A QUESTÃO DO FUNDAMENTO EM HEIDEGGER E A IMPORTÂNCIA PARA A TEORIA POLÍTICA PÓS-ESTRUTURALISTA

 

Daniel de Mendonça[1]

 

Resumo: O objetivo deste artigo é discutir as implicações filosóficas e teóricas que a reflexão ontológica de Martin Heidegger exerceu sobre o pós-estruturalismo, principalmente aquele recepcionado pela teoria política. Para cumprir esse objetivo, primeiramente, serão abordadas as noções de pós-estruturalismo e de pós-fundacionalismo. A seguir, será realizado um exercício exegético da noção de fundamento de Heidegger, estabelecendo a distinção entre seus efeitos epistemológicos e ontológicos. Após, será analisada criticamente a leitura fundacional heideggeriana de Oliver Marchart. Na última seção, a partir da radicalidade do fundamento heideggeriano, será proposta uma abordagem sobre a diferença política, tendo a diferença ontológica de Heidegger como base. Essa leitura pode ser simplificada da seguinte forma: não há fundamento no ser, mas o ente se fundamenta desde si.

 

Palavras-chave: Teoria política. Pós-estruturalismo. Fundamento. Diferença política.

 

INTRODUÇÃO

O objetivo do artigo é discutir a influência da reflexão de Martin Heidegger sobre ser e fundamento, no âmbito da teoria política pós-estruturalista. Para cumprir esse objetivo, o texto divide-se em cinco seções. Primeiramente, abordaremos elementos do pós-estruturalismo e do pós-fundacionalismo, além de como a teoria política mobiliza essas noções, a partir das abordagens de Chantal Mouffe, Ernesto Laclau e Oliver Marchart. Na sequência, realizaremos um exercício exegético sobre o fundamento em Heidegger, necessário e preparatório para, na seção seguinte, demonstrarmos que o debate heideggeriano acerca do fundamento assume claramente uma perspectiva ontológica, afastando-se da epistemologia.

Após, analisaremos criticamente como Marchart elabora, inspirado em Heidegger, sua abordagem pós-fundacional. Contra Marchart, argumentaremos: i) que o debate pós-fundacionalista não deve ser realizado como resposta à tradição epistemológica fundacionalista; e ii) que a conclusão de que o pós-fundacionalismo representa a “ausência de fundamento último” é fragilmente defensável, sob um ponto de vista heideggeriano. Por fim, proporemos outra leitura sobre a diferença política inspirada na diferença ontológica de Heidegger, a qual pode ser assim resumida: não há fundamento no ser e o ente fundamenta-se desde si. Essa leitura alternativa tem implicações importantes à teoria política pós-estruturalista, visto que ela questiona a posição ontológica sustentada por Marchart e por Laclau, hegemônica nesse campo teórico.

 

1 PÓS-ESTRUTURALISMO, PÓS-FUNDACIONALISMO E TEORIA POLÍTICA PÓS-ESTRUTURALISTA

“Pós-estruturalismo” é o termo atribuído pela academia estadunidense às reflexões de intelectuais franceses que perceberam, em meados da década de 1960, as limitações do estruturalismo (CUSSET, 2008; PEETERS, 2013). De uma forma geral, o pós-estruturalismo representa a desconstrução do essencialismo e do cientificismo presentes no estruturalismo até então triunfante, naquele cenário intelectual.

Num texto seminal ao pós-estruturalismo, Derrida (2005) – a partir de uma crítica a Lévi-Strauss –, desconstrói as premissas do estruturalismo. Tal desconstrução demonstra aporias existentes nessa forma de pensamento, ocasionadas, segundo o filósofo, pelo limite do “jogo estrutural”, sendo tal limite resultado da vinculação essencial a um fundamento que fixa a estrutura. Ainda que sua crítica seja ao estruturalismo, Derrida detecta que a estrutura e sua limitação têm a idade da filosofia ocidental, sendo o estruturalismo apenas mais um capítulo dessa longa história. 

O que limita o jogo da estrutura é o que, de longe e de forma implacável, a transcende. “Centro” é o nome escolhido por Derrida para essa instância, a qual, além de controlar o movimento estrutural, torna este o seu epifenômeno. O centro não é um centro geográfico, mas um centro de controle. O centro tem, na verdade, diversos nomes nessa longa história de restrição: fundamento, princípio, essência, substância, Deus etc.   

Segundo Derrida, a centralidade do “centro” fundante da estrutura passa a ser questionada quando – desde Nietzsche, passando por Freud e chegando em Heidegger –, se percebeu que o “centro” não é um lugar fixo, não sendo igualmente capaz de ser o significado transcendental e permanente de uma estrutura, como quer a tradição fundacional. Assim, a ausência do “centro” abre completamente o “jogo da estrutura”, retirando-lhe o limite de sua significação, possibilitando o pós-estruturalismo emergir do próprio estruturalismo. Pode-se dizer, nesse sentido, que o pós-estruturalismo foi o resultado de uma investida pós-fundacional ao estruturalismo.

Para que o pós-estruturalismo tivesse suas condições discursivas de emergência, foi preciso que houvesse, anteriormente, um “movimento” de pensamento contrário ao império do fundamento. Tal “movimento”, entre aspas, pois não se trata de um movimento (no sentido de Escola), porém, de um movimento (no sentido de mover-se) do pensamento, é comumente chamado de pós-fundacionalismo. Dois são os filósofos determinantes, cujos pensamentos devastaram as certezas do fundamento:

Interpretarei o pós-estruturalismo, então, como uma resposta filosófica específica ao suposto status científico do estruturalismo ao seu status de megaparadigma para as ciências sociais e como um movimento que, sob a inspiração de Friedrich Nietzsche, Martin Heidegger e outros, procurou descentrar as “estruturas”, a sistematicidade e o status científico do estruturalismo, para criticar a sua metafísica subjacente e estendê-la em várias direções diferentes, preservando, ao mesmo tempo, os elementos centrais da crítica do estruturalismo ao sujeito humanista (PETERS, 1999, p. 02, grifo do autor, tradução nossa).

 

No tocante à teoria política, o pós-estruturalismo refletiu diretamente no questionamento e no enfraquecimento dos estatutos de verdade de projetos político-normativos, a partir do estabelecimento da distinção entre o político e a política, inspirada na diferença ontológica de Heidegger. Dizemos “inspirada”, pois não é o caso de verificarmos stricto sensu teóricos políticos heideggerianos. Nesse sentido, as teorias pós-fundacionalistas e pós-estruturalistas estão sobredeterminadas de diversas formas: são várias as influências recebidas por esses autores, sendo a de Heidegger, ainda que fundamental, uma entre outras.

Centrando a atenção especificamente na diferença ontológica, tal como mobilizada pela teoria política pós-estruturalista, o político (the political) refere-se à dimensão ontológica e a política (politics) à ôntica. Essa relação entre o político e a política é chamada de diferença política (em função da apropriação dessas categorias filosóficas por Mouffe (2005), Laclau (1990) e Marchart (2007).[2]

Para Mouffe, a política está reservada aos estudos empíricos conduzidos pela ciência política, enquanto o político é uma preocupação da teoria política, a qual constitui o “domínio dos filósofos que investigam não os fatos da ‘política’, mas a essência do ‘político’” (MOUFFE, 2005, p. 8, tradução nossa). A autora argumenta em favor de uma homologia entre a diferença ontológica e a diferença política:

Se quiséssemos expressar tal distinção de uma forma filosófica, poderíamos, tomando emprestado o vocabulário de Heidegger, dizer que a política se refere ao nível “ôntico”, enquanto “o político” tem a ver com o “ontológico”. Isso significa que o ôntico se refere às múltiplas práticas da política convencional, enquanto o ontológico diz respeito à própria forma na qual a sociedade é instituída (MOUFFE, 2005, p. 8-9, tradução nossa).

 

  

Laclau concorda com a diferença política proposta por Mouffe, preferindo, porém, empregar o termo “social”, no lugar de “política”, embora, em geral, não haja diferenças significativas entre ambos. O teórico argentino, retomando e modificando as noções de sedimentação e de reativação de Husserl, entende o social como um conjunto de práticas sedimentadas que visam ao esquecimento de suas origens e ao silenciamento de alternativas ora descartadas em nome de uma decisão, naturalizando-a e negando a contingência que a acompanha. Já a reativação é o momento em que o social é mostrado como nada além do que uma decisão tomada em um terreno indecidível e que, portanto, toda objetividade social é sempre contingente. Assim, “[a]s formas sedimentadas de ‘objetividade’ compõem o campo que chamaremos de o ‘social’. O momento do antagonismo, quando a natureza indecidível das alternativas e a sua resolução, através das relações de poder, se tornam plenamente visíveis, constitui o campo do ‘político’” (LACLAU, 1990, p. 35).

Por fim, neste percurso preliminar da influência de Heidegger sobre a teoria política pós-estruturalista, o último exemplo da diferença política vem de Marchart (2007), numa abordagem que se apresenta como uma ontologia política heideggeriana. Marchart assume a diferença entre a política e o político, reservando a primeira aos regimes discursivos específicos, enquanto o político representa o princípio da autonomia política e o momento da instituição da sociedade.

É assim que o caráter diferencial da diferença política deve ser entendido: o político (localizado, por assim dizer, no lado “ontológico” do Ser-como-fundamento) nunca será plenamente capaz de cumprir a sua função como fundamento e, no entanto, precisa ser atualizado na forma de uma política sempre concreta que necessariamente falha em entregar o que prometeu. Mas a política e o político, o momento de fundação e o momento da atualização desse fundamento, nunca se encontrarão devido ao abismo intransponível da diferença entre esses termos, a qual, por si só, é apenas a assinatura de nossa condição pós-fundacional (MARCHART, 2007, p. 8, grifo do autor, tradução nossa).

 

Até aqui, realizamos uma incursão sobre a influência do pensamento heideggeriano na teoria política pós-estruturalista, em face de uma rápida passagem por trechos de trabalhos de Mouffe, Laclau e Marchart. A seguir, será feita uma exegese da reflexão de Heidegger sobre o fundamento. É desde essa discussão heideggeriana que perceberemos a sua contribuição para o pensamento pós-estruturalista, sobretudo aquele incorporado pela teoria política. Todas as características definidoras do pós-estruturalismo, ou seja, historicidade, contingência, precariedade, crítica ao fundamento poderão ser mais bem compreendidas a partir da busca heideggeriana pela essência do fundamento. Esta é a tarefa da próxima seção.

 

2 SER E FUNDAMENTO EM HEIDEGGER

Na sequência, será apresentado o caminho de Heidegger em direção da sua concepção de fundamento. Escolheu-se, para tanto, o ensaio “O Princípio do Fundamento” (HEIDEGGER, 1999),[3] tendo em vista ser nessa obra que o filósofo enfrenta, de maneira definitiva, a questão do fundamento.[4]

O ponto de partida da reflexão heideggeriana sobre o tema remete-se à formulação do Princípio da Razão Suficiente (doravante PRS), de Leibniz, no século XVII, considerada, por Heidegger, a primeira enunciação formal do princípio do fundamento. Tal princípio aparece formulado como nihil est sine ratione, ou seja, “nada é sem fundamento”. Em termos gerais, quer dizer que cada ente tem necessariamente um fundamento, não havendo exceção: “o que o princípio põe, põe-no ele sem excepções. O princípio do fundamento não é nem uma verificação nem uma regra. Ele põe, o que põe, como necessário” (HEIDEGGER, 1999, p. 15).

À leitura heideggeriana do princípio do fundamento de Leibniz é acrescentada ainda a sua interpretação rigorosa, o principium reddendae rationis, o qual significa que nenhuma verdade ou princípio correto “é sem o fundamento que necessariamente lhe deve ser entregue” (HEIDEGGER, 1999, p. 59). Tal fundamento a ser entregue, para Heidegger, pode ser compreendido simplesmente como “nada é sem porquê”. Isso quer dizer que todo ente tem um fundamento, ou seja, todo ente tem um porquê que lhe serve de base, de fundamento.

Após enunciar o princípio do fundamento de Leibniz, Heidegger começa a leitura crítica desse princípio, usando, como recurso inicial, a análise do fragmento de um poema de Angelus Silesius, conforme segue:

A rosa é sem porquê; ela floresce, porque ela floresce,

Ela não repara em si própria, não pergunta, se a vemos

(HEIDEGGER, 1999, p. 59).

 

Embora a análise do aforismo possa soar estranha ou deslocada, pois Heidegger a compara com o PRS, a intenção do filósofo é preparar o leitor para o que ele chamará de “duas tonalidades” do princípio do fundamento. O exemplo do poema já nos indica essa dupla tonalidade de leitura, como veremos agora.

Heidegger compara o princípio do fundamento, “nada é sem porquê”, com a primeira parte da primeira estrofe do aforismo: “A rosa é sem porquê”. A afirmação do poema contrasta com o princípio de Leibniz, ou seja, se a “rosa é sem porquê”, isso indica que ela não tem fundamento. Além disso, se a rosa não tem fundamento, o princípio leibniziano não é válido para o poema, uma vez que este pressupõe – como se viu acima, sem tolerância a qualquer exceção –, que todo ente possui um fundamento. Está claro, no entanto, que Heidegger não pretende desconstruir o princípio do fundamento apenas com o verso de um poema. Nesse sentido, o filósofo faz questão de resgatar o fundamento “ameaçado” por Silesius, lançando mão do próprio princípio do fundamento: 

A Botânica poderá, pelo contrário, comprovar-nos com facilidade uma cadeia de causas e condições para o crescimento das plantas. Nós não precisamos sequer, para comprovação de que o crescimento das plantas, por comparação com o aforismo de Angelus Silesius, tem o seu porquê, isto é, tem o seu necessário fundamento, de incomodar a Ciência (HEIDEGGER, 1999, p. 61).

 

Heidegger não tem intenção de rapidamente abandonar o princípio de Leibniz. Pelo contrário, na citação acima, ele demonstra a sua eficácia na forma em que ele é explicativo. Nesse sentido, o “porquê” da rosa está garantido pela Botânica, ou seja, a ciência comprova a necessária entrega do fundamento presente segundo a versão rigorosa do princípio. Porém, o uso do poema pelo filósofo tem o fito de chamar a atenção para outro modo de refletir sobre o fundamento. Voltando para a primeira parte do verso, tomando-a agora em sua inteireza, temos: “A rosa é sem porquê; ela floresce, porque ela floresce”. Assim, por um lado, o poeta afirma a inexistência do fundamento, “A rosa é sem porquê”; porém, por outro lado, ele aponta o próprio fundamento quando escreve que a rosa floresce “porque” ela floresce. No mesmo verso, há a enunciação ambígua da “inexistência” e da “existência” do fundamento. Poder-se-ia pensar simplesmente na licença própria de um texto poético, mas não é este o caso, segundo Heidegger. Na verdade, estamos diante de duas maneiras de refletir sobre o fundamento, cada uma delas representadas, respectivamente, pelos “porquê” e “porque”:

“Porquê” e “porque” têm significados diferentes. “Porquê” é a palavra para a pergunta pelo fundamento. O “porque” contém a referência respondente ao fundamento. O porquê busca o fundamento. O porque traz o fundamento. Diferente é, em conformidade com isso, o modo pelo qual a relação com o fundamento é representado. No porquê a relação com o fundamento é aquela do buscar. No porque a relação com o fundamento é aquela do alegar (HEIDEGGER, 1999, p. 61).

 

 

Nesse sentido – e isso é central – “porquê” e “porque” falam distintamente sobre o fundamento. O “porquê” da rosa está na Botânica, ou seja, fora da rosa. Já no caso do “porque”, a resposta ao fundamento está na rosa, como podemos perceber no verso seguinte: “Ela não repara em si própria, não pergunta, se a vemos”. Nesta segunda nuance, a reflexão sobre do fundamento está no florescer da rosa, sem que esta repare neste florescer. Assim, a rosa floresce porque ela floresce, sem prestar atenção ao ato mesmo de florescer, sem dar-se conta da “razão exterior” (água, luz, solo) que fundamenta o seu florescer. O florescimento é, nesse sentido, um autoflorescimento.

A discrepância entre “porquê” e “porque” poderia sugerir que Heidegger estaria rejeitando o princípio de Leibniz, o que não é o caso. A questão não é encontrar “o erro” do princípio leibniziano, mas demonstrar como este pode ser visto de outro modo. Assim, a enunciação do fundamento, que exige a reivindicação, não encerra a questão do fundamento. Isso fica evidente na interpretação do poema, o qual suscita que a rosa floresce porque ela floresce, sendo esse florescimento simplesmente um “abrir-se-a-partir-de-si” (HEIDEGGER, 1999, p. 64). Tal olhar crítico do princípio do fundamento gera, segundo Heidegger, uma “visão perturbadora”:  

O princípio do fundamento não enuncia nada sobre o fundamento. O princípio do fundamento não é um enunciado imediato sobre a essência do fundamento. […] o princípio do fundamento fala sem dúvida do fundamento e não é apesar disso um enunciado sobre o fundamento, como fundamento (HEIDEGGER, 1999, p. 65, grifo do autor).

 

A análise do aforismo de Silesius possibilitou a abertura de uma nova percepção para o princípio do fundamento. Todavia, não somente isso, pois o novo olhar perturba àquele da tradição, uma vez que este não responde, segundo Heidegger, nada sobre o fundamento.[5] Para o filósofo, o princípio do fundamento fala do fundamento, mas não sobre a essência do fundamento. O princípio do fundamento é um enunciado sobre o porquê, ou seja, sobre as causas exteriores que supostamente fundamentariam o que prometem fundamentar. Contudo, para Heidegger, o fundamento não está aí, mas no próprio ente. É preciso voltar ao nihil est sine ratione e verificar que, com ele e apesar dele, é possível refletir sobre o princípio do fundamento que realmente encontra o fundamento.

O filósofo se propõe analisar o princípio, a partir de duas tonalidades. Na primeira, “nada é sem fundamento”, quando são realçados os termos “nada” e “sem”, tendo a sua forma afirmativa: “tudo tem um fundamento”. Essa tonalidade condiz à interpretação do PRS de Leibniz. Na segunda tonalidade, “nada é sem fundamento”, as expressões realçadas são “é” e “fundamento”, tendo como forma afirmativa: “cada ente (como ente) tem um fundamento” (HEIDEGGER, 1999, p. 66). Trata-se de duas formas completamente distintas de olhar o fundamento:

O “porquê” e o “porque” falam de uma relação respectivamente diferente do nosso representar para com o fundamento. No “porquê” seguimos interrogativamente o fundamento. No “porque” vamos buscar, respondendo, o fundamento. Em consequência, nós trazemos, assim parece, no “porque” o fundamento até a uma relação mais próxima conosco, enquanto no “porquê” nós afastamos, por assim dizer, o fundamento de nós (HEIDEGGER, 1999, p. 68).

 

A distinção entre “porquê” e “porque” é fundamental para compreendermos a interpretação heideggeriana do fundamento, a qual, como veremos a seguir, se dará a partir de um “salto”. Por ora, basta termos claro que a necessidade de o filósofo “dobrar” a tonalidade do nihil est sine ratione é para que o princípio do fundamento tenha uma relação “mais próxima” com o que ele realmente deve fundamentar. Isso acontecerá em função da leitura do mesmo princípio numa distinta tonalidade.

Na outra tonalidade – “nada é sem fundamento – a forma afirmativa é “cada ente (como ente) tem um fundamento. Essa tonalidade direciona o fundamento primeiramente para o âmbito do ente, aproxima-o do ente e afasta-se do fundamento como causa externa ou condição de possibilidade do ente. Ademais, Heidegger, refletindo a partir do “é” (est) presente no enunciado consagrado de Leibniz, conclui que, de fato, o princípio do fundamento é um falar sobre o ser (HEIDEGGER, 1999. p. 78, grito do autor). No entanto, isso não significa que o ser tenha um fundamento, mas algo distinto e decisivo para o passo seguinte dado pelo filósofo: “‘Ser é de tipo fundamental’ não significa de modo algum: ‘ser tem um fundamento’, senão que afirma: ser mora em si como fundamentado” (HEIDEGGER, 1999, p. 78, grifo do autor).

A relação que o filósofo inaugura entre ser e fundamento alterará a semântica do enunciado de Leibniz. Podemos sustentar que a segunda tonalidade apresenta uma leitura radicalmente distinta daquela fornecida pela primeira, pois, ao mesmo tempo que Heidegger introduz um olhar possível, esse olhar, até então, era como um verdadeiro ponto cego. O princípio do fundamento é um princípio do ser e não mais aquele das condições de possibilidade do ente. Isso fica claro nesta passagem decisiva:

Ser e fundamento pertencem um ao outro de modo concomitante. A partir da sua copertença com o ser enquanto ser, o fundamento recebe a sua essência. Inversamente, o ser enquanto ser rege a partir da essência do fundamento. Fundamento e ser (“são”) o mesmo, não o igual, o que logo a diferença dos nomes “ser” e “fundamento” indica. Ser “é” na essência: fundamento. Por isso o ser nunca pode anteriormente ter um fundamento, que o deva fundamentar. Em consequência disto o fundamento do ser permanece fora. O fundamento permanece fora do ser. No sentido de um tal permanecer-fora do (Ab-bleibens) fundamento do ser, “é” o ser o sem-fundo (Ab-Grund). Na medida em que o ser enquanto tal é fundamentado em si próprio, permanece ele mesmo sem fundamento (HEIDEGGER, 1999, p. 80-81).

 

 

Heidegger desloca a discussão do fundamento de uma dimensão causal e epistemológica para uma avaliação no âmbito da ontologia.[6] O destino do fundamento é agora o do ser. A solução heideggeriana para a questão do fundamento reside na defesa de que “ser ‘é’ na essência: fundamento”. Se ser “é” essencialmente fundamento, ele não pode logicamente ter um fundamento transcendente que o fundamente. Heidegger afirma que o “fundamento do ser permanece fora”, não num sentido de um fundamento existente fora do ser, mas no de que ser enquanto ser não tem fundamento; o ser “é” Abgrund, sem fundo, sem fundamento.

Heidegger está perfeitamente consciente do passo dado, quando introduz uma segunda e radicalmente distinta tonalidade à leitura do princípio de Leibniz. Entre ambas as tonalidades, ele assinala, existe um salto, uma mudança repentina.

No sentido de um tal salto, o princípio do fundamento é um princípio na essência do ser. Na realidade nós não podemos continuar a dizer que o princípio do fundamento é um princípio do ser, mas devemos dizer: o princípio do fundamento é um princípio no ser como ser, isto é como fundamento (HEIDEGGER, 1999, p. 84).

 

A passagem acima é reveladora. O princípio do fundamento fala sobre a “essência do ser”. Não se trata de um princípio do ser, todavia, no ser, imerso no ser: a essência do ser é não fundamentar-se. Na próxima seção, serão analisadas as consequências da leitura heideggeriana do fundamento. O salto para a segunda tonalidade impacta profundamente não somente a questão do fundamento, mas também a própria reflexão ontológica.

 

3 HEIDEGGER E O FUNDAMENTO: DA EPISTEMOLOGIA À ONTOLOGIA

Para verificarmos as consequências da virada heideggeriana à compreensão do fundamento, veremos brevemente o PRS[7], além da ideia geral do fundacionalismo, tal como tradicionalmente tem sido discutida, no âmbito da filosofia. Assim, conforme o princípio leibniziano, a fim de que um fato ou um enunciado possa ser considerado verdadeiro ou existente, deve haver uma causa ou uma razão suficiente:

31. Os nossos raciocínios fundam-se sobre dois grandes princípios: o da contradição, pelo qual consideramos falso o que ele implica, e verdadeiro o que é oposto ao falso ou lhe é contraditório.

32. E o da Razão Suficiente, pelo qual entendemos não poder algum fato ser tomado como verdadeiro ou existente, nem algum enunciado ser considerado verídico, sem que haja uma razão suficiente para ser assim e não de outro modo, embora freqüentemente tais razões não possam ser conhecidas por nós (LEIBNIZ, 1983, p. 108, grifos do autor).

 

Vejamos que o objetivo desse princípio é a busca da “verdade” ou da “existência”, sempre pendentes, conforme Leibniz, da verificação de uma razão que explique por que algo é de uma forma e não de outra. Isso foi resumido por Heidegger na fórmula: “nada é sem fundamento”. Assim, o fundamento, para ser fundamento, depende de uma causa externa que justifique uma existência ou uma verdade. No exemplo do poema de Silesius, como vimos, o “porquê” da rosa é dado pela Botânica, área da Biologia que explica as causas do desenvolvimento da planta. 

Além da enunciação do PRS, tradicionalmente, a discussão filosófica sobre o fundamento está associada à epistemologia ou à filosofia da ciência. Nesse sentido, o fundamento é a base do conhecimento de qualquer fenômeno. Vejamos abaixo trechos do verbete foundationalism, em dois dicionários filosóficos tradicionais, começando pelo The Routledge Dictionary of Philosophy:

A visão de que o conhecimento requer fundamentos, no sentido de que, a menos que partamos de um conjunto de crenças que sejam apropriadamente básicas, no sentido de que elas não exigem justificação por si mesmas ou são justificadas simplesmente em virtude da maneira pela qual chegamos a ter tais crenças e das quais podemos derivar de várias maneiras o restante de nosso conhecimento, nunca podemos saber absolutamente nada. Um exemplo notável de um fundacionalista é Descartes (PROUDFOOT; LACEY, 2010, p. 144, tradução nossa).

 

No The Cambridge Dictionary of Philosophy:

A visão de que o conhecimento e a justificação epistêmica (relevante para o conhecimento) têm uma estrutura de dois níveis: algumas instâncias de conhecimento e justificação são não inferenciais ou fundamentais; e todas as outras instâncias são inferenciais ou não fundamentais, na medida em que derivam, em última instância, de conhecimento ou justificativa fundamental (AUDI, 1999, p. 321, tradução nossa).

 

Como é possível perceber, a discussão filosófica acerca do fundacionalismo, da mesma forma que a do PRS, articula-se com as bases para alcançarmos o conhecimento. O fundamento é, nesse sentido, o ponto de ancoragem a partir do qual é erigido todo o restante do conhecimento. No entanto, para Heidegger, o fundamento está em outro lugar. Esse ponto é decisivo para percebermos a virada que o filósofo promove. Sua reflexão desvincula o fundamento da discussão epistemológica. Aliás, segundo Heidegger, o debate epistemológico não se debruça no fundamento dos entes, mas nas suas condições de possibilidade. Tal debate opera no nível da justificação, ou seja, do “porquê”, e é justamente esse “porquê” que nos afasta da condição de alcançarmos o próprio fundamento. O fundamento, verificado a partir do pensamento sobre o “porque”, só pode ser apreendido em função da reflexão ontológica.

Para Heidegger, o princípio do fundamento – como um enunciado formal sobre o fundamento – ficou adormecido durante vinte e três séculos, até que Leibniz o enunciasse. No entanto, para o filósofo da Floresta Negra, tal enunciado é resultado do pensamento de uma época, o qual torna opaca a busca pelo fundamento. Este não está nas razões externas que tornam possíveis a existência ou a verdade de um ente ou de um enunciado. Conforme Heidegger, está claro que tais razões explicam a cadeia lógico-necessária das verdades contingentes ou de fato, como, por exemplo, uma rosa, para florescer, necessita de água, sol, entre outros elementos que os estudos de Botânica indicam. Porém, para o pensamento heideggeriano, esse discurso sobre as condições externas e de possibilidade do desenvolvimento de uma planta não é a mesma coisa que falar sobre o fundamento da planta, num sentido ontológico.

A rosa é sem “porquê”, contudo, ao mesmo tempo, tem um “porque”. A rosa não precisa de razão para fundamentar-se. Assim, a essência do fundamento não pode ser conhecida a partir de uma relação de causalidade que transcende o ente; o fundamento está no próprio ente, no seu autofundamento. No caso da rosa: “o seu florescer é simplesmente abrir-se-a-partir-de-si” (HEIDEGGER, 1999, p. 64).

Notemos que, quando falamos sobre a rosa e o seu fundamento, estamos ainda enunciando o discurso do fundamento aplicado ao ente. Seguimos, portanto, trilhando o terreno desenhado e percorrido por Leibniz. Tal ocorre, uma vez que o princípio leibniziano é um falar sobre o fundamento no nível ôntico e não no ontológico. A explicação heideggeriana que visa à demonstração de que a rosa não necessita de uma razão, para que ela tenha um fundamento, é, primeiramente, uma resposta negativa ao caráter universal do PRS. Porém, a essência o fundamento, de acordo com Heidegger, é também uma negativa no tocante à essência de o fundamento ser um discurso sobre o ente. O ente, como a rosa, certamente tem um fundamento, mas isso não significa que tenhamos chegado, enfim, à essência do fundamento. Tal essência não é um mero falar sobre o ente,  entretanto, uma reflexão sobre o ser:

O princípio do fundamento diz: ao ser pertence a qualquer coisa como fundamento. O ser é de carácter fundamental, é de tipo fundamental. O princípio: “Ser, é de tipo fundamental” expressa algo bastante diferente da afirmação: o ente tem um fundamento. “Ser é de tipo fundamental” não significa de modo algum: “ser tem um fundamento”, senão que afirma: ser mora em si como fundamentado (HEIDEGGER, 1999, p. 78, grifo do autor).

 

Heidegger demonstra, portanto, que o PRS é incapaz de falar sobre o fundamento do ente. Diz também que a essência do fundamento não é um falar sobre o ente, mas sobre o ser do ente. Afirma ainda que, se, por um lado, o ente tem um fundamento, por outro lado, o ser não o tem, uma vez que ser é de tipo fundamental. Não há um fundamento para o ser, pois “ser ‘é’ na essência fundamento” (HEIDEGGER, 1999, p. 81).

Assim, finalizamos a etapa exegética da reflexão heideggeriana sobre o fundamento. Conforme demonstramos, seu tratamento difere não somente daquele do PRS, mas também com referência à tradição epistemológica do fundacionalismo. Da epistemologia à ontologia, Heidegger coloca o debate em seus próprios termos, gerando uma série de consequências que não podem ser desprezadas por um pós-fundacionalismo de inspiração heideggeriana.

 

4 MARCHART E O PÓS-FUNDACIONALISMO

A abordagem pós-fundacionalista de Oliver Marchart (2007) é certamente o esforço mais bem elaborado, no sentido de propor uma teoria política fundada em uma perspectiva heideggeriana. Trata-se de um verdadeiro tour de force que demonstra o potencial teórico que a diferença ontológica de Heidegger produziu nas formulações políticas daqueles autores que Marchart denomina, tomando de empréstimo o termo de Janicaud (2001), “heideggerianos de esquerda”.[8]

O ponto central do heideggerianismo de esquerda, segundo o teórico austríaco, é o pressuposto de que a política é essencialmente instável, uma vez que nela habitam a contingência, a historicidade e a ausência de um fundamento último. Nesse sentido, a investigação de Marchart, notadamente no campo da ontologia política, é uma discussão filosófica da relação entre a política e aquilo que a torna instável, ou seja, o político. Para Marchart (2007, p. 6, tradução nossa), é óbvio que a distinção entre a política e o político é paralela ao que, na filosofia, se chama de diferença ontológica”.

Um dos principais momentos no seu texto é o confronto com a tradição fundacionalista. Para Marchart, é somente abalando o fundacionalismo que será possível abrir o caminho para a sua discussão central, a qual é a de estabelecer os contornos do pensamento político pós-fundacionalista. Não se trata de tarefa simples, como admite o autor, pois o debate sobre o fundamento é hegemônico desde a perspectiva fundacional: “A estratégia fundacionalista parece funcionar por uma razão: o paradigma do fundacionalismo é de fato hegemônico em grande medida. Seu domínio permitiu ao fundacionalismo enquadrar a discussão em seus próprios termos” (MARCHART, 2007, p. 13, tradução nossa). Assim, conforme o teórico, para abalar as estruturas do fundacionalismo, é insuficiente postular a sua inversão, ou seja, um antifundacionalismo, uma estratégia que lhe é algo caricata e, portanto, por ele rechaçada como alternativa ao paradigma dominante. Seu ataque ao fundacionalismo é realizado nos seguintes termos:

A resposta – a qual remonta a Heidegger, como veremos – é, claro, a seguinte: em vez de um ataque direto ao fundacionalismo ou à “metafísica”, o que deve ser tentado é a subversão do próprio terreno em que o fundacionalismo opera, uma subversão de premissas fundacionalistas – e não sua negação. (Pois, se não for possível sair completamente desse discurso – devido ao seu status hegemônico –, segue-se que o discurso não fundacionalista sempre terá que operar até certo ponto no terreno fundacionalista.) Essa desconstrução do fundacionalismo é algo bem diferente de sua simples inversão (MARCHART, 2007, p. 13, tradução nossa).

 

Assim, para desconstruir o fundacionalismo, Marchart vale-se da reflexão ontológica de Heidegger. Porém, antes de chegarmos a esse ponto, vejamos como o teórico austríaco concebe o fundacionalismo, já aplicado às teorias política e social:

O termo fundacionalismo pode ser usado para definir – do ponto de vista da teoria social e política – aquelas teorias que assumem que a sociedade e/ou a política são ‘fundamentadas em princípios que são (1) inegáveis e imunes à revisão e (2) localizados fora da sociedade e da política’ (Herzog, 1985: 20). Na maioria dos casos de fundacionalismo político e social, é buscado um princípio que fundamenta a política de fora. É desse terreno transcendente que se afirma que deriva o funcionamento da política (MARCHART, 2007, p. 11-12, tradução nossa).

 

Logo, a seguir, Marchart exemplifica:

Se pensarmos no determinismo econômico, por exemplo, ele primeiro fornece as leis da economia que são apresentadas como a essência da política (sobre o que a política “realmente” é) e, em segundo lugar, ele localiza esse campo (a “base” econômica) fora ou além do domínio imediato da política, sendo este último transformado numa questão “meramente superestrutural” (MARCHART, 2007, p. 12, tradução nossa).

 

Notemos que a concepção de fundacionalismo que Marchart visa a desconstruir está ligada, como vimos, ao debate tradicionalmente vinculado à epistemologia. No caso de Herzog (1985), na citação acima, a ideia de fundamento está baseada em princípios inegáveis, imunes à revisão e que transcendem o que fundamentam. O exemplo de Marchart não poderia ser mais revelador, retirado da tradição marxista: o determinismo econômico (inegável e imune à revisão) precede e determina qualquer sociedade (sempre lhe será transcendente), tornando a atividade política meramente uma questão superestrutural.

Vejamos com cuidado as duas principais abordagens que embasam a concepção de fundamento, levada a efeito por Marchart. Iniciaremos com a análise de Herzog. A seguir, apresentaremos a de Fairlamb, a qual será fundamental para Marchart enfrentar o debate entre fundacionalistas e antifundacionalistas.

O trabalho de Herzog, uma obra claramente preocupada com a forma pela qual o conhecimento em teoria política é produzido, almeja compreender o que o autor chamará de “justificação”, ou seja, “sobre como os teóricos políticos defendem seus pontos de vista, como estruturam suas teorias, por que recorrem a alguns campos e negligenciam outros” (HERZOG, 1985, p. 9, tradução nossa)[9]. A justificação, segue o autor, é a própria explicação fundacional: O fundacionalismo parece frequentemente o próprio modelo de justificação. Apenas um argumento fundacional, queremos dizer, poderia fornecer uma justificativa” (HERZOG, 1985, p. 2, tradução nossa). 

É importante asseverar que Herzog não apresenta uma defesa do fundacionalismo, visto o ceticismo do autor em relação às teorias fundacionais. Seu esforço é demonstrar como elas falham, tendo em vista as próprias premissas do fundacionalismo que elas assumem: “Eu não conheço nenhum argumento fundacionalista bem-sucedido na teoria política ou em qualquer outro campo” (HERZOG, 1985, p. 21, tradução nossa).

Herzog debruça-se sobre dois conjuntos teóricos. O primeiro é formado por aqueles que ele classifica como fundacionalistas: Hobbes, Locke e os utilitaristas. O segundo, composto pelas teorias de Hume e Smith, é marcado por abordagens não fundacionalistas. O argumento de Herzog centra-se na crítica ao primeiro grupo e na defesa do segundo. Para ele, os primeiros teóricos falham por apresentarem justificações fundacionalistas: “Apesar de todas as diferenças em suas teorias, Hobbes, Locke e os utilitaristas tentam justificar as suas conclusões, cavando em terrenos cada vez mais remotos e abstratos” (HERZOG, 1985, p. 24, tradução nossa). Já, segundo o autor, Hume e Smith são bem-sucedidos justamente por suas teorias não serem fundacionalistas, mas marcadas pelo que Herzog chamará de “justificação contextual”: “eles justificam uma instituição, mostrando que ela é melhor do que as alternativas disponíveis. Chamo essa abordagem de justificativa contextual” (1985, p. 24, tradução nossa).

A segunda abordagem que Marchart considera sobre o fundamento é a de Fairlamb (1994). É a partir dela que o teórico austríaco estabelece a discussão entre fundacionalismo e antifundacionalismo. Nesse sentido, o ponto-chave de Fairlamb sobre o fundamento está no problemático debate estabelecido entre fundacionismo forte e pós-fundacionismo forte. Citamos o parágrafo in extenso, o qual, em parte, foi igualmente citado por Marchart (2007, p. 12):

O problema do debate fundacionista é que ele foi mantido em termos fundacionistas fortes de uma escolha entre um fundamento último e nenhum (a tese de um ou nenhum), enquanto nenhuma dessas posições é sustentável. Como resultado, os pós-fundacionistas fortes se tornam antifundacionistas. O antifundacionismo, por sua vez, leva à preocupação pós-moderna com práticas críticas, num espírito de localismo e antiteoria que oculta a questão das condições teóricas pressupostas por essas práticas (FAIRLAMB, 1994, p. 12-13, tradução nossa).    

 

Assim, conforme Fairlamb, o debate sobre o fundamento assenta-se sobre duas posições radicais: aquela que defende o fundamento último, em contraposição à que nega a impossibilidade do fundamento. Para ele, o problema está na forma radical como o fundamento é considerado por ambas. O erro do pós-fundacionismo forte não é, em si, a busca por fundamentos, mas “a busca de uma versão reducionista deles” (FAIRLAMB, 1994, p. 17, tradução nossa). E continua: “o erro-chave do fundacionismo é a redução explicativa, o erro de pensar que se pode explicar o conhecimento monológico ou completamente com base na formalidade (racionalismo), objetividade (positivismo) ou convenções históricas (hermenêutica)” (FAIRLAMB, 1994, p. 17, grifo do autor, tradução nossa).

Fairlamb rejeita os radicalismos epistemológicos presentes tanto no fundacionismo forte como no pós-fundacionismo forte. Assume que o problema não é a busca por fundamentos, mas a solução de um tipo de fundacionismo reducionista. O que é fundamental, para nossa análise, é a consideração de que o texto de Fairlamb aborda o fundamento desde uma perspectiva epistemológica (e não ontológica). O autor não poderia ser mais claro nesse sentido: “Este projeto tenta abordar o problema dos fundamentos do conhecimento e do significado” (FAIRLAMB, 1994, p. ix, tradução nossa). Veremos, a seguir, as consequências sobre o fundacionalismo desde uma perspectiva epistemológica.

Por ora, cabe insistir que a principal utilidade da abordagem de Fairlamb reside justamente em posicionar o debate entre fundacionalismo e antifundacionalismo, o qual é central, na discussão de Marchart. É por essa distinção que o teórico austríaco posicionará o seu pós-fundacionalismo inspirado em Heidegger. Para ele, é evidente que o debate a ser realizado é contra o fundacionalismo hegemônico. Segundo o autor, “é necessário um argumento muito mais complicado do que simplesmente inverter o fundacionalismo em antifundacionalismo” (MARCHART, 2007, p. 12, tradução nossa). Nesse sentido, Marchart entende que a desconstrução do fundacionalismo, a partir do pós-fundacionalismo, deve ocorrer nos seguintes termos:

O que está, portanto, em jogo no pensamento pós-fundacionalista é o status atribuído aos fundamentos, pelo qual a ausência primordial (ou ontológica) de um fundamento último é ela própria a condição de possibilidade de fundamentos presentes – isto é, em sua objetividade ou ‘existência’ empírica como entes ônticos. Em outras palavras: a pluralização de fundamentos e de identidades no campo social é o resultado de uma impossibilidade radical, uma lacuna radical entre o ôntico e o ontológico, que deve ser posta para explicar a pluralidade no domínio ôntico (MARCHART, 2007, p. 15, tradução nossa).

 

Temos agora todos os elementos necessários para realizar a nossa crítica à abordagem pós-fundacionalista de Oliver Marchart. Tais elementos são basicamente dois. O primeiro é assumir as consequências da interpretação heideggeriana do fundamento, principalmente o esforço empreendido por esse filósofo para retirar a discussão sobre o fundamento do debate epistemológico tradicional e posicioná-la como uma questão eminentemente ontológica. Isso é decisivo: Heidegger é categórico, ao afirmar que a discussão epistemológica do fundamento é incapaz de encontrar o fundamento.

O segundo elemento é a forma como Marchart encaminha a sua discussão ontológica sobre o fundamento, posicionando o seu pós-fundacionalismo como uma via alternativa a um debate tradicional e, portanto, epistemológico, do fundamento, lançando mão das interpretações de Herzog e Fairlamb, autores que, como vimos, não vinculam suas abordagens a uma discussão ontológica. Por conseguinte, a abordagem de Marchart é, apesar do uso de Heidegger, como vimos, contra as conclusões ontológicas heideggerianas. Vejamos o porquê.

Retomemos as escolhas de Marchart. O seu ponto de partida é a enunciação da noção de fundacionalismo com base em Herzog. Vimos que essa noção, segundo a tradição epistemológica, pressupõe que o fundamento de todo conhecimento deva estar alicerçado em princípios imunes à revisão, uma vez que se apresentam como verdades incontestáveis e transcendentes àquilo que servem de fundamento. Essa visão estrita de fundamento, valendo-nos da linguagem de Fairlamb, é chamada de “fundacionismo forte”.

Com Herzog e Fairlamb, Marchart pressupõe que o fundacionalismo se refere à defesa de “fundamentos últimos”. A saída, segundo o teórico austríaco, como vimos, não é inverter o fundacionalismo em um antifundacionalismo, visto que o debate estaria ainda no campo fundacionalista, o que é correto. Para ele, a saída está na sua desconstrução, a partir do pós-fundacionalismo, o qual não nega a ausência do fundamento, mas visa a “enfraquecer o seu status ontológico. O enfraquecimento ontológico do fundamento não leva à suposição da ausência total de todos os fundamentos, mas antes à suposição da impossibilidade de um fundamento final” (MARCHART, 2007, p. 2, grifo do autor, tradução nossa).

Marchart defende não a ausência de fundamento, mas o postulado da “impossibilidade de um fundamento último”. Sua estratégia consiste em justificar o pós-fundacionalismo desde o abismo existente entre as dimensões ontológica e ôntica. Ele afirma que o que está em jogo no pensamento pós-fundacional é o status dos fundamentos (ônticos), pois, sob o ponto de vista ontológico, há “a ausência primordial (ou ontológica) de um fundamento último”, a qual é a condição de possibilidade dos fundamentos dos entes. Isso quer dizer que, para Marchart, a impossibilidade do fundamento último já existe no nível ontológico e que, por essa razão, não há possibilidade de haver fundamentos finais no nível dos entes (ôntico).

A questão central da nossa crítica à abordagem de Marchart reside no que entendemos ser uma “mistura indevida” que o teórico faz entre dois debates que, conforme Heidegger, devem estar apartados. Se Marchart é um “heideggeriano”, pelo menos no sentido como ele concebe o fundamento, a sua abordagem pós-fundacionalista deveria buscar não ser um “ponto de equilíbrio alternativo” entre fundacionalismo e antifundacionalismo. Pelo contrário, ela deveria rejeitar in toto tal debate o qual, segundo Heidegger, se afasta do encontro efetivo da essência pelo fundamento.

É preciso, nesse sentido, insistir que a busca pelo fundamento, desde uma perspectiva ontológica heideggeriana, não significa sequer negar a posição fundacionalista. Não se trata, portanto, de denunciar as suas limitações, de mostrar seus pontos cegos ou seus erros. Numa perspectiva que segue a intuição filosófica de Heidegger, o fundacionalismo (epistemológico) tem outro objetivo e, como tal, não tem relevância para a perspectiva ontológica, a qual é a que de fato nos interessa.

Tratemos agora mais especificamente do postulado de Marchart da “impossibilidade de um fundamento último” como o elemento definidor da perspectiva pós-fundacionalista. Qual é a relação efetiva que ele tem com a abordagem heideggeriana? Em nossa perspectiva, o postulado não captura a ideia de Heidegger. Em que sentido ele não captura? Vejamos.

Marchart ressalta que o que é colocado em questão no pensamento pós-fundacional é o status dos fundamentos (ônticos), uma vez que, do ponto de vista ontológico (frise-se!), existe “a ausência primordial (ou ontológica) de um fundamento último”, que é a condição de possibilidade dos fundamentos dos entes. Isso quer dizer que, para o teórico, seja no plano ontológico, seja no ôntico, o seu postulado possui validade. No entanto, como vimos, não é esse o tratamento ontológico que Heidegger dá ao ser. Para o filósofo, o ser é Abgrund, ou seja, sem fundamento. Dizer que não há fundamento no ser é algo muito distinto de afirmar que o ser não possui um fundamento último. Para Heidegger, o ser é sempre não fundamentado. A assertiva de Marchart da “ausência primordial (ou ontológica) de um fundamento último” não pode logicamente corresponder ao ser, mas tão somente aos entes.

Assim, a leitura de Heidegger sugere que o que há, no nível ontológico, é uma ausência primordial de fundamento e não uma ausência de “fundamento último”. Esta última erroneamente sugere que o ser poderia ser fundamentado ainda que parcialmente. Se ser é o mesmo que fundamento, como define Heidegger, ser nunca poderá ter ele próprio fundamento, sob pena de, contrariamente ao espírito ontológico do filósofo, não se estar mais falando de ser, contudo, de um ente, ou seja, tudo aquilo que se fundamenta e que não pode ser ser.

Dessa maneira, entendemos que o problema central da leitura ontológica de Marchart se origina num deslize argumentativo exatamente no momento em que o autor apresenta o seu pós-fundacionalismo como alternativa teórica ao debate fundacionalismo versus antifundacionalismo, este de cunho epistemológico e não ontológico. Um pós-fundacionalismo, baseado em Heidegger, precisa radicalizar as conclusões ontológicas do filósofo da Floresta Negra, assumindo todas as consequências da assunção da completa ausência de fundamento do ser.

 

5 E A TEORIA POLÍTICA PÓS-FUNDACIONALISTA?

Se a nossa crítica à abordagem de Marchart está correta, como extrairmos da radicalidade ontológica heideggeriana uma contribuição para a teoria política pós-fundacionalista? Essa é a questão que enfrentaremos nesta seção.

A fim de verificarmos a potência da radicalidade do fundamento heideggeriano, iniciaremos apontando brevemente o sentido da diferença ontológica para o filósofo. Para ele, ser e ente devem ser compreendidos como uma unidade, pois, ainda que distintos, não podem ser considerados um sem o outro (TRAWNY, 2017). No § 3 de Ser e Tempo, Heidegger (2002, p. 35) é claro, quando sustenta que “[o] ser é sempre o ser de um ente”. E mais: o ser não pode ser confundido com outro ente, visto que é o ser “o que determina o ente como ente” (HEIDEGGER, 2002, p. 32). Schürmann (2016, p. 108) chama ainda a atenção para o fato de que o “ser, enquanto o que determina os entes, não está neles fundado”.

Tendo em mente a diferença ontológica, retornemos agora às principais conclusões de Heidegger sobre o fundamento. Para o filósofo, ser não “tem” e ser não “é” fundamento. Dizer que ser tem ou é fundamento seria tratá-lo como um tipo de ente; significaria retornar ao ponto anterior do qual a investigação ontológica heideggeriana partiu, ou seja, aquele em que o filósofo reclamou que a história da ontologia foi a do encobrimento do sentido do ser. Nesse sentido, ele afirma: “Apenas o ente ‘é’, o próprio ‘é’, o ser não ‘é’” (HEIDEGGER, 1999, p. 81). Se o ser não “é”, então, a sua relação com o fundamento é de outra ordem, nunca se confundindo com a do ente, mas, como nos advertiu Schürmann, determinando os entes.

Ser nada “é”, porque nada é ser. “Ser e fundamento: o mesmo. Ser: o sem fundo. Dizer ‘ser’ ‘é’ fundamento, assim o observámos, não é admissível. Este modo de falar por agora inevitável, não diz respeito ao ‘ser’, não o alcança no seu próprio” (HEIDEGGER, 1999, p. 81). Dessa forma, não pode haver fundamento para o ser, quando ser e fundamento, sendo diferentes, são o mesmo. Duas consequências surgem desde a ontologia heideggeriana: i) os entes fundamentam-se desde si, ou seja, se autofundamentam; ii) o ser não tem, não “é” fundamento: ser e fundamento, o mesmo; ser, o sem fundo.    

O que nos cabe agora é verificar como a reflexão de Heidegger é útil para pensarmos a questão do fundamento no âmbito do pós-estruturalismo e, de maneira mais específica, na teoria política pós-estruturalista. Não se trata de uma simples transposição, de uma homologia direta, visto que a crítica dos limites da estrutura no estruturalismo não era uma preocupação heideggeriana. Nesse sentido, o pensamento pós-estruturalista teve de adaptar a reflexão sobre a diferença ontológica à crítica central ao estruturalismo, ou seja, ao essencialismo de suas estruturas.

Derrida nos dá uma pista valiosa, para pensarmos essa “aplicação” de Heidegger sobre a estrutura. No seu ensaio clássico A Estrutura, o Signo e o Jogo no Discurso das Ciências Humanas, o filósofo francês procede a uma crítica à forma como a estrutura, mesmo antes do estruturalismo, é pensada a partir da presença de um centro, cuja função é controlar e limitar o jogo estrutural.

O filósofo não está estritamente criticando o estruturalismo: este é somente mais um capítulo que remonta à própria história da filosofia ocidental. Derrida direciona-se ao mesmo ponto de Heidegger, ou seja, a sua crítica é também dirigida ao fundamento. O centro não é nada além do que outro nome do fundamento:

Se for realmente assim, toda a história do conceito de estrutura, antes da ruptura de que falamos, tem de ser pensada como uma série de substituições de centro para centro, um encadeamento de determinações do centro. O centro recebe, sucessiva e regularmente, formas ou nomes diferentes. A história da metafísica, como história do Ocidente, seria a história dessas metáforas e dessas metonímias. A sua forma matricial seria [...] a determinação do ser como presença em todos os sentidos desta palavra. Poder-se-ia mostrar que todos os nomes do fundamento, do princípio, ou do centro, sempre designaram o invariante de uma presença (eidos, arquê, telos, energeia, ousia (essência, existência, substância, sujeito) aletheia, transcendentalidade, consciência, Deus, homem, etc.) (DERRIDA, 2002, p. 231, grifo do autor).

 

Para Derrida, assim como antes para Heidegger, não há fundamento que fundamente desde fora uma estrutura, que a imobilize e que controle as suas possibilidades. Nesse sentido, como não há, sob o ponto de vista ontológico, um fundamento transcendente, resta o jogo infinito de possibilidades numa estrutura. Como mencionamos: segundo Heidegger, o ser determina o ente. Porém, tal determinação o coloca diante de um vazio, de um abismo. A estrutura se estrutura, a estrutura fundamenta-se, sempre de maneira contingente e parcial, pois não há um centro que a controle, não há mais a tranquilidade essencialista da metafísica da presença. A estrutura fundamenta-se, autofundamenta-se, tal como a rosa de Silesius:

Se então a totalização não tem mais sentido, não é porque a infinidade de um campo não pode ser coberta por um olhar ou um discurso finitos, mas porque a natureza do campo – a saber a linguagem e uma linguagem finita – exclui a totalização: este campo é com efeito o de um jogo, isto é, de substituições infinitas no fechamento de um conjunto finito. Este campo só permite estas substituições infinitas porque é finito, isto é, porque em vez de ser um campo inesgotável, […], em vez de ser demasiado grande, lhe falta algo, a saber um centro que detenha e fundamente o jogo das substituições (DERRIDA, 2002, p. 244-245).

 

Notemos que, em Heidegger e em Derrida, não há fundamento, no nível ontológico, e isso não implica, no nível ôntico, um antifundamento. Pelo contrário, os entes fundamentam-se desde si, uma vez que o ser do ente não os determina como presença ou como ser entificado. O ente não se desgarra de seu ser, visto que o seu ser é sempre o ser de um ente.

Essa determinação do ente pelo ser – determinação indeterminável, pelo não fundamento do ser –, tem reflexos importantes nas teorias políticas pós-estruturalistas. Acima, apresentamos brevemente a influência de Heidegger sobre três teóricos políticos, Mouffe, Laclau e Marchart. Já frisamos que, da diferença ontológica para a diferença política, o ser tem o seu correspondente no político e o ente, na política. Voltemos a essa discussão.

O primeiro e mais importante impacto do pensamento não fundacional de Heidegger para a teoria política reside em assumir que toda estrutura social está marcada pela precariedade e pela contingência. Não há, a partir dessa perspectiva, definição a priori de qualquer projeto político normativo. No entanto, não se trata de adesão ao relativismo, porque ordens, verdades e outros nomes para o fundamento têm lugar desde uma perspectiva ôntica. Pensemos, por exemplo, na democracia e nas diversas formas como ela foi instituída, ao longo do tempo, como regime político. Não há uma história linear que possa ser contada sobre ela, uma narrativa de sua evolução e de suas experiências. A democracia, ao contrário, foi diversas vezes instituída. Cada vez que a democracia se fundamenta onticamente, isso ocorre em razão da contingência de sua própria instituição, porque a democracia, em sua dimensão ontológica, não se fundamenta, abrindo a possibilidade de ela ser onticamente instituída de diversas formas.

Para finalizarmos nossa investigação, vejamos a constituição de experiências e de identidades políticas, a partir da teoria discurso de Laclau e Mouffe (1985). Trata-se de uma abordagem não somente afinada com a ontologia heideggeriana, mas também uma das reflexões pós-estruturalistas mais interessantes para pensarmos a construção estrutural da política.[10] Ao final, no entanto, oporemos uma crítica à forma como Laclau, a exemplo de Marchart, entende a diferença ontológica e o Abgrund heideggerianos.

Laclau e Mouffe desenvolvem uma teoria do político e de seus reflexos sobre a política. Discurso é a categoria central. De acordo com Laclau (2008, p. 189, grifo do autor), “o discursivo é […] o campo de uma ontologia geral, quer dizer, de uma reflexão acerca do ser enquanto ser”. Do ponto de vista político, todo discurso se inicia a partir da negatividade representada pelo antagonismo: “A força que antagoniza nega a minha identidade no sentido mais estrito do termo” (LACLAU, 1990, p. 18, tradução nossa). O antagonismo é, portanto, uma relação entre inimigos, entretanto, nunca entre inimigos pré-constituídos. Para os autores, o antagonismo marca a incompletude identitária, ou seja, “a presença do ‘Outro’ impede-me de eu ser totalmente eu mesmo. A relação surge não de totalidades plenas, mas da impossibilidade da sua constituição” (LACLAU; MOUFFE, 1985, p. 125, tradução nossa).

O antagonismo é, por conseguinte, o primeiro passo para a formação de um discurso político. Os seguintes poderão ser mais bem compreendidos pela lógica da articulação. Articulação é uma prática estabelecida entre elementos que se tornam momentos em relação ao processo articulatório. Isso significa que a articulação ocorre sempre entre diferenças, as quais, mesmo durante esse processo, não deixam de seguir sendo diferenças. Dessa relação de solidariedade, surge(m) ponto(s) nodal(is). Ponto nodal é um significante privilegiado que assume a representação dos demais sentidos articulados na cadeia. Tal sentido, na verdade, se torna privilegiado, uma vez que ele é originalmente um entre outros momentos articulados. O objetivo do ponto nodal é fixar, mesmo parcialmente, o sentido da cadeia de equivalências, pois é a partir daí que finalmente o discurso se constitui, como resultado do processo articulatório.

Tal fixação de sentidos não é apenas um passo decisivo para a constituição de um discurso. Sua função é também hegemônica. Compreender a noção de hegemonia de Laclau e Mouffe é decisiva para verificarmos como qualquer experiência política é determinada por um abismo ontológico. Hegemonia é o momento em que uma particularidade assume para si a tarefa de representação dos diversos momentos discursivos articulados, tornando-se o símbolo de uma plenitude ausente. 

Nessea perspectiva, a lógica hegemônica é um “tipo de relação política e não um conceito topográfico” (LACLAU; MOUFFE, 1985, p. 141, grifo dos autores, tradução nossa). Isso quer dizer que hegemonia não é uma operação em que se poderá saber de antemão qual particularidade exercerá a tarefa da representação dos momentos discursivos articulados. É um “tipo de relação política” marcada pela contingência de como a articulação ocorre e nunca um “conceito topográfico”, o qual pressuporia um fundamento externo que daria a primazia da representação hegemônica a alguma particularidade específica. Para Laclau e Mouffe (1985, p. 142, grifo dos autores, tradução nossa), “O ponto importante é que toda forma de poder é construída de uma forma pragmática e internamente ao social […]; o poder nunca é fundacional”.

Assim, um processo hegemônico é resultado do desenvolvimento sempre interno de suas estruturas; a hegemonia é uma autoconstrução motivada pela luta política de um discurso contra outro que lhe é antagônico e ameaçador. Essa autoconstrução é não fundacional, no sentido de que não depende de um fundamento que lhe seja externo, visto que, sob a perspectiva ontológica, não há fundamento que lhe dê suporte, além do próprio abismo da diferença entre ser e ente.

Mais especificamente, Laclau (2014), em capítulo de livro póstumo, enfatiza a importância da diferença ontológica heideggeriana para se pensar a diferença política, dando centralidade à categoria de Abgrund. Ele a compara com outras noções caras ao desenvolvimento de sua teoria: significante vazio (LACLAU, 1996), objeto a (LACLAU, 2005) e hegemonia (LACLAU; MOUFFE, 1985). Não exploraremos aqui essas comparações; focaremos nossa atenção – como antecipamos, de forma crítica –, à leitura de Laclau sobre a diferença ontológica de Heidegger. Iniciamos com as palavras do autor:

A primeira referência é, obviamente, a Heidegger, de quem procede a noção de diferença ontológica. A categoria central aqui é Abgrund – um fundamento que é, ao mesmo tempo, um abismo. No lugar do fundamento há um abismo; ou, para ser mais preciso, o próprio abismo é o fundamento (LACLAU, 2014, p. 118, grifo do autor, tradução nossa).

 

Na leitura de Laclau, Abgrund é um fundamento que, ao mesmo tempo, é um abismo. Trata-se de uma interpretação inexata do fundamento em Heidegger. Na visão do filósofo alemão, Abgrund não é o próprio fundamento, mas a consequência de “ser e fundamento ‘são’ o mesmo. Ser ‘é’ o sem-fundo” (HEIDEGGER, 1999, p. 81). Dito de outra maneira: Heidegger estabelece uma relação entre ser e fundamento, no contexto de sua análise sobre o fundamento. É ao longo dessa investigação que a mesmidade entre ser e fundamento se revela abissal. Sendo o mesmo, ser e fundamento, a consequência é que inexiste um fundamento no ser. Para Laclau, o fundamento é, ao mesmo tempo, um abismo, diferente da conclusão de Heidegger. Conforme Heidegger, fundamento é “a base, o fundus em que alguma coisa se apoia, está e jaz” (HEIDEGGER, 1999, p. 136).

Mesmo essa consideração equívoca sobre a relação de ser e fundamento deveria levar Laclau a concluir que qualquer diferença política, baseada na diferença ontológica, só poderia indicar que o fundamento é, na verdade, um não fundamento e não a conclusão, idêntica à de Marchart, de que, desde o nível ontológico, não há um “fundamento último”. Com efeito, Laclau taxativamente afirma: “No lugar do fundamento há um abismo”. Se no lugar do fundamento há um abismo, a única conclusão possível é que não há fundamento no nível do ser e que, a partir daí, devem ser extraídas as consequências no nível ôntico, como indicamos acima. A leitura e o uso heideggeriano do fundamento não podem fugir do destino abissal do fundamento.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos ao final de nossa investigação. O projeto ontológico de Heidegger exerceu influência decisiva sobre autores pós-estruturalistas. Demonstramos pontos-chave desse impacto, particularmente nas reflexões sobre o político. Criticamos também como o fundamento em Heidegger foi recepcionado por Marchart e Laclau. Defendemos, contra ambos, que o pós-fundacionalismo político deve assumir a radicalidade de Heidegger sobre o não fundamento do ser, rejeitando a equívoca conclusão da “ausência de um fundamento último”. O fato de o ser não ter fundamento não significa assumir uma postura antifundacionalista, já que os entes, contingentemente, se autofundamentam.

Entendemos, assim, que o debate pós-estruturalista da política deve – seja em seu desenvolvimento teórico, seja empírico –, refletir sobre a constituição de identificações políticas sempre como autoconstruções ou construções autorreferentes, sem a preocupação equívoca de que, ontologicamente, não há fundamento último. Assim, este debate não é sobre arché, sobre ousia, que, embora se coloquem como permanentes, são provisórias. Se seguirmos as pistas ontológicas deixadas por Heidegger e Derrida, os diferentes nomes do fundamento serão apenas metáforas sem referentes.  

 

THE QUESTION OF FOUNDATION IN HEIDEGGER AND ITS IMPORTANCE TO THE POST-STRUCTURALIST POLITICAL THEORY

 

Abstract: The article aims at discussing the philosophical and theoretical implications that Martin Heidegger's ontological reflection have exercised over post-structuralism, mainly that one received by political theory. To accomplish this objective, firstly, we present the notions of post-structuralism and post-foundationalism. After that, we carry out an exegetic exercise regarding Heidegger's notion of ground, by establishing the distinction between their epistemological and ontological effects. Then, we critically analyse the Heideggerian foundational reading elaborated by Marchart. In the last section, considering the radical Heideggerian foundation, we propose our approach on the political difference, having Heidegger's ontological difference as ground. This reading might be simplified in the following terms: there is no ground in Being but being is grounded on itself.

 

Keywords: Political theory. Post-structuralism. Foundation. Political difference.

 

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[1] Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Docente no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2. http://orcid.org/0000-0002-8920-4709. E-mail: ddmendonca@gmail.com.

[2] Preferimos fazer menção exclusivamente a três teóricos com obras especificamente políticas. A influência de Heidegger é vasta entre teóricos e filósofos pós-estruturalistas, os quais produzem reflexões certamente políticas, mas que não podem ser chamados estritamente de teóricos ou filósofos políticos, visto que suas obras abrangem também áreas distintas da política. 

[3] “O Princípio do Fundamento” constitui-se de treze aulas e de uma conferência proferida por Heidegger, entre 1955 e 1956, na Universidade de Freiburg.

[4] Ainda que a questão do fundamento tenha sido discutida por Heidegger em outra obra (HEIDEGGER, 2007), cabe destacar que, concordando com Blanc (1998, p. 187), em ambos os trabalhos, é a mesma “a apreensão da significação essencial do caráter ontológico do fundamento”.

[5] Em A Essência do Fundamento, o filósofo já tinha essa percepção sobre princípio da razão de Leibniz: “Embora o princípio da razão não lance nenhuma luz sobre o fundamento como tal, ele pode, contudo, servir como nosso ponto de partida para a caracterização do problema do fundamento” (HEIDEGGER, 1969, p. 13, tradução nossa).

[6] O deslocamento da discussão sobre o fundamento para o plano ontológico é também notado por Blanc (1998, p. 130): “Heidegger sugere uma outra abordagem do princípio da razão, que a continuação do texto confirmará como a proposta heideggeriana de interpretação do princípio de Leibniz. Consiste ela, fundamentalmente, na substituição do plano proposicional pelo plano ontológico na consideração do princípio”.

[7] Nossa intenção não é esmiuçar o princípio do fundamento em Leibniz, mas tão-somente marcar a diferença entre os propósitos desse filósofo e os de Heidegger. Um texto esclarecedor acerca dos limites do PRS é o de Melo (1992).

[8] Janicaud (2001) alerta que a designação “heideggerianos de esquerda”, atribuída a um grupo de pensadores franceses (e não franceses), não é, de fato, algo reivindicado, tampouco de uso corrente na academia naquele país.

[9] Em outra passagem reveladora de sua obra, Herzog (1985, p. 15, tradução nossa) afirma: “Este livro é sobre metodologia, sobre as estratégias de justificação que os teóricos políticos usam”.

[10] É importante lembrar que a influência que Heidegger e outros autores pós-fundacionais exercem sobre as obras de Laclau e Mouffe é estratégica ao projeto teórico de ambos, já que este se coloca como alternativo às perspectivas fundacionalistas, especialmente o determinismo econômico, em última instância, presente na tradição marxista. Nesse sentido, conforme os autores, “nossa análise encontra-se com diversas correntes contemporâneas do pensamento, as quais – de Heidegger a Wittgenstein – insistiram na impossibilidade de fixação última de sentidos” (LACLAU; MOUFFE, 1985, p. 111, tradução nossa).