A ORDEM DA CONCUPISCÊNCIA E A GRANDEZA DO HOMEM EM PASCAL
Maria Isabel Limongi[1]
■ RESUMO: Pascal concebe a ordem civil como uma ordem da concupiscência, isto é, uma ordem produzida e regulada pela concupiscência. Ao dispensar a virtude de ser o fundamento da ordem civil, ele não promove, contudo, a separação entre a política e a moral, mas assinala um novo e problemático papel para a virtude no interior da ordem civil – não mais o de produzi-la, mas o de julgá-la de modo apropriado.
■ PALAVRAS-CHAVE: Pascal; concupiscência; caridade; grandeza.
Grandeza. As razões dos efeitos marcam a grandeza do homem, de ter tirado da concupiscência uma tão bela ordem.
(Pascal, Pensées, 106-403)
Grandeza do homem em sua concupiscência mesmo, por ter sabido retirar dela um regulamento admirável e ter feito em conseqüência um quadro da caridade.
(Pascal, Pensées, 118-423)
Da concupiscência, segundo Pascal, se retiram uma “bela ordem” e um “regulamento admirável”, ou ainda, “regras admiráveis de governo, de moral e de justiça” (p.211-453),[2] de modo que a ordem civil pode ser denominada uma ordem da concupiscência, ou seja, uma ordem produzida e regulada pela concupiscência. Essa idéia traz uma novidade importante em relação à tradição do pensamento político em cujas águas Pascal bebeu.
Para Maquiavel e Hobbes, sem dúvida referências importantes da reflexão pascaliana sobre a política, a sociedade civil é a exata contrapartida de uma ação ordenadora e, enquanto tal, virtuosa: a virtù política, em Maquiavel; o ato contratual, em Hobbes. Para Agostinho, seguramente outra fonte importante de Pascal, a concórdia ordenada entre os homens tampouco pode dispensar a ação da virtude – princípio de união entre os homens na cidade de Deus, por intermédio da graça, e igualmente atuante em certos reinos terrenos relativamente bem ordenados, como Roma, em função do que resta de virtuoso na natureza humana e que não foi totalmente apagado pelo pecado (cf. Da Cidade de Deus V, 13 e 18 em que Agostinho se refere à virtude dos romanos). A ordem da concupiscência de Pascal, em contrapartida, é uma ordem bem regulada – um “regulamento admirável”, uma “bela ordem” – em certa medida justa (cf. p.85-878) e, no entanto, reporta-se à concupiscência, ou seja, ao vício.
Tal idéia não é apenas nova.[3] Salta aos olhos o vínculo entre esse modo de pensar a organização social em condição de pecado e a maneira como, a partir de Mandeville, se passou a pensar as relações econômicas como uma espécie de engrenagem dos interesses e das paixões. A ordem da concupiscência de Pascal é uma dessas noções que ganham vida própria e o estatuto de um lugar-comum – o lugar-comum a que Kant recorre e o qual consagrou com a expressão insociável sociabilidade dos homens, pensando no modo como da oposição das paixões emerge naturalmente uma ordem civil. (cf. Kant, 1986, 4° proposição, p.13)
Ora, dizer que o que há de novo e decisivo na concepção pascaliana da ordem civil é a idéia de que ela possa ser ordem sem virtude pode parecer indicar que o grande legado desta concepção está em que com ela começa a se esboçar pela primeira vez a idéia de uma ordem social autônoma em relação à moral, posteriormente pensada como uma ordem estritamente econômica.
É bastante conhecido e difundido o esquema de L. Dumont, segundo o qual com a Fábula das abelhas de Mandeville a economia teria se emancipado da moral (Cf. Dumont, 1977, cap.5). Isso se dá, segundo Dumont, a partir de um duplo movimento realizado por Mandeville. Um primeiro em que se circunscreve o fato que cabe à economia descrever, a saber, o modo como o egoísmo produz naturalmente a sociedade, promovendo o bem público; e um segundo pelo qual este fato ganha o estatuto de uma norma, uma vez que as pretensões da moral passam a ser julgadas por aquilo que a moral realiza: como não é pela moral que se chega aos benefícios públicos, conclui-se daí que suas pretensões são falsas. Com esse duplo movimento, segundo Dumont, a moral teria sido expulsa dos negócios efetivos dos homens, como outrora a religião.
É tentador, partindo desse esquema, e supondo que Mandeville tenha mesmo promovido a emancipação da economia em relação à moral, encontrar na literatura agostiniana, em Pascal em particular, os primeiros esboços desse processo. É o que faz, por exemplo, Jean Lafond ao identificar na literatura agostiniana francesa, para além de seu rigorismo moral e em conseqüência dele, os primeiros traços da valorização de certas virtudes mundanas, sem relação com a questão propriamente moral, que é a salvação, mas fundamentais à manutenção da ordem pública:
os agostinianos, de Sanault a Pascal, La Rochefoucauld, Nicole ou Bayle, admitem que ao lado de sua crítica radical ao amor-próprio, há um lugar para virtudes humanas, que não entram evidentemente na economia da salvação, mas na economia de uma moral social, permitindo à comunidade dos homens subsistir e contribuindo para desenvolver nos homens as qualidades sociais que os séculos clássicos tanto apreciaram. (Lafond, 1996, p.188)
Noutros termos, o que Pascal ao lado de outros agostinianos estaria fazendo, segundo Lafond, é conferir uma certa autonomia aos valores políticos, colocando-os ao lado e independentes dos valores morais stricto sensu – numa outra economia.
Contudo, que a moralidade não esteja na origem da ordem civil não implica dizer que se possa medir os valores da sociabilidade com uma escala alternativa à escala moral. A ordem da concupiscência não engendra uma sorte de moralidade própria, não produz valores utilitários concorrentes com os valores genuinamente morais. Pascal assinala, é verdade, que ela tem suas medidas próprias: é o caso do direito do mais forte, que só é justo em seu interior, como também dos valores produzidos pela imaginação e o costume sobre os quais se funda o ordenamento do mundo. Mas isso não quer dizer que esta justiça e estes valores só possam ser medidos em escala concupiscente, como se valessem tão somente pelo que produzem na ordem da concupiscência, e não – como nos parece ser o caso – também e sobretudo pelo que nela se anuncia da verdadeira justiça e virtude, ou seja, a caridade.
Pascal diz nos fragmentos que nos servem de epígrafe que a ordem da concupiscência indica a grandeza do homem. Como entender essas afirmações se não que a ordem da concupiscência indica algo que escapa ao que pode ser medido em escala concupiscente? A grandeza que se retira da ordem da concupiscência não se reduz aos efeitos dessa ordem – a ordem mesma em sua beleza própria -, mas se remete ao que se pode conhecer ou pensar a partir dela acerca da miséria – e portanto da grandeza – do homem nela inscrito. A ordem da concupiscência é bela, como se diz em p.106-403, porque é um quadro da caridade, como se diz em p.118-402. A grandeza que se retira desta ordem é, portanto, uma grandeza que a ultrapassa em direção ao que lhe é superior.
Com efeito, se Pascal engajou-se numa teoria social e política, foi precisamente por vislumbrar a possibilidade de retirar daí uma verdade moral acerca do homem, como parte de seu projeto apologético. Cabe portanto discernir o fio que se tece entre a política e a moral, pois a política não interessa a Pascal senão em virtude desse tecido.
I
A dificuldade de se dar cabo dessa tarefa está na relação de absoluta descontinuidade que Pascal estabelece entre as grandezas relativas à ordem civil – se quisermos: as grandezas da concupiscência – e as grandezas da caridade.
Em p.308-793 Pascal distingue três ordens de grandezas: as do corpo, as do espírito e as da caridade. Tais grandezas são descontínuas, dispostas em ordens distintas e hierarquizadas, de tal forma que de uma ordem de grandezas inferior não se ascende às grandezas de uma ordem superior: “a grandeza das pessoas de espírito é invisível aos reis, aos ricos, aos capitães, a todos os grandes da carne. A grandeza da sabedoria, que não é outra senão a de Deus, é invisível aos carnais e às pessoas de espírito. São três ordens diferentes em gênero”. Pascal está pensando aqui numa descontinuidade de tipo matemática: “não se aumenta uma grandeza contínua quando se lhe acrescenta, tanto quanto se queira, grandezas de uma ordem de infinitude inferior. Assim, os pontos não acrescentam nada às linhas, as linhas às superfícies, as superfícies aos sólidos” (Pascal, 1963, p.94) . Há portanto grandezas de ordens descontínuas, no sentido matemático do termo.
Em contrapartida, cada ordem de grandezas pode ser pensada como um sistema operatório particular, de modo que a diferença entre as ordens não apenas remete à descontinuidade das grandezas de ordens distintas, como também à continuidade e à relação interna entre as grandezas de uma mesma ordem.
Todos os corpos juntos não poderiam levar a nenhum pensamento, por pequeno que seja. Isto é impossível e de outra ordem. De todos os corpos e espíritos não se poderia retirar um movimento da verdadeira caridade. Ela está numa ordem infinitamente mais elevada. (ibidem)
Para além da descontinuidade entre as grandezas, afirma-se aqui a relação e o ordenamento internos a cada ordem de grandeza. Os corpos são causas apropriadas de certos efeitos no interior de sua ordem, assim também o espírito e a caridade.[4]
Não há dúvida de que a caridade constitua uma ordem de grandezas, no sentido técnico atribuído ao termo que p.308-792 e esboçado acima. Poderia-se no entanto questionar se o que até agora viemos denominando a ordem da concupiscência constitua uma ordem de grandezas nesse mesmo sentido. Em p.106-403 Pascal diz que da concupiscência se retira uma bela ordem, o que autoriza o uso da expressão ordem da concupiscência para designar a ordem civil. Mas ordem nesse contexto parece designar antes o conjunto de leis, costumes e convenções sobre os quais se assenta a paz civil do que propriamente o regime operatório de uma grandeza determinada. Do contrário, a qual das três ordens destacadas por Pascal – a do corpo, a do espírito e a da caridade – corresponderia propriamente a ordem da concupiscência? Sem dúvida, os bens da concupiscência com os quais os reis acenam para governar estão localizados na ordem do corpo ou da carne: os reis são precisamente os grandes da carne.[5] Mas não é de todo fácil assimilar a ordem civil à ordem do corpo.[6]
Seja como for, ao estabelecer distinções entre grandezas, nem sempre Pascal o faz exatamente nos mesmos moldes de p.308-764, reportando-as a uma das três ordens aí destacadas. Nos Três discursos sobre a condição dos grandes distinguem-se as grandezas de estabelecimento e as grandezas naturais:
há no mundo duas espécies de grandezas: grandezas de estabelecimento e grandezas naturais. As grandezas de estabelecimento dependem da vontade dos homens, que julgaram com razão dever honrar certas posições e associar a elas certos respeitos. (...) As grandezas naturais são aquelas que independem da fantasia dos homens, porque consistem em qualidades reais e efetivas da alma ou do corpo, que tornam ambos mais estimáveis, como as ciências, a luz do espírito, a virtude, a saúde, a força. (Pascal, 1994, pp.83-4)
A distinção entre as grandezas se faz aqui tendo em vista o papel da imaginação na constituição das grandezas de estabelecimento, dispensável por sua vez às grandezas naturais. Não é fácil localizar a imaginação no interior do esquema das três ordens. E um esforço nesse sentido seria aqui inútil, tendo em vista que tampouco as grandezas naturais pertencem a uma das três ordens. Ao contrário, os exemplos de Pascal remetem-nas às três ordens: as ciências e a luz do espírito são grandezas do espírito, a virtude é uma grandeza da caridade e a saúde e a força são grandezas do corpo. Estamos diante portanto de uma distinção entre grandezas que escapa ao esquema das três ordens.
Nem por isso, porém, a distinção entre grandezas de estabelecimento e grandezas naturais difere do esquema da distinção de grandezas estabelecido em p.308-764, por referência às três ordens. Fundamentalmente, ao referir-se às grandezas de estabelecimento interessa a Pascal destacar o regime operatório específico em que elas se produzem, bem como os efeitos que lhe são apropriados. As grandezas de estabelecimento se reportam à ordem civil, são produzidas em seu interior, a partir de causas determinadas e apropriadas que Pascal procurou reduzir à concupiscência e à força. Delas se seguem, igualmente, efeitos apropriados, no interior de uma ordem de justiça apropriada:
às grandezas de estabelecimento, devemos respeito de estabelecimento, isto é, certas cerimônias exteriores que devem ser acompanhadas, segundo a razão, de um reconhecimento interior da justiça dessa ordem, mas que não nos fazem conceber nenhuma qualidade real naqueles que honramos dessa forma. (ibidem)
As grandezas de estabelecimento se reportam portanto a uma ordem de justiça particular, que é a ordem civil, de modo que o que viemos chamando de ordem da concupiscência pode ser entendido, no sentido técnico do termo, como uma determinada ordem de grandezas, contínuas e bem proporcionadas entre si, ao mesmo tempo em que descontínuas em relação a grandezas de outras ordens.[7]
Isso explica que uma tal ordem não possa fundar-se sobre a virtude. Mas implica igualmente que ela tampouco possa engendrar uma ordem moral, tendo em vista a radicalidade com que Pascal pensou a descontinuidade entre as grandezas. A descontinuidade é tal que não é possível dizer, como dirá Nicole, que a ordem civil, ainda que gerada pelo amor-próprio, é de algum modo um meio pelo qual Deus nos põe no caminho da graça, sendo a preparação para graça o fim que justifica moralmente a sociedade política.[8] Não há para Pascal relação instrumental possível entre uma ordem e outra, porque as causas que operam em uma não são capazes de produzir[9]efeitos em outra.
Quando Pascal pensa a diferença entre as ordens como uma diferença entre três tipos de objetos da vontade, como faz em p.933-460, quando o tema é a vontade, que se caracteriza por visar fins, a relação entre as ordens envolve a subordinação entre elas, mais precisamente, a subordinação dos fins visados nas ordens inferiores ao fim próprio da vontade em sua ordem superior, a justiça. No entanto, não é a partir de um modelo de subordinação de fins que Pascal pensa a especificidade e a legitimidade da justiça proporcional à ordem da concupiscência. Não é porque do ponto de vista da vontade se deva subordinar um fim inferior ao superior, que a justiça da ordem da concupiscência se deixe aferir por este processo de subordinação em que consiste a boa vontade, que é boa em sua ordem[10] e, não obstante, ineficiente e inoperante na ordem civil. Não se pode portanto pensar a justiça que a ordem da concupiscência comporta a partir da justiça da vontade, pensada como correta subordinação de fins.
Na medida em que cada ordem é um regime operatório (tal como Pascal as pensa em p.308-482), há uma justiça interna a cada ordem, independentemente de sua relação com outras ordens, em escala hierárquica. Nesse caso, a justiça própria à política não mais pode ser pensada pela subordinação de seus fins a fins mais elevados (essa é a justiça da vontade), mas pela regra de proporção interna entre suas causas e efeitos – uma regra operatória que é bem proporcionada, ordenada e justa pelo simples fato de operar e ser eficiente em sua ordem, independentemente de sua relação com outras ordens.[11] De que modo então a ordem política pode remeter à grandeza e à dignidade moral do homem, se estes não constituem os seus fins e a medida de sua justiça interna? Que lugar pode haver para a moral no interior da ordem da concupiscência?
Que haja esse lugar é o que Pascal sugere ao assinalar certa diferença entre os homens do mundo: nem todos estamos igualmente distantes da verdade acerca de nossa condição; nem todos julgamos o mundo do mesmo modo, embora talvez ajamos no mundo sempre por concupiscência. É esta mudança de ênfase do problema moral do plano do agir ao do julgar, este novo lugar destinado à moral no interior da vida social, e não a pura e simples afirmação da autonomia da ordem sócio-política com relação à moral, o que nos parece ser o grande legado de Pascal e a principal implicação do modo como ele pensou a ordem social enquanto ordem da concupiscência. Vejamos como esta ênfase se opera. 10 juízo moral do descrente: ele está persuadido que todo homem permanece capaz de perceber a transcendência da moral cristã. A diversidade dos costumes não basta, no fim das contas, para negar a transcendência de uma lei natural, mas, ao contrário, a torna evidente”. G. Ferreyrolles dá um passo adiante, argumentando que o direito natural é para Pascal um princípio regulador da política. Sem que se respeitem certos princípios do direito natural não há sociedade política que perdure ou que possa ser justa, como Pascal afirma serem eficientes e justas as leis civis estabelecidas pelo poder político. Segundo Ferreyrolles, mesmo nos fragmentos dos Pensées que parecem negar francamente a existência da lei natural, Pascal terminaria por reafirmar sua validade universal, para além da diversidade das leis civis, que não podem contradizê-la sem injustiça. “O estabelecimento só faz a justiça de uma lei sob a condição de que o direito natural ou divino tenha antes justificado o estabelecimento, isto é, caucionado a autoridade do legislador e verificado se suas prescrições não vão contra a equidade dos princípios” (Ferreyrolles,1984, p.190). C. Lazzeri, no entanto, opõe-se frontalmente a esta tese: “Se Pascal – por hipótese – sustentasse que as leis de natureza são cognoscíveis e conhecidas [do que Lazzeri discorda, tendo em vista as passagens em que Pascal o nega explicitamente], ele seria o único autor que quanto a este ponto desconectou as leis positivas das leis naturais, pois ele não reporta jamais a justiça das primeiras, justas simplesmente porque são leis, à das segundas, nem para dizer que lhes são conformes, nem para dizer que deveriam ser. A que poderiam então servir as leis naturais nessas condições?” (Lazzeri, 1993, p.205, nota). O argumento geral de Lazzeri é o de que Pascal é um crítico da tradição do direito natural por pensar a legitimidade do poder a partir de seu modo de funcionamento, como se vê a partir do momento em que se ilumina o conceito de ordem e se salienta sua importância para o pensamento político de Pascal (cf. Lazzeri, 1993, intr, p.xv). Lazzeri perece ter razão no que diz respeito à desconexão entre os princípios do direito natural e dos que conferem legitimidade à política. Se a décima quarta Provincial acusa os jesuítas de promoverem uma política contrária à lei natural, é menos para apregoar a necessidade de legitimar a ação política a partir do recurso aos preceitos da lei natural do que para denunciar uma política que desconhece sua ordem própria, teimando confundir-se com a ordem moral, usando desta para fins políticos e pondo-a a perder. Ainda assim, parece-nos que P.Sellier tem razão em afirmar que a Apologia de Pascal visa evidenciar, na esteira de Agostinho, a presença de uma lei natural, imutável e eterna como princípio regulador da vontade justa. Ocorre porém que a vontade justa é ineficiente na ordem da concupiscência, não lhe servindo de princípio ordenador. Não obstante, ela permanece no horizonte da política, o que pressentiu Ferreyrolles, restando a precisar, contudo, a maneira oblíqua como isso se dá.
A ordem da concupiscência é um quadro (tableau) da caridade (p.118402). Como no ensaio Da caridade e do amor-próprio de Nicole, a idéia é a de que a ordem da concupiscência, quando vista de fora, pelos efeitos, é tão harmônica e ordenada quanto à caridade. Nada é “tão semelhante aos efeitos da caridade quanto os efeitos do amor-próprio” (Nicole, 1999, p.381). A semelhança dos efeitos não suprime, porém, a contrariedade das causas: nada é “tão oposto à caridade que reporta tudo a Deus quanto o amor-próprio que reporta tudo a si” (ibidem). Um esquema semelhante orienta as Máximas de La Rochefoucauld, nas quais se denunciam os movimentos do amor-próprio escondidos sob a roupagem de aparentes virtudes: “o que os homens denominaram amizade é somente uma sociedade, zelo mútuo de interesses e troca de bons ofícios; é comércio, enfim, em que o amor-próprio tem sempre algo a ganhar” (La Rochefoucauld, 1994, p.28). Do mesmo modo, também para Pascal, o regulamento admirável retirado da concupiscência, embora pareça um efeito da caridade, apenas encobre o “fundo infame do homem”, sem suprimi-lo (p.211-453): “no fundo não é mais que ódio”. O regulamento da concupiscência é por isso uma “falsa imagem da caridade.” (p.210-451)
Mas se a semelhança dos efeitos oculta a diferença das causas, sugerindo uma falsa causalidade, a imagem que se oferece, enquanto tal, não é falsa, apenas expõe uma relação de semelhança em si mesma verdadeira: os efeitos do amor-próprio remetem por semelhança aos efeitos da caridade. Eis assim o que singulariza Pascal em relação a Nicole e La Rochefoucauld no modo de pensar a relação entre a concupiscência e a caridade: Pascal viu nesta relação sobretudo uma imagem, ou, mais propriamente, uma figura, noção a qual recorre expressamente em outros fragmentos para designá-la: “Figurativo. Nada é tão semelhante à caridade quanto a cupidez e nada lhe é tão contrário” (p.615-663). A semelhança e a contrariedade pensadas como traços da figura são qualidades que pertencem à imagem enquanto tal, considerada em si mesma e independentemente da relação eficiente com suas causas: uma imagem é ao mesmo tempo semelhante e contrária àquilo de que é imagem. Ela é figura: uma pintura (peinture), um retrato (portrait) “que traz em si presença e ausência” (p.260-678). Ela não é portanto apenas falsidade, pois, aquilo mesmo que ela falseia, ela também indica e apresenta. A noção de figura permite assim a Pascal explorar os aspectos positivos da aparência de que se revestem os movimentos da concupiscência.
Os termos figura e figurativo estão essencialmente ligados à interpretação do Velho Testamento. “O Velho testamento é uma cifra” (p.276-691). Deus fala aos judeus, que é um povo carnal e concupiscente, figurativamente, para fazê-los os depositários das verdades do cristianismo, sem que o soubessem (p.502-571). Assim, Deus, ao prometer bens da carne ao povo judeu, figura por essa via os bens da caridade, aos quais os judeus, cegados pela concupiscência, não podiam ver: “os judeus carnais não entendiam nem a grandeza nem o rebaixamento do Messias predito em suas profecias” (p.256-662). No entanto, a mesma figura que oculta aos ímpios as verdades da caridade, remete os justos a elas: “Deus, para tornar o Messias reconhecível aos bons e irreconhecível aos maus, fê-lo predizer dessa maneira” (p.255-758). Desse modo, se a ordem da concupiscência não é apenas uma falsa imagem mas uma figura da caridade é porque, assim como as Escrituras retratam os bens da caridade por meio dos bens da concupiscência, a concupiscência, quando produz efeitos semelhantes aos da caridade, retrata, mostra, torna presente a comunhão dos homens na caridade.
Essa comunhão, na falta de existir realmente, é imaginada pelo cristão, como uma forma de regular seu amor-próprio: “para se regular o amor que se deve a si mesmo é preciso imaginar que se tem um corpo cheio de membros pensantes, pois somos membros de um todo, e ver como cada membro deveria amar-se” (p.368-474). “Ser membro é não ter nem vida, nem ser e nem movimento senão pelo espírito do corpo e para o corpo” (p.372-483). Ora, se o “regulamento admirável” retirado da concupiscência é uma figura da comunhão orgânica das vontades na caridade é precisamente porque o que parece comunhão orgânica não passa da articulação de vontades individuais e antagônicas. A figura preserva as contradições internas ao elemento figurante para a produção do efeito figurativo. O sentido espiritual e figurado que se retira das Escrituras não apaga as contradições que se colocam no plano literal do texto, mas, antes, se faz ver a partir delas. Do mesmo modo, a ordem social e política não suprime a contradição das vontades, e pour cause, remete à imagem orgânica da caridade, no horizonte da qual as contradições se resolvem. O sentido figurado é indicado por meio das contradições do elemento figurante.
A remissão figurativa não se dá portanto na forma de uma causalidade eficiente retirando da concupiscência efeitos da caridade: isso é impossível e de outra ordem e qualquer sugestão de um vínculo causal entre elementos de ordens diversas é simplesmente falso. Mas não é isso o que a figura sugere a quem saiba vê-la. A figura não suprime a distância infinita entre as ordens, não abre a passagem, nem tampouco aponta para uma causalidade eficiente perfazendo o caminho de uma ordem à outra. Ela apenas indica, por uma operação do pensamento, uma certa proporção entre as ordens ou, se quisermos, dá a ver uma ordem em outra. A figura é para ser pensada, ou, mais propriamente, vista. “Figuras. Desde que se desvendou esse segredo, é impossível não o ver” (p.267-680) – sendo esse tipo de discernimento uma qualidade que Pascal atribui ao espírito, quando ele é fino: o espírito fino sabe ver de um relance (cf. p.512-1).
Assim, na figura, trata-se menos do que se pode fazer, dos efeitos que se pode produzir ou deixar de produzir a partir de certas causas, e mais do que se pode pensar sobre a relação entre uma ordem operativa e outra. E no que diz respeito a esse pensamento, trata-se menos do que o espírito pode pensar nas ciências enquanto espírito geométrico e mais do que pode pensar, ou, mais propriamente, sentir e discernir de um relance, enquanto esprit de finesse, a partir de princípios comuns, muito numerosos e ao alcance de todos, que não se deixam dispor em uma ordem demonstrativa linear (cf.p.512-1). Ao esprit de finesse corresponde a capacidade de julgar mais do que a de conhecer. E a “verdadeira moral” (p.513-4), que segundo Pascal não se deixa dispor demonstrativamente nem tampouco se encerrar num princípio (p.683-20), assenta-se sobre essa capacidade. Assim, julgar bem no campo da moral é julgar a partir do mundo e de dentro dele, é discernir de modo mais ou menos justo em meio às suas contradições as verdades que concernem à própria condição e miséria. É isso, ao que parece, o que faz a figura: ela faz ver nas contradições da concupiscência as verdades da caridade.
Por meio dessa remissão, ela também faz ver o mundo – o regulamento da concupiscência – de outro modo. Assim como a figura altera o valor das profecias e dos outros elementos relativos à história do povo judeu presentes no Antigo Testamento, ela faz ver com outros olhos o valor e o sentido da “bela ordem” concupiscente. Mas com isso, ela não altera em nada a natureza desse regulamento. Pelo contrário, o efeito figurativo requer que a concupiscência permaneça concupiscência quando remete à caridade.
Compreende-se assim a diferença entre a perspectiva de Pascal e a de Nicole. Para Nicole, a relação entre a concupiscência e a caridade é uma relação instrumental, uma vez que para ele a paz civil, enquanto um efeito do amor-próprio, é um meio da graça e instrumento da caridade, o que é interditado pela doutrina das ordens pascaliana. Para Pascal, essa mesma relação é figurativa. Disso se segue uma concepção radicalmente distinta acerca da posição do verdadeiro cristão nesse mundo. Para Nicole, o cristão deve imitar o cortesão no cultivo das virtudes mundanas, diferindo porém do cortesão quanto ao fim visado por esses meios: onde o cortesão visa um proveito mundano, o cristão visa a caridade. O bom cristão de Pascal, por sua vez, é aquele que vê no mundo a figura. A figura regula o seu juízo, tempera a sua vontade e produz sua virtude,[12] mas uma virtude que não é mais pensada como técnica de ação no mundo visando a produção de um fim, mas como um bom juízo, capaz de ver na caridade um ponto de fuga das contradições do mundo. O bom cristão de Pascal é menos aquele que faz algo no mundo e mais aquele que o julga bem.
Compreende-se também que nos Três discursos sobre a condição dos grandes Pascal não se disponha a aconselhar os grandes como agir, como é de praxe nos manuais de aconselhamento dos príncipes, o de Maquiavel inclusive. Trata-se, ao contrário, de ensinar ao príncipe como pensar a sua posição e função social, sem que isso acarrete qualquer alteração na ação, seja quanto ao seu princípio, quanto aos seus meios, seja ainda quanto aos seus fins. Por conhecerem sua condição, os reis não deixarão de ser reis da concupiscência, agindo por concupiscência, utilizando a concupiscência dos súditos para governar e visando tão somente satisfazer as necessidades da concupiscência. Ao contrário, o conhecimento da própria condição é o que permite ao rei usar dos meios que sua condição lhe fornece para governar, de modo a não pretender “reinar por outro caminho senão por aquele que [lhe] faz rei.” (Pascal, 1994, p.88)
O conhecimento da própria condição – fundamentalmente: a percepção de que os respeitos que lhe são prestados são de estabelecimento e não naturais – deve consistir num pensamento oculto, acompanhando a ação do rei, sem revelar exteriormente o que conhece interiormente a seu respeito. O rei não deve deixar de agir como se lhe fossem devidos respeitos naturais, pois essa ilusão, obra da concupiscência, é o que confere eficiência ao seu poder. Tampouco deve esquecer que a ilusão sustenta o seu poder, pois querer contorná-la e governar sem aparência é querer reinar por outra via que não a que lhe faz rei e buscar outro brilho que não o de sua ordem.
De que vale então esse pensamento, se ele não altera o andamento do mundo? Vale o que vale um pensamento. O pensamento especifica o homem: “... não posso conceber um homem sem pensamento. Seria uma pedra ou um bicho” (p.111-339). É também o que o dignifica: “o homem é visivelmente feito para pensar. É toda a sua dignidade e todo o seu mérito...” (p.619-394); “...toda nossa dignidade consiste pois no pensamento” (p.200347). É ainda o que o engrandece: “a grandeza do homem é grande por ele conhecer-se miserável; uma árvore não se conhece miserável...” (p.114397). O valor do pensamento está assim em que por ele somos capazes de pensar a própria condição, ainda que isso não implique poder alterá-la. O pensamento vale por si só, como afirmação do que em nós transcende a nossa condição.
Mas seria só isso? Reduzida a uma visão da caridade a virtude teria assim se retirado do mundo e renunciado ao seu sentido prático? Em boa parte, certamente, mas convém não se exceder nas conclusões. Que a ordem da concupiscência se constitua a partir da miséria e não dependa da grandeza do homem para se regular não quer dizer que a grandeza a que o homem pode se alçar ao julgar bem a si mesmo e conhecer sua condição seja uma grandeza estritamente privada e inativa, em última instância contraditória com a vida pública e sem nenhum efeito político, como se a moral tivesse então sido banida dos negócios públicos para se recolher ao claustro, onde o homem solitariamente clama a graça de Deus. O convite que Pascal faz aos grandes é um convite endereçado a homens do mundo, cujas opiniões e comportamento são formados no mundo, tomando parte no seu andamento, de um tal modo que o que os grandes pensam de si mesmos não deixa de ter uma forte relação com o ordenamento do mundo.
Note-se, quanto a isso, que o regulamento admirável retirado da concupiscência é bastante frágil, havendo sempre quem esteja disposto a apontar como aparente a grandeza dos grandes, pondo assim em risco a estabilidade política.
A arte de subverter os estados é a de abalar os costumes estabelecidos, sondando-os até sua fonte para fazer notar sua falta de autoridade e justiça. (...) É um jogo certo para perder tudo, pois nada será justo para essa balança. Entretanto, o povo facilmente presta ouvido a esses discursos, eles sacodem o jugo logo que o reconhecem.... (p.60-294)
A opinião desmistificadora que despreza os grandes tem efeito sobre a opinião do povo, que deixa de respeitá-los, e assim, por uma espécie de progressão das opiniões no interior da ordem da concupiscência, a paz pública se põe a perder.
Contudo, quando os grandes conhecem a própria condição e a natureza da política, se habilitam a fazer voltar-se contra si mesma a acusação de impostura, respondendo ao desprezo que lhes é dirigido. Não há impostura na ilusão que sustenta o poder, porque ela é condição de sua eficácia. Os grandes saberão assim como preservá-la: “contentai seus justos desejos [os do povo], aliviai suas necessidades, tendo prazer em ser bondoso; fazei o possível para que eles progridam e estareis agindo como verdadeiro rei da concupiscência” (Pascal, 1994, p.88). A concupiscência se encarregará de manter contra aqueles que a denunciam a ilusão necessária ao exercício do poder que a satisfaz.
Assim, um certo encadeamento de juízos no interior da ordem da concupiscência pode perturbá-la: os grandes são desprezados pelos assim denominados semi-hábeis, que denunciam sua grandeza como aparente (cf. 90-337); isso, por sua vez, pode alterar o juízo do povo, que respeita os grandes sob a condição da aparência, pondo em risco o poder político, sobre o qual se assenta a ordem pública (cf. 60-294). De modo que a ordem pública depende de que se acrescente a esses juízos um outro ainda mais qualificado e superior: a opinião dos hábeis, que vêem o que há de sadio na opinião do povo, sem partilhar sua ilusão com respeito aos grandes (cf. 90-337; 92335; 93-328; 94-313; 95-316; 101-324). Os hábeis praticam “segundas intenções” – precisamente o “pensamento oculto” que se aconselha os grandes a cultivar nos Três discursos sobre a condição dos grandes: “é preciso ter segundas intenções, e julgar tudo por esse prisma, falando entretanto como o povo” (p.91-336).
Tal pensamento não perturba a ordem pública; pelo contrário, converge com ela, ao compreendê-la. Ele tem, deste modo, algum efeito sobre ela, ainda que indireto. Não é ele que a produz, pois ela é um efeito da concupiscência. Mas ao não perturbar o encadeamento regulado dos efeitos, ele contribui para o seu bom andamento. “O povo e os hábeis compõem o andamento do mundo (le train du monde); aqueles [os que “têm alguma tintura daquela ciência arrogante e se fazem de entendidos” – os semi-hábeis] desprezam-no e são desprezados. Eles julgam mal todas as coisas, e o mundo as julga bem” (p.83-237). Bons juízos compõem, deste modo, o bom andamento do mundo.
Ou talvez: o bom andamento do mundo é composto por um sistema bem regulado de juízos. Pois, as opiniões do povo, dos semi-hábeis e hábeis estão entrelaçadas entre si, como num sistema de opiniões mundanas que se determinam mutuamente. A opinião dos hábeis está para a dos semi-hábeis, assim como essa opinião está para a do povo: ela “destrói a opinião que destruía a do povo” (p.93-328). E assim como a opinião dos semi-hábeis é incapaz de retirar inteiramente a razão do povo, a opinião dos hábeis não destrói totalmente a opinião a que se opõe: “é verdade que o povo é vão, ainda que suas opiniões sejam sadias, porque ele não sente a verdade delas onde ela está e porque, colocando-a onde ela não está, as suas opiniões são sempre muito falsas e malsãs” (idem). Cada opinião, portanto, liga-se às outras, na medida em que se define por oposição a uma outra e que, por meio dessa oposição, recobra a razão da opinião a que se opõe a opinião que quer destruir. Trata-se assim de um antagonismo sistemático das opiniões, ao qual corresponde o antagonismo socialmente ordenado das concupiscências.
É importante notar que, neste sistema, os juízos se ordenam em gradação. As opiniões não se equivalem. A opinião dos semi-hábeis é superior à do povo, a dos hábeis superior à dos semi-hábeis, e a opinião que recobra contra os hábeis o que há de falso na opinião do povo sem contudo negar sua verdade é seguramente mais qualificada do que as outras. No que consiste esta superioridade?
Em primeiro lugar, no fato de que ela abarca um maior número de opiniões ou perspectivas, cada opinião sendo superior na gradação de opiniões por incorporar as anteriores e compreender seu antagonismo, sem suprimi-lo. Esse é um ponto importante do bem conhecido perspectivismo de Pascal. “Todos erram tanto mais perigosamente quanto seguem cada um uma verdade; o seu erro não está em seguirem uma falsidade, mas em não seguirem outra verdade” (p.443-863). Julga-se tanto melhor quanto mais se percebe que a verdade não tem uma única face, posto que “nossos instrumentos são cegos para tocá-la com exatidão” (p.44-82) e não dispomos de olhos absolutos para vê-la. “Cada coisa aqui é verdadeira em parte, falsa em parte” (p.905-385). Erram portanto aqueles que querem julgar sobre a verdade das coisas como se estivessem instalados do seio da Verdade, assim como erra quem julgue sobre a justiça das instituições mundanas como se dispusesse de um padrão natural da Justiça. “Veri juris. Não o temos mais” (p.86-297). Daí porque aqueles que agem em nome de uma Justiça que se arvoram a conhecer incorram em suma injustiça: “summum jus. summa injuria” (p.85-878). Na ordem da concupiscência, é preciso reconhecer que a Justiça “se deixa manipular como se quer” e, a partir daí, reconhecer o direito, não absoluto, mas perfeitamente justo em sua ordem, da espada.
Mas tal opinião é superior, em segundo lugar, porque transcende o plano das razões de estado, para ver nelas e através delas as verdades acerca da condição humana, tal como as explicita a fé cristã. O sistema de juízos em gradação culmina assim na visão do verdadeiro cristão, que vê no mundo a figura, os vestígios do que ele não é, mas traz em promessa. O cristão vê as verdades da caridade nas contradições das opiniões que fazem o andamento do mundo, como o ponto de fuga dessas contradições, sem no entanto suprimi-las. O cristão vê, assim, na figura a razão de cada uma das opiniões dispostas num sistema de antagonismos, no interior do qual a sua própria opinião encontra um lugar.
Este nos parece um ponto fundamental: a posição do cristão se impõe como um juízo bem qualificado na ordem da concupiscência e em relação a outros juízos que se produzem nessa ordem. Ela é, portanto, uma posição no mundo, tomando parte no seu andamento e integrando o sistema das opiniões que o compõem. É a partir de seu pertencimento ao mundo que o cristão o transcende.[13] O que quer dizer que a virtude não se retirou totalmente do mundo, porque encontra um lugar no sistema de opiniões que o compõe, e não deixou de tomar parte nos negócios públicos, visto que contribui para o seu bom andamento. Dito isso, é inegável que ela não mais se inscreve no mundo do modo como tradicionalmente se inscrevia.
Assim, com Pascal, a moralidade ou a virtude que a vida social comporta deixa de se reportar imediatamente a uma capacidade de agir e fazer bem, para se referir primeiro e de modo mais fundamental a uma capacidade de julgar e discernir os valores das diversas condutas, posições e opiniões dos homens do mundo. O juízo bem qualificado não tem, num primeiro momento, qualquer interesse na produção de um fim; ao contrário, ele se qualifica pelo reconhecimento de que nossa ação não deve e não é capaz de romper com o regime de determinações mundanas. Trata-se assim antes de julgar bem ao mundo do que de agir bem nele, ainda que esse juízo bem qualificado não deixe de regular a ação, de modo que ela não perturbe (o que é diferente de produzir) o bom andamento do mundo.
Esse privilégio do julgar sobre o agir, que encontraremos bem estabelecido no pensamento moral do século seguinte,[14] impôs-se a Pascal no momento em que ele concebeu a ordem política como um produto da concupiscência. A virtude, deixando assim de estar no princípio da ordem mundana, passa a se enraizar no mundo sob a forma de um juízo que o critica, sem alterar o seu andamento. A moral não foi portanto banida dos negócios dos homens. Ela encontra aí um lugar, mas um lugar oblíquo e seguramente menos confortável do que aquele que tradicionalmente ocupava, quando a grandeza moral do homem residia, sem mais, em sua capacidade de dar ordem ao mundo.
■ ABSTRACT: Pascal conceives the civil order as an order of conscupiscence, that is, an order produced and regulated by concupiscence. However, when exempting virtue from being the source of civil order, he does not advance the separation between politics and morals, but signals a new and problematic role to virtue
in the interior of civil order – no more the role of producing it, but of judging it properly.
■ KEYWORDS: Pascal; concupiscence; charity; greatness.
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Artigo recebido em 02/06; aprovado para publicação em 05/06.
[1] Professora-Adjunto no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná.
[2] “P” indica um fragmento dos Pensamentos, seguido de sua numeração na edição Lafuma e na edição Brunschvicg respectivamente. De um modo geral, as citações seguem a tradução de Mario Laranjeira in: Pascal, 2001.
[3] Em outro lugar apresentamos essa novidade e expusemos o que nos ser a sua condição de possibilidade, a saber, o modo como Pascal concebeu a vontade decaída e, mais propriamente, a concupiscência da carne, à qual se reporta a ordem política (cf. Limongi, 2006).
[4] Como mostra Pércheman, 1997: “a diferença genérica entre duas ordens, quando comandada pela consideração das grandezas, é uma heterogeneidade que deve ser compreendida pela incomparabilidade entre potências. As grandezas são potências ativas e a heterogeneidade das ordens redunda na desproporção entre potências ativas determinadas e efeitos determinados”.
[5] Cf. o terceiro dos Trois discours sur la condition des grands, in: Pascal, 1963, p 367-8.
[6] Pensamos no entanto que isso é possível. Procuramos fazê-lo em nosso artigo supra-citado.
[7] É o que faz Lazzeri (1993), no nosso entender de modo feliz e decisivo.
[8] Como nota Thirouin, L. (1999, p.19), a paz civil define o “objetivo último” e a “inspiração própria” dos Ensaios de moral de Nicole. E se a paz é moralmente relevante é porque Nicole compreende que a boa e civil sociabilidade, mesmo sendo um produto do amor-próprio e de motivos viciosos,
[9] é um meio pelo qual Deus nos faz “seguir o instinto da graça” (De la charité et de l’amour-propre, in: Nicole, 1999, p.412), pondo-nos em seu caminho. Desprezar tais meios e deixar de praticar tudo o que a civilidade requer seria um orgulho extremo. “A verdadeira piedade consiste em praticar esses meios, e em reconhecer que é Deus que nos faz praticá-los” (Des diverses manières dont on tente Dieu, in: Nicole, p.432). Na ênfase depositada por Nicole sobre esses “motivos humanos”, malgrado sua adesão à cartilha agostiniana da graça eficaz, reside, como observa ainda L. Thirouin, “a originalidade e a abertura dos Ensaios de moral” (in: Nicole, p.413, nota 1).
[10] Em p.933-460 Pascal se refere à ordem da caridade como a ordem da vontade.
[11] Como salientamos, coube a Lazzeri (1993) o mérito de ter chamado a atenção para esta idéia que ele denomina a justiça interna às ordens, aplicando-a à política. Essa noção é importante para que possamos medir corretamente a distância entre Pascal e a tradição do direito natural. É o que mostra Lazzeri contra certos comentadores, como P.Sellier e G. Ferreyrolles, que, apoiados sobre o texto da décima quarta Provincial, na qual Pascal acusa os jesuítas de terem “de tal modo esquecido as leis de Deus e apagado as luzes naturais” que é preciso lembrá-los dos “princípios mais simples da religião e do senso comum” (Pascal, 1963, p.435), salientam a importância da lei natural na moral de Pascal, contra a afirmação corrente de que ele teria advogado uma forma qualquer de relativismo moral. Segundo Sellier (1970, p.102-3), “é a permanência da lei natural que funda os mais profundos argumentos da Apologia. Com efeito, Pascal não cessa de fazer apelo ao
[12] “Ninguém é tão feliz como um verdadeiro cristão, nem tão razoável, nem tão virtuoso, nem tão amável” (p.357-541).
[13] Ver a esse respeito Leopoldo e Silva, F. 2002.
[14] Isso nos parece válido para Hume, cuja primeira preocupação no tratamento das questões morais é a de descrever o processo pelo qual somos levados a distinguir entre a virtude e o vício enquanto seus espectadores, ou seja, enquanto juízes, partindo-se do princípio de que a relação entre o juízo e a ação é problemática. Não é porque reconheçamos o valor de uma ação benevolente que estamos imediatamente dispostos a agir com benevolência. O mesmo, nos parece, vale para Kant, embora a questão seja certamente polêmica. Na primeira parte da Fundamentação da metafísica dos costumes Kant qualifica a capacidade moral do homem comum fundamentalmente como uma capacidade de julgar a partir da idéia do dever, capacidade que, apenas secundariamente e sempre de modo problemático, se pode mostrar corresponder a uma capacidade de agir por dever.