Heráclito, B 52 DK: contribuição à semântica do jogo

 

André Pereira Leme Lopes[1]

 

Resumo: O fragmento B 52 DK de Heráclito define aiṓn (“tempo”, “vida”, ou “duração da vida”) como uma criança brincando/jogando. Qual é, no entanto, o jogo/a brincadeira dessa criança? A interpretação mais comum desqualifica o jogo heraclítico, elencando esse fragmento dentre aqueles nos quais o filósofo critica o conhecimento falho dos homens. Na contramão dessas, propõe-se neste texto uma análise filológica que pode oferecer algumas sugestões para melhor identificar e compreender o jogo de B 52, acreditando que não se trate de uma brincadeira infantil, mas, de fato, de um jogo sério que ressoa com metáforas cósmicas e cívicas.

 

Palavras-chave: Jogo. Heráclito. Filosofia grega.

 

introdução: O fragmento

Dentre os fragmentos costumeiramente atribuídos a Heráclito de Éfeso (c. 540-470 a.C.), aquele catalogado sob o n.º 52 por Hermann Diels e Walter Kranz se destaca por sua singularidade. O professor de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Alexandre Costa (2002, p. 254), por exemplo, ao reorganizar, traduzir e contextualizar os aforismos do pré-socrático, deixou-o para o final, isolado “por falta de paralelo”. O filólogo, partisan e professor de origem sérvia Miroslav Marcovich (1967, p. 474s), por sua vez, classificou-o junto aos fragmentos 78, 79 e 102, mas o destacando com um ponto de interrogação e o qualificando como “enigmático”. Já o professor emérito da Universidade da Pensilvânia Charles H. Kahn (2001, p. 227), o chamou de “o mais enigmático dos quebra-cabeças heraclíticos”.

Até mesmo linguisticamente, a curta frase se destaca. Formada por seis termos centrais (mais um verbo e um artigo), três são únicos no corpus do efésio, os demais constituem variações gramaticais da mesma palavra (i.e., a figura de linguagem conhecida como poliptoto).[2]

Na literatura supérstite, o texto aparece pela primeira vez em Luciano de Samósata (c. 125-180 d.C.), seis séculos após a morte do pré-socrático. No diálogo Leilão dos filósofos (c. 160-170 d.C.), diversos pensadores são oferecidos em um mercado de escravos para escrutínio de um comprador. Ao chegar diante de “aquele de Éfeso” (seção 14), o comprador ouve que todas as coisas estão misturadas e são intercambiáveis “no jogo de aiṓn” (en tē̑ toȗ aiō̑nos paidiē̑). O comprador pergunta: “e o que é o aiṓn” e o efésio responde: “paȋs paízōn, pesseúōn […]” (LUCIAN, 1960, p. 476-477).

Meio século depois, Hipólito de Roma (170-235 d.C.), no livro IX de sua Refutação de todas as heresias (c. 225 d.C.), também conhecida como Elenchus ou Philosophumena, fez o que se acredita ser “um abrangente sumário das principais doutrinas de Heráclito” (BARNES, 1997, p. 119). O trecho é bastante longo e nos oferece a redação mais completa do fragmento 1 (que já aparecia na Retórica de Aristóteles, c. 335-320 a.C.) e dos fragmentos 50 a 67, na numeração de Diels e Kranz. É nesse contexto que aparece o texto canônico de nossa sentença: aiṑn paȋs esti paízōn, pesseúōn: paidòs hē basilēíē.

Antes de avançarmos à tradução e à interpretação, paremos um instante para apreciar a poética. B 52 é marcado pela aliteração do fonema “p-” em seu centro: “paȋs … paízōn, pesseúōn: paidòs…”. Após a definição simples, “aiṑn é paȋs”, dois particípios criam um contraponto em “-oon”, o qual retoma a sonoridade da primeira palavra: “aiṑn … paízōn, pesseúōn”, assim como os ditongos marcam uma terceira aliteração nas palavras iniciais da frase principal: “aiṑn ps … pzōn”. Ressalte-se também o poliptoto “paȋs paízōn … paidós” (“criança” “sendo criança” … “da criança”). Se o fragmento diz respeito ao jogo, como discutiremos adiante, ele o faz por meio de jogos de palavras cuidadosamente escolhidas (MOST, 2011, p. 105; SILVA, 2013, p. 96).

A poesia de Heráclito foi percebida pelo poeta brasileiro Haroldo de Campos (1974, p. 218), tradutor de Homero, Dante, Mallarmé, Goethe e Maiakovski, que assim transcriou nosso fragmento:

vidatempo:

um jogo de

criança.

 

(reinando

o Infante

Infância)

 

1 Traduções e interpretações

A frase é formada por um sujeito (aiṑn), um verbo (esti), um predicativo (paȋs … paízōn, pesseúōn) e um aposto (paidòs hē basilēíē). As traduções costumam ser bastante consistentes, variando principalmente no que diz respeito ao sujeito. Como esse é, precisamente, objeto da definição expressa no predicativo, as interpretações são bem mais diversificadas. Apesar disso, podemos, sem grandes hesitações, traduzir parcialmente nosso fragmento por: aiṓn é criança brincando, jogando; da criança o reinado (OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1996, p. 93; COSTA, 2002, p. 218).

Desse modo, Diels e Kranz (1960, p. 162), por exemplo, traduziram o predicativo e o aposto como “ein Knabe, der spielt, hin und her die Brettsteine setzt: Knabenregiment!” (um menino que brinca, mexendo de um lado a outro as peças do tabuleiro: regimento dos meninos!); o erudito italiano Giorgio Colli (1980, p. 35) escolheu “un fanciullo che gioca, che sposta i pezzi sulla scacchiera: reggimento di un fanciullo” (uma criança que joga, que move as peças sobre o tabuleiro: regimento de uma criança); e o professor emérito da Sorbonne Marcel Conche (1998, p. 446) preferiu “un enfant qui joue en déplaçant ses pions : la royauté d’un enfant” (uma criança que joga movendo seus piões: a realeza de uma criança).

Quanto às interpretações, Geoffrey Stephen Kirk, em seu livro Heraclitus: the cosmic fragments (1954), dividiu o corpus do filósofo em duas partes, aquela que diz respeito ao “mundo em geral” (os “fragmentos cósmicos” do título) e aquela que fala sobre os “ocupantes humanos” desse mundo. “À primeira vista”, afirma ele, nosso fragmento poderia ser classificado entre os da primeira parte, pois hē basilēíē, “a realeza”, “o poder real”, poderia ser compreendido como o governo “sobre todas as coisas absolutamente”. O renomado classicista de Cambridge, no entanto, rejeita tal interpretação, com base no sentido de aiṓn, o qual, “nos contextos arcaicos e usada sozinha (i.e., não em frases preposicionais)” referia-se à vida humana (KIRK, 1962, p. xiii).

De forma geral, as interpretações modernas seguem a classificação de Kirk, se não para o conjunto dos fragmentos de Heráclito, ao menos para interpretar B 52.

Assim, por exemplo, os filólogos e filósofos Jean Bollack e Heinz Wismann (1972, p. 402-403), embora critiquem Kirk, argumentando que ele faz uma “simplificação ilusória” e que a tese expressa em seu título é “errônea”, colocam-se ao lado do professor de Cambridge, ao tratar B 52 como se referindo a questões humanas. Segundo a dupla franco-alemã, entre aiṓn e basilēíē, todas as demais palavras concernem à infância. Os dois particípios centrais – paízōn pesseúōn – são entendidos como “quase sinônimos” e, “por etimologia”, paízōn – literalmente “fazendo o que uma criança faz” – é reinterpretado como “fazendo uma criança” (BOLLACK; WISMANN, 1972, p. 182ss). Logo, o fragmento – traduzido por ambos como “La vie est bien un enfant qui enfante, qui joue. À l’enfant d’être roi” (A vida é uma criança que dá à luz, que joga. À criança, de ser rei) – diria respeito à sucessão das gerações e à transformação da criança em adulto:

O aiôn [tempo da vida] (de um homem) compreende a criança nascida dele e se cumpre quando o filho equivale a seu pai. […] Em um jogo, cada um toma a iniciativa por sua vez. […] O filho joga contra seu pai, que tem a iniciativa durante quinze anos, enquanto ele for filho, mas quando toma a realeza, joga contra seu próprio filho e é substituído, como parceiro, pelo avô. O ciclo da vida se resolve em um crescimento e um contracrescimento, saído dele. [§] A terceira criança (à criança, de ser rei) é, portanto, também a primeira, o filho, investido das funções de seu pai. (BOLLACK; WISMANN, 1972, p. 184).

 

Miroslav Marcovich (1967, p. 493-495) também concorda com Kirk, em relação à “humanidade” de B 52, propondo que aiṓn implique “idade madura e velhice do homem”. Aproximando-o de outros fragmentos que expressam a estupidez e a falta de percepção dos homens (e.g., B 56, 78, 79, 102 e 121 DK), o filólogo “se aventura” a “sugerir” a seguinte interpretação para o “sentido obscuro” do texto:

[...] um homem maduro ou velho é tão tolo quanto o é uma criança, em qualquer respeito e especialmente em relação à sabedoria ou ao discernimento político: um rei no trono se comporta como uma criança.

 

As interpretações “cósmicas”, por sua vez, seguem a doxografia antiga, a qual entende aiṓn como um agente universal. Dentre as tradicionais, Marcovich (1967, p. 490-491, 493) destaca: 1) a (má) interpretação órfica de aiṓn como Deus/Zeus (Æon); 2) a referência de Clemente de Alexandria (c. 150-215 d.C.) a um “jogo divino” (theía paidiá) jogado pelas crianças em Cristo (en Christō̑i paidíōn) e a afirmação do mesmo de que “Heráclito diz que seu Zeus jogava um jogo (paízein paidiàn) desse tipo”; e 3) a menção do neoplatônico Proclo (412-485 d.C.), que, em seu comentário ao Timeu, escreveu que Heráclito era um dos que defendiam que “o Demiurgo joga ao criar o mundo” (tón dēmiourgón én tṓi kosmourgeḯn paízein) (ŠĆEPANOVIĆ, 2015, p.28-32).[3]

Dentre os modernos, Martin Heidegger discutiu o aforismo, em seu Der Satz von Grund (1956), argumentando que lógos, kósmos, phýsis e aiṓn, no vocabulário de Heráclito, são aspectos do Ser, seu entrelaçamento nas palavras/ideias (lógos) ou nas coisas do mundo (phýsis), sua organização e sua beleza (kósmos), seu aspecto temporal (aiṓn). Em nosso fragmento, portanto, aiṓn seria o “tempo do mundo”; o “fazer mundo e temporalizar” (die weltet und zeitigt), que ele traduz por Seinsgeschick (destino/habilidade do Ser). A temporalidade do Ser é uma criança que joga; a essa criança pertence a archḗ, o princípio, o fundamento da ordem, do governo e da existência, ou seja, o próprio Ser, que, “[...] como aquilo que funda, não tem fundamento (Grund); joga como o abismo sem fundo (Ab-Grund) aquele jogo que, enquanto Geschick, nos dá (zuspielt) o Ser e o Fundamento.” (HEIDEGGER, 1997, p. 169).

Também Clémence Ramnoux (1959, p. 399) aproximou o fragmento da ontologia. A partir de aiṑn, a erudita francesa leu aei ōn, “sempre existente”, e, tomando-o juntamente com paízōn, aei zoōn, “sempre vivo” (Charles Kahn (2001, p. 228) também reconhece esses jogos de palavras). Além disso, em paȋs paízōn, Ramnoux decifrou o nome de Pan e, em paízōn pesseúōn, o nome de Zeus. Com isso, aproximou B 52 do verso de Ésquilo, contemporâneo de Heráclito: “qualquer divindade suprema, Apolo/ou Pan ou Zeus” (hýpatos d’aíōn ḗ tis Apóllōn / ḕ Pàn ḕ Zeùs, Agamêmnon, vv.55-56). Assim, os nomes divinos – e Heráclito os usa esporadicamente – seriam equivalentes do sempre vivo e sempre existente, o Ser.

Não é meu objetivo listar todas as leituras desse singular fragmento de Heráclito, todavia, no momento, apenas apontar algumas tendências interpretativas mais comuns. Sandra Šćepanović (2015, p.33) faz uma breve lista dos leitores modernos, dividindo-os segundo a classificação de Kirk. Deixemo-los de lado por um instante e tentemos discutir o fragmento em si, analisando diretamente os termos que dizem respeito a nosso objeto, o jogo (ou seja, os particípios paízōn e pesseúōn).

 

2 Os particípios centrais

O primeiro particípio, paízōn, deriva de paȋs, “criança”, e significa literalmente “se comportar como uma criança”, donde “brincar” e sentidos derivados, como “jogar um jogo”, “dançar”, “tocar um instrumento musical” (CHANTRAINE, 1999, p. 849, s.v. παῖς); ou seja, todo o campo semântico de verbos comuns nas línguas ocidentais, como jugar (esp.), giocare (it.), jouer (fr.), играть (rus.), spielen (ale.), spelen (hol.), to play (ingl.).

Já o segundo, pesseúōn, deriva do jônico pessós, “pedra oval”, “peça de jogo” e significa literalmente “jogar um jogo com pessoí”, donde “jogar com pedras”, “jogar com peças” ou “jogar um jogo de tabuleiro” (CHANTRAINE, 1999, p. 890, s.v. πεσσός).

Paízōn, portanto, indica uma atividade genérica – brincar/jogar – e pesseúōn a especifica: jogar um jogo de tabuleiro com peças.

 

3 Jogos de tabuleiro

Parece ter havido duas formas distintas desses jogos na Grécia, por volta da época em que Heráclito viveu.[4] A primeira seria um jogo chamado pólis, aludido por Platão (República, IV, 422e; PLATO, 1994, v. 5, p. 324-327): “[...] devemos chamar às outras de forma mais ampla, pois cada uma das outras cidades (póleis) são muitas e não uma cidade (pólis), como no jogo (tò tō̑n paizóntōn)."

Provavelmente, trata-se do mesmo jogo descrito por Júlio Pólux (gramático e sofista ativo por volta de 180 d.C.) e por Eustácio, bispo de Tessalônica (c. 1115-1195):

O jogo jogado por meio de muitas peças (pollȏn psḗphōn) é um tabuleiro (plinthíon) que possui espaços dispostos em linhas; e o tabuleiro é chamado de “pólis” e cada uma das peças é um “cachorro”. As peças são divididas em duas por cor e a arte do jogo é capturar as peças da outra cor, rodeando-as com duas da mesma cor (Pólux, Onomástica, IX, 98 apud KURKE, 1999, p.256).[5]

Existe uma outra forma do jogo “pólis” em que a tomada de peças ocorre para frente e para trás quando muitas peças foram colocadas em espaços divididos por linhas. E eles costumavam chamar, com bastante espirituosidade, os espaços delimitados pelas linhas “poleȋs” e as peças que se opõem umas às outras como “cães”, por conta (suponho) de sua falta de vergonha. (Eustácio, Comentário à Odisseia, I, 107 apud KURKE, 1999, p. 255, n. 21).

 

Sabemos que esse jogo existia desde fins do século V a.C., pelo menos, já que Pólux cita uma passagem de Crátino (comediógrafo ateniense, c. 520-423 a.C.), para ilustrar o uso dos termos pólis e kýon (“cão”) (KURKE, 1999, p. 256).

A outra forma parece ter sido um jogo identificado como pénte grammaí (“cinco linhas”), que aparece em um verso de Sófocles (fr. 429). Pólux o descreveu assim:

[…] cada um dos que jogavam tinha cinco [peças] em cinco linhas, de modo que é dito adequadamente em Sófocles, “tabuleiros de cinco linhas (pessà pentégramma) e lançamentos de dados”. E das cinco linhas de cada lado (em cada direção?) havia uma no meio, chamada de “linha sagrada”; aquele que moveu a peça de lá fez o ditado “sair da linha sagrada” (Onomástica, IX, 97-98 apud KURKE, 1999, p. 257; tb. AUSTIN, 1940, p. 267-268).

 

Eustácio de Tessalônica acrescentou que o “movimento da linha sagrada” era o último recurso para um jogador que estava sendo derrotado, “[...] de onde o provérbio “sair da linha sagrada” para [indicar] pessoas que estão desesperadas e precisam definitivamente de ajuda.” (KURKE, 1999, p. 257). O bispo citou o provérbio em passagens de Teócrito (poeta siciliano ativo por volta de 270 a.C.), Sófron de Siracusa (fl. c. 430 a.C.) e Alceu de Mitilene (poeta lírico, c. 620-580 a.C.), o que sugere que pénte grammaí pode datar do século VI a.C. (AUSTIN, 1940, p. 268).

Dois detalhes são importantes e merecem um pouco mais de consideração.

Em primeiro lugar, ambos os jogos, conforme descritos, parecem ser um “jogo de batalha”, ou seja, um tipo de jogo no qual o objetivo é controlar o tabuleiro com suas peças e que, em geral, não usa dados (AUSTIN, 1940, p. 259). O verso de Sófocles, no entanto, menciona explicitamente lances de dados. É bem verdade que não conhecemos seu contexto e, portanto, não podemos ter certeza de que os dados fossem usados no tabuleiro de cinco linhas referido na primeira parte do verso. Pergunto-me, porém, por que Pólux citaria o verso “completo”, ou seja, incluindo a referência aos dados, se o jogo não os empregasse – ele poderia perfeitamente citar apenas a primeira parte do verso.

Além disso, em uma série bastante popular de vasos áticos do período arcaico (c. 540-480 a.C.), a imagem de dois hoplitas jogando um jogo de tabuleiro é acompanhada de inscrições próximas à cabeça dos guerreiros com números que, se acredita, se referem a lances de dados anunciados pelos jogadores (MARISCAL, 2011, p. 394, n. 3). Assim, acredito haver evidências de que pelo menos um tipo de jogo de tabuleiro grego usava peças e dados, no período arcaico.

Segundo detalhe: uma referência a pénte grammaí, no escólio a Teócrito, assevera que a peça que saía da linha sagrada era chamada “rei”, basileús (KURKE, 1999, p. 257, n.28).

Roland Austin (1940, p. 258) e a maior parte dos eruditos modernos descartam esse comentário, com base na palavra zatríkion, “xadrez”, usada pelo escoliasta em conexão com petteía, “jogo de tabuleiro”, o que parece sugerir que o comentarista mistura jogos diferentes, os petteíą gregos da época arcaica/clássica e o xadrez recém-importado do Oriente.[6]

No entanto, na passagem de Alceu citada por Eustácio para confirmar o provérbio supracitado, lê-se: “mas este agora governa (epikrétei), tendo movido a peça da linha sagrada.” (Eustácio, fr. 351 apud KURKE, 1999, p. 257, n. 28). Se considerarmos que essa passagem diz respeito ao governo de Pítaco (c. 640-568 a.C.), contemporâneo e conterrâneo de Alceu, a ideia de que uma peça em um jogo de tabuleiro estava conectada à “realeza” parece ter evidências mais seguras. Pítaco foi tirano eleito (aisymnḗtēs) em Mitilene, na ilha de Lesbos, mas uma antiga música preservada por Plutarco indica que o título de basileus, “rei”, era usado para denominá-lo: “Moer, moer, moer; pois até Pítaco mói, aquele que é basileús na grande Mitilene.” (KURKE, 1999, p. 257, n. 28). Segundo Leslie Kurke (1999, p.257), “[...] o poeta [Alceu], amarga e desdenhosamente, caracteriza seu oponente como (meramente) a imitação de um rei em um jogo de tabuleiro.”

Em outra referência, um pouco posterior e em uma passagem bem mais complexa e obscura, Platão chama o petteutḗs (jogador de jogos de tabuleiro) de “rei” (PLATÃO, Leis, X, 904a; KAHN, 2001, p. 227, n. 302).

E por que esses detalhes são importantes para nós? Porque, voltando a nosso fragmento, talvez o aposto paidòs hē basilēíē possa ser entendido como “da criança [é] a peça do rei”. Mesmo que não possamos identificar com certeza o jogo de B 52 com pénte grammaí (e que não possamos ter certeza de que esse jogo tivesse uma peça chamada “rei”), havia diversas outras atividades na Grécia que brincavam com a realeza. Basilínda, citada por Heródoto (I, 114), era uma brincadeira infantil na qual uma das crianças era escolhida/sorteada “rei” e dava ordens às outras, que deveriam cumpri-las. Outro jogo, citado por Pólux (Onomástica, IX, 106), era jogado com bola e o vencedor era nomeado “rei”, enquanto o perdedor, “burro” (CANCIK et al., 2006, s.v. Basilinda). Ou seja, é uma suposição razoável interpretarmos nosso aposto, paidòs hē basilēíē, como uma indicação de que a criança que joga com pessoí, em B 52, “conquistou o reinado” ou “tornou-se rei” por capturar a peça do rei e/ou vencer o jogo.

De outro ponto de vista, Charles H. Kahn, aceitando que algum jogo de tabuleiro antigo utilizasse dados e peças simultaneamente, sugere que B 52 pode ser lido como a interação de uma força aleatória (os lançamentos de dados) com o movimento regrado e ordenado das peças em um jogo de tabuleiro:

Do meu ponto de vista, a questão fundamental não são os movimentos infantis e aleatórios do jogo (como alguns intérpretes supuseram), mas o fato de que esses movimentos seguem uma regra definitiva e depois que um lado joga é a vez do outro e depois que a vitória é alcançada, o jogo deve ser reiniciado. As regras do jogo de pessoí, portanto, imitam as medidas alternadas do fogo cósmico. (KAHN, 2001, p. 227; B 30 DK, supra, n.1).

 

À primeira vista, pode parecer estranho usar um frívolo jogo de tabuleiro como metáfora de questões tão importantes quanto o movimento do fogo universal, porém, essa sentença de Heráclito não é a única instância em que aproximações desse tipo podem ser lidas.

 

4 Jogos em outros fragmentos

Em B 88 DK, por exemplo, lê-se: “[...] o mesmo é em (nós?) vivo e morto, desperto e dormindo, novo e velho; pois estes, tombados além, são aqueles e aqueles de novo, tombados além, são estes.” (OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1996, p. 97). O termo traduzido por José Cavalcante de Souza como “tombados além” é metapesónta, verbo que significa literalmente “cair de forma diferente”, donde deriva a ideia de mudança que aparece nesse fragmento. Charles Kahn (2001, p. 227) observa que, em seu sentido literal, metapesónta poderia referir-se ao lançamento de dados, o que sugeriria que o movimento dos opostos (tema recorrente e fundamental no pensamento do filósofo efésio) estivesse alinhado a um componente lúdico.

Mesmo se descartarmos o uso de dados nos jogos de tabuleiro gregos, metapesónta ainda traz ressonâncias que o ligam aos jogos de pessoí, pois esse verbo é sinônimo de metatíthemi e metabállō, os quais eram usados para descrever o movimento de peças em um tabuleiro. Encontramos esses três verbos associados ao jogador de pessoí em uma “misteriosa” passagem de Platão, “literalmente assombrada por reminiscências heraclíticas” (KAHN, 2001, p. 227, n. 302):

E como a alma, sendo unida agora a um corpo, depois a outro, está sempre sofrendo (metabállei) todos os tipos de mudanças (metabolàs) seja por si mesma, seja pela ação de uma outra alma, ao jogador (tǭ̑ petteutę̄) não resta outra tarefa senão transferir (metatithénai) o caráter que se aprimora para um lugar superior, o que piora para um pior, de acordo com o que melhor se ajusta a cada um a sorte que lhe cabe. […] Todos os seres animados se transformam (metabállei) já que possuem dentro de si mesmos a causa da transformação (tē̑s metabolē̑s aitían), e ao se transformarem (metabállonta) se movem de acordo com a lei e a ordem predestinada; quanto menor for a mudança (metabállonta) da qualidade (dos seres), menor será seu movimento horizontal no espaço e quando a transformação (metapesónta) for acentuada e inclinada para a grande iniquidade, os seres se moverão rumo às profundezas e às chamadas regiões inferiores […] (PLATÃO, Leis, X, 903d, 904c-d; PLATÃO, 2010, p. 424-426).

 

Em outra situação, o filósofo de Éfeso parece opor o jogo à atividade política (embora, nesse caso, se trate de um jogo de natureza bem diferente dos pessoí). É Diógenes Laércio (180-240 d.C.) quem nos conta:

E quando seus concidadãos lhe pediram para elaborar leis, ele se recusou porque a cidade já estava submetida a uma constituição má. Retirou-se para o templo de Ártemis e foi jogar ossinhos (ēstragálize) com as crianças, apostrofando os efésios que estavam a sua volta com as palavras: “por que vos admirais, canalhas? Não é melhor fazer isso do que participar convosco do governo da cidade (politeústhai)?” (IX, 2-3; DIÔGENES LAÊRTIOS, 2008, p. 251).

 

Astragalízō, “jogar com astrágaloi” (pequenos ossos do tornozelo, que, em português, se chamam “tálus”), era uma forma de jogar na qual se empregavam cinco ossinhos que cada criança deveria lançar ao ar e tentar pegá-los, na parte de trás de uma das mãos; quem pegasse o maior número ganhava. Essa história tira seu interesse da “preferência incongruente do falante pelos jogos infantis à seríssima atividade da lei” (KURKE, 1999, p. 259). E, no entanto, Leslie Kurke aponta que, em certo sentido, o paradoxo é duplo: jogos infantis são muito sérios para as crianças que os jogam, enquanto “elaborar leis” (nómous theȋnai) é uma atividade simbólica, tanto quanto jogar um jogo de tabuleiro. Assim, a professora de Berkeley sugere que Heráclito, talvez, não esteja opondo um jogo (ēstragálize) à “vida real” (politeústhai), mas “um tipo de jogo a outro, em um esforço para ensinar aos seus concidadãos uma lição objetiva” (KURKE, 1999, p. 259).

Nesse sentido, o termo politeústhai poderia trazer em si uma ambiguidade, significando ao mesmo tempo “participar da vida pública na cidade” e “jogar pólis”. A ressonância cívica dos jogos de tabuleiro é o principal assunto sobre o qual Kurke (1999, p.260) discorre, em todo o seu artigo:

[…] para (alguns) gregos dos períodos arcaico e clássico, jogar pessoí ensinava ao jogador como ser um cidadão na pólis. Para o jogo chamado pólis, isso era verdade em pelo menos dois sentidos. Estritamente, as regras e a estratégia desse jogo de batalha imprimiam em seus jogadores a importância de manter seu lugar na linha de batalha dos hoplitas, em vez de se tornarem ἄζυξ, “isolados” (e, portanto, os pessoí alinham-se apropriadamente com as táticas militares, o primeiro item da lista de Górgias). Mais amplamente, o jogador aprendia o que significava submeter-se às regras e à ordem simbólica da cidade que o constituíam como um cidadão com status igual a todos os outros cidadãos.

 

Metáforas ligadas a outros tipos de jogo aparecem ainda em B 120 DK: “limites de aurora e crepúsculo (são) a ursa e em face (antíon) da ursa a baliza do fulgurante Zeus” (OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1996, p. 100). Trata-se, mais uma vez, de um fragmento bastante discutido e traduzido de diversas formas. Andrei Lebedev (1985, p. 132), contudo, faz algumas observações interessantes: a palavra térmata (“limites”) significava literalmente o marco a ser contornado em uma corrida, como pode ser visto na Ilíada (XXIII, vv. 309, 333, 358, 462, 466) ou em Píndaro (poeta lírico contemporâneo de Heráclito; Píticas, IX, v. 114).

Assim, nessa imagem heraclítica, a aurora (ēoȗs) e o crepúsculo (hespéras) seriam corredores que deveriam contornar dois marcos: a ursa e a “baliza do fulgurante Zeus” (oȗros aithríou Diós). A ursa refere-se à constelação da Ursa Maior, que culmina no céu durante o equinócio de primavera. Já aithríou Diós, literalmente “Zeus/céu brilhante”, era uma expressão arcaica para indicar “bom tempo” e, portanto, oȗros aithríou Diós poderia indicar o “limite/fim do bom tempo”, ou seja, o equinócio de outono (LEBEDEV, 1985, p. 131-132).

B 120, por conseguinte, retrata a aurora e o crepúsculo em uma corrida cósmica em direção a dois térmata, os equinócios, os quais, não esqueçamos, são as únicas ocasiões do ano em que a duração do dia e da noite são iguais. Ambas as balizas estariam colocadas “opostas” (antíon) uma à outra, como era o caso, por exemplo, no estádio de Olímpia. Por fim, resta observar que ánō (“para cima”) e kátō (“para baixo”) eram termos técnicos de corrida que indicavam duas formas de correr na pista, o que nos leva a outro fragmento do efésio, pois, se colocarmos dois corredores no meio da pista e eles correrem com a mesma velocidade em direção aos térmata opostos, um correndo “para cima” e outro correndo “para baixo”, ambos se encontrarão face a face no meio do estádio, comprovando que “a rota para cima e para baixo é uma e a mesma” (hodós ánō kátō mía kaí ṓutḗ, B 60 DK; OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1996, p. 94; LEBEDEV, 1985, p. 133).

 

5 Seriedade do jogo

Considero importante mencionar B 120 e B 60, a fim de mostrar que Heráclito usou metáforas relacionadas a jogos, para discutir questões cósmicas em mais de um fragmento. Todavia, não posso deixar de lembrar que, na Grécia, a corrida era designada pelo termo agṓn (“disputa”, “competição”),[7] enquanto jogos como os de tabuleiro e os jogados com astragáloi ou bola eram referidos por outra palavra: paidiá, a qual, assim como paízōn, derivava de paȋs, “criança”. Ou seja, etimologicamente, jogos de tabuleiro eram “jogos/brincadeiras de criança”.

Não obstante, não é difícil encontrar referências de que os jogos de pessoí eram considerados uma atividade séria e de maneira nenhuma restrita a crianças. Platão, por exemplo, em mais de uma ocasião, destacou “jogar um jogo de tabuleiro” como uma atividade importante. No Górgias, ele a incluiu entre diversas artes (tō̑n technō̑n) mentais:

Há, pelo contrário, outras artes que realizam todos os seus objetivos pelo lógos e não carecem praticamente de nenhuma ou quase nenhuma ação. É o caso da aritmética, do cálculo, da geometria e, certamente, também do jogo de tabuleiro (petteutikḗ) e de muitas outras artes em que o lógos desempenha, por vezes, um papel quase igual ao dos atos materiais e, na maioria dos casos, um papel superior, dado que toda a atuação e eficácia se verificam nessas artes por meio do lógos. É ao número dessas últimas que suponho dizes pertencer a retórica. (PLATÃO, Gór. 450 d-e; PLATÃO, 1973, p. 35).

 

Na República, a lista é diferente e traz os jogos entremeados a diversos conhecimentos técnicos úteis: agricultura, fabricação de sapatos, jogo de um jogo de tabuleiro, construção civil, tocar um instrumento, criação de cavalos, construção e pilotagem de barcos, vinicultura, arte militar e música (PLATÃO, Rep. I, 333a-e; PLATO, 1994, v.4, p. 26-29).[8] Em outra passagem, o filósofo ateniense descreveu explicitamente a dialética como um jogo de tabuleiro, incluindo alguns detalhes “táticos”:

Sócrates, ninguém seria capaz de contradizer teus argumentos. Mas, via de regra, as pessoas que ocasionalmente te ouvem argumentar sentem-se assim: imaginam que, por não terem experiência na arte de questionar e responder, deixam-se enganar pouco a pouco por cada argumento e, quando esses pequenos desvios se acumulam no final da discussão, grande é sua queda e a aparente contradição a partir do que eles disseram inicialmente; da mesma forma que os jogadores de jogos de tabuleiro hábeis (tō̑n petteúein deinō̑n) bloqueiam os inábeis que se veem impossibilitados de fazer um movimento, o teu interlocutor fica bloqueado e não sabe o que dizer, neste outro jogo de tabuleiro (petteías) que é jogado, não com peças (ouk en psḗphois), mas com palavras (PLATO, República, VI, 487a-c; PLATO, 1994, v. 5, p. 12-15).

 

Políbio (c. 203-120 a.C.) elogiou o general cartaginês Amílcar Barca, com uma expressão bem semelhante: “[...] como um bom jogador de jogos de tabuleiro (agathòs petteutḕs), isolando-os e cercando-os, ele destruiu grandes números sem arriscar um engajamento geral.” (Políbio, I, 84 apud AUSTIN, 1940, p. 261).

Lembremo-nos também da série supracitada de vasos áticos que retrata dois guerreiros jogando. O jogo lá pintado era certamente um jogo de tabuleiro (talvez o jogo das cinco linhas, como já observamos) e seus jogadores não são crianças. A imagem de dois soldados armados jogando um jogo de tabuleiro ocorre já em meados do século VI, em selos esculpidos e alças de escudo encontradas em Egina, Olímpia e perto de Tarento, na Itália. Além desses achados arqueológicos e de 168 vasos já catalogados (152 versões de figuras negras e 16 de figuras vermelhas), um grupo de estátuas de mármore com a mesma cena parece ter sido consagrado na Acrópole ateniense, antes da invasão persa (KURKE, 1999, p. 261). Nem sempre os guerreiros são identificados, mas em todas as instâncias em que eles o são, são nomeados como Ájax e Aquiles (MARISCAL, 2011, p.  394, n. 2). Ou seja, não se trata de guerreiros quaisquer, mas dos dois maiores heróis gregos da Ilíada – e talvez de toda a guerra de Troia – jogando um paidiá.

Assim, paízōn indicava uma criança jogando/brincando, e a etimologia parece indicar que se trata de um jogo/uma brincadeira infantil (como, aliás, muitos intérpretes traduziram e interpretaram essa passagem). Entretanto, pesseúōn desloca a cena para além da infância: a criança joga um jogo difícil, o qual exigia dedicação para dominar a arte (téchnē) de jogar bem, um jogo ordenado, com regras específicas que têm que ser seguidas corretamente e que, metaforicamente, tem ressonâncias cívicas e cósmicas.

 

Palavras finais

Evidentemente, essas breves observações não solucionam o sentido de B 52. Ainda é necessário identificar as relações entre a criança e o aiṓn, esse termo complexo que parece referir-se à totalidade do tempo de vida (KEIZER, 2010, cap. 2, passim). Pretendo discutir as relações entre esses termos (e a relação de ambos com a questão da temporalidade) em um artigo posterior. Se me for possível, almejo ainda tentar comentar as relações do jogo com a temporalidade. Essas elucidações, no entanto, são um trabalho para o futuro. Ainda assim, acredito que as observações aqui expostas podem auxiliar no entendimento desse enigmático quebra-cabeças que vem desafiando os filósofos, há quase dois mil e quinhentos anos.

 

Heraclitus, B 52 DK: a semantic analysis of play.

Abstract: Heraclitus’ fragment B 52 DK defines aiṓn (time, life, or lifetime) as a playing child. But what is being played? The usual interpretations debase the heraclitic play, listing this fragment among those that criticize the faulty knowledge of mankind. Against these, I propose a philological analysis to better identify and understand what is being played in B 52, in the belief that it is not a childish play, but a serious game that resounds with cosmic and civic metaphors.

 

Keywords: Game. Heraclitus. Greek philosophy.

 

Referências

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Recebido: 26/4/2019

Aceito: 04/7/2020

 



[1] Professor de Teoria e Metodologia da História na Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9213-1184. E-mail: aleme@gmx.us.

[2] Embora as palavras aiṑn, pesseúōn e basilēíē não apareçam em nenhum outro fragmento atribuído a Heráclito, deve-se observar que basileús (rei, chefe), lexicamente próximo de basilēíē (reino, reinado), aparece no fragmento B 53. Os demais vocábulos de B 52 são variações de paȋs, que, em diversas funções gramaticais, aparece em pelo menos sete fragmentos: B 20, 52, 56, 70, 74, 79, 117 (BOLLACK; WISMANN, 1972, p. 372, 374, 381).

[3] Sandra Šćepanović (2015, p. 31) chama a atenção para o fato de que o Demiurgo é provavelmente uma extrapolação de Proclo a partir de Platão, uma vez que não há menção a um Demiurgo ou a qualquer figura criadora no corpus sobrevivente do filósofo de Éfeso. Ao contrário, B 30 DK, que conhecemos por Clemente de Alexandria, afirma: “[...] este mundo (kósmos), o mesmo de todos os (seres), nenhum deus, nenhum homem o fez, mas era, é e será um fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas.” (OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1996, p. 90).

[4] Deve-se observar que a evidência sobre os jogos de tabuleiro gregos do período arcaico é bastante escassa e fragmentária, além de ser, na maior parte das vezes, tardia. Consequentemente, é impossível confirmar o formato dos tabuleiros ou as regras desses jogos e até mesmo nomes, funções ou quais as peças utilizadas nos jogos. Às vezes, é difícil até mesmo precisar se a evidência literária se refere a um mesmo jogo ou a jogos diferentes (ver, e.g., o verso de Sófocles discutido infra).

[5] As peças de jogo, pessoí (ático pettoí), também eram chamadas eventualmente de líthoi (pl. de líthos, “pedra”) ou psē̑phoi (pl. de psē̑phos, “seixo”, “pequena pedra redonda e gasta”, normalmente usada para contagem, votações e adivinhação).

[6] Petteía (equivalente ao jônico pesseía) é um termo ático genérico usado para indicar um jogo de tabuleiro qualquer. A passagem de Teócrito comentada apenas traz “e das linhas moveu a peça” (kaì tòn apò grammȃs kineȋ líthon, VI, v. 18; THEOCRITUS, 1973, p. 52).

[7] H. Bolkenstein acredita que as competições gregas não devem ser incluídas na moderna categoria “jogo” – “quando aludimos aos Jogos Olímpicos, inadvertidamente, fazemos uso de um termo latino, o qual exprime a apreciação dos romanos sobre as competições assim designadas, que é totalmente diferente da interpretação dos gregos”; o autor conclui, após listar uma longa série de atividades denominadas pelo termo grego agṓn: “tudo isso nada tem a ver com o jogo – a menos que se pretenda que para os gregos tudo na vida era jogo!” Johan Huizinga (2001, p. 36) cita a crítica e responde, assinalando que é precisamente essa sua posição.

[8] Literalmente, Platão escreve pettō̑n thésin, “colocação de peças”, atividade cujo maior especialista é o petteutikós, o “jogador de jogos de tabuleiro”.