RESENHA/REVIEW
Pedro Paulo A. Funari[1]
TONELLI, Angelo. Eraclito, Dell’Origine. Traduzione e cura di Angelo Tonelli, Texto Originale a fronte. Milão, Feltrinelli, 2005, 216p., ISBN 8807820730.
O renomado poeta, escritor, teatrólogo e estudioso dos autores clássicos, Angelo Tonelli apresenta uma coletânea, no original, traduzida e comentada, dos fragmentos de Heráclito, o pensador de Éfeso (ca. 540-475 a.C.). A grande novidade da obra de Tonelli consiste na recuperação, em termos hermenêuticos, do contexto oriental do pensamento de Heráclito. Já na introdução, Tonelli retoma as dicotomias Oriente/Ocidente, mistérios órficos-dionisíacos/espírito apolíneo, contemplação/ação, para mostrar como o pensador de Éfeso procurou superar tais oposições. Começa seu estudo com as tabuinhas encontradas em Ólbia, cuja datação é incerta, mas que propõe serem anteriores a Heráclito e que, portanto, sugerem uma origem nos mistérios para a sabedoria de Heráclito.
A relação de Heráclito com a mística e a sabedoria oriental é uma uexata quaestio, com dois séculos de discussões, a começar pela hipótese da persische Weisheit (Filosofia persa), continuada com diversos estudos sobre a estreita relação entre a cultura grega e a cultura oriental, em especial persa e índia. Do ponto de vista histórico, a relação entre a Índia e a Grécia explicavase pelas trocas comerciais entre a Índia e a Mesopotâmia e entre esta e egípcios e fenícios. O clássico de M.L.West, Early Greek Philosophy and the Orient, de 1971, viria a aprofundar as hipóteses das ligações orientais. Tonelli relaciona a concepção de Heráclito de unidade dos opostos aos textos taoistas chineses, cujas raízes comuns estariam no substrato religioso pan-asiático. Assim, physis, origem, é noumeno e fenômeno, fim e origem de tudo que muda, ser e brilho ao mesmo tempo, a partir das raízes bhu (ser) e bha (luz). Os conceitos centrais são a necessidade (khreó), justiça (díke), entendimento (logos, gnóme), sabedoria (tò sophón), conflito (pólemos).
Os fragmentos relacionam-se a especulações índias, como no que se refere à consciência (fr.70; 90), sono/sonho (fr.90; 91; 92; 70), vigília (fr.94). Heráclito adotou uma atitude profética, com uma série de provocações aos mortais, “cheio dos humanos, foi viver nos montes, comendo ervas e plantas selvagens”, nas palavras de Diógenes Laércio (9,3). Este gesto, aparentemente paradoxal, visava a comunicar o desconforto do sábio com a humanidade, imersa na opinião, no sono e na ilusão que aprisionam os mortais nos níveis mais baixos da própria natureza.
Os fragmentos são apresentados no original grego, traduzidos ao italiano e comentados, um a um, com especial atenção para as divergências de leitura e as variantes nos manuscritos, assim como para as implicações filosóficas. Além da unidade dos opostos, Tonelli chama a atenção para sua complementaridade (fr.20) e relaciona a mudança constante às filosofias índia e chinesa, de modo que cada objeto fenomênico é não permanente e constituído de mutabilidade (fr.28; 30), como as águas e os rios nunca são os mesmos. O caráter aristocrático do pensamento de Heráclito aparece em inúmeros fragmentos (38; 44; 103) que enfatizam o valor do guerreiro. Contudo, o louvor ao aristocrata é limitado pela crítica da soberba (hýbris, fr.58). Anabase e catabase, subida e descida constituem uma só coisa (fr.98).
A bem cuidada edição e os comentários eruditos de Tonelli apresentam, como contribuição original e inovadora, uma interpretação heterodoxa do pensador grego. A tradição milenar, a partir das críticas de Platão e Aristóteles, retomada por estudiosos modernos como Jonathan Barnes e Gregory Vlastos, foi contrastada por aqueles que procuraram valorizar a coerência da sua crítica aos filósofos jônicos, como Daniel W. Graham, mas Tonelli propõe uma leitura mais radical. Para o estudioso italiano, a doutrina do fluxo e da unidade dos opostos não pode ser compreendida sem o recurso ao pensamento oriental. Não precisamos estar sempre de acordo com as propostas interpretativas de Tonelli, mas não cabe dúvida que suas propostas sobre as influências orientais abre perspectivas originais para os estudiosos do mundo grego.
Artigo recebido em 01/06; aprovado para publicação em 05/06.