práticas de si.

Desde a arqueologia do saber, Michel Foucault tem procurado distanciar-se da análise do enunciado proposicional do conhecimento científico, normalmente definido pela relação neutra e objetiva entre sujeito e objeto. Com isso pretende estabelecer diferenças fundamentais entre a maneira clássica de entender a verdade e sua própria concepção, por nós denominada nesse estudo de história crítica da verdade.

Na história crítica da verdade não há o sujeito e o objeto como unidades universais e necessárias; eles assim se tornam mediante práticas, que podem ser jogos teóricos e científicos, práticas sociais ou práticas de si. O distanciamento do sujeito constituinte e do objeto empírico dado torna a problemática da verdade proposta pelo filósofo o modo de aplicação de uma “história crítica do pensamento” (Foucault, 1994, p.632).[2]

Por pensamento, designa-se o âmbito no qual são desenvolvidas práticas históricas raras, jamais repetíveis, entre as quais são constituídas ou modificadas relações entre sujeitos e objetos.[3] Um objeto ou um sujeito é isso ou aquilo, dependendo da relação histórica que o determina. Não se trata de uma história dos objetos, pois não se parte nem da representação de um “objeto preexistente” nem da criação pelo discurso de um “objeto que não existe” (idem, p.670); tampouco, diz respeito a uma filosofia do sujeito, posto que procura sair de uma análise que privilegia um princípio transcendente do ego ou um sujeito sem história.

Uma história crítica da verdade, como modo de aplicabilidade de uma história do pensamento, investiga a constituição e a modificação da articulação entre objetos e sujeitos mediante “modos de objetivação” e “modos de subjetivação” (idem, p.632).

Na constituição dos modos de objetivação, não se procura definir as condições formais do sujeito como objeto, mas enfatizar de que modo ele tornou-se historicamente tal para um saber possível. Não existem objetos naturais tais como a verdade, a doença mental, o poder ou a sexualidade; eles assim se tornam mediante práticas históricas específicas e raras.

As análises da doença mental e da sexualidade moderna podem ser verdadeiras; o que não pode ser uma verdade é saber o que é a loucura e a sexualidade. Não porque seria impossível alcançar a verdade sobre tais objetos, mas porque, já que não existem, neles não há lugar para a verdade ou para o erro (Veyne, 1995, p.176). O mesmo poderia ser dito a respeito do conceito de “obra”, tão discutida em Foucault.

No fundo, a obra, como individualidade que deve conservar sua fisionomia através do tempo, não existe. Mas ela é algo, porque determinada pela relação mantida com cada intérprete.[4] Há a materialidade da obra, ainda que só exista a partir do momento em que uma relação faz dela isso ou aquilo. Por isso, não estamos diante de uma filosofia do objeto, mas da análise da constituição histórica de articulações que fazem emergir, transformar ou desaparecer esse ou aquele objeto.

Do mesmo modo, o trabalho de Foucault não é uma filosofia do sujeito, mas dos “modos de subjetivação”. Em vez de decompor as condições empíricas ou transcendentais que permitiram a um sujeito em geral tomar conhecimento de um objeto preexistente na realidade, busca-se saber como alguém, numa prática histórica específica, torna-se sujeito, qual seu estatuto, sua posição, sua função e os limites do seu discurso.[5] Enquanto que a filosofia do sujeito é o lugar da pletora da consciência, a história do pensamento situa-se na raridade das práticas humanas, elas mesmas, heterogêneas e múltiplas.

Supondo que a problemática da verdade esteja inserida na história crítica do pensamento, infere-se que aquilo normalmente reconhecido como verdadeiro não está no objeto (ele não preexiste, não é dado, torna-se tal numa articulação específica) nem no sujeito (ele não é uma essência, não é originário, torna-se assim nas práticas em que é tomado); tampouco na adequação entre um e outro (já que não são unidades fixas e determinadas), mas nas articulações históricas de sua mútua modificação e constituição.

Resulta que a história crítica do pensamento difere da história das aquisições da verdade, de seu ocultamento ou da descoberta das coisas verdadeiras; antes, é a história da emergência dos jogos de verdade que justificam racionalmente modos específicos de objetivação e de subjetivação. Ela é, conforme Foucault, a história sempre provisória das “regras segundo as quais, a propósito de certas coisas, aquilo que um sujeito pode dizer pertence à questão do verdadeiro e do falso” (Foucault, 1994, p.632); ou ainda: “o estudo dos modos segundo os quais o sujeito pôde ser inserido como objeto [para os outros e para si mesmo] nos jogos de verdade” (idem, p.633).

A problemática da verdade é crítica não porque procura determinar as condições formais e os limites transcendentais do conhecimento dos objetos, mas porque se volta para práticas específicas a fim de nelas examinar as condições históricas indefinidas de constituição dos sujeitos.

Saber e verdade

A partir do fio condutor anterior, pretende-se indicar algumas amostragens históricas estudadas pelo filósofo.

Em primeiro lugar, aventurar-se na empresa crítica implica denunciar o sono no qual dormita qualquer empreendimento filosófico que pretenda atribuir ao homem uma verdade universal, ou ainda, considerá-lo o fundamento constituinte de quaisquer conhecimentos tidos como verdadeiros.

Em Les mots et les choses (1966), é sugerido que aqui comumente denominado com o artigo definido o homem, não existiu sempre; ele é apenas uma figura do saber que emerge na Modernidade no vão constituído entre os domínios da vida, do trabalho e da linguagem; é suficiente descrever a rede histórica e, no entanto, anônima, dos jogos estabelecidos naqueles domínios para entender como num determinado momento e numa cultura específica, ele pôde ser objetivado e uma verdade sobre ele pôde ser estabelecida. Ao contrário do que se possa pensar, Foucault não nega a constituição de uma verdade sobre o homem, tal como ele foi objetivado na Modernidade; o que nega é que em outras épocas outras verdades pudessem ser atribuídas a respeito desse mesmo objeto.[6] Foucault indica a dispersão histórica da figura do homem, sua funcionalidade provisória e sua contingência cultural, do mesmo modo que nega sua estranha unidade, sua pretensa universalidade e sua suposta necessidade.

Foucault quer mostrar que o homem tem um nascimento bem definido, situado entre o final do século XVIII e o início do século XIX. Além disso, que a era do homem não coincide com a pletora da Antropologia, mas com a dispersão da História. Não é o sujeito constituinte que fundamenta os conhecimentos verdadeiros; é antes, na historicidade dos saberes, num espaço não-filosófico, que o sujeito é constituído.

A reordenação dos saberes na época contemporânea sugere a abertura de um espaço vazio no qual não encontramos a unidade do sujeito, mas apenas o pensamento se exercitando.[7] É como uma história dos sistemas de pensamento, do seu exercício no entremeio do filosófico e do não-filosófico, que a empresa de Foucault pode ser situada.

Se numa primeira amostragem, Foucault apresenta o sujeito objetivado nos jogos de verdade com pretensão científica, com o propósito de contornar os universais antropológicos, numa segunda, ele dirige-se às práticas concretas. A verdade é produzida pela articulação entre práticas heterogêneas, ou melhor, entre práticas discursivas (o efetivamente dito, a materialidade do discurso, o acontecimento de dizer é uma prática, uma prática discursiva) e práticas não-discursivas.[8]

Poder e verdade

A partir da década de setenta, quando a arqueologia do saber estará articulada pela perspectiva da genealogia Foucault indica que as verdades universalmente atribuíveis ao sujeito nos termos do conhecimento científico são, em última instância, efeitos de verdade produzidos por mecanismos estratégicos de poder presentes nas práticas sociais. Tal designação significa que eles funcionam como se fossem verdades, com o objetivo de justificar racionalmente aquelas relações de poder. Além disso, um discurso é investido historicamente de um teor verdadeiro, porque cumpre com uma funcionalidade específica, qual seja, produzir efeitos de poder estatuindo regras para o governo das pessoas, dividindo-as, examinando-as, adestrando-as, sujeitando-as.

No entanto, não quer dizer que nas teorias científicas os jogos de verdade sejam somente relações de poder que se pretende mascarar. Apenas propõe-se estudar o modo como, nas práticas (clínica, asilar, pastoral, governamental), jogos de verdade e estratégicas de poder podem ser articulados. A medicação da loucura, ou seja, a organização de um saber médico em torno dos indivíduos designados como loucos, esteve ligada, por exemplo, a uma série de processos sociais de ordem econômica, num momento dado, mas também a instituições e a práticas de poder. Esse fato não impede, contudo, desautorizar a validade científica ou a eficácia terapêutica da psiquiatria. Tal observação desprende-se da idéia de que o arqueólogo não está preocupado com a verdade do enunciado científico, mas com as práticas de enunciação, com o materialmente dito, no momento, no lugar e na ocasião em que é dito. Em vez do problema da verdade, Foucault se preocupa com aquele encarregado de dizer a verdade, da atividade de dizer a verdade (Foucault, 1997, p.111).

Uma modalidade de práticas estudadas por Foucault é particularmente ilustrativa a esse respeito: a chamada prática confessional.

Percorrendo o domínio plural do asilo, da clínica psicológica e do confessionário cristão, observa-se a proliferação da produção da verdade nas sociedades ocidentais. No fundo, são novos lugares e espaços de auto-enunciação, procedentes de antigas formas de exame de consciência desenvolvidos nos primórdios da vida monástica cristã dos séculos III e IV d.C., mas também nas escolas helenísticas e greco-romanas, como no estoicismo.

Nas práticas confessionais são os próprios sujeitos que enunciam e falam de si próprios; nesse caso, a verdade é produzida num jogo pelo qual exige-se daquele que fala a dependência a um outro que escuta e encarrega-se de interpretar o que é enunciado: é o caso do psiquiatra, do psicólogo e do diretor de consciência.

Entre o psiquiatra e o suposto louco, a verdade é produzida num jogo de coerção e reconhecimento da loucura; entre paciente e psicólogo, ela é constituída no jogo da enunciação de si e da interpretação dos desejos; entre dirigido e diretor de consciência, no jogo da verbalização e da obediência integral. A função do diretor de consciência, do psicólogo e do psiquiatra consiste em exigir daquele que verbaliza que trate de ser aquilo que ele diz e reconhece ser, ou seja, um pecador, um desviado, um louco. A enunciação sobre si é constitutiva da sujeição da subjetividade cuja exigência é a produção de discursos racionais que conduzam à identidade verdadeira.

Governo e verdade

Uma terceira amostragem da problemática que nos ocupa concerne à introdução do conceito de governo, designado por Foucault de “condução de condutas”. No curso Sécurité, territoire, population, de 1977, é ressaltado que nos seus primórdios o verbo governar não se referia à administração estatal e territorial; pelo contrário, tratava-se tanto da arte de conduzir alguém como também de seu contrário, qual seja conduzir-se diferentemente àquela condução, resistindo-lhe mediante uma contra-conduta. Nas sociedades que são ainda as nossas, constituem modalidades de resistência não tanto à dominação política ou à exploração econômica, mas ao governo da individualização posto em prática no Ocidente pela primeira vez por meio da tecnologia pastoral cristã e suas exigências de obediência integral, de verbalização infinita e de extração da verdade do sujeito.

Tais resistências – que não são exteriores ao governo, mas nascem com ele, até como sua condição histórica – são também denominadas de atitude crítica. O questionamento de um governo qualquer não se dá somente pela violência, mas, principalmente, pela mudança de atitude diante da questão do poder e da problemática da verdade. A via escolhida por Foucault é postular que a atitude crítica diante dos efeitos de verdade que justificam racionalmente o governo das condutas é condição para a não-aceitação dos efeitos de poder presentes nos discursos tidos por verdadeiros. Tal via permite desvincular o entendimento da verdade como extensão e difusão do poder, permanecendo entre eles um jogo irredutível em termos de articulação e de resistência.

Em conseqüência, no amplo campo do governo, as práticas de resistência poderão ser articuladas sem a matriz exclusivamente capilar do poder, possibilitando o deslocamento para as práticas de subjetivação estudadas nos anos oitenta pelo autor, que coincide com nossa última amostragem da problemática da verdade na sua investigação.

Ética e verdade

A análise das práticas de subjetivação, abordadas na perspectiva da genealogia da ética, não nega as posturas anteriores a respeito da crítica da verdade. Foucault somente redimensiona a perspectiva da atitude crítica em relação ao governo das condutas, direcionando-a para a constituição do sujeito ético, para o governo de si.

Não significa a descoberta de um sujeito que Foucault anteriormente havia mostrado sua dispersão entre os saberes ou sua produção nas práticas de poder, mas a possibilidade da constituição de subjetividades a partir de práticas de si ascéticas. Tais práticas não conformam a sombra projetada de um sujeito unitário; pelo contrário, é a constituição de múltiplas subjetividades a partir delas que se torna factível. Mediante sua análise é que a articulação entre produção de verdade e modos de subjetivação pode ser estabelecida.

Se nos anos sessenta a produção da verdade era descrita nos modos de objetivação estabelecidos no jogo de regras entre os saberes com pretensão científica; se nos anos setenta, ela era pensada nos mecanismos do saber-poder ou ainda nas redes de obediência das tecnologias pastorais, a ênfase nos anos oitenta é pensar a produção da verdade nas práticas de si ascéticas. Não há produção de verdade sem a constituição de subjetividades ascéticas.

Os jogos de verdade produzidos nas práticas de si ascéticas são considerados matrizes de ação e escudos protetores para o governo sereno de si quando as vicissitudes da existência surpreendem alguém. A ascese pessoal supõe o uso de técnicas muito comuns entre estóicos e epicuristas, tais como a leitura, a escuta ativa, a escritura, a memorização de conselhos cuja função é a proposição de diferentes modos de ser e de agir.

A ascese, que envolve sempre a relação interpessoal mestre-discípulo, tem por função transformar a enunciação dos discursos verdadeiros (logói) em êthos, isto é, na aquisição de uma nova arma pessoal para proteger o “eu”; e isso, apenas quando os acontecimentos exigem, como por ocasião da doença, da perda de algo ou de alguém ou diante da iminência da morte.

Para transformar os logói em êthos, para subjetivar as enunciações verdadeiras é preciso que alguém percorra um caminho, tornando-se suficientemente preparado para enfrentar as peripécias que poderão afetá-lo.

No processo de subjetivação da verdade a partir das práticas ascéticas há sempre a tensão ética inacabada entre o que alguém já deixou de ser e o que ele está se tornando, na verdade uma ética da inquietude irredutível à angústia provocada pela cisão do sujeito das morais universalistas (Gros, 2003, p.163).[9]

Daí o título paradoxal do curso L´herméneutique du sujet, de 1982. A última coisa que Foucault poderia pensar na sua investigação seria a elaboração de uma hermenêutica do sujeito. No entanto, ao deter-se nas práticas de si estóicas e epicuristas dos dois primeiros séculos de nossa era ele quer mostrar a gestação iminente daquela forma de pensar a verdade a partir da vida monástica cristã, cujas origens remontam ao século IV d.C.

A diferença fundamental entre hermenêutica do sujeito e história das práticas de subjetividade consiste na articulação com os jogos de verdade. Na primeira, parte-se do sujeito para aceder à verdade, na segunda é preciso armar-se de discursos verdadeiros para que haja subjetivação; numa o resultado do processo é a descoberta de um sujeito de verdade universal; noutra, a aquisição de discursos recolhidos como verdadeiros produz subjetivações contingentes, já que alguém só se torna sujeito no momento em que age ou enuncia algo sobre si e em determinadas circunstâncias e lugares. Na hermenêutica, a verdade está escondida no sujeito, seja pelo processo da dúvida generalizada (Descartes) seja pela verbalização infinita (confissão cristã). A verdade é o fundo da sua identidade e o reconhecimento daquilo que ele mesmo é. Na história das práticas de subjetividade, as verdades somente são subjetivadas se forem matrizes de ação e instrumentos válidos para que alguém se torne sujeito de ações, de modo que haja como convém, conforme exige a circunstância ou o ritual.

Em suma, o conjunto daquilo que denominamos até aqui de “amostragens” indica que a história crítica da verdade elaborada por Foucault é heterogênea. Na medida em que ela toma como ponto de partida modos históricos de objetivação e de subjetivação, resulta de tal opção estratégica uma dispersão do “homem” entre os saberes, uma individualidade sujeitada nas tecnologias de poder confessionais, uma subjetividade em incessante transformação nas práticas de si.

Para Michel Foucault, aquilo que denominamos “verdade” não possui um significado unívoco sendo, antes, um jogo histórico, uma enunciação dramática: ela pode ser o mecanismo do qual dispomos para preencher o vazio que constitui nosso pensamento finito, ou a justificação racional que elaboramos para compreender nossas práticas cotidianas, ou ainda o escudo protetor que adquirimos diante das vicissitudes que nos ameaçam. Contudo, o que entendemos por “verdade” pode estar associado também a riscos que assumimos, a resistências que sustentamos, ao êthos filosófico que incorporamos mediante a crítica de nosso ser histórico.

Na investigação de Michel Foucault a verdade tanto pode ser reivindicada como justificação racional para aqueles que procuram governar a conduta de outrem quanto instrumento de resistência para aqueles que enfrentam tal condução a partir de uma contra-conduta ou atitude crítica. Se não existe a verdade como objeto dado, necessário e universal, não quer dizer que ela deixe de ser algo determinado pelo jogo rarefeito estabelecido nas práticas históricas.

O projeto crítico

As diferentes amostragens de uma história crítica da verdade até aqui desenvolvidas contrastam com o modo predominante pelo qual parte da filosofia ocidental entende a problemática da verdade, no seu aspecto crítico.

Há uma tendência tradicional que aborda a crítica da verdade a partir da definição filosófica de crítica resultante dos desdobramentos analíticos da Crítica da razão pura; outra que aproxima a definição de crítica das práticas concretas, dos vínculos entre poder e verdade, dos mecanismos que envolvem governo e resistências, produção de verdade e ascese, demandando a coragem de verdade.

Sem embargo, esse segundo modo de pensar a crítica não está distante daquilo que Kant entendia por Aufklärung. Em 1784, ele a definiu em oposição ao estado de menoridade ao qual a humanidade havia sido mantida autoritariamente até então; menoridade, que significa incapacidade de servir-se do próprio entendimento sem a direção de outrem. Incapacidade, decorrente do excesso de autoridade associado à falta de decisão e de coragem. O processo da Aufklärung é justamente o oposto do excesso de autoridade e da falta de coragem.

O Sapere aude kantiano é indissociável do projeto crítico. Trata-se de estabelecer a idéia justa dos limites do conhecimento, em conhecer o conhecimento. A partir de tais limites o princípio da autonomia é ressaltado como o âmbito a partir do qual a obediência privada é fundada. Se emancipação implica o desassujeitamento em relação ao jogo do poder e da verdade que mantinha a humanidade em estado de menoridade, conhecer o conhecimento volve-se tarefa primeira de qualquer Aufklärung presente, porquanto a humanidade está em contínuo processo de Aufklärung.

Foucault ressalta que Kant estabelece um vínculo indissociável entre crítica e Aufklärung: “a Crítica, é como o frontispício da razão tornada maior na Aufklärung; e inversamente, a Aufklärung, é a maturidade da Crítica” (Foucault, 1994, p.567). Sem a Aufklärung a Crítica não teria razão de ser; sem a Crítica, a Aufklärung se perderia. Resulta que o caráter epistêmico da Crítica desemboca necessariamente na autonomia ética e política proposta pela Aufklärung; vale ressaltar, porém, que tal autonomia seria vaga e inconseqüente sem uma justa idéia de seus limites.

Para Foucault, o vínculo entre Crítica e Aufklärung estabelecido por Kant foi desmembrado nos séculos XIX e XX. A crítica reduziu-se ao aspecto epistêmico, recuando nas dimensões ético-políticas, conforme Kant estabelecera.

A tendência predominante da filosofia pós-kantiana tem sido situar a crítica somente a partir da perspectiva auto-referente do destino histórico do conhecimento no momento de constituição da ciência moderna: em primeiro lugar, procurando o que já nesse destino assinala os efeitos de poder indefinidos aos quais o conhecimento estará vinculado pelo objetivismo, pelo positivismo, pelo tecnicismo, etc; em segundo lugar, reportando esse conhecimento às condições de constituição e de legitimidade de todo conhecimento possível; enfim, procurando saber como na história deu-se a passagem para fora da legitimidade (ilusão, erro, esquecimento, recobrimento etc). Foucault denomina à tendência predominante da crítica a “investigação da legitimidade dos modos históricos de conhecer”. Filósofos dessa linhagem perguntam a respeito de que falsa idéia o conhecimento fez de si mesmo e a que uso excessivo esteve exposto, a qual dominação esteve vinculado? (Foucault, 1990, p.47).

Foucault assinala os desdobramentos pouco louváveis da valorização unilateral da crítica do conhecimento na formação da ciência moderna. Conhecimento auto-referente, dono de si mesmo que conduziu a história dos séculos XIX e XX a situações contraditórias e nefastas. Para começar, a constituição de uma ciência predominantemente positivista construída a partir da autoconfiança na crítica de seus próprios resultados; além disso, o desenvolvimento de sistemas estatais que apresentados como racionalidade da história,[10] mas que escolhem como instrumentos procedimentos de racionalização da economia[11] e da sociedade.[12][13]

Perniciosa e perigosa é a aliança estabelecida entre o positivismo científico e instrumental que desempenha papel fundamental no desenvolvimento das forças produtivas, e os poderes de Estado cada vez mais exercidos mediante conjuntos técnicos refinados. Resulta dessa trama cerrada uma “ciência de Estado” (idem, p.42).

Diante disso, como a crítica pode ser reduzida à investigação dos limites e possibilidades do conhecimento auto-referente? Se ela for pensada somente nos termos da legitimidade, se tal legitimidade tem se cruzado historicamente com tecnologias sutis de poder e, se o que resultou daquela articulação ambígua nos séculos XX e XIX foi o excesso de poder (fascismo e stalinismo) que buscava legitimação na verdade das ciências, como não suspeitar dessa verdade e como não considerá-la somente efeito de poder?

Sob tal perspectiva entende-se por que Foucault declara que, num sentido filosófico, seu pensamento inclui-se na “tradição crítica” de Kant (Foucault, 1994, p.631). Não se trataria tanto de conhecer o conhecimento como modo de denunciar erros, dogmatismos e ideologias do passado e do presente. A originalidade de Foucault foi ter sublinhado que o projeto crítico inaugurado por Kant é irredutível à perspectiva monolítica da razão moderna. Se assim fosse, restaria ao filósofo posicionar-se favoravelmente em relação a ela ou cair no irracionalismo.

A alternativa de Foucault é outra: tratar de racionalidades específicas, regionais, múltiplas, conforme indicado nas diferentes amostragens estudadas. Significa direcionar as perspectivas da Aufklärung para além do destino histórico do conhecimento; retomar a questão da Aufklärung não mais pelo seu recuo em relação à crítica (identificação da coragem de saber com os limites do conhecimento legítimo), sequer mediante uma nova história da filosofia ou de uma filosofia da história.

A Aufklärung é reativada por Foucault ao modo de prática histórico-filosófica. Trata-se de indagar até que ponto os discursos de verdade sobre o indivíduo, elaborados pelas ciências humanas e pela filosofia, são indissociáveis de mecanismos constringentes de poder e de sujeições determinadas. Sua investigação versa sobre a constituição de histórias específicas atravessadas pela questão das relações entre estruturas de racionalidade que articulam discursos qualificados de verdadeiros e mecanismos de sujeição a eles vinculados. Prática histórico-filosófica designa a estratégia que articula verdade, poder e sujeito ético.

Considerações

A maior aquisição de Foucault decorrente da inspiração do projeto crítico foi o conceito de atitude crítica. Fundamentalmente, designa a resposta do pensamento às questões colocadas pela atualidade na época em que vive o pensador, razão pela qual ele não pode repetir soluções propostas em outra época, já que não se tratam das mesmas questões.

A atitude crítica que Foucault desenvolve na sua investigação é inseparável da filosofia como atividade, como prática. Designa o exercício contínuo de “saída” das filosofias do sujeito, da neutralidade da verdade, da legitimidade intrínseca do poder, do pensamento daquilo que antes se pensava, a fim de pensar diferentemente. A perspectiva da transformação do modo de viver do último Foucault pode ser reconhecida como saída privilegiada, dobra da curva do inteligível, elogio da diferença diante da monotonia da mesmice. A crítica na qual sua filosofia se inscreve define-se como gesto filosófico, tensão ética diante dos perigos que ameaçam os indivíduos.

ABSTRACT: The article deals with the possibility of a critical history of truth in the thought of Michel Foucault, emphasizing its separation from the traditional relation between subject and knowledge of truth in favor of the articulation between historical practices (discursive practices, social practices and practices of the self) and production of truth. It also emphasizes in which aspects his investigation is inserted in the critical project inaugurated by Kant and to what extent, paradoxically, it separates from it.

KEYWORDS: Foucault; Kant; Truth; Subject; History.

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[1] Professor Adjunto do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná-PUC-PR. Artigo recebido em set/06 e aprovado para publicação em nov/06.

https://doi.org/10.1590/S0101-31732006000200006

[2] O propósito fundamental dos momentos epistêmico, político e ético de sua investigação é a “história das relações entre o pensamento e a verdade”, a “história do pensamento como pensamento da verdade” (Foucault, 1994, p.669).

[3] Em Les mots et les choses, Foucault afirmar que na época contemporânea só é possível pensar a partir do vazio da dispersão do homem; nesse vazio, o pensamento é saber e modificação do que sabe, reflexão e transformação daquilo sobre o qual reflete. Ele transforma aquilo que toca e altera o ser do homem. Pensar é um modo de agir, de um agir perigoso que assume riscos, afeta ou resiste, fere ou reconcilia.

[4] “Provavelmente, podemos dizer que a loucura ‘não existe’, mas isso não quer dizer que ela seja nada. Tratava-se, em suma, de fazer o inverso daquilo que a fenomenologia nos havia ensinado a dizer e a pensar, a fenomenologia que, grosso modo, dizia: a loucura existe, o que não significa que seja algo” (Foucault, 2004a, p.122).

[5] Sobre a legitimidade do discurso e os limites impostos pelos interditos culturais, ver: Foucault, 1971, p.11.

[6] Nesse aspecto, Foucault não é um cético. O cético acredita que através do tempo os homens pensaram coisas diferentes do mesmo objeto, como o objeto homem. Em épocas diferentes não se está diante do mesmo objeto, e sobre o objeto de cada época, a verdade é explicável. Em cada momento, as práticas humanas são o que o todo da história as faz ser, de modo que a cada instante a humanidade é adequada a si própria com suas próprias verdades (Veyne, 1995).

[7] Foucault não duvida da verdade das ciências humanas; apenas afirma que seu objeto e a própria noção de ciência não são eternos. Embora o homem seja um falso objeto, não significa que as ciências são impossíveis; elas somente são obrigadas a mudar de objetos. Diante das verdades, das aquisições científicas, a verdade filosófica foi substituída pela história e por isso ela não pode fundar as ciências humanas (Veyne, 1995, p.176).

[8] O termo: “prática”, utilizado por Foucault, foi abordado por Paul Veyne. Para este pensador, a cada conduta assumida historicamente corresponde sempre a uma mentalidade, como, por exemplo, tremer e ter medo, rir e estar feliz. Em Foucault, tanto as representações quanto a enunciação fazem parte da prática (Veyne, 1995, p.161). As práticas não são compreendidas pelas teorias, mas por suas relações com práticas vizinhas (idem, p.166). A filosofia do objeto é substituída pela prática ou pelo discurso; estas lançam objetivações que lhes correspondem e se fundamentam nas realidades do momento, isto é, nas objetivações de práticas vizinhas, preenchendo o vazio que aquelas práticas deixam e atualizando as virtualidades que estão prefiguradas no molde. Se as práticas vizinhas se transformam, se os limites do vazio se deslocam, a prática atualizará essas novas virtualidades e já não será a mesma. Na estratégia de Foucault, as “coisas” não passam de objetivações de práticas determinadas (idem, p.62).

[9] O sujeito moral permanece tomado no horizonte do conhecimento, quando o si ético se caracteriza pelo agir. Lacan fala a partir da perspectiva de um sujeito moral – estruturado conforme a doutrina kantiana – enquanto Foucault se detém no si ético. Lacan convoca um sujeito dividido entre o sujeito inconsciente e o eu imaginário, divisão que se encontra também em Kant entre o sujeito ético e o eu sensível, ou como em Pascal, entre o eu pecador e o sujeito da graça. Trata-se de uma divisão irredutível. Lacan, Kant, Pascal e Lutero são moralistas, grandes pessimistas, recusando crer que o sujeito possa, depois de uma conduta boa e meritória, se reencontrar numa unidade harmoniosa de um sujeito inteiramente purificado, e reencontrar uma co-presença imediata em si. Essa divisão radical do sujeito se dá sempre mediante o conhecimento, ou melhor, por um desconhecimento. Busca-se sempre denunciar as ilusões e as mentiras para dar um sentido às nossas condutas. Enfim, a marca afetiva dessa divisão irredutível do sujeito é a angústia, no sentido de sentimento moral, ou seja, derivada de uma estrutura do sujeito moral enquanto dividido, tendo como seu reverso o humor. Já o reverso de uma ética da inquietude, não dividida, seria a ironia.

[10] Sobre a formação de uma razão de Estado, cf. Foucault, 2004a, pp.245-370.

[11] A respeito do papel da economia política como princípio de limitação interna da razão governamental, cf. Foucault, 2004b, pp.15-23.

[12] Sobre a sociedade civil como campo de referência para a arte de governar do Estado, cf. Foucault,

[13] b, pp.299-320.