ENTREVISTA[1] COM ALEX DEMIROVIC[2]

No que seu livro Os intelectuais não-conformistas se distingue dos livros de Martin Jay e Rolf Wiggershaus sobre a Escola de Frankfurt?

Esses livros têm grandes méritos por apresentarem em detalhe a história do Instituto de Pesquisa Social e das pessoas que nele trabalhavam, assim como do desenvolvimento da Teoria Crítica. O livro de Martin Jay apóia-se em material dos arquivos de Leo Löwenthal, amigo íntimo de Max Horkheimer e colaborador do Instituto até quase o fim da década de 1940. Porém, com base nesse material o livro também acaba no fim dos anos 40. Mas Horkheimer e Adorno ainda tinham pela frente duas décadas importantes de atuação e de desenvolvimento da teoria. Wiggershaus quer escrever uma história completa da Escola de Frankfurt. Ele se dedica à história do grupo de pesquisadores. No centro estão Horkheimer, Pollock e Adorno. Mas também trata dos outros bem pormenorizadamente. Meu livro, em contrapartida, trata da época posterior ao retorno de Horkheimer e Adorno para a Alemanha, ou seja, a partir de 1949. Também não é uma história da Escola de Frankfurt e sim um estudo histórico-científico. Eu procuro ver como Horkheimer e Adorno enquanto intelectuais críticos, marxistas, desenvolveram uma prática concreta no campo intelectual, que papel sua teoria desempenhou na sua prática intelectual e de que modo essa prática influenciou igualmente a teoria. Pesquisei assim de que maneira Adorno sobretudo contribuiu para o desenvolvimento da sociologia como domínio científico na Alemanha, como era sua docência, que discussões e que ligações existiam com os estudantes, como as publicações eram organizadas em editoras e revistas e como era a recepção pública desses escritos. Trata-se portanto de uma questão sistemática: o que intelectuais marxistas, que deram ao marxismo uma nova forma histórica, fazem concretamente na sociedade alemã quando a forma de reprodução capitalista e conseqüentemente também a posição do intelectual mudou nessa sociedade. Wiggershaus tem também um interesse específico em demonstrar que os velhos autores eram resignados e que a Teoria Crítica teve uma continuação frutífera com Negt e Kluge, mas sobretudo com Habermas. Eu não estava interessado nesse tipo de demonstração. Considero essa tese fundamentalmente problemática. Se analisarmos a atividade intelectual de Adorno e Horkheimer chegamos à conclusão de que eles faziam um grande esforço para criar na Alemanha uma ampla infra-estrutura para o pensamento crítico. Eu procuro mostrar que se trata de uma importante prática intelectual, de uma prática teóricoepistemológica em sentido materialista. Com base nessa infra-estrutura eles criaram um novo modelo de teoria o qual uniu filosofia, sociologia e psicanálise numa nova Teoria Crítica da sociedade. Para mim essa teoria social é não só importante como ponto de partida para reflexões atuais, mas também é importante o tipo de prática desses autores.

Como você vê a virada lingüística?

Na forma como foi tratada por Habermas – no sentido de uma teoria lingüística antropológico-universalista – não penso que seja útil. Entretanto considero importante estabelecer o significado da linguagem numa teoria crítica materialista da sociedade. Neste campo há idéias interessantes como as de Baktin ou Volosinov, assassinados no tempo de Stalin. Hoje, temos autores como Utz Maas, Jürgen Link, Siegfried Jäger na Alemanha, Fairglough na Inglaterra, Ruth Wodak na Áustria, Michel Pêcheux na França, o qual tem idéias muito estimulantes. As reflexões desses autores mostram claramente que o discurso provém de determinadas posições discursivas; o próprio discurso é sempre institucionalizado e dialogizado por meio do que outros exprimiram anteriormente ou do que esperamos que eles digam no futuro. Um exemplo: Wiggershaus interpreta o discurso de Horkheimer como reitor da Universidade de Frankfurt de tal modo que diz que ele era resignado e que não abordava o contexto concreto na Alemanha, ou seja, que ignorava a constelação histórica concreta. Diferentemente de Wiggershaus li inúmeros discursos de reitores de outras universidades e cheguei assim a um resultado totalmente diferente, a saber, que Horkheimer procurava convencer os estudantes a serem mais autônomos e a participarem democraticamente das decisões políticas. Esses discursos eram portanto uma intervenção altamente concreta no contexto intelectual. Muitos estudantes sentiam-se encorajados e se engajavam em grupos socialistas, começavam a ler Marx e Lukács e intervinham de maneira prática na discussão política.

Como você vê a discussão atual sobre a Teoria Crítica na Alemanha?

Tomemos como exemplo as comemorações do centenário do nascimento de Adorno: vários livros foram publicados, inúmeras conferências foram apresentadas. Os livros são apenas biográficos, trouxeram material novo mas não há nenhuma nova interpretação. Também nas conferências falaram muitas pessoas que repetem há anos que Adorno deixou de ser atual e que só pode ser usado, quando muito, como teórico da estética. Nos suplementos culturais se escreve sobre Adorno de modo em parte crítico, em parte irônico e distanciado. Enfatizam-se seus hábitos sexuais um tanto neurótico-obsessivos, o fato de que já idoso ainda se apaixonava por mulheres jovens, o que lhe dá um certo ar suspeito. Vai para segundo plano o teórico crítico perspicaz, o dialético que, junto com todos os diagnósticos que hoje em parte já não são utilizáveis, também disse coisas muito importantes a respeito das questões fundamentais da teoria da sociedade.

E você, como vê Adorno hoje?

Penso que Adorno desenvolveu uma teoria da sociedade para além da tradição da prima philosophia. Ele recusava compreender a sociedade como um universal, como algo que sempre existiu e em que tudo é determinado por uma causa última como fundamento metafísico. Ele é tanto um crítico da metafísica do trabalho quanto da metafísica da linguagem. Ele também rejeitava expressamente todas as tentativas de dar um fundamento filosófico-moral à crítica da sociedade. Para ele tratava-se de constelações concretas em que a negação determinada podia se desenvolver. Penso que ainda hoje é muito interessante redescobrir a crítica de Adorno à objetividade lógica positivista, ao conformismo assim como suas reflexões sobre a dialética negativa. Sobretudo penso que a dialética negativa é importante. Ou seja, é importante um conceito de antinomias nas quais nos movemos permanentemente: participação democrática e recusa da política, liberdade e não-liberdade, carência de igualdade e de diferença, todas essas antinomias que precisamos suportar e que Adorno nos ensina a captar como impulso e motivo para o pensamento e a ação críticos, e que não está distante de nós a possibilidade de superar a atual situação social. Justamente esse ponto de vista – o de que Adorno visa a superação das formas capitalistas de socialização, uma associação de homens livres, que a humanidade se torne finalmente humanidade e configure racional e coletivamente suas condições de vida – não desempenha nenhum papel nas discussões atuais sobre ele.

Quão crítica é hoje a Teoria Crítica na Alemanha?

Considerando-se o que acabo de observar, eu diria que muito do que hoje se escreve e se diz em nome da Teoria Crítica é pouco crítico. Nesses escritos não se trata de criar uma situação mundialmente livre e racional. Essas reivindicações são antes consideradas superadas. O argumento é que temos hoje uma democracia, temos um espaço público que funciona, que o capitalismo se transformou num capitalismo de bem-estar social com direitos humanos e civis. Em alguns aspectos não contesto isso, mesmo deixando de lado os ataques neoliberais ao Estado de bem-estar. Porém, indo mais longe, é evidente que a situação social não é determinada pelos indivíduos, mas, ao contrário, que estes são exortados continuamente a se adaptarem. A política consiste essencialmente num apelo populista a se resignar, pois a situação é assim e não pode ser diferente. Só se tem como objetivo o crescimento e o progresso técnico, mais empregos e consumo crescente. A desumanidade do trabalho assalariado, do consumo, da destruição da natureza é empurrada para segundo plano. A idéia é que o progresso resolverá esses problemas a qualquer momento. Apesar disso, é evidente que a liberdade, que uma associação de indivíduos livres já seria possível.

Hoje existem muitas tentativas de refundar a Teoria Crítica em bases filosófico-morais o que considero infrutífero. Essas discussões existem há milênios e nunca foram longe. É importante aqui o passo dado por Marx indo da filosofia à análise dos processos reais; Horkheimer e Adorno seguiram-no, ainda que com a ressalva de salvaguardar o idealismo para poder através dele alcançar a realidade. Sua aspiração era renovar a teoria da sociedade pois o capitalismo havia assumido uma nova forma. Para mim, ainda hoje, essa me parece ser a tarefa central. O capitalismo transformou-se, e as forças críticas adquirem assim uma posição diferente – e por isso precisam também de uma nova teoria.

Você considera que a Teoria Crítica sofre de um déficit sociológico e que não pode mais interpretar a situação atual?

Penso que podemos aprender metodologicamente muito com a velha Teoria Crítica. Gostaria de mencionar dois pontos: 1. a teoria tem que captar a totalidade da situação, ou seja, a conexão interna entre relações de produção, Estado, cultura, padrões de subjetividade e racionalidade; 2. a separação entre trabalho intelectual e trabalho manual – ou seja, a questão a respeito do estado da cooperação social e da necessidade da labuta física para manter a vida humana; a isso está ligada a questão da dose concreta de liberdade e razão que existe na sociedade. Para Adorno a questão central é saber se a sociedade já pratica o grau de liberdade que seria possível em face do desenvolvimento das forças produtivas. Como esse não é o caso precisamos perguntar a respeito das necessidades objetivas e dos padrões de repressão, ou seja, qual é o custo de impedir a liberdade. Nos casos individuais é preciso examinar o que ainda é válido nas antigas teses sociológicas. Mas penso que aqui igualmente ainda há muita coisa atual que precisa ser redescoberta e reincorporada de maneira nova, como p.ex., as reflexões sobre a indústria cultural ou o consumo. No contexto da violência racista na Alemanha muitas reflexões de Adorno e Horkheimer sobre o antisemitismo também são importantes e atuais. Em outras palavras, descubro na velha Teoria Crítica muita coisa interessante, bem mais que em muitas teorias contemporâneas que pretendem contribuir criticamente para o estudo da patologia social do capitalismo e que no entanto permanecem enterradas em comentários superficiais e em debates filosóficomorais sem um conhecimento preciso do capitalismo. Mas isto não significa que não se deva continuar a desenvolver a teoria do capitalismo. Neste campo há muitas pesquisas sobre a forma de mudança do capitalismo – do fordismo para o pós-fordismo ou império ou capitalismo high-tech. Com esse tipo de estudos podemos nos pôr de acordo.

Há trabalhos sobre isso na Alemanha?

Sim. Penso em Joachim Hirsch, Elmar Altvater e Birgit Mahnkopf, Heinz Steinert, Regine Becker-Schmidt, Alexi Knapp, Andrea Maihofer, Christoph Görg, Uli Brand, Gerhard Schweppenhäuser e muitos outros. Contudo não se devem subestimar as dificuldades atualmente existentes. Adorno e Horkheimer tiveram êxito ao ancorarem a Teoria Crítica na universidade. Isso foi feito através do novo papel dado ao Instituto de Pesquisa Social como instituto para o ensino da sociologia na universidade, o que marcou toda uma geração. Essa geração deixa hoje a universidade. E já não é evidente que o saber crítico ainda se reproduza por meio da universidade. No tocante a este ponto precisam ser desenvolvidos novos modelos de discussão e de trabalho conjunto intelectual que, sem desistir da universidade, sejam um tanto independentes dessa instituição. Em todo caso, entre os chamados intelectuais e outros existem muitos esforços que, a partir dos estudos da economia política internacional, da teoria da regulação, da teoria de Gramsci, da teoria feminista, de gênero e homossexual e do pós-estruturalismo, visam continuar a desenvolver a Teoria Crítica da sociedade num novo nível histórico. A Teoria Crítica consiste também na apropriação crítica de todos esses debates teóricos, que expõem e sistematizam as experiências e os movimentos de emancipação. Muita coisa será criticada. Mas penso que é necessário, no sentido da Teoria Crítica, integrar todas essas experiências e discussões num contexto teórico mais abrangente. Com isso se cria também para a Teoria Crítica uma tarefa totalmente nova. Não só a filosofia precisa atualmente unir-se às questões científicas particulares, mas também as diversas teorias emancipatórias devem conduzir a uma compreensão complexa da nova realidade capitalista pós-fordista – compreensão complexa que é necessária pois a emancipação assume várias formas.



[1] Entrevistadora e tradutora: Isabel Loureiro

[2] Alex Demirovic, doutor em filosofia, trabalhou como pesquisador do Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt. Atualmente é professor na Universidade de Frankfurt. Entre outras, publicou as seguintes obras: Der nonkonformistische Intellektuelle – Die Entwicklung der Kritische Theorie zur Frankfurter Schule. Frankfurt: Suhrkamp, 1999; (org.). Modelle kritischer Gesellschaftstheorie – Traditionen und Perspektiven der Kritischen Theorie. Stuttgart/Weimar: J. B. Metzler, 2003.