A tese da mente estendida à luz do externismo ativo: Como tornar Otto responsivo a razões?

 

Eros Moreira de Carvalho[1]

 

Resumo: A tese da mente estendida sustenta que alguns estados mentais e processos cognitivos se estendem para além do cérebro e do corpo do indivíduo. Itens externos ao organismo ou ações envolvendo a exploração ou manipulação do ambiente externo podem constituir, em parte, alguns estados mentais ou processos cognitivos. No artigo inaugural de Clark e Chalmers, “The Extended Mind”, essa tese recebe apoio do princípio da paridade e do externismo ativo. No artigo dos filósofos, é dada maior ênfase ao princípio da paridade, o qual é apresentado como neutro em relação à natureza da cognição. Seria uma vantagem que as extensões propostas não envolvessem uma reforma da nossa concepção pré-teórica de cognição. Neste texto, propõe-se que maior ênfase seja dada ao externismo ativo, o qual não é neutro em relação à natureza da cognição. A cognição é elaborada como adaptação bem-sucedida a uma tarefa específica. Embora esse movimento possa parecer desvantajoso, ele é necessário para a correta compreensão e defesa do caso Otto. Além disso, o princípio da paridade não dá conta da crítica de Weiskopf de que os registros no caderno de notas de Otto não são responsivos a razões. Para responder a essa crítica, é necessário mobilizar o externismo ativo e a consequente compreensão da cognição que ele envolve.

 

Palavras-Chave: A tese da mente estendida. Princípio da paridade. Externismo ativo. A marca da cognição. Crenças responsivas.

 

Introdução

A tese da mente estendida é uma tese acerca de processos cognitivos e estados mentais. Essa tese afirma que alguns dos nossos processos cognitivos ou alguns dos nossos estados mentais são, pelo menos em parte, constituídos por processos ou itens externos ao cérebro ou mesmo ao corpo do agente. No artigo inaugural de Clark e Chalmers (1998), “The Extended Mind”, essa tese recebe apoio do princípio da paridade, um princípio funcionalista, e do externismo ativo, uma posição que enfatiza a relevância de certos tipos de ações para a cognição. No artigo dos filósofos, é dada maior ênfase ao princípio da paridade, que é apresentado como neutro em relação à natureza da cognição. Seria uma vantagem que os casos de processos cognitivos e estados mentais que se estendem ao ambiente não envolvessem uma reforma da nossa concepção pré-teórica de cognição. Tanto melhor se o princípio da paridade conseguisse, então, nos entregar esse resultado.

Neste artigo, além de introduzir o debate, proponho que maior ênfase seja dada ao externismo ativo, o qual não é neutro em relação à natureza da cognição. Ações de um tipo especial podem ser constitutivas de processos cognitivos. Embora esse movimento possa parecer desvantajoso, ao nos comprometer com uma concepção de cognição, ele é necessário para a correta compreensão e defesa do caso Otto, usado por Clark e Chalmers, para ilustrar uma situação na qual crenças não-ocorrentes podem ser estendidas ao ambiente. Há dois problemas com o caso Otto. O primeiro é que ele envolve uma extensão do próprio perfil funcional da crença. Isso significa que o funcionalismo ou o princípio da paridade apenas não é suficiente para explicar o caso. O segundo é que o princípio da paridade também não dá conta da crítica de Weiskopf de que os registros no caderno de notas de Otto não são responsivos a razões. Esses problemas estão interligados, já que uma resposta adequada à crítica de Weiskopf exige uma extensão ainda maior do perfil funcional da crença não-ocorrente. Para dar conta dessas dificuldades, mobilizo o externismo ativo e a consequente compreensão da cognição que ele envolve. Com base nessa concepção de cognição, justifico a extensão de perfis funcionais de estados mentais. Na verdade, mostro que essas extensões são corriqueiras. Assim, a tese da mente estendida é mais bem compreendida e defendida, através do externismo ativo.

Na próxima seção, apresento os casos clássicos que ilustram a tese da mente estendida, o caso Tetris e o caso Otto. Explico esses casos, a partir do princípio da paridade. Na seção 3, mostro que o caso Otto esbarra em dificuldades, se o compreendemos com base no princípio da paridade apenas. A crítica de Weiskopf é importante para explicitar essas dificuldades. Na seção 4, articulo o externismo ativo e mostro como ele oferece uma linha de defesa contra a crítica de Weiskopf.

 

1 A tese da mente estendida

Nesta seção, explicito as razões oferecidas por Clark e Chalmers para a tese da mente estendida. Como já foi mencionado, essa tese foi aplicada originalmente a processos cognitivos e a certos tipos de estados mentais, como as crenças disposicionais. No artigo de Clark e Chalmers (1998), dois experimentos de pensamento apoiam a tese da mente estendida. O primeiro experimento, o caso do jogo Tetris, apoia a alegação de que alguns processos cognitivos se estendem ao ambiente, enquanto o segundo experimento, o caso Otto, apoia a alegação de que alguns estados mentais se estendem ao ambiente.

 

1.1 O caso Tetris

Um sujeito está jogando Tetris e precisa decidir se a peça que aparece na parte superior da tela pode ser encaixada em alguma das peças na parte inferior da tela. O sujeito pode imaginar essa peça rotacionada e comparar a peça imaginada com as peças na parte inferior da tela. Por meio desse processo, ele resolve a tarefa cognitiva de determinar se a peça nova se encaixa ou não em algumas das peças que se encontram na parte inferior da tela. Alternativamente, ele poderia, usando um controle, rotacionar a peça na parte superior da tela e comparar diretamente a peça em sua nova orientação com as peças na parte inferior da tela. Clark e Chalmers imaginam ainda uma terceira possibilidade. Em um cenário futurista, o sujeito recebe um implante neural que lhe permite rotacionar a figura tão eficientemente quanto o computador. Ele ainda precisa decidir conscientemente se usará o implante ou se fará a rotação mental (CLARK; CHALMERS, 1998, p. 7).

Os três processos descritos resolvem a mesma tarefa: determinar se a peça que aparece na parte superior da tela se encaixa em alguma das peças na parte inferior da tela. Parte da tarefa consiste em colocar-se em uma situação vantajosa, para comparar a peça nova com as peças na parte inferior da tela. Como vimos, essa etapa do processo pode ser realizada pelo menos de três maneiras diferentes. Todas elas contam como cognitivas? Para Clark e Chalmers, sim, pois os três processos são relevantemente similares. Assim, se imaginar a peça rotacionada é parte de um processo cognitivo que resolve a tarefa acima, e se essa função é cumprida, em outro processo que resolve a mesma tarefa, pela rotação da peça na tela do computador, mediante a manipulação de um controle, então a rotação da peça na tela do computador também faz parte desse último processo. Esses processos são funcionalmente similares e, se um deles, o primeiro, é claramente cognitivo, bem como as suas etapas, o segundo e as suas etapas também devem ser. Considerações semelhantes se aplicam ao terceiro processo. O raciocínio de Clark e Chalmers apoia-se no que ficou conhecido como o princípio da paridade:

Se, conforme nós confrontamos alguma tarefa, uma parte do mundo funciona como um processo, o qual, fosse ele executado na cabeça, nós não hesitaríamos em reconhecê-lo como parte do processo cognitivo, então essa parte do mundo é (assim alegamos) parte do processo cognitivo (CLARK; CHALMERS, 1998, p. 8, ênfase dos autores)[2].

 

O princípio da paridade é um princípio funcionalista: ele alega que funções semelhantes têm propriedades cognitivas semelhantes, embora as diferenças materiais sejam substantivas. Assim, se um passo de um processo cognitivo é substituído por outro que cumpre a mesma função, este último faz parte do processo cognitivo tanto quanto o primeiro o fazia. Vê-se, então, como processos cognitivos podem ser estendidos para fora do corpo, com base no princípio da paridade. Como a segunda maneira de resolver a tarefa em questão envolve uma interação com o ambiente, a manipulação de um controle para alterar a posição de uma peça na tela do computador, esse processo cognitivo é um daqueles que se estende para fora do corpo do agente. O argumento para estender processos cognitivos a partir do princípio da paridade pode ser formulado da seguinte maneira:

PC, formado pelas etapas E1..EN, é claramente um processo cognitivo.

X é uma atividade que envolve interação com ambiente e tem as mesmas propriedades funcionais que a etapa E*, pertencente a E1..EN.

A substituição de E* por X em PC gera o processo PC’.

Em virtude de (2), PC’ tem as mesmas características funcionais de PC.

Pelo princípio da paridade, se PC é um processo cognitivo, então PC’ também é.

Logo, PC’ é um processo cognitivo.

Logo, em virtude de (2), PC’ é um processo cognitivo que se estende para fora do corpo.

Repare-se que a extensão ocorreu sem pressupor qualquer alteração na nossa compreensão pré-teórica da cognição. Todo o trabalho para promover a extensão foi realizado pelo princípio da paridade. Por um lado, isso torna a tese da mente estendida, ao menos no que diz respeito aos processos cognitivos, pouco contenciosa. Ela é disputável tanto quanto for disputável o funcionalismo subjacente ao princípio da paridade. O próprio Clark vê como uma vantagem que a tese da mente estendida possa ser defendida sem precisar entrar na discussão mais pantanosa acerca da “marca do cognitivo” (CLARK, 2011, p. 4)[3]. Por outro lado, pode-se dizer que a tese da mente estendida é relativamente conservadora. A compreensão pré-teórica que temos de quais processos são cognitivos fornece o ponto de partida para possíveis extensões. Conforme o próprio princípio da paridade deixa claro, essa compreensão inicial favorece processos intracranianos, pois só estendemos para fora aqueles processos cognitivos que poderiam ser executados na cabeça.

Essa estratégia leva a duas limitações: (1) processos que não poderiam ser executados na cabeça de um indivíduo não são contemplados pela tese da mente estendida e, portanto, não são considerados cognitivos, com base na tese da mente estendida. Processos essencialmente distribuídos e coletivos, por exemplo, ficam de fora. Essa pode ser uma consequência bastante indesejável, se, por exemplo, as melhores explicações que tivermos para o funcionamento de comunidades científicas envolver processos essencialmente distribuídos e coletivos.[4] A tese da mente estendida não seria robusta o suficiente para sustentar o caráter cognitivo desses processos. (2) Processos intracranianos em relação aos quais não há consenso de que sejam claramente cognitivos não podem servir de base para possíveis extensões. Por exemplo, a comunidade de cientistas cognitivos está dividida quanto a se certos processos intracranianos que sustentam as nossas respostas emocionais são cognitivos ou não (VARGA, 2018, p. 437), o que nos impossibilitaria de enxergar, pela tese da mente estendida, qualquer processo similar englobando interações com o ambiente ou com outros agentes como sendo um processo estendido de emoções. Segundo Varga, essa é uma das razões pelas quais o problema da marca da cognição talvez não possa ser evitado (2018, p. 438). Além disso, não é como se a tese da mente estendida estivesse completamente livre de pressuposições acerca da natureza da cognição. O funcionalismo embutido no princípio da paridade implica que a individuação de processos cognitivos não depende das características mais específicas dos meios materiais pelos quais eles são realizados. Mais adiante, voltarei à discussão sobre a natureza da cognição.

 

1.2 O caso Otto

Vejamos agora como estados mentais podem ser estendidos. Em um outro experimento de pensamento, somos convidados a imaginar um sujeito, Otto, cujos mecanismos cerebrais responsáveis pela memória de longo prazo foram severamente danificados. Otto começa a usar um caderno de notas para registrar as informações que são relevantes para as suas tarefas cotidianas. Com o tempo, Otto se torna fluente, habilidoso e confiável na recuperação de informações registradas no caderno. Se o comparamos com Inga, uma pessoa com memória normal, parece que o caderno cumpre, na cognição de Otto, o mesmo papel que as partes cerebrais responsáveis pela memória de longo prazo cumprem na cognição de Inga.

Imagine-se agora que Inga deseja ir à Casa de Cultura Mario Quintana. Ela consulta a sua memória e lembra que ela fica na Rua dos Andradas, no Centro Histórico de Porto Alegre. Se ela é confiável em recuperar essa informação, então diríamos que, antes da consulta, ela tem a crença não-ocorrente de que a Casa de Cultura Mario Quintana está localizada na Rua dos Andradas. Agora, imagine-se que, meses atrás, Otto registrou essa informação no seu caderno depois de visitar a Casa de Cultura. Otto agora quer ir até a Casa de Cultura. Ele manipula o seu caderno e, em segundos, recupera a informação da sua localização. Vamos supor que ele seja tão confiável quanto Inga, na recuperação dessa informação. Assim, a informação no caderno de notas parece desempenhar para Otto a mesma função que a informação contida na crença não-ocorrente de Inga desempenha para ela. Não seria razoável, então, nessas condições, dizer que, antes da consulta, Otto tinha a crença não-ocorrente de que a Casa de Cultura Mario Quintana está localizada na Rua dos Andradas? Se sim, essa crença se estende para fora do cérebro de Otto, ela envolve o caderno que ele usa para registrar e recuperar informações relevantes. Segundo essa leitura do experimento mental de Clark e Chalmers, a crença de Otto, a qual é um estado mental, se estende ao seu caderno de notas.

O caso Otto poderia ser reescrito para enfatizar que o processo de lembrar, e não tanto a crença não-ocorrente sobre a localização da Casa de Cultura Mario Quintana, pode ser estendido, e é assim, por exemplo, que Rowlands (2010, p. 61-67) prefere interpretar esse caso. O resultado pode ser uma tese menos contenciosa, mas parece claro que Clark e Chalmers introduziram o caso Otto (1998, p. 12), a fim de, como eles dizem, “levar as coisas um passo adiante” e defender que estados mentais como as “crenças podem ser constituídos parcialmente por características do ambiente”. Essa é uma tese mais ousada pois, se eles estiverem corretos, isso significa que nem todos os estados mentais são completamente determinados por estados do cérebro, ao passo que estender apenas processos cognitivos para fora do cérebro é “compatível com a visão de que estados verdadeiramente mentais – experiências, crenças, desejos, emoções e assim por diante – são todos determinados por estados do cérebro” (CLARK; CHALMERS, 1998, p. 12).[5]

Uma dificuldade preliminar para compreender a tese da mente estendida em relação aos estados mentais é que Clark e Chalmers formularam o princípio da paridade, em termos de processos apenas. No entanto, a discussão do caso Otto parece deixar claro que uma versão equivalente do princípio poderia ser formulada para amparar também estados mentais, enfatizando a natureza igualmente funcional destes últimos. Assim, desde que as crenças sejam compreendidas pelos seus papéis explicativos (CLARK; CHALMERS, 1998, p. 13), isto é, pela sua dinâmica causal e funcional, as situações de Otto e Inga são, alega-se, suficientemente similares.

Vejamos novamente a situação de Inga com um pouco mais de detalhes. Quando ela deseja ir à Casa de Cultura Mario Quintana, ela recupera a informação preservada em suas memórias biológicas sobre a localização da Casa de Cultura e se dirige ao local. Se alguém lhe pergunta se ela sabe onde fica a Casa de Cultura, ela recupera novamente essa informação e a transmite ao seu interlocutor. Se ela, caminhando pelo centro de Porto Alegre, pergunta a um passante se ele sabe onde há uma agência dos Correios e ele diz que há uma em frente à Casa de Cultura, ela infere onde encontrará essa agência dos Correios. A ação, o conhecimento e a inferência de Inga são explicadas, em parte, pela crença sobre a localização da Casa de Cultura. A informação preservada nas memórias biológicas de Inga conta como uma crença não-ocorrente em virtude das funções que ela cumpre na dinâmica cognitiva de Inga (CLARK; CHALMERS, 1998, p. 14). Trata-se de informação confiavelmente acessível para a ação e cognições ulteriores.

Quando nos voltamos para a situação de Otto, notamos que a informação preservada no seu caderno de notas sobre a localização da Casa de Cultura cumpre exatamente as mesmas funções. Suponha-se que Otto aja, manifeste conhecimento e realize uma inferência com base nessa informação. Como a informação no seu caderno de notas estaria igualmente apoiando as suas ações e cognições, ela deveria igualmente contar como um caso de crença não-ocorrente. O funcionalismo, aplicado dessa vez à compreensão dos estados mentais, permite novamente que a mente seja estendida ao ambiente para além do crânio do agente.[6]

 

2 Críticas ao caso Otto

Não passou despercebido, no entanto, que há dissimilaridades entre as situações de Inga e Otto. Por exemplo, por mais ágil que Otto seja, ele normalmente levará mais tempo para recuperar a informação relevante do que Inga. A recuperação da informação, no caso de Otto, envolve uma fenomenologia visual, uma vez que ele terá experiências visuais, ao manipular o caderno, que simplesmente estão ausentes no caso de Inga (CLARK; CHALMERS, 1998, p. 16). A informação relevante simplesmente aparece como credível para Inga, quando ela é bem-sucedida em recordar a sua crença, enquanto, no caso de Otto, a informação é mediada por uma série de outras atividades conscientes, como a manipulação do caderno, a percepção e a leitura de informações registradas no caderno. Por fim, as crenças não-ocorrentes de Inga estão integradas entre si e são sensíveis à aquisição de nova informação; o mesmo, porém, não parece ser verdadeiro das informações registradas no caderno de Otto (WEISKOPF, 2008).[7]

Essas diferenças seriam suficientes para recusar o estatuto de crença às informações registradas no caderno de Otto? É importante salientar que Clark e Chalmers sugeriram algumas condições que Otto precisa satisfazer, para que as informações contidas no seu caderno contem como casos de crenças não-ocorrentes (CLARK, 2001, p. 197; CLARK; CHALMERS, 1998, p. 17). O objetivo desses critérios é fortalecer a similaridade funcional entre as informações registradas nas memórias biológicas de Inga e as informações registradas no caderno de Otto. Primeiro, a condição de acessibilidade: o caderno de notas precisa estar sempre à mão e Otto não dirá que não sabe algo antes de consultá-lo. Segundo, a condição de confiabilidade: a recuperação de uma informação registrada no caderno precisa ser bem-sucedida na maioria das suas tentativas. Terceiro, a condição de fluidez: a informação deve ser facilmente recuperável. Otto pode precisar adquirir fluidez e desenvoltura no manuseio do caderno, antes que as informações aí registradas possam contar como casos de crenças. Quarto, a condição de transparência: as informações recuperadas são automaticamente endossadas, elas são encaradas como prima facie credíveis e geralmente não estão sujeitas ao escrutínio crítico. Quinto, a condição do endosso prévio: as informações registradas foram conscientemente endossadas no passado e o seu registro no caderno resultou desse endosso. Essa condição evita, por exemplo, que todo o conteúdo da internet ou de um livro que não li, mas sempre carrego comigo, seja tomado como um caso de crença estendida.

Ao satisfazer a condição da fluidez, Otto atenua a crítica de que o seu processo de recuperação de informação é muito lento. Pode-se questionar também se essa é uma característica relevante para que uma informação registrada seja um caso de crença. Imagine Lucy, que nasceu com uma deficiência no seu mecanismo biológico para memória, que a torna menos ágil na recuperação de informações, mas nem por isso menos confiável (CLARK; CHALMERS, 1998, p. 15). Não parece razoável apenas com base nesse fato alegar que as informações estocadas nas memórias biológicas de Lucy não possam cumprir o papel de crença não-ocorrente. A condição da transparência e a de fluidez são importantes para mitigar tanto a crítica de que a recuperação de Otto envolve uma fenomenologia visual quanto a crítica de que as informações estocadas no caderno não aparecem para Otto de forma transparente. A fluência é um meio para a transparência.

Ao se familiarizar e se habituar com a recuperação de informações anotadas no caderno, o processo de manusear as páginas e procurar pela informação relevante torna-se cada vez mais automático e fica, em relação à atenção consciente de Otto, em segundo plano. A atenção de Otto dirige-se primordialmente à informação recuperada, a qual aparece para ele transparentemente. A fenomenologia visual envolvida no processo de recuperar a informação perde destaque na atenção de Otto. A habituação também traz credibilidade. Otto passa a tomar as informações que ele recupera como prima facie credíveis. Pode-se dizer que, através do manuseio hábil do seu caderno, ele se lembra da sua crença sobre a localização da Casa de Cultura, da mesma forma que Inga se lembra da sua crença equivalente, através das suas memórias biológicas. É verdade que o manuseio do caderno e a busca de informação são processos pessoais, ao passo que as memórias biológicas operam em um nível subpessoal. Todavia, o que importa para a transparência é para onde a atenção consciente do agente está dirigida.

Algo semelhante ocorre, por exemplo, quando aprendemos a dirigir um carro. Embora no início estejamos atentos aos pedais, à marcha e ao volante, o processo de habituação nos leva paulatinamente a colocar essas atividades, em relação à atenção, em segundo plano. O motorista hábil está antes atento à estrada, aos demais carros e às pessoas na rua.

A crítica de Weiskopf é mais difícil de ser equacionada, porque ela não encontra resposta nos critérios originalmente formulados por Clark e Chalmers. As nossas crenças não-ocorrentes estão, alega o crítico, integradas entre si por meio de relações lógicas e conceituais, formando um sistema. Isso significa que a alteração de uma crença pode e normalmente repercute em outras crenças do sistema. Se Inga acredita que Maria e João são casados e que João mora em um certo endereço, então é razoável que ela acredite também que Maria mora nesse endereço. Ao obter a informação de que Maria mudou de endereço, se Inga não tem nenhuma razão para pensar que Maria e João se separaram, ela atualiza também a crença sobre o endereço de João. A propagação de nova informação pelo sistema normalmente ocorre de modo automático e subpessoal. No entanto, quando Otto registra uma nova informação no seu caderno, nada semelhante parece ocorrer. Assim, “se estar sujeito a este tipo de atualização é parte do papel funcional da crença, então os estados do caderno de notas não podem ser crenças” (WEISKOPF, 2008, p. 269) de Otto.

Essa crítica pode ser mitigada de duas maneiras. A primeira consiste em notar, por um lado, que a propagação de nova informação, embora possa ocorrer, não alcança a totalidade das nossas crenças não-ocorrentes (CHERNIAK, 1983, p. 164); ora, um modelo mais realista da estrutura da memória de longo prazo revela que as informações estão compartimentadas em subconjuntos, facilitando a busca e a recuperação das mesmas. Por outro lado, podemos modificar o caso Otto, para que a sua interação com o caderno de notas se aproxime desse modelo mais realista da memória humana de longo prazo. A informação registrada no caderno poderia ser organizada hierarquicamente em assuntos, começando por um índice que remete a temas mais gerais, os quais, por sua vez, são divididos em seções mais específicas. No final, haveria um conjunto de informações organizadas sob um tema relativamente estreito. Com base nessa hierarquia, seria possível também indicar conexões de uma informação com outras, alojadas em outras seções. Ao registrar uma nova informação, Otto deve verificar se outras informações na seção mais estreita onde a primeira será registrada carecem de atualização, juntamente com informações de outras seções para as quais há conexões registradas. A modificação sugerida tornaria o registro de nova informação mais oneroso, mas haveria ganho em fluidez na recuperação de informação, em virtude da organização hierarquizada das informações. Um caderno eletrônico de notas poderia tornar o registro e a recuperação de informação mais eficientes.

A segunda maneira de mitigar a crítica de Weiskopf consiste em notar que os registros no caderno de notas, na versão original do experimento de pensamento, funcionam analogamente a certas atitudes proposicionais que são resistentes à aquisição de nova informação e que não são tão incomuns, em pessoas com as suas faculdades mnemônicas normais, como Inga. Para além dos casos de delírios, pessoas que “acreditam” estar mortas, ou que seu parceiro foi substituído por um impostor etc., há os casos mais ordinários do pai ou mãe que se recusa a reconhecer que o filho é culpado por um crime que ele cometeu, o sujeito sistematicamente traído que não reconhece a deslealdade do seu parceiro, os preconceitos que se manifestam no comportamento, apesar de o sujeito negar que tenha esses preconceitos, quando interpelado etc. Pode-se dizer que todos esses casos são situações de irracionalidade.

Não vou entrar nessa disputa, apesar de achar que as últimas três situações não sejam casos claros de irracionalidade, mas, ainda que sejam, a tese da mente estendida não fica substancialmente ameaçada pela crítica de Weiskopf. Embora o termo “crença” seja reservado para estados necessariamente integrados entre si e sensíveis à aquisição de nova informação, o fato é que temos outros estados informacionais que não satisfazem esses requisitos. Chamemos esses estados de “crenças resistentes” ou “dogmas”.[8] Esses estados, e não as crenças racionais, podem ser estendidos para o caderno de notas na versão original do experimento de pensamento de Clark e Chalmers. Para estender as crenças também, o caderno precisaria ser modificado, conforme indicado acima. Essa seria a maneira pela qual Otto ativamente estenderia suas crenças ao ambiente.

O que importa para a extensão é a função que a informação desempenha na dinâmica cognitiva do agente. A crença não-ocorrente é um estado mental e ela tem um certo perfil funcional. O caso Otto explora a possibilidade de que esse perfil seja realizado de uma maneira heterodoxa, não por estruturas biológicas, porém, pela manipulação de um caderno de notas. Nesse aspecto, a extensão de processos cognitivos e de estados mentais são bastante similares, porque ambos exploram diferentes formas de se realizar um certo perfil funcional. No entanto, vimos que o caderno de notas na versão original do experimento de pensamento não realiza exatamente o mesmo perfil funcional das crenças não-ocorrentes, pelo menos não sem certas modificações.

Na verdade, até o caderno de notas modificado, mesmo em uma situação na qual todas as condições discutidas mais acima sejam satisfeitas, não exibe o mesmo perfil funcional do das crenças de uma pessoa normal. Por exemplo, embora a discussão sobre a condição da transparência e a condição da fluência tenha atenuado a relevância da fenomenologia visual que acompanha a manipulação do caderno de notas, ela não é sem efeitos. Enquanto “lembra”, através do caderno de notas, Otto provavelmente não terá tanta atenção disponível para outras tarefas simultâneas quanto Inga. Mesmo quando quero deliberadamente guardar certa informação, dirigindo a minha atenção para ela, o processo é em parte automático. No caso do Otto modificado, como vimos, o processo de registro é muito mais trabalhoso e exige mais atenção. Não é difícil imaginar outros efeitos da manipulação do caderno de notas que torna o seu perfil funcional ligeiramente distinto do das memórias biológicas.

Essas diferenças seriam suficientes para rejeitar o caso Otto como uma situação em que a crença é estendida? É importante ressaltar que o caderno de notas cumpre a função central de guiar o comportamento tanto quanto a crença (CLARK; CHALMERS, 1998, p. 16). O que está em questão é se as demais diferenças funcionais seriam suficientes para rejeitar o caderno de notas como um caso de extensão da crença. Segundo uma leitura da tese da mente estendida, não. Katalin Farkas sugere que a tese da mente estendida é mais inovadora e interessante, quando lida como afirmando não que o realizador habitual de um perfil funcional pode ser substituído por outro distinto, mas sim que o próprio perfil funcional de um certo tipo de estado mental pode ser estendido. Nas suas palavras, “o papel típico de estados disposicionais pode ser estendido para incluir estados que produzem manifestações conscientes de uma maneira diferente daquela que é produzida por crenças e desejos normais” (FARKAS, 2012, p. 441).

O caso Otto seria, portanto, um experimento de pensamento que sugere a razoabilidade de estender o perfil funcional da crença não-ocorrente. Essa leitura vai ao encontro de algumas alegações de Clark e Chalmers. Eles frisam não só que as diferenças entre Otto e Inga são superficiais (CLARK; CHALMERS, 1998, p. 16) e que é mais natural explicar a dinâmica entre Otto e o seu caderno de notas, considerando as informações registradas no caderno como casos de crenças (1998, p. 13), todavia, principalmente que, “ao usar a noção de ‘crença’ de uma maneira mais ampla, ela captura algo mais parecido com um tipo natural”. A leitura mais ousada da tese da mente estendida demanda também recursos adicionais para a sua sustentação. O funcionalismo apenas não é suficiente: precisamos igualmente de razões independentes para estender um perfil funcional, especialmente se consideramos o caso do Otto modificado para satisfazer a demanda de responsividade colocada pela crítica de Weiskopf. Para tanto, temos de nos voltar para o externismo ativo.

 

3 Ações epistêmicas e o externismo ativo

Ao especificar como o ambiente importa para processos cognitivos e estados mentais, Clark e Chalmers distinguem o que eles chamam de externismo ativo do externismo de conteúdo (CLARK; CHALMERS, 1998, p. 9).[9] O externismo desses filósofos é qualificado como ativo, em virtude do tipo de interação que o indivíduo tem com o ambiente. Tanto no caso Tetris quanto no caso Otto, as interações relevantes do indivíduo com o ambiente são comportamentos dirigidos por intenções como, por exemplo, a manipulação do caderno de notas ou a movimentação de um controle para rotacionar peças na tela. Assim, essas interações envolvem ações do indivíduo. De acordo com Clark e Chalmers (1998), esse é um fator relevante para distinguir o externismo ativo que eles defendem do externismo de conteúdo, o qual eles qualificam como passivo. No caso deste último, (1) as interações do indivíduo com o ambiente não precisam ser ativas e (2) importa muito mais o histórico de interações causais do que as interações mais recentes. A capacidade, por exemplo, de pensar em água ou de proferir pensamentos acerca da água depende, em parte, de um histórico de interações causais com um ambiente onde há água, capacidade esta que pode ser exercida, mesmo na ausência de água nas imediações.

Assim, se um indivíduo com essa capacidade fosse transportado para a Terra Gêmea, isto é, um planeta idêntico à Terra, exceto pelo fato de que a substância líquida que compõe os seus oceanos, rios e lagos não é H2O, mas, digamos, XYZ, ainda assim esse indivíduo continuaria a pensar em água, ao usar referencialmente o termo “água” – consequentemente, tendo crenças falsas. O que importa para a aquisição da sua capacidade de pensar em água são as suas interações passadas com instâncias de água. Em contraste, para o externismo ativo, as interações têm de ser ativas e importa mais o ambiente aqui e agora, ou seja, o ambiente contemporâneo às interações ativas. O jogador de Tetris realiza a sua tarefa cognitiva rotacionando agora a peça que se encontra na parte superior da tela. Importa apenas o ambiente envolvido nas suas interações ativas e correntes.

Para entender essa peculiaridade do externismo ativo, a noção de ação epistêmica é fundamental. Assinalamos acima que, para o externismo ativo, as interações relevantes com o ambiente são as ações correntes. Mas seria enganador pensar que qualquer ação corrente de um agente possa ser relevante para a constituição dos seus processos cognitivos ou dos seus estados mentais. Em seu artigo, Clark e Chalmers referem-se ao trabalho de Kirsh e Maglio (1994), ao caracterizar essas ações como epistêmicas. Ações epistêmicas distinguem-se das ações pragmáticas, as quais têm como função colocar o agente em uma situação física mais próxima da realização dos seus objetivos não-epistêmicos. Por exemplo, se tenho sede, caminhar até a cozinha me deixa mais próximo do meu objetivo de beber água. Essa é uma ação pragmática. As ações epistêmicas são, segundo Kirsh e Maglio (1994, p. 514) “[...] ações físicas que tornam a computação mental mais fácil, mais rápida ou mais confiável – são ações externas que o agente realiza para mudar o seu próprio estado computacional”. Em resumo, são ações que simplificam ou facilitam a resolução de uma tarefa cognitiva.[10]

A noção de ação epistêmica nos permite iluminar alguns aspectos do caso Tetris que não foram discutidos na Seção 2.1. Lá foi destacado que a rotação de uma peça pelo controle poderia ser tomada, em virtude do princípio de paridade, como parte do processo cognitivo que determina se a peça se encaixa nas peças de baixo. No entanto, o estudo de Kirsh e Maglio apoia uma alegação ainda mais forte. Nos primeiros instantes, quando a peça nova começa a aparecer na tela, como ela ainda não está completamente visível, não é possível reconhecer que tipo de peça ela é. Assim, rotacionar a peça nesse momento torna disponível a informação que de outro modo levaria mais tempo para aparecer para o agente.

Como o tempo é crucial, no jogo Tetris, o reconhecimento antecipado do tipo da nova peça é vantajoso, a fim de realizar mais rapidamente a tarefa de determinar se a peça se encaixa ou não nas peças na parte inferior da tela. Mesmo em uma situação em que a peça já esteja completamente visível, rotacioná-la na tela, obtendo, pois, uma visão da mesma a partir de diferentes perspectivas, pode facilitar o reconhecimento do seu tipo. Não se trata, portanto, apenas de substituir, como vimos anteriormente, uma etapa do processo cognitivo que era até então ou que poderia ser realizada pelo cérebro do agente por outra funcionalmente equivalente realizada por ações no mundo físico. Mais do que isso, as ações epistêmicas colocam o agente numa situação epistêmica vantajosa para a solução mais rápida, mais fácil ou mais confiável da tarefa cognitiva.

A conclusão que Kirsh e Maglio extraem da função que ações epistêmicas podem desempenhar na solução de tarefas cognitivas é que devemos revisar a própria noção de cognição. Ações epistêmicas são elementos constitutivos de cognições tanto quanto representações e computações sobre representações. De acordo com a visão tradicional da cognição, que Susan Hurley chamou de a visão sanduíche da cognição (HURLEY, 2001, p. 3-4), o jogador receberia informações visuais sobre a tela que ele observa, processaria essas informações para determinar se a figura nova se encaixa nas peças na parte inferior da tela e só então, com base nessa cognição, ele iria, se necessário, rotacionar a figura para fazê-la se encaixar nas peças de baixo.

Nessa visão, a percepção e a ação são respectivamente a entrada e a saída do processo cognitivo, mas a cognição propriamente dita é constituída apenas pelo processamento da informação. Ações, nessa visão, são guiadas por cognições e são sempre ações pragmáticas. De fato, se a função de rotacionar uma peça serve somente ao propósito de colocá-la numa direção e disposição que já se decidiu adequada, essa ação está apenas colocando o agente numa posição física mais próxima para a realização de um objetivo não-epistêmico, encaixar peças e ganhar assim pontos no jogo. Essa concepção da cognição, no entanto, não explica por que o jogador executa a maioria das rotações, quando a peça nova começa a aparecer na tela, e não é de se esperar que o jogador já tenha decidido onde e como encaixá-la nas peças na parte inferior da tela (KIRSH; MAGLIO, 1994, p. 523). A proposta de Kirsh e Maglio é que essas ações de rotação são epistêmicas e são mais bem compreendidas se encaradas como fazendo parte do próprio processo cognitivo de decidir se e como a peça nova se encaixa nas peças, na parte debaixo da tela. Tornar-se hábil nessa tarefa cognitiva envolve recrutar o melhor balanço entre os seus recursos cognitivos para a solução dessa tarefa, os quais compreendem tanto operações internas quanto operações externas, como a rotação da peça:

O agente tanto se adapta ao mundo como encontrado quanto o modifica, não apenas pragmaticamente, o que é uma mudança de primeira ordem, mas também epistemicamente, de modo que o mundo se torna um lugar ao qual é mais fácil se adaptar. Consequentemente, nós esperamos que um agente bem-adaptado deve saber como obter um balanço entre computação interna e externa. Ele deve obter um nível apropriado de cooperação entre processos organizadores internos e processos organizadores externos de modo que, no longo prazo, menos trabalho é realizado (KIRSH; MAGLIO, 1994, p. 546).

 

O que está sendo sugerido vai além do funcionalismo e da sua aparente neutralidade com respeito a nossa compreensão pré-teórica da cognição. Na verdade, essas considerações nos levam direto ao debate sobre a natureza da cognição. Se encararmos a cognição como um processo adaptativo, por meio do qual o agente se ajusta e se adapta a uma tarefa, não há nenhuma razão para preferir os recursos ou processos internos aos externos como constitutivos da cognição. Ações epistêmicas, conforme vimos, podem contribuir para que a resolução de uma tarefa seja mais fácil, rápida ou confiável.

Desse modo, a cognição é o resultado da organização equilibrada entre recursos ou processos internos e externos que torna o agente hábil na solução de uma tarefa.[11] A ação epistêmica é tão necessária para a cognição inteligente quanto qualquer outro recurso interno (KIRSH; MAGLIO, 1994, p. 256). Se há algo que pode ser considerado o “recheio” da cognição, é o próprio acoplamento entre ações epistêmicas e processos internos.[12] Embora Clark e Chalmers não tenham enfatizado essas consequências do externismo ativo, no seu artigo original, e o próprio Clark, como vimos, parece em alguns momentos querer se manter neutro tanto quanto possível em relação à questão da natureza da cognição, Gallagher argumenta que o que ele chama de “a segunda onda”[13] da tese da mente estendida se debruça justamente sobre esse tipo de reflexão sobre a cognição, deixando de lado ou até mesmo criticando o princípio da paridade (GALLAGHER, 2018, p. 432).

Casos paradigmáticos em que elementos internos e externos se complementam para a solução de tarefas deveriam ser aceitos também como ponto de partida para a reflexão sobre a cognição. Como acabamos de ver, esse é o resultado, quando se leva o externismo ativo a sério.

Essas considerações a partir do externismo ativo têm consequências interessantes para a discussão da seção anterior. Lembremos que uma das críticas ao caso Otto é que o perfil funcional das suas “crenças” não-ocorrentes não é exatamente idêntico ao de Inga, uma pessoa com memória normal. Uma possibilidade para contornar o problema seria comprometer-se com a tese mais forte de que o caso Otto sugere a própria extensão do perfil funcional da crença. Mas que razão independente teríamos, para aceitar esse tipo de extensão? O externismo ativo nos fornece essa razão. A função mais geral de uma crença não-ocorrente é guiar o comportamento de modo responsivo, ao disponibilizar para a ação e outros processos cognitivos informação adquirida e endossada no passado. Ora, embora pudéssemos ficar tentados a dizer que, no caso de pessoas com memória normal, essa função é concretizada por recursos exclusivamente internos, isso não é de todo correto. Conforme a demanda por preservação de informação que recai sobre um indivíduo, ele pode ter de se adaptar a sua situação, recorrendo a recursos externos. Usamos agendas para dar conta de todos os nossos compromissos, cadernos para registrar falas interessantes em uma palestra acerca das quais queremos refletir depois. Ampliamos a responsividade de nossas crenças, deferindo a especialistas aquelas crenças cuja verdade é mais bem investigada por eles, e assim por diante.

Ou seja, para satisfazer a finalidade da crença não-ocorrente, já nos encontramos na situação de mobilizar tanto recursos internos quanto externos. O justo equilíbrio entre esses elementos dependerá da tarefa e da situação do agente. Se tenho poucos ou quase nenhum compromisso, posso dispensar a agenda. Não preciso apelar a especialistas, para manter a responsividade das minhas crenças sobre a disposição dos objetos em minha casa. O caso Otto modificado não oferece, portanto, uma dificuldade especial. Otto somente se encontra em uma situação mais extrema. Seus recursos mnemônicos internos são parcos e, por isso, ele precisa recorrer majoritariamente aos recursos externos, a fim de manter a sua capacidade de ser guiado por informação adquirida e endossada no passado. As entradas no caderno também precisam ser organizadas e relacionadas de certa maneira, para que a responsividade seja minimamente atendida. Tornar-se fluente no uso do caderno de notas é a maneira pela qual Otto se adapta à sua situação, de sorte a conservar a capacidade de ter crenças não-ocorrentes. Como a dinâmica entre elementos internos e externos de Otto não é a mesma da de uma pessoa com memória normal, é de se esperar que, em um nível mais específico, seus perfis funcionais para a crença não-ocorrente sejam diferentes.

No entanto, isso não é um impedimento para tomar os registros no caderno de Otto como casos de crenças não-ocorrente, não menos que os registros que faço em minha agenda. Esses diferentes perfis funcionais são apenas diferentes maneiras pelas quais os agentes se adaptam às suas situações, para ter e manter a capacidade ou a funcionalidade mais geral das crenças não-ocorrentes, a saber, guiar o comportamento de modo responsivo, a partir de informação adquirida e endossada no passado. Se levarmos a sério o externismo ativo, não há por que sustentar que um desses perfis específicos é mais crença do que os demais. Assim, o externismo ativo ilumina a extensão de perfis funcionais. Na verdade, esse fenômeno é corriqueiro e não deve nos surpreender, uma vez que clarificamos a concepção de cognição.

 

ConSIDERAÇÕES FINAIS

O princípio da paridade não nos leva muito longe, na compreensão da cognição. Embora ele possa ser usado para sustentar que a manipulação de um controle para rotacionar uma figura na tela do computador faz parte de um processo cognitivo, já que essa ação cumpre a mesma função que uma outra que seria realizada internamente, por exemplo, um ato de imaginação, o princípio da paridade não nos informa sobre o que torna esses processos casos de cognição. Nesse sentido, trata-se de um princípio conservador. Contudo, a principal limitação desse princípio é que ele não é suficiente para explicar a extensão de perfis funcionais de estados mentais. A recuperação de informação registrada no caderno de notas de Otto não funciona exatamente como a recuperação de informação em uma pessoa com memória normal.

Essa diferença é ainda mais explícita, se modificarmos, como sugeri, o caso Otto, a fim de responder à crítica de Weiskopf de que, no caso original, os registros no caderno de notas não são responsivos a nova informação. Para justificar a extensão de perfis funcionais, apelei ao externismo ativo. O externismo ativo coloca em foco a discussão sobre a natureza da cognição, ao enfatizar o papel fundamental das ações epistêmicas. São ações que simplificam ou facilitam a resolução de uma tarefa, disponibilizando informação até então oclusa, agilizando uma atividade de reconhecimento ou colocando o agente numa posição vantajosa para o reconhecimento etc. A cognição, por conseguinte, é mais bem vista como um processo de adaptação a uma tarefa por meio do qual o agente mobiliza e organiza ações epistêmicas e recursos internos, de sorte a resolvê-la de modo eficiente. A extensão de perfis funcionais pode ser vista, então, como um caso de adaptação desse tipo.

A interação que o Otto modificado estabelece com o seu caderno de notas é o resultado da sua adaptação a sua situação particular, para manter a capacidade de ter crenças não-correntes. Se a noção de cognição explicitada pelo externismo ativo implica ou não uma reforma da nossa compreensão pré-teórica da cognição depende do que consiste essa compreensão. Uma leitura minimalista dessa compreensão é a de que ela consiste no conjunto de juízos de casos paradigmáticos de cognição. Assumindo esse pano de fundo, a concepção do cognitivista clássico da cognição como manipulação computacional de representações não parece ser mais intuitiva do que a concepção de cognição do externismo ativo. Ao contrário, diria que o externismo ativo clarifica melhor os nossos juízos de casos paradigmáticos de cognição, pois ele ilumina bem o que os agentes cognitivos estão fazendo quando enfrentam uma tarefa e buscam uma solução para ela.

 

The extended mind thesis in light of active externalism: how to render Otto responsive to reasons?

 

Abstract: The extended mind thesis claims that some mental states and cognitive processes extend onto the environment. Items external to the organism or exploratory actions may constitute in part mental states and cognitive processes. In Clark and Chalmers’ original paper, ‘The Extended Mind’, this thesis receives support from the parity principle and from the active externalism. In their paper, more emphasis is given to the parity principle, which is presented as neutral regarding the nature of cognition. It would be advantageous to maintain that extended mental states and processes do not require a reform of our pre-theoretical view of cognition. In the present paper, I submit that we should give more emphasis on the active externalism, which, I argue, is not neutral regarding the nature of cognition. Cognition is viewed as successful adaptation to a specific task. Although this move may seem at first disadvantageous, it is necessary for the correct understanding and justification of Otto case as an example of extended mental state. Additionally, the parity principle cannot handle Weiskopf’s criticism that information registered in Otto’s notebook is not responsive to reasons. In order to address this criticism, we need to appeal to active externalism and its corresponding view of cognition.

 

Keywords: Extended mind thesis. Parity principle. Active externalism. The mark of cognition. Responsive beliefs.

 

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[1] Professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS - Brasil, e Bolsista de Produtividade do CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7267-5662 E-mail: eros.carvalho@ufrgs.br.

Este trabalho foi apoiado pela CAPES e recebeu financiamento do CNPq, projeto número 307872/2018-1.

[2] Todas as traduções neste artigo são de minha autoria.

[3] Essa é uma discussão bastante saliente, nos últimos anos. Veja-se, por exemplo, o volume especial da Synthese dedicado ao tema, editado por Buckner e Fridland (2017). A expressão “marca do cognitivo” foi introduzida por Adams e Aizawa (2010), para designar a questão sobre as condições necessárias para a cognição. Em princípio, é uma questão distinta da questão mais tradicional acerca da marca do mental, uma vez que o domínio do mental pode não ser coextensivo ao domínio do cognitivo (2010, p. 48).

[4] A dificuldade aqui é que tais processos não podem ser completamente explicados apenas pela agregação dos processos cognitivos que ocorrem nas cabeças dos cientistas que constituem uma comunidade científica. E, no entanto, é difícil negar que o produto coletivo de uma comunidade científica seja um caso claro de conquista cognitiva. Sobre esse tema, veja-se o trabalho precursor de Philip Kitcher (1990) e a abordagem mais recente e sistemática de Susann Wagenknecht (2016). Uma possibilidade para aproximar essa discussão da tese da mente estendida é a extensão da própria agência cognitiva para abranger grupos ou agentes coletivos também. Sobre esse ponto, ver Theiner e Allen (2010).

[5] Ao mesmo tempo, é importante salientar que Clark e Chalmers alegam que alguns estados mentais se estendem ao ambiente apenas enquanto tomados como veículos. Quaisquer aspectos fenomênicos desses estados não são estendidos ao ambiente, já que, para eles, no artigo de 1998, a consciência fenomênica não se estende ao ambiente, ela é superveniente aos estados do cérebro apenas (CLARK; CHALMERS, 1998, p. 10). Em artigo recente, Chalmers assinala que a consciência não pode ser estendida, porque ela requer acesso direto. A consciência, ele diz, “se correlaciona com disponibilidade direta para o controle global, e que os processos físicos que se correlacionam com a consciência são aqueles que apoiam a disponibilidade desse tipo” (CHALMERS, 2019, p. 18). No caso de processos estendidos, a informação está apenas indiretamente disponível para o controle global, ela tem de viajar do objeto para os olhos, dos olhos para o córtex visual e de lá para o centro de controle. Já a informação carregada pelos correlatos da consciência precisa viajar de áreas intermediárias do cérebro até o centro de controle. Não é claro, no entanto, como Chalmers confere lastro às noções de acesso direto e indireto em termos de distância causal. Para uma crítica a essa restrição da tese da mente estendida, veja-se Noë (NOË, 2004, Capítulo 7).

[6] Embora Clark e Chalmers tenham defendido, de modo mais sistemático, a tese da mente estendida apenas para casos de crenças não-ocorrentes, desde a publicação do seu artigo original, têm aparecido várias propostas de extensão de outros tipos de estados mentais. Consultem-se, por exemplo, Colombetti e Tom (2015), para a extensão da afetividade, Hilton e Kevin (2017), para o interessante caso da extensão da atenção de aranhas, e Varga (2018), para a extensão de estados emocionais em bebês. Para a extensão não da experiência consciente, mas do processo perceptivo, veja-se Carvalho (2019). Confira-se também a coletânea editada por Menary (2010), para outros desdobramentos da tese da mente estendida.

[7] Uma das críticas mais comuns e persistentes à tese da mente estendida é a de que ela comete a falácia da constituição. Essa crítica foi levantada por Adams e Aizawa (2010). Como a discussão dessa crítica demandaria muito espaço, provavelmente um artigo inteiro dedicado só a ela, vou apenas resumi-la aqui. Os dois filósofos, comentando a tese da mente estendida, alegam que o debate sobre a natureza da cognição é inevitável e propõem duas características como marcas da cognição. A primeira é que processos cognitivos envolvem conteúdo não-derivado, isto é, estados que representem sem que seja necessário um agente projetando conteúdo sobre tais estados (2010, p. 48). Por esse critério, processos em computadores não seriam cognitivos, pois envolvem representações cujo conteúdo é derivado. A segunda característica é que os processos cognitivos são individuados causalmente (2010, p. 51). A ideia central é que se processos cognitivos são, de um ponto de vista científico, explicativamente relevantes, então eles devem ser compreendidos por um tipo natural, o que, por sua vez, significa que eles devem ter uma base causal comum. A cognição, Adams e Aizawa assinalam, “deve ser discriminada com base em processos causais subjacentes” (2010, p. 52). Por esse critério, os autores levantam uma dificuldade para a tese da mente estendida. Os processos causais subjacentes à manipulação de um controle para rotacionar a peça na tela e aqueles subjacentes à imaginação da peça rotacionada são de tipos distintos, o mesmo ocorrendo com os processos subjacentes à memória de Inga e os processos subjacentes à manipulação do caderno de notas de Otto. Os processos neurológicos e químicos subjacentes à memória de Inga e à imaginação da peça rotacionada são de um tipo muito distinto dos processos causais subjacentes à manipulação do caderno e à manipulação do controle. Os dois primeiros são cognitivos, mas não os dois últimos (2010, p. 53-54). Como os defensores da tese da mente estendida, Adams e Aizawa ressalvam, não oferecem a marca da cognição, eles não têm como justificar que a manipulação do caderno e a manipulação do controle constituem cognições do jogador e do Otto, em vez de simplesmente contribuírem causalmente para alguma cognição desses agentes. Essa seria a falácia da constituição. A resposta canônica a essa crítica consiste em apelar para as noções de sistemas dinâmicos e de acoplamento causal. Quando duas variáveis, digamos, Otto e o seu caderno de notas, estão causal e dinamicamente acopladas, de modo que variações em uma delas, por exemplo, ações de Otto, influenciam o comportamento da outra, por exemplo, modificando algum estado do caderno, e vice-versa, então se justifica dizer que a relação entre essas variáveis é de um tipo constitutivo (CLARK, 2001, p. 203). Gallagher enfatiza que discussões mais recentes sobre mecanismos e intervencionismo corroboram a posição de Clark e Chalmers (GALLAGHER, 2018, p. 426-430). O externismo ativo, que desenvolverei na Seção 4, também pode ser mobilizado para enfrentar a crítica de Adams e Aizawa, porque ele não é neutro com respeito à natureza da cognição.

[8] Na literatura sobre crenças, Gendler (2008) sugeriu o termo “alief” para estados semelhantes a esses, que não são responsivos a razões, como crenças normalmente são, mas que parecem desempenhar um papel não negligenciável na explicação do comportamento humano observado. Elas são assim chamadas porque “alief é associativa, automática e não-racional (arational)” (2008, p. 641).

[9] Um argumento comum para o externismo de conteúdo é inspirado no argumento clássico de Putnam para o externismo semântico, como sugerido e elaborado por McGinn (1977). O primeiro externismo diz respeito ao conteúdo de estados mentais, enquanto o segundo, ao conteúdo de expressões linguísticas.

[10] Segundo os autores, há pelo menos três maneiras pelas quais uma ação física pode simplificar uma tarefa cognitiva: (1) ao reduzir a memória envolvida na computação mental, (2) ao reduzir o número de passos da computação mental e (3) ao reduzir a probabilidade de erro da computação mental na resolução de uma tarefa (1994, p. 514), ou seja, são ações que podem simplificar respectivamente a complexidade espacial, a complexidade temporal e melhorar a confiabilidade da ginástica mental para a resolução de uma tarefa cognitiva.

[11] Essa sugestão sobre como conceber a cognição, e que rompe com a concepção cognitivista clássica da cognição como mera manipulação computacional de representações, vai ao encontro da literatura inaugurada por Hilbert Simon (1955), em torno da racionalidade ecológica. Segundo essa literatura, a racionalidade não deve ser vista como conformidade a axiomas abstratos, quer axiomas da lógica, quer da teoria da probabilidade, quer ainda da maximização da utilidade. Esse tipo de racionalidade, na verdade, só se aplica a pequenos mundos, situações muito simples que conseguimos modelar, especificando o conjunto das ações possíveis e suas respectivas consequências (GIGERENZER, 2019). Na maioria das situações nas quais nos encontramos, temos de lidar com a incerteza e o desconhecimento não somente do que pode ser feito, mas igualmente do que pode acontecer em função do que fazemos. Por essa razão, uma concepção distinta de racionalidade precisa ser elaborada, em que estratégias e heurísticas são encaradas como boas e racionais, se levam ao sucesso na solução de uma tarefa, em um ambiente determinado, o que pode ser investigado empiricamente. Estratégias boas não precisam ser gerais, basta que tenham validade ecológica. Segundo apontam Kozyreva e Hertwig, “a essência do comportamento racional consiste em como um organismo pode se adaptar para obter os seus fins sob as restrições do seu ambiente e das suas próprias limitações cognitivas” (KOZYREVA; HERTWIG, 2019). Reelaborada, a cognição, portanto, seria a adaptação bem-sucedida a uma tarefa específica.

[12] Ao compreender a cognição dessa maneira, como adaptação a uma tarefa pela mobilização de quaisquer recursos disponíveis ao agente, a fronteira entre a tese da mente estendida e a cognição incorporada e situada fica borrada. A diferença seria uma questão de ênfase em relação aos recursos mobilizados para a resolução de uma tarefa. Wilson e Golonka comentam que “se a cognição abrange o cérebro, o corpo e o ambiente, então os ‘estados mentais’ de uma ciência cognitiva desincorporada não existirão para serem modificados. A cognição será antes um sistema estendido montado a partir de uma vasta matriz de recursos” (2013, p. 1). E continuam com a alegação de que o objetivo da ciência incorporada é “identificar como o agente pode reunir esses recursos em um sistema capaz de resolver o problema em mãos” (2013, p. 1).

[13] A primeira onda compreendeu as formulações da tese da mente estendida, com base sobretudo no funcionalismo e no princípio da paridade. Seria uma tese conservadora em relação à natureza da cognição. A segunda onda compreendeu essa ênfase na complementariedade entre recursos internos e externos na articulação e constituição da cognição. A terceira onda, mais recente e em curso, compreende as tentativas de integrar as intuições do externismo ativo com o enativismo e o processamento preditivo, enfatizando também os aspectos sociais e normativos da cognição (GALLAGHER, 2018). Veja também Kirchhoff (2012).