DOS INFINITOS[1]

George Berkeley

Embora alguns matemáticos recentes tenham feito avanços prodigiosos e inaugurado diversos métodos admiráveis de investigação desconhecidos para os antigos, ainda há algo em seus princípios que, para o grande escândalo da tão celebrada evidência da Geometria, ocasiona muita controvérsia e disputa. Tenho a ousadia de acreditar que essas disputas e escrúpulos, que surgem do uso que é feito das quantidades infinitamente pequenas nos métodos acima mencionados, facilmente poderiam findar mediante a consideração de uma única passagem do incomparável Treatise of Humane Understanding do Sr. Locke, livro 2, cap. 17, seç. 7, onde esse autor, lidando com o tema da infinitude com o juízo e a clareza que lhe são tão peculiares, coloca estas palavras notáveis:

Parece-me que causamos grande confusão em nossos pensamentos quando unimos a infinitude a qualquer idéia de quantidade que se pense que a mente possa ter e então discorremos ou raciocinamos acerca de uma quantidade infinita, a saber, um espaço infinito ou uma duração infinita. Porque sendo nossa idéia de infinitude, segundo creio, uma idéia em crescimento sem fim, e a idéia de qualquer quantidade que a mente tem num dado momento estando terminada nessa mesma idéia, unir a infinitude a ela seria adaptar uma medida fixa a uma grandeza crescente; acredito, portanto, que não é uma sutileza insignificante se eu disser que devemos distinguir cuidadosamente entre a idéia de infinitude do espaço e a idéia de espaço infinito.

Agora, se o que o Sr. Locke diz fosse, mutatis mutandis, aplicado a quantidades infinitamente pequenas, livrar-nos-íamos, não tenho dúvida, daquela obscuridade e confusão que do contrário complicam os grandes aperfeiçoamentos da Análise Moderna. Pois, aquele que, com o Sr. Locke, pesar devidamente a distinção que há entre a infinitude do espaço e o espaço infinitamente grande ou pequeno, e considerar que temos uma idéia da primeira mas nenhuma do último, dificilmente irá além de suas noções para falar de partes infinitamente pequenas, ou de partes inifinitesimae de quantidades finitas, e muito menos de infinitesimae infinitesimarum, e assim por diante. Isso, não obstante, é muito comum entre os escritores que tratam de fluxões ou do cálculo diferencial, etc. Eles representam sobre o papel infinitesimais de diversas ordens como se tivessem em suas mentes idéias que correspondessem a essas palavras ou sinais, ou como se não incluísse uma contradição caso houvesse uma linha infinitamente pequena e outra ainda infinitamente menor do que ela. Para mim é evidente que não devemos usar um sinal sem uma idéia que lhe corresponda; e é evidente que não possuímos nenhuma idéia de uma linha infinitamente pequena; mais ainda, é evidentemente impossível que possa haver alguma coisa assim, pois toda linha, por menor que seja, ainda é divisível em partes menores do que ela mesma. Portanto, não pode haver nenhuma coisa tal como uma linha quavis data minor ou infinitamente pequena.

Além disso, pelo que o Dr. Wallis,[2] um matemático reconhecido, escreve na proposição 95 de sua Arithmetic of Infinites, claramente se segue que um infinitesimal, mesmo o de primeiro grau, é meramente nada, já que ele diz, conforme seu estilo, que o espaço assintótico incluído entre as duas assíntotas e a curva de uma hipérbole é uma series reciproca primanorum, de tal forma que o primeiro termo da série, a saber, a assíntota, surge da divisão de 1 por 0. Como, portanto, a unidade, isto é, qualquer linha finita dividida por 0, dá a assíntota de uma hipérbole, isto é, uma linha infinitamente longa, segue-se necessariamente que uma linha finita dividida por um infinito dá 0 no quociente, ou seja, que o pars infinitesimae de uma linha finita é apenas nada, pois pela natureza da divisão o dividendo dividido pelo quociente dá o divisor. Ora, dificilmente se suporá que um homem falando de linhas infinitamente pequenas não queira dizer nada com isso; e se ele se refere a quantidades reais infinitas, incorre em dificuldades inextricáveis.

Detenhamo-nos um pouco na controvérsia entre o Sr. Nieuentiit[3][4] e o Sr. Leibniz. O Sr. Nieuentiit aceita que os infinitesimais de primeira ordem sejam quantidades reais, mas eliminas as differentiae differentiarum ou infinitesimais das ordens seguintes, fazendo delas outros tantos nadas. Isso é a mesma coisa que dizer que o quadrado, o cubo, ou outra potência de uma quantidade real positiva é igual a nada, o que é manifestamente absurdo.

Novamente, o Sr. Nieuentiit apresenta isto como um axioma auto-evidente, a saber, que entre duas quantidades iguais não pode haver diferença alguma, ou, o que é a mesma coisa, que sua diferença é igual a nada. Essa verdade, tão clara quanto ela é, o Sr. Leibniz não se dá ao trabalho de negar, afirmando que não apenas as quantidades que não têm diferença alguma são iguais, mas que também o são aquelas cuja diferença é incomparavelmente pequena. Quemadmodum (diz ele) si leae puntum alterius lineae addas quantitatem non auges. Mas, se as linhas são infinitamente divisíveis, eu pergunto como pode haver uma coisa tal como um ponto? Ou, concedendo que há pontos, como pode ser pensado, como o faz o Sr. Leibniz, que é a mesma coisa adicionar um ponto indivisível e adicionar a differentia de uma ordenada a uma parábola, por exemplo, que tão longe está de ser um ponto que ela mesma é divisível em um número finito de quantidades reais em que cada uma pode ser subdividida in infinitum e assim por diante? Essas são dificuldades com que se têm defrontado esses grandes homens por aplicarem a idéia de infinitude a partículas de extensão excessivamente pequena, mas reais e ainda divisíveis.

Mais dessa disputa pode ser visto no Acta Eruditorum do mês de julho, 1695, onde, se podemos acreditar no autor francês de Analyse des infinitement petits,[5] o Sr. Leibniz estabeleceu e defendeu suficientemente seus princípios. Contudo, esse autor, parecendo temer que nimia scrupulositate arti inveniendi obex ponatur, não se importou em colocá-los em questão, como se um homem pudesse ser tão escrupuloso na Matemática ou como se os princípios da Geometria não devessem ser tão incontestáveis quanto as conseqüências que deles se extraem.

Há um argumento do Dr. Cheyne’s,[6] no quarto capítulo de seu Philosophical Principles of Natural Religion, que parece promover as quantidades infinitamente pequenas. Suas palavras são as seguintes: “Toda geometria abstrata depende da possibilidade de quantidades infinitamente grandes e pequenas, e as verdades descobertas por métodos que dependem dessas suposições são confirmadas por outros métodos que têm outros fundamentos.”

A isso eu respondo que a suposição de quantidades infinitamente pequenas não é essencial aos grandes avanços da Análise Moderna. Pois o Sr. Leibniz reconhece que seu Calculus differentialis pode ser demonstrado por reductione ad absurdum à maneira dos antigos; e Sir Isaac Newton, em um tratado recente,[7] informa-nos que seu método das fluxões pode ser obtido a priori sem a suposição de quantidades infinitamente pequenas.

Não posso deixar de assinalar uma passagem do tratado do Sr. Raphson,[8] De Spatio Reali seu Ente Infinito, cap. 3, p. 50, na qual ele trata uma partícula infinitamente pequena como se fosse quase extensa. Mas o que o Sr. Raphson possa querer dizer por pars continui quase extensa, isso eu não posso compreender. Devo também pedir licença para observar que alguns notáveis escritores modernos não têm escrúpulos ao falar de uma esfera de raio infinito ou de um triângulo eqüilátero de um lado infinito, noções que se inteiramente examinadas talvez não se encontrem completamente livres de inconsistências.

De minha parte, sou da opinião de que todas as disputas acerca dos infinitos cessariam e que a consideração de quantidades infinitamente pequenas não mais confundiriam os matemáticos se eles ao menos unissem à sua Matemática a Metafísica, e condescendessem a aprender do Sr. Locke a distinção que há entre infinitude e infinito.

Nota do Tradutor[9][10]

O manuscrito Of infinites, de George Berkeley, (1685-1753) foi encontrado na biblioteca do Trinity College, em Dublin, pelo professor Swift Payne Johnston, que o publicou pela primeira vez na revista Hermathena, vol. XI (1901), pp. 182-185. O texto foi republicado como um apêndice ao terceiro volume da compilação das obras de Berkeley realizada por A. C. Fraser e, posteriormente, no quarto volume da coleção The Works of George Berkeley Bishop of Cloyne, editada por A. A. Luce e T. Jessop. A tradução a seguir foi feita a partir do texto dessa última edição.

Of infinites provavelmente foi escrito e lido perante a Sociedade Filosófica de Dublin, da qual Berkeley era membro, no dia 19 de novembro de 1707. Nesse mesmo período, Berkeley estava redigindo seus cadernos de notas, hoje conhecidos como Philosophical commentaries, onde também abordava questões referentes ao cálculo infinitesimal, tema do opúsculo aqui apresentado. Essas investigações juvenis culminariam nas teses expostas no texto The Analyst, publicado em 1734.

O objetivo principal de Of infinites é empreender uma crítica aos métodos de análise baseados na pressuposição da existência de magnitudes infinitesimais. Num primeiro momento, Berkeley – servindo-se de uma distinção tomada de Locke entre “infinito” e “infinitude” e da tese, também lockeana, de que toda palavra deve ter como referente uma idéia – defende que qualquer discurso acerca de quantidades infinitesimais é destituído de sentido. Em seguida, recorre a uma polêmica entre Leibniz e Nieuwntiit para mostrar a fragilidade e falta de clareza dos conceitos fundamentais envolvidos no cálculo infinitesimal. Por fim, argumenta que a suposição de entidades infinitesimais é desnecessária para solução dos problemas colocados pelos modernos métodos de análise.

Um detalhado exame do conteúdo filosófico-matemático de Of infinites pode ser encontrado nas páginas 162-173 do livro de Douglas M. Jesseph intitulado Berkeley’s philosophy of mathematics, publicado em 1993 pela editora da Universidade de Chicago.

Jean Rodrigues Siqueira jeansiq@hotmail.com

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo



[1] Tradução recebida em 03/2005; aprovada para publicação em 05/2005.

[2] John Wallis (1616-1703).

[3] Bernard Nieuentiit (1654-1718).

[4] Trans/Form/Ação, São Paulo, 28(2): 47-51, 2005

[5] O autor mencionado por Berkeley é Guillaume François Antoine Marquis de l’Hospital (16611704).

[6] George Cheyne (1671-1743). O texto citado foi publicado em duas partes: a primeira apareceu em 1705 e a segunda em 1716. A citação de Berkeley diz respeito à primeira parte.

[7] Berkeley está se referindo ao Tractatus de Quadratura Curvarum, publicado em 1704.

[8] Joseph Raphson (1648-1715).

[9] Agradeço ao parecerista desta revista, ao prof. Ernesto M. Giustti e a Patrícia Mesquita, que propuseram modificações textuais que tornaram esta tradução mais precisa. Agradeço também a Aline Ramos, cuja revisão e leitura atenciosa certamente renderam um texto mais agradável de ser lido.

[10] Trans/Form/Ação, São Paulo, 28(2): 47-51, 2005