Resumo: O artigo examina a noção de “unidade na variedade”, na filosofia e crítica de arte de Diderot. Em diálogo com os ensaios publicados na coletânea intitulada Estéticas de Diderot, de 2015, na qual vários especialistas examinam a atualidade da estética materialista do filósofo, este artigo aproxima as noções de unidade apresentadas na Enciclopédia dos usos e sentidos do termo nos Salões. Pretende-se mostrar como Diderot rompe gradativamente com a epistemologia clássica, ao pensar a obra com uma unidade instável, ligada ao tempo e que se constitui apenas no fazer da obra; especificamente, pretende-se ressaltar o tratamento dado à variedade nas obras de Greuze e Vernet, procedimento que aproxima a crítica de arte de Diderot de elementos modernos, tais como os conceitos de sublime e de autonomia da arte, os quais indiciam a relevância da sua filosofia da arte.
Palavras-chave: Diderot. Greuze. Vernet. Sublime. Unidade.
INTRODUÇÃO
Este estudo parte da seguinte questão: a noção de unidade da obra de arte em Diderot assinala uma orientação da sua filosofia na direção da estética moderna ou é o elemento decisivo que a mantém atada à tradição metafísica? Qual a contribuição do caminho original trilhado pela filosofia da arte de Diderot para as alterações epistemológicas da estética nascente, na segunda metade do século XVIII?[2] A noção de unidade impede pensar a atualidade de Diderot? Os Cadernos de Filosofia da Universidade de Caen publicaram, no seu número 51, em 2015, um volume intitulado Estéticas de Diderot: a natureza do belo (POURADIER, 2015). Procurando justamente pensar a atualidade da estética de Diderot, os especialistas examinaram, de modos diversos, a especificidade do materialismo diderotiano, articulando metafísica, pensamento da natureza e estética; no entanto, com exceção do ensaio de Maud Pauradier, o tema da unidade foi pouco observado no volume. Certamente, trata-se de um tema difícil na obra do filósofo, mas não menos importante. Este artigo busca contribuir para esse debate, verificando as ocorrências desse conceito em vários textos de Diderot.
Nos Pensamentos destacados sobre a pintura, reflexões teóricas que correspondem aos escritos maduros e mais complexos do filósofo, concebidos para servir de sequência ao Salão de 1775, Diderot (2008, p. 431) reconhece o problema: “[...] nada é belo sem unidade, nele jamais há unidade sem subordinação. Isso parece contraditório, mas não é. A unidade do todo nasce da subordinação das partes e dela nasce a harmonia que supõe a variedade.” Nas “Lamentações sobre meu velho robe”, ensaio literário que precede o Salão de 1769, em um paralelo com a pintura, o sumiço do velho robe indicia que “[...] agora, tudo está em desacordo. Não há mais conjunto, não há mais unidade, não há mais beleza.” (DIDEROT, 2008, p. 407). Observa-se, assim, que, nos Salões, a unidade é crucial, mas ela não é uniformidade; nem, tampouco, apenas simetria ou proporção, uma vez que “[...] a pintura é inimiga da simetria” (DIDEROT, 2008, p. 446); nem monotonia, haja vista que se afasta das linhas paralelas e das figuras geométricas. A unidade é certamente subordinação, entendida menos como hierarquia, no sentido de dominação de uma parte pela outra, e mais como relações variáveis de convivência e de afinidade entre as partes. Em nome da unidade, Diderot (2008, p. 434) condena as personagens alegóricas, quase sempre enigmáticas e a própria alegoria, “[...] que é raramente sublime, e quase sempre fria e obscura.”
Por outro lado, como os antigos, concorda que é a unidade realizada na obra que possibilita à pintura transmitir ao observador, sem esforço, calor e vitalidade. Procuraremos, então, demonstrar como a noção de unidade na variedade, em Diderot, se afasta gradativamente de uma epistemologia clássica,[3] sem jamais romper totalmente com ela, a fim de se orientar na direção da autonomia da obra de arte: “Se a cena é una, simples e coordenada, captarei seu conjunto em um piscar de olhos; mas isso não basta. É preciso ainda que ela seja variada, e o será, se o artista for um observador meticuloso da natureza.” (DIDEROT, 2008, p. 210).
Ao aceitarmos que a unidade na variedade é a marca distintiva do belo, resta esclarecer a origem da noção, as variações de significado, no interior da obra de Diderot, examinando como a unidade é percebida pelo espectador: se, intuitivamente, pelas sensações, como sentimento ou se pelo entendimento, por meio da percepção de relações, isto é, como representação. Em outros termos, procurar-se-á aqui circunscrever o problema estético de fundo, a saber, se a unidade na obra de arte é uma produção subjetiva do criador, uma ideia estética, ou propriedades dos objetos belos. Carole Talon-Hugon, em Estéticas de Diderot, (2015, p. 41) adverte sobre a mutação radical em curso, no século XVIII, na maneira de entender o belo, mostrando como a categoria de Beaux-arts subverte as categorias antigas, ao provocar uma revolução epistêmica que “[...] reconfigura o campo das atividades humanas, atribuindo a algumas delas uma finalidade acima de tudo estética.”
Para a autora, (2015, p. 44) o belo não é mais uma essência supraempírica, o belo em si, mas apenas coisas belas: “[...] ao afirmar que o belo é a qualidade daquilo que é belo, Diderot exclui toda forma de realismo transcendente.” O que não significa, ainda para Talon-Hugon, que se possa afirmar um realismo de propriedades, o qual sustentaria que as propriedades estéticas decorrem das coisas, coincidindo com as características “reais” dos objetos do mundo. Com efeito, de um lado, Diderot corrobora a subjetivação do sensível, ao caracterizar as ideias estéticas como subjetivas, correlativas a certos estados mentais. De outro lado, no entanto, o belo não é arbitrário, pois se refere às “[...] propriedades que nascem do contato entre o espírito humano e as coisas.” (TALON-HUGON, 2015, p. 45). É por essa razão que, operando com a categoria de “disposição qualitativa”, a qual indicia “propriedades nem estritamente subjetivas, nem objetivas”, Talon-Hugon (2015, p.46) sustenta que Diderot opera com um “realismo moderado”.
Nos Salões, todavia, Diderot (2008, p.314) provoca o leitor, afrontando expectativas e convenções, em proposições que ainda exibem tonalidade metafísica, tais como: “A harmonia é o feitiço do conjunto.” Se a frase faz sentido, até que ponto o conceito de realismo é adequado para pensar a questão da unidade da obra, especialmente na pintura? O primeiro passo na direção de esclarecer o dilema da noção de unidade, em Diderot, é não separar a reflexão teórica da crítica de arte, isto é, comparar a noção de unidade da obra com a sua reflexão sobre o fazer artístico, que é para o crítico o “verdadeiro ponto de vista” sobre a arte. É isso que sugere Diderot (2015, v.2, p. 394), no verbete Metafísica, da Enciclopédia, ao interpretar a metafísica como a “ciência da razão das coisas”, afastando-a de qualquer pensamento vazio ou abstrato: “[...] interrogai um pintor, um poeta, um músico, um geômetra, e o obrigareis a explicar as operações de sua arte, ou seja, a chegar até a metafísica dessa arte.”
1 O belo
Com efeito, essa aproximação da crítica com a teoria é realizada nos Salões, mas seu pressuposto é, a nosso ver, a Enciclopédia, especialmente o verbete sobre o Belo, de 1752, onde encontramos as primeiras indicações substanciais sobre o tema da unidade na obra de arte. Nesse verbete, Diderot percorre as fontes antigas e contemporâneas do belo, circunscrevendo temas e problemas, rejeitando uns e outros, bem como suas soluções consideradas insuficientes. Contudo, sobre o tema da unidade, o verbete concorda com a gênese do princípio, em Santo Agostinho, segundo a qual é a “[...] unidade que constitui, por assim dizer, a forma e a essência do belo em todo gênero: Omnis porro pulchritudinis forma, unitas est”; e com a assertiva, que dela decorre, de orientação objetiva, de que tais objetos agradam, porque são belos e não o contrário.
Entretanto, se o princípio é verdadeiro, Diderot (2000b, p. 233) inquire empiricamente o Bispo de Hipona: - “Onde vedes, pois, esta unidade que vos dirige a construção de vosso desenho, esta unidade que considerais em vossa arte como uma lei inviolável; esta unidade que vosso edifício deve imitar para ser belo, mas que nada na terra pode imitar perfeitamente, dado que nada na terra pode ser perfeitamente UNO?” Ora, para Diderot (2000b, p. 233), que persegue no verbete mais a fundamentação da natureza do belo e menos o efeito que ele produz, não há “[...] em absoluto verdadeira unidade nos corpos, pois que eles são todos compostos de um número incontável de partes, cada uma das quais é composta de uma infinidade de outras.” Desse modo, a unidade agostiniana pensada como uma “relação exata das partes de um todo entre si”, objeta Diderot (2000b, p.247) é “[...] mais a essência do perfeito do que do belo.” Lido corretamente, percebemos, no verbete, que Diderot (2000b, p. 224) não descarta o conceito de unidade, mas o reinterpreta em uma curiosa provocação: será que a ideia de unidade de Santo Agostinho não pressuporia as de variedade, regularidade, ordem ou proporção?
Posto o problema na história da filosofia, a equação entre unidade e variedade remete diretamente à Investigação sobre as nossas ideias da beleza e da virtude, de Hutcheson (1799, p. 33), que, em 1725, definira a beleza absoluta como “[...] uniformidade em meio a variedade.”[4]
Na verdade, a noção de Hutcheson recebe um tratamento privilegiado e minucioso, no verbete; mesmo assim, Diderot lhe reserva também graves objeções. Grosso modo, o princípio da uniformidade na variedade de Hutcheson não pode ser generalizado para todas as produções artísticas, haja vista que, entre outras insuficiências, ele permanece devedor da ideia de “sentido interno”; e também de que haveria “[...] algo obscuro e impenetrável no prazer que o belo nos causa.” (DIDEROT, 2000b, p.238). Em outras palavras, Hutcheson (1799, p. 29) não teria conseguido provar a realidade desse sentido interno, ou seja, não demonstrara como essa “faculdade de receber fortes impressões” seria diferente do cálculo racional. De fato, como esclarece Laurent Jaffro (2014, p. 85-87), embora a “[...] sensação prazerosa surja apenas de objetos em que há uniformidade em meio à variedade”, essa qualidade da beleza em Hutcheson não é percebida pelo espectador por meio da reflexão racional, porque a forma não é contemplada como objeto de conhecimento, mas é apreendida imediatamente como prazer.
De um lado, Hutcheson (apud JAFFRO, 2014, p. 89) inauguraria a modernidade estética, com o que concorda Carole Talon-Hugon (2015, p. 44), ao ressaltar que a beleza não existe senão na experiência sensível do sujeito, haja vista que “[...] por beleza absoluta ou original não se entende qualquer qualidade que se supõe estar no objeto, sem relação a qualquer mente que o perceba, pois beleza, como outros nomes de ideias sensíveis, denota propriamente a percepção de alguma mente.” De outro lado, Hutcheson também reconheceria que as propriedades como uniformidade e variedade são qualidades reais dos objetos; embora a realidade que a obra de arte expõe seja – como sublinha Jaffro (2014, p. 89) – “[...] aquela de uma causa de fundo que opera no perceptor sem ser conhecida por ele.” Assim, ao propor a noção de unidade na variedade, Hutcheson pensa na apreensão de um equilíbrio entre duas qualidades presentes nos objetos, o que vai de encontro às reflexões de Diderot.[5]
No plano da Enciclopédia, sem abrir mão da ideia de unidade na variedade e em busca da generalização não realizada satisfatoriamente por Hutcheson e outros, Diderot sugere que aquilo que é específico ao belo não remete, contudo, a um equilíbrio estável, mas desencadeia no observador uma rede instável de percepção de relações, operação ligada ao entendimento e ao pensamento e não a um sentido interno imediato, desinteressado e distanciado do conhecimento. Além disso, se a beleza em Hutcheson manifesta sinais da presença de uma ordem harmônica e de uma “causa inteligente e sábia do mundo”, é porque a uniformidade na variedade é a qualidade da beleza que indicia alguma utilidade, pois ela é “[...] indiretamente um critério que corresponde à necessidade do nosso entendimento, isto é, de trazer a maior felicidade.” (BROUSSOIS, 2014, p. 117).
Ora, nada mais estranha a Diderot que essa evidência, mesmo que de certo modo ele concorde com o argumento da felicidade, o que ficará cada vez mais claro nos Salões e, em 1769, no Sonho de d’Alembert, ensaio no qual Diderot nomeará essa ordem universal e geral do mundo vivo de “o todo”, no qual não há evidência de uma causa inteligente, a qual seria recriada na arte, nem tampouco de nenhuma uniformidade estática, harmoniosa e perfeita. Inversamente, desse “todo” se sabe apenas que ele muda sem cessar, que está em “um fluxo perpétuo”,[6] que é movimento orgânico de criação e degradação das coisas.
Em outros verbetes da Enciclopédia, verifica-se, ademais, que em Diderot a unidade não remete tampouco à hipótese da harmonia preestabelecida, isto é, a uma “harmonia das coisas”, na qual a perfeição seria um acordo ou identidade na variedade,[7] para usar a linguagem leibniziana, haja vista que Diderot vê com enorme dificuldade o pressuposto, do qual decorre a noção de harmonia, de uma correspondência entre alma e corpo, fundamentada na existência necessária e absoluta de Deus como fonte de todas as mudanças.[8] Diferentemente, a unidade de Diderot não segue um plano prévio, nem qualquer a priori; ao contrário, ela é imprevisível e experimental no fazer artístico, em consonância com a disposição de nossas faculdades humanas:
Nascemos com as faculdades de sentir e de pensar; o primeiro passo da faculdade de pensar é examinar suas percepções, reuni-las, compará-las, combiná-las, perceber entre elas relações de conveniência e inconveniência [...] faculdades que concorrem, tão logo nascemos, para nos dar as ideias de ordem, arranjo, simetria, mecanismo, proporção, unidade (DIDEROT, 2015, p. 204).
Como primeiro passo para a razão, as ideias estéticas, em Diderot (2008, p. 457), não acatam, tampouco, a separação leibniziana entre percepção e consciência, mundo sensível e mundo inteligível, embora acolham o princípio de continuidade, no sentido de que a natureza não faz nada por saltos, mas por “degraus”; e o princípio dos indiscerníveis, isto é, o da existência da individualidade e variedade entre os seres.[9] Medindo prós e contras, Diderot (2017, p. 394) recomenda o exame cuidadoso do axioma de Leibniz, segundo o qual “a percepção é engendrada da percepção, assim como o movimento o é a partir de um movimento”, porque tal axioma, lido em um sentido materialista, indiretamente favorece uma noção de orgânico, que não desagrada de todo a Diderot (2017, p. 399), pela simplicidade de sua enunciação, para a qual uma organização é simplesmente uma “montagem, que forma um todo relativo a outro todo”; tal sugestão, desvencilhada de qualquer finalismo, remete ao vivo enquanto matéria organizada e favorece a ideia de que cada ser receberia nele mesmo uma impressão do todo, daí sentir-se entusiasmado com a ideia da mônada, entendida como um “[...] espelho representativo de todos os seres e de todos os fenômenos” (DIDEROT, 2017, p. 397), ideia que, entre outras, teria revelado o homem de gênio que foi Leibniz.
O verbete sobre o Belo é decisivo, então, não só pela recusa de uma causa inteligente anterior às obras, mas por operar, como assinala Frédéric de Buzon (2015, p. 32), com base no princípio da “percepção de relações”, procedimento que marcaria a passagem em Diderot de “uma teoria da percepção como recepção de imagens para uma teoria causal”, o que, para Marian Hobson (2015, p. 19), consolidaria sua estética “puramente humana e ateia”. Nessa direção, passando das questões gerais para os casos particulares, os autores examinam esse problema, em Estéticas de Diderot, especialmente na música, a fim de constatar se “o todo” agradável ou a harmonia na música é uma operação do espírito, com suas relações estáveis, ou uma operação do sentimento, com suas vicissitudes e instabilidades.
No debate entre Diderot e Rousseau, o problema era saber se toda composição musical se referia a uma “estrutura inaudível” aos ouvidos, embora percebida pelo intelecto - intelectual e racional -, a qual sustentaria uma harmonia ou certa relação de proporção entre os tons, como queria Rameau. Enquanto, para Diderot, tratava-se de uma operação do espírito, na opinião de Rousseau, não haveria nenhuma ordem intelectual evidente, apenas o som sensível, presente e incorporado na própria percepção, de modo que a ausência da estrutura remeteria à conhecida recusa rousseauniana da representação: “[...] le son n’a donc pas besoin qu’on le represente puisqu’il est lá.” (Rousseau apud Hobson, 2015, p. 14). Nessa direção, Marian Hobson (2015, p.19; PAURADIER, 2015, p. 58) confirma, portanto, que, no verbete sobre o belo, Diderot
[...] nega, contra Batteux, e igualmente contra Rousseau, que o sentimento seja a base do nosso prazer na música [...] ele afirma que a percepção de relações é a única definição de belo que não está sujeita à relatividade no espaço ou no tempo. [...]. Diderot insiste, portanto, contra Rousseau, sobre o fato de que é a razão e não o sentimento que assegura a regularidade de nossa experiência dessas relações e de sua indeterminação.
Com a ideia de “percepção de relações”, Diderot aparentemente teria resolvido a polêmica contra os sentimentos em favor da razão. No entanto, voltando ao nosso tema, não se pode afirmar que a noção de unidade na variedade seja puramente racional, pois a presença do sensível exige investigar um segundo problema, mais de fundo, que é o de saber como Diderot se posiciona, a partir daí, diante da polêmica entre o empirismo e o racionalismo: se acolhe a ideia da variedade, sujeitando a obra e seu efeito às vicissitudes da história e da cultura; ou se segue a tendência racional que busca, ao modo matemático, a uniformidade das relações harmônicas. De acordo com Frédéric de Buzon (2015, p. 33), a preocupação com a proporção, ordem ou harmonia faz de Diderot um tipo de “pitagórico empírico”, pois se, de um lado, o espírito combina, compara, distingue as relações, de outro lado, percebe relações no corpo como vibrações, provocadas por objetos externos que efetuam neles mesmos, outras relações.
Com efeito, no verbete sobre o Belo, da Enciclopédia, Diderot destaca que o sentimento da beleza desperta a ideia de relação em um procedimento comparativo, sem que este despertar seja a ocasião para uma relação inteligível transcendente:
A relação é uma operação do entendimento, que considera seja um ser, seja uma qualidade, na medida em que este ser e esta qualidade supõe a existência de um outro ser e de uma outra qualidade; [...] quando digo, portanto, que um ser é belo pelas relações que nele se notem, não estou falando em absoluto das relações intelectuais ou fictícias que nossa imaginação aí transporta, mas das relações reais que aí estão e que nosso entendimento observa com a ajuda de nossos sentidos (Diderot, 2000b, p. 254-255).
Ou seja, Diderot gradativamente desenvolve e aprofunda sua pesquisa sobre a objetividade do belo, no sentido daquilo que “tem seu fundamento nas coisas”, isto é, de uma realidade de traços que, na sensação, provocam a ideia de beleza; esse sentimento é provocado por causas externas, que devem possuir nelas mesmas as relações belas. É por essa razão que, para Buzon (2015, p. 36-38), Diderot modifica a herança malebranchista, em relação ao conceito de percepção de relação, ao afirmar a concepção empirista de número, como “matemáticas puras que entram em nossa alma, por todos os sentidos.”[10]
2 Os Salões
A preponderância de uma causa externa na sensação de prazer, contudo, jamais é determinante ou necessária, em Diderot. É o que se pode verificar, quando nos afastamos do verbete sobre o Belo e da abordagem geral sobre a arte, para examinarmos sua crítica de arte, nos Salões. Por exemplo, no Salão de 1763, o quadro A castidade de José, de Deshays, enseja a digressão de Diderot sobre o tema da unidade, como paralelo entre música e pintura, o que o reenvia ao debate com Rousseau. Enquanto o músico faz vibrar no órgão auditivo o “acordo perfeito do dó”, com as dissonâncias que lhe correspondem, o pintor, com sua técnica, não procura neutralizá-las na composição, mas “[...] salvar certo número de dissonâncias” (DIDEROT, 2008, p. 80).[11] Uma operação que se constitui a partir da materialidade da obra, como um saber prático do artista, conquanto guarde uma forte dimensão aleatória, como sugere Diderot (2008, p. 79):
Ajuntai confusamente objetos de toda espécie e cores, lençóis, frutos, licores, [...] e verás que o ar e a luz, estes dois harmônicos universais, os colocarão em acordo, não sei como, por reflexos imperceptíveis; tudo se ligará, os disparates diminuirão e vosso olho em nada recusará o conjunto.
Enquanto a música se refere ao som, como uma coisa mesma, na pintura não se trata da coisa mesma, mas de pigmentos, que são meios ou substitutos, os quais conquistam autonomia, na tela. É por essa razão que a pintura, diz Diderot (2008, p. 80), é uma trama de falsidades (tissu de faussetés) que se encobrem umas às outras. Daí a tarefa maior do pintor, que é a de, em primeiro lugar, escolher os objetos e as cores: “Há alguns objetos que ganham; outros perdem, e a grande magia consiste em aproximar tudo da natureza, fazendo com que tudo perca ou ganhe proporcionalmente; mas então não se trata da cena real e verdadeira, mas, por assim dizer, da sua tradução.” (DIDEROT, 2008, p. 80).[12]
Se essa “grande magia” ou harmonia não pode ser prescrita, como regra, fora da paleta do pintor, ela pode ser apreendida como crítica histórica, na descrição dos quadros exibidos nas paredes do salão “carré” do Louvre. Não é por outra razão que, em quase todos os salões, Diderot esmera-se em provar a tese segundo a qual todo julgamento de gosto é subjetivo, se bem que não se trate jamais de subjetivismo, nem de relativismo: para ele, há algo de objetivo no quadro, que afeta o espectador. Greuze, por exemplo, ao dispor os acidentes ou acessórios na tela, escolhe aqueles que tenham “afinidade de ideias” (DIDEROT, 2008, p. 207), as quais podem ser físicas, científicas, ou religiosas. Além de conhecer as leis particulares da pintura, Greuze possui sensibilidade e instinto (instinct) para compor conjuntos claros e simples; é mestre em estabelecer afinidade entre os acidentes, de modo que seus acessórios não são ornamentos neutros, mas unidos por “um fio invisível e finíssimo” (DIDEROT, 2008, p. 207). É por essa razão que, para Colas Duflo (2013, p. 305), o conceito de “afinidade de ideias” não só é o princípio que confere unidade ao quadro, mas um dos conceitos centrais da filosofia da arte de Diderot.
No verbete Composição, da Enciclopédia, dedicado à pintura, escrito pelo próprio Diderot (2015, p. 244), a unidade composicional é didaticamente associada ao ponto de vista: “[...] um quadro bem composto é um todo compreendido em um único ponto de vista, no qual as partes concorrem para o mesmo fim e formam, por sua correspondência mútua, um conjunto tão real quando aqueles dos membros de um corpo animal.” Aqui, o ponto de vista não é abstrato, nem intelectual, mas orgânico, constituído no fazer artístico como unidade de elementos sensíveis. Com ele, o espectador pode reconhecer o tema em toda parte da tela. “Vossos episódios ou me aproximarão do tema ou me afastarão dele, e o último desses efeitos é um mal”, adverte Diderot (2015, p. 246). Uma organicidade que antecipa e opera com os mesmos termos da fisiologia orgânica exibida em O sonho de d’Alembert.
Nos Ensaios sobre a pintura, reflexões escritas para servir de sequência ao Salão de 1765, a exigência do todo é posta ao pintor em termos semelhantes:
Procurai, meus amigos, imaginar que a figura é transparente e colocai vosso olho no centro; de lá observareis todo o jogo exterior da máquina; vereis como certas partes se alongam, enquanto outras encolhem; como aquelas murcham, enquanto estas incham, e, incessantemente, ocupados com o conjunto e com um todo, conseguireis mostrar, na parte do objeto apresentada pelo vosso desenho, toda a correspondência adequada àquela que não se vê (DIDEROT, 2008, p. 176).
Por fim, o mesmo raciocínio retorna nos Pensamentos destacados: “[...] em toda composição o olho procura em geral o centro e ama descansar no plano do meio.” (DIDEROT, 2008, p. 452).
Escolhido o tema, o passo seguinte, então, é o da delimitação do episódio, ou seja, a questão propriamente dita da figuração da ação, haja vista que “[...] a lei da unidade da ação é ainda mais severa para o pintor do que para o poeta, porque dela decorre a unidade do tempo e do lugar, isto é, a escolha do instante e das circunstâncias próprias da ação.” (DIDEROT, 2015, p. 245). Referindo-se especificamente à pintura histórica, Diderot (2015, p. 245), em novo paralelismo, agora entre pintura e poesia dramática, assevera que “[...] o pintor tem apenas um instante quase indivisível; é a esse instante que todos os movimentos de sua composição devem se relacionar. [...] O pintor escolhe o instante mais interessante, entre uma multidão de instantes diferentes.” Sua escolha não se submete aos gostos nacionais, ao decoro, ao hábito, ironicamente nomeado de “delicadeza do gosto”. Como tem gosto e gênio, ou seja, é um estudioso observador da natureza, ele prefere o mais interessante em detrimento do mais familiar, tendo em vista que na pintura cada instante tem suas vantagens e desvantagens: “Uma vez escolhido o instante, todo o resto é dado”, afirma Diderot (2015, p. 245), pois “[...] a escolha de um instante interdita ao pintor todas as vantagens de outros.”
A doutrina do instante não é uma criação de Diderot, como bem mostrou Jacques Chouillet (1987, p. 131), mas apenas uma aplicação à pintura do século XVIII da regra clássica da unidade de tempo. Todavia, Diderot (2015, p. 245-246) renova a noção de instante pictórico, ao acentuar nele os fluxos múltiplos com suas interrupções e retomadas, capacitando-o a exprimir a duração do tempo, enquanto tal, considerando-se que o instante escolhido é a soma dos que o precederam; nas suas palavras: “[...] há, porém, ocasiões em que vestígios de um instante passado não são incompatíveis com a presença de um instante: por vezes, as lágrimas de dor cobrem um rosto no qual a alegria começa a dominar. Um pintor hábil apreende um rosto no instante em que a alma passa de uma paixão a outra, realizando uma obra-prima.”
Imobilizar o instante escolhido, isto é, a ação, significa não eliminar as dissonâncias e dispersões da duração, apreendendo uma unidade da ação ligada ao tempo. Em Greuze, Diderot encontra a clareza, simplicidade e uma feliz escolha de “ações verdadeiras”. Em O filho punido, por exemplo, examinado no Salão de 1765, o pintor escolhe figurar o retorno do filho a casa, no instante exato em que o pai acabara de falecer, escolhendo, assim, não um “momento comum”, mas um momento “particular”, como já afirmara no Salão de 1763 (DIDEROT, 2008, p. 93). Inversamente, como aqueles que não têm gênio não sabem escolher,
[...] fundem muitas ações em uma, exageram nos episódios e sobrecarregam suas peças na proporção de sua esterilidade [...] Não negamos que uma ação principal não ocasione ações acidentais, mas é necessário que essas últimas sejam circunstâncias essenciais à precedente: é preciso que haja entre elas tamanho vínculo e subordinação que o espectador nunca fique perplexo (DIDEROT, 2015, v. 5, p. 246).
Para que o efeito de conjunto forme uma “massa” responsável por provocar no espectador forte emoção e lições morais claras, a subordinação entre as figuras deve se ater aos efeitos na natureza, ou seja, as partes devem “[...] ser igualmente cuidadas e chamar atenção apenas por sua maior ou menor importância” (DIDEROT, 2015, p. 247): e os objetos subalternos não podem desviar o espectador dos objetos importantes. Por fim, ainda no verbete Composição, Diderot (2015, p. 248) recomenda sobriedade e conveniência nos ornamentos:
[o] preceito de embelezar a natureza pode estragar o quadro. Eliminai de vossa composição toda figura desnecessária; que não a aquecendo, a esfriaria; que as figuras que usardes não sejam esparsas e isoladas; uni-as por grupos, que vossos grupos estejam ligados entre si; que neles as figuras estejam bem contrastadas; [...] que as figuras sejam projetadas umas sobre as outras, de maneira que as partes ocultas não impeçam que o olho da imaginação as veja por inteiro; que as luzes sejam nítidas; observai as leis da perspectiva; sabei aproveitar o movimento das vestimentas.
A presença do tempo, no quadro, seja como duração ou movimento interno, seja como modificação dos elementos externos, é garantida pela própria materialidade pictórica ou meio técnico, o qual permite dar vida a uma cena. A noção de “fluxo perpétuo da matéria”, de sua filosofia da natureza, combinada ao conceito estético de “afinidade de ideias”, insere o gesto da escolha dos acessórios e das situações do pintor no redemoinho do tempo. Para Duflo (2015, p. 306), nessa “estética do sistema”, não há contradição entre unidade e variedade, haja vista que
[...] a unidade é em Diderot, a condição necessária para que o quadro possua objetivamente a vida que o espectador projeta subjetivamente. [...] A unidade não é uma convenção ou uma técnica de apresentação com a qual se reveste exteriormente um tema, mas algo orgânico e imanente. Um quadro bem realizado é como um animal. Ao se pintar uma massa agitada, ela deve também seguir as leis das paixões e dos interesses, formando um sistema, onde uns reagem aos outros.
Isso pode ser verificado, ainda seguindo sugestão de Duflo, seja em Richardson, no qual não há um só personagem que pense, fale ou aja como outro e, mesmo assim, a unidade do romance é preservada, sem os disparates do romanesco, seja em Greuze, em O noivo da aldeia (L’Accordée de village), no Salão de 1761, cuja composição do momento escolhido diferencia cada rosto, atitude ou expressão, que se correspondem nos vários planos do quadro, sem perder a elegância e a graça do conjunto. Do cotejo, é possível reconhecer também outro feliz paralelo de Diderot (2008, p. 132) entre as artes, porque Greuze foi o “[...] primeiro entre nós a tomar providências para apresentar costumes à arte, encadeando os acontecimentos, a partir do qual será fácil fazer um romance.”
A complexa noção de “afinidade de ideias” não oculta, sobretudo, o paradoxo da noção de unidade quando, contra as regras da convenção, Diderot (2008, p. 171) advoga em favor do “tato fino” ou sentido artístico, adquirido a partir da “[...] observação contínua dos fenômenos da natureza, os quais nos fariam sentir uma ligação secreta e um encadeamento necessário.” Mesmo que o pintor opere com suas faculdades, talento e técnica particulares, Diderot continua insistindo, nos Salões, que toda composição bela deve estar de acordo com a natureza. De um lado, o pintor é tudo, pois se trata de um problema de execução, experiência e de longos anos de estudo; certamente, de gênio, pois os problemas são resolvidos pelo pintor na obra de arte: “[...] o modelo está na alma, no espírito, na imaginação do artista; e mesmo quando é um modelo exterior, ele precisa ser transposto para a tela, em pinceladas e camadas de tinta.” (DIDEROT, 2008, p. 475).
De outro lado, o criador não pode deslindar as “verdades da natureza”, uma vez que a natureza foi o primeiro modelo da arte, entre os gregos, e continua sendo novamente fonte de criação para os modernos. O que isso significa, para Diderot? Que, se na natureza tudo está esparso, disperso, em permanente modificação, ela não fornece modelos, nem solicita ao gênio criações ex nihilo; ao contrário, ela sugere ao artista combinar elementos, isto é, escolher e unir as partes esparsas, introduzindo, assim, uma ordem sutil, momentânea, por assim dizer imperceptível: o “fio invisível finíssimo” de Greuze (DIDEROT, 2008, p. 207). De fato, mesmo que preserve elementos da tradição antiga, não há nenhuma nostalgia ou classicismo em Diderot; assim, sua volta à natureza não é nada mais que a própria exigência de unidade posta pela natureza, que incessantemente inventa combinações de elementos heterogêneos, ou “aglomerados de matéria” (DIDEROT, 2000b, p. 122).
Se as leis da natureza concernem ao “fluxo perpétuo” e à “ligação de tudo com tudo”, os objetos escolhidos para a composição devem ser “[...] distribuídos como se tivessem sido arranjados por si mesmos, isto é, com menos constrangimento e mais com aquilo que é favorável a cada um deles.” (DIDEROT, 2008, p. 446). A analogia entre natureza e arte é, assim, mais precisa ou material em Diderot (2008, p. 442), do que a afirmada, anos depois, no “[...] é como se” (als ob) kantiano, considerando-se que “uma composição deve ser ordenada de maneira a me persuadir que ela não poderia ser ordenada de outra forma.” Essa disposição para estabelecer afinidades e convivências, sem interromper o movimento, coincide, por isso mesmo, com aquilo que é o verossímil: é preciso, afirma Diderot (2008, p. 438), “[...] que eu possa dizer: eu não vi este fenômeno, mas ele existe.” Aliás, sobre o tema, o filósofo insiste que nem todos os possíveis são admissíveis em uma boa pintura: os possíveis que podem ser empregados são os verossímeis possíveis, os quais têm mais possibilidades de passar, em uma ação, do estado de possibilidade para o de existência. Tal raciocínio está de acordo com a filosofia da natureza de Diderot (2008, p.468), para quem, “[...] na natureza cada objeto é como ele deve ser, isto é, o resultado de causas em função das quais ele experimentou as ações.”
É por essa razão que, para Diderot (2008, p. 427), o gosto é anterior às regras, tendo em vista que ele se constitui lentamente como uma “obra do tempo”; precisamente, o gosto é o aperfeiçoamento do julgamento, dessa capacidade infinita de escolher e unir, a qual é intrínseca ao fazer artístico. Sem dúvida, o gosto é, para Diderot (2008, p. 233), como já afirmara nos Ensaios sobre a pintura, “[...] uma facilidade adquirida, mediante experiências continuas, para captar o verdadeiro e o bom, com a circunstância que o torna belo, e ser por ele imediata e intensamente comovida.”
Todavia, se há aqui menção aos antigos, é porque o forte sentimento de prazer provocado pela arte decorre, paradoxalmente, da unidade instável de cada forma, que é vivida como vestígio do efêmero, isto é, como sinal do próprio tempo; um sentimento que não pode ser expresso por meio de palavras e que, no limite, guarda sempre algum segredo (DIDEROT, 2008, p. 428). O todo se refere, portanto, a um dinamismo das partes, que individualizadas, fazem do quadro, silenciosamente, um turbilhão de linhas e cores. São essas leis da natureza que servem de norma à arte; leis que não estão fixas diante do pintor, conforme assinala Anne Sejten (2015, p. 80), haja vista que “[...] elas conquistam um lugar no quadro que será feito.”
A unidade é, então, o “efeito do todo” no observador (DIDEROT, 2008, p. 85), aquilo que o pintor busca penosamente, a fim de oferecer uma impressão de conjunto, cujo exemplo maior é uma tela de Rafael. Daí a importância do colorista, visto que o “[...] accord de um quadro refere-se à luz e as cores.” (DIDEROT, 2008, p.477). O colorido, a magia do claro-escuro, as nuances visam ao efeito de impedir o olho de se extraviar, dispersar (papilotter) ou devanear. Na conclusão sobre a cor, nos Pensamentos destacados, Diderot (2008, p. 462) acrescenta: “[...] sem harmonia, ou sem subordinação, o que é a mesma coisa, não é possível ver o conjunto; o olho é forçado a saltitar sobre a tela.” O tratamento do fundo é igualmente importante para garantir a continuidade, pois na arte, como na natureza, nada se faz por saltos, como já vimos. O fundo “[...] é um espaço sem limites, no qual todas as cores dos objetos se confundem ao longe, findando por produzir a sensação de um branco pardacento.” (DIDEROT, 2008, p. 457).
Nos Salões, à sua maneira, Diderot (2008, p.174) entrecruza o efêmero com o estável, o instante com a mobilidade, indiciando não só uma natureza que não cessa de mudar, como uma humanidade que se apresenta como organismo, isto é, como “conspiração geral de movimento”. Tais paradoxos da imitação sugerem, na interpretação de Colas Duflo (2013, p. 307), que a unidade e a variedade se não são contraditórias, não se situam no mesmo plano: “[...] a unidade é a escolha, por parte do artista, do ponto de vista para o pintor de paisagem ou de natureza morta; [...] a variedade se refere ao domínio da natureza, à observação.”
Mesmo que resulte em planos diferentes da atividade do pintor, a nosso ver, eles confluem na obra enquanto tal, especialmente no efeito de prazer que a obra produz, porque a harmonia, para Diderot, pressupõe uma heterogeneidade qualitativa. Sem dúvida, quando a unidade na diversidade é afirmada, o que Diderot contempla são sempre qualidades e não quantidades. É em vista dessas qualidades sensíveis e não substanciais que Greuze transporta seu talento para todos os lugares, catalogando ações, paixões, caracteres e expressões, procedimento que Diderot (2008, p. 175) recomenda aos iniciantes: “[...] buscai as cenas públicas, sede observadores nas ruas, nos jardins, nos mercados, nas casas, e obtereis ideias precisas sobre o movimento real das ações na vida.” Certamente, como demonstra Belleguic (2000, p. 501), o olhar perspicaz do pintor alimenta-se da multiplicidade das qualidades, que surgem inesgotáveis na esfera da empiria. É, no entanto, a composição de uma unidade que organiza um valor ou virtude, o qual espera ser validado pelo olhar do espectador, como aprovação ou reprovação, ou simplesmente como simpatia.
Nos Ensaios sobre a pintura, Diderot (2008, p. 199) define a simpatia precisamente como um impulso repentino que une dois seres ou mais, na “atração momentânea e recíproca de alguma virtude”, constituindo uma “língua comum entre os homens”, ou seja, um mesmo repertório cultural.[13] As qualidades sensíveis não reenviam a uma ordem matemática, mas operam na obra, introduzindo no tempo um limite sensível, uma circunscrição ou forma, produzidos pela experiência do pintor em sua paleta particular. Daí serem regras de unidade que não podem ser prescritas rigorosamente aos artistas. Como sugere Carole Talon-Hugon, a beleza em Diderot ganha objetividade, ao ser pensada no sentido de ocorrência (survenance) - como aquilo que advém -, cuja origem decorre estritamente da manifestação da obra. No seu brilhante ensaio, ao opor as noções de qualidade e quantidade, a autora avalia a dívida de Diderot com as tradições filosóficas, pautadas nas noções de harmonia, ordem e simetria. A Carta sobre os surdos e mudos, de 1751, a seu ver, já reformulara a tradição, ao apresentar uma clara ligação entre essas ideias e a noção de percepção de relações:
[...] a proporção é uma relação de grandeza entre as partes de uma coisa ou entre a coisa e uma de suas partes; a simetria é uma relação de similitude entre as partes; a harmonia é uma relação de convivência das partes com o todo para formar um conjunto agradável (TALON-HUGON, 2015, p. 47).
Diderot, afastando-se dos antigos, apoiaria, assim, a qualidade estritamente avaliativa de “ser belo” nas propriedades descritivo-avaliativas; ou seja, no “[...] ser proporcional, simétrico etc. Sua objetividade é maior que as da qualidade puramente avaliadora da beleza e menor que a das propriedades puramente descritivas [...]”. O belo repousaria, por fim, continua Talon-Hugon (2015, p. 48), sobre “[...] traços não estéticos que reenviam às propriedades objetivas mensuráveis e incontestáveis.” Na mesma direção, Maud Pouradier (2015, p. 63) avalia que os valores são mais importantes que as proporções, basta ver que, nos Salões, a ideia de relação é aprofundada e suplantada pela “lei das energias e interesses”, que opera em favor do materialismo diderotiano e de uma ideia de representação que estabelece relações entre representante e representado, o que indiciaria o primado do todo sobre o indivíduo e uma concepção monista do universo.
Sem dúvida, os ensaios de Estéticas de Diderot possibilitam que o debate sobre a qualidade estética possa ser lido com uma entonação menos metafísica, especialmente se iluminado a partir da questão da variedade. Nos ensaios sobre a pintura, nas “minhas ideias bizarras sobre o desenho”, a variedade não é, para Diderot (2008, p. 175), mera discrepância, o que o levou a condenar o contraste amaneirado: “[...] o verdadeiro contraste é o que surge do cerne da ação ou da diversidade, seja dos órgãos, seja da conveniência.”[14] Com efeito, o tratamento da variedade é o que constitui a originalidade da crítica de arte de Diderot. Em primeiro lugar, a noção de variedade, em especial, a partir do Salão de 1767, reforça o pressuposto básico do seu materialismo, a saber, o “da sensibilidade como propriedade geral da matéria”, que se afirmará no Sonho de D’Alembert, em 1769, em conformidade com o qual os seres inanimados, como as pedras e os metais, constitutivos dos pigmentos, não são destituídos de caracteres, nem de mobilidade.
Em segundo lugar, como a variedade na arte visa a uma imobilidade que se alimenta da mudança e não contraria o movimento, nela a diversidade indicia temporalidade.[15] O tempo, por sua vez, é a experiência sensível em si mesma, isto é, a relação que se estabelece na obra entre as circunstâncias e as contingências. “Se a pintura de ruínas não me reenvia às vicissitudes da vida e à vaidade dos esforços humanos”, acentua Diderot (2008, p. 438), “[...] ela é apenas um amontoado informe de pedras.” Isso não significa passividade do artista diante do mundo sensível, haja vista que a variedade estimula a imaginação, ao modo produtivo, na medida em que a arte mistura as “[...] circunstâncias comuns das coisas às mais maravilhosas e as circunstancias maravilhosas aos sujeitos mais comuns.” (DIDEROT, 2008, p. 472).
Daí Diderot (2008, p. 200) recomendar ao pintor, nos Ensaios sobre a pintura, o cultivo da “sensibilidade da diferença”, como antídoto às regras acadêmicas, frias e afetadas. É preciso estudar as “cenas da vida”, “a ventura e desgraça humana sob todos os seus aspectos”; visitar os historiadores, os poetas, “debruçar-se sobre suas imagens” (DIDEROT, 2008, p. 199). Estabelecer, como Greuze, fisionomias, coleções de expressões diferentes; em suma, aprender a ver o instante no qual uma fisionomia que recebeu determinado traço da natureza se modifica, adquirindo traços de outra paixão. Pelo tratamento dado à variedade, Greuze seria patético; Chardin seria simples e verdadeiro. As naturezas mortas silenciosas do último emocionam Diderot (2008, p. 118), no Salão de 1765, pois aproximam inúmeros objetos, estabelecendo afinidades de ideias e acordos os mais perfeitos: “Quantos objetos! Que diversidade de formas e cores! E, no entanto, que harmonia! Que sossego!”. Ao descrever copiosamente a diversidade de gestos e expressões na obra de Greuze, intitulada O filho ingrato, Diderot (2008, p. 141) assegura que tudo no quadro é “compreendido, ordenado, caracterizado, claro”.
Nos Pensamentos destacados, Diderot condena a simetria, aceitável apenas na arquitetura - quando visa à igualdade das massas, correspondentes a um todo -, para louvar na pintura a variedade de ações e posições, as quais, a seu ver, correspondem ao animal ou ao homem em sua relação com os objetos. É a variedade que dá movimento a uma figura em repouso, por isso se diz que “ela quase se move” (DIDEROT, 2008, p. 431). Com efeito, há abundantes séries de variedades, nos Salões: variedade de distribuição dos elementos acessórios em relação ao objeto principal; variedade das posições, visando a uma atitude estrita; variedade das expressões, em busca do verdadeiro caráter; variedade das sombras e luzes, na qual “[...] cada figura adquire da massa geral a porção relativa à sua importância.” (DIDEROT, 2008, p. 436).
Em suma: a variedade é pictórica, refere-se aos “[...] reflexos imperceptíveis dos objetos uns sobre os outros”, em contato com o ar e a luz (DIDEROT, 2008, p. 80). Para Diderot, as cores dos objetos não são fixas, mas variam segundo as cores vizinhas; e é por essa qualidade que os tons, sob o efeito dos reflexos, ou se enfraquecem, entrando em desacordo, ou se harmonizam em acordos surpreendentes. Seguindo essa lógica da variedade, Diderot (2008, p. 402) é severíssimo com o esboço histórico de Greuze, intitulado Septimo Severo e Caracalla, apresentado no Salão de 1769: o efeito, aqui, é nulo, diz ele: “[...] falta harmonia, tudo é embaçado, duro e seco.”
No verbete Harmonia da Enciclopédia, escrito por Diderot (2015, p. 333), a noção é definida ao modo antigo como a “ordem geral que reina entre as partes de um todo”, que concorrem para o “efeito do todo”, de modo que o desconhecimento de uma delas prejudica o sentimento de harmonia. Em suas palavras: “[...] quanto menos se saiba a respeito das partes, menos condição se terá para se sentir que há harmonia entre elas ou declarar algo a respeito”. No entanto, nos Salões, especialmente no de 1767, essa aparente clareza entre as partes de um todo é modulada, uma vez que, diante da valorização da variedade, a harmonia resultaria, por vezes, enigmática; daí o “feitiço do conjunto”, afastando-se de qualquer razão geométrica.
Com efeito, diferentemente de Greuze, a sensibilidade da diferença em Vernet lhe permite efetuar em suas paisagens “uma mágica harmonia”, por meio da qual o olhar do espectador se torna “errante”; em outras palavras, Vernet consegue articular o tempo e o além dele, despertando no espectador um sentimento mais intenso, nomeado de sublime. No passeio Vernet (Promenade Vernet), no Salão de 1767, Diderot anula a distância estética, por meio de um procedimento irônico, ao se colocar dentro do quadro, não para provocar o efeito do imediato ou um grau zero da representação, mas, inversamente, para tensionar e desestabilizar os acordos entre natureza e arte; especificamente, para problematizar as relações entre homem e natureza.
É por essa razão que Diderot vê as composições de Vernet como desvios do olhar, nos quais a unidade efetuada desloca o espectador sempre a um “outro plano”, anunciando “[...] um espaço além e aquém, que recua o céu e aproxima objetos[16]; ou, melhor dizendo, Diderot (2008, p. 280) captura uma ordem inesperada na capacidade incomum de Vernet de agrupar ações, objetos e cenas particulares ao infinito, de modo que a variedade provoca no observador encantamento, especificamente, a percepção da “[...] imobilidade de tudo que existe; o isolamento do lugar; o silêncio profundo suspende o tempo. Não há nada mais. Nada comparável. o homem torna-se como o eterno.” Ao ordenar uma paisagem, segundo outro ponto de vista, entre muitos possíveis, Vernet transpõe então a obra de arte em obra da natureza, deslocamento que reconfigura o estatuto do observador, o qual, abalado, sente um prazer intenso, incomum, o que leva Diderot (2008, p. 280) a exclamar:
[...] como é belo, grande, variado, nobre, sábio, harmonioso, vigorosamente colorido. Mil belezas dispersas no universo foram juntadas nesta tela, sem esforço, sem confusão e ligadas por um gosto delicado. É uma paisagem romanesca, na qual se supõe a realidade, em alguma parte.
Segundo Diderot, ao propor um novo espaço pictórico, o artista sugere àqueles que creem saber ver a natureza, como o cicerone, vê-la de outro ponto de vista. Não é por outra razão, que as “[...] belas paisagens das obras de arte nos ensinam a conhecer a natureza” e não o contrário (DIDEROT, 2008, p. 467). É no plano da composição que a unidade na variedade, como paisagem em movimento, ganha força e sublimidade, pois Vernet “[...] roubou da natureza seu segredo” (DIDEROT, 2008, p. 88). Como ela, “enlaça um espaço infinito”, que desnorteia o crítico já desestabilizado: “[...] é espantoso o espaço que se imagina para além deste ponto, o objeto mais afastado que vejo.” (DIDEROT, 2008, p. 281).
No Salão de 1763, Diderot (2008, p. 87) já registrara que da paleta de Vernet e das suas telas “[...] a natureza como que vinda do caos é iluminada de modo fascinante e retoma todos os seus encantos.” É por essa razão que Vernet trabalha com rapidez e leveza, pois os objetos e figuras mudam de formas o tempo todo; ao final, quase por acaso, uma unidade nova triunfa, porque Vernet domina a “[...] arte infinita de entremesclar o movimento e o repouso, o dia e as trevas, o silêncio e o ruído.” (DIDEROT, 2008, p. 360). Diferentemente da harmonia geométrica de Poussin, equilibrada entre linhas horizontais e verticais, Vernet, para Diderot (2008, p. 281), prefere a perspectiva do plano vertical, com partes iluminadas com semitons e tons obscuros, delineando os objetos bem distintos, bem terminados, como as nuvens interpostas que dão profundidade à cena, efetuando um “obscurecimento da transparência”.
No plano das cores, Vernet, como Chardin, não segue a ordem do arco-íris, pois “[...] mistura a maior variedade, em elevada harmonia, todas as cores da natureza, com todas suas nuances” (DIDEROT, 2008, p. 182). É com certeza uma tendência pictórica que ressalta a invenção e fruição subjetivas; contudo, não se trata de uma relação puramente subjetiva com a natureza, pois, “[...] se Vernet vos ensina a ver melhor a natureza, a natureza de seu lado, vos ensina a melhor ver Vernet.” (DIDEROT, 2008, p. 275). O que encanta Diderot. na pintura de Vernet, sobretudo, é a afirmação de uma dimensão da existência humana que só desponta em analogia com a materialidade das cores e linhas, sem nenhuma transcendência ou finalismo; tal analogia sugere que a natureza só é sublime na arte e em relação ao homem.[17]
A suspensão do tempo e o olhar errante afastam qualquer coerência fixa, idealidade ou sentimento nostálgico de uma “idade de ouro”, inserindo o exercício crítico-literário da Promenade na subjetividade moderna, pensada não como interioridade pura, mas ao modo fenomenológico, como uma subjetividade em relação, ou “ser-de-relação”, com suas existências múltiplas e infinitas disposições para vínculos e vizinhanças; aliás, tema frequente na filosofia moral de Diderot, quando reflete especialmente sobre a felicidade humana.[18] Nessa direção, a pintura de paisagem de Vernet, como unidade na variedade, em especial na série de quadros intitulados Claire de lune, impõe ao crítico substituir o conceito de belo pelo de sublime:[19] “Como poderei exprimir em palavras a variedade de sensações deliciosas?” – indaga Diderot (2008, p. 304). Como caracterizar a dissipação dos limites, a expansão do espaço, a inclusão do tempo, ora como duração, ora como suspensão; a oposição, na noite escura, entre a luz do fogo e o clarão da lua, os crepúsculos, as massas informes e selvagens de pedras; o espetáculo das águas; a massa de luz que ilumina as rochas, cujo vapor se mistura às nuvens?
Tais imagens provocam no observador, com efeito, sensações múltiplas, forte entusiasmo, surpresa e estranhamento. À noite, subindo uma montanha escarpada, o caminhante declara, em sintonia com Edmund Burke: “[...] eu experimentei um prazer acompanhado de estremecimento.” (DIDEROT, 2008, p. 278). Em outro momento, entre a vigília e o sonho, afirma: “[...] a noite modifica as formas, os barulhos geram horror e o de uma folha, no fundo de uma floresta, coloca a imaginação em jogo; a imaginação sacode as vísceras, tudo se exagera.” (DIDEROT, 2008, p. 324). Diante das paisagens de Vernet, a experiência de si do crítico-espectador não se manifesta como uma experiência de equilíbrio com a natureza, mas de excesso e de desmesura. Se os planos do quadro em permanente oscilação conquistam o “milagre” da frágil estabilização no instante figurado, é porque se trata de uma unidade precária, imprevisível e, por isso mesma, maravilhosa. Uma ordem transitória, que não exclui a desordem; uma ordem que é como um turbilhão, segundo Belleguic, porque deslocamento contínuo, criação e destruição.[20] Enfim: a unidade na variedade, como experiência ou sentimento do sublime, seria, assim, a chave moderna para entender a Promenade Vernet.[21]
Considerações finais
Para Carole Talon-Hugon, em Estéticas de Diderot, se o filósofo condena uma simples aproximação retiniana da arte, é porque a pintura se dirige ao espírito e não à sensibilidade. Ao defender que a pintura deve instruir, Diderot se ligaria à tradição antiga, ainda presente no século XVIII. “Como crítico, Diderot considera os conteúdos éticos dos quadros, contando um defeito ético como um defeito artístico e uma qualidade ética como uma qualidade artística.” (TALON-HUGON, 2015, p. 51) Com efeito, o modo pelo qual Diderot opera com a noção de unidade na variedade ainda é devedor do paradigma da mímesis; entretanto, a constituição de uma ideia singular de composição, nas obras examinadas, não só permite aproximar o Tratado sobre o Belo dos Salões, como afastar, por exemplo, Vernet de Poussin e de qualquer “espírito matemático”, pois indicia a presença de uma esfera de autonomia da arte, sem finalismo, paralela à natureza.
A Promenade Vernet, ao pensar o sublime materialmente, nas obras de arte, por assim dizer, concede ao fazer artístico um novo olhar que o salva da cegueira daqueles que, como o padre cicerone, não vê a natureza como turbilhão; para Diderot, em suma, ver um conjunto, ou o todo, é vê-lo em transformação. O todo é físico e não metafísico: é empírico, em mudança constante, como o enxame de abelhas, em O sonho de d’Alembert; é uma microestrutura móvel, nascida ao acaso de encontros moleculares e de divisões dotadas de uma agitação inquieta. E a pintura de Vernet seria verdadeira, ao efetuar na tela silenciosamente essa agitação ou “fermentação” da natureza.
The Idea of composition in Diderot’s Salons
Abstract: The article examines the notion of “uniformity in variety” in Diderot’s philosophy and art criticism. In dialog with the essays published in the compilation entitled Aesthetics of Diderot, of 2015, in which various experts examine the relevance of the materialist aesthetics of the philosopher, this article approaches the notions of unity presented in the Encyclopedia with the uses and meanings of the term in the Salons. It is intended to show how Diderot breaks gradually with the classical epistemology to think the work with an unstable unit, connected to time and that it is only in doing the work; specifically, highlighting the treatment given to the variety in the works of Greuze and Vernet, a procedure that brings the art criticism of Diderot of modern elements, such as the concepts of sublime and autonomy of art, which indicate the relevance of his philosophy of art.
Keywords: Diderot. Greuze. Vernet. Sublime. Uniformity.
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Recebido: 08/02/2019
Aceito: 03/4/2020
[1] Professora de Estética e Filosofia da Arte do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP – Brasil. Membro da Associação Brasileira de Estudos do Século XVIII (ABES-18). ORCID: http: //orcid.org/0000 0002-3033-7742. E-mail: arlenice@uol.com.br.
[2] Anne Elisabeth Sejten (2015, p. 71) sugere que, desde os primeiros escritos de juventude, os problemas filosóficos que preocupavam Diderot já estavam intrinsecamente à espera de uma estética.
[3] Para efeitos operacionais, entendemos a epistemologia clássica, nos termos utilizados pelos autores de Estéticas de Diderot, grosso modo, como uma concepção metafísica do belo, ou seja, como essência suprassensível. Carole Talon-Hugon, (2015, p. 42), por exemplo, afirma que, “[...] para Platão e Plotino, a beleza só existe por sua participação na Ideia inteligível de beleza, isto é, como beleza absoluta, eterna e imutável. [...] Esta origem transcendente do belo ligava-o ao bem e ao verdadeiro, como podemos ver na Kaloskagathia dos gregos e na conversibilidade dos transcendentais na Idade Média.” Por outro lado, também de acordo com Talon-Hugon, (2015, p. 50), como veremos adiante, Diderot não chega a romper com a tradição antiga, a qual, desde a Arte poética de Horácio, vê na arte uma destinação moral. Assim, concordamos com Maud Pouradier (2015, p. 58), para quem a concepção dinâmica de beleza em Diderot se opõe à de ordem ou unidade que supõe uma causa única e divina.
[4] Carole Talon-Hugon (2015, p. 46) observa que a ideia de Diderot do belo como “uniformidade na variedade” vem de Hutcheson, segundo o qual “[...] as figuras que excitam em nós as ideias de beleza parece ser aquelas nas quais há uniformidade no seio da variedade.”
[5] O verbete é no mínimo impreciso, ao afirmar que Hutcheson e seus “sectários” só conseguem perceber o belo pelo espírito, como belo absoluto, e não como uma qualidade inerente a um objeto, isto é, como belo relativo. Para Huchteson, de fato, como esclarece Broussois (2014, p. 109), trata-se de “[...] uma ‘percepção na percepção’. Os sentidos externos (visão, audição, tato, paladar, olfato) percebem duas qualidades presentes no mesmo objeto: uniformidade e variedade. O sentido interno da beleza percebe nas percepções do sentido externo as relações de equilíbrio entre essas duas qualidades. E esse equilíbrio está na origem da formação de nossa ideia de beleza, ideia acompanhada de prazer.”
[6] “Tudo muda, tudo passa, só o todo permanece. O mundo começa e acaba incessantemente, está a cada instante no início e no fim.” (DIDEROT, 2000, p.172).
[7] Confira A Carta de Leibniz a Wolff, de 18 de maio de 1715. Na Confessio Philosophi (LEIBNIZ apud RATEAU, 2011, p. 200), lemos: “[...] a harmonia é, com efeito, a unidade na multiplicidade; ela é tanto maior quanto mais é unidade de um maior número de elementos desordenados em aparência e restituídos por uma admirável relação, contra todas as expectativas, à maior concordância.”
[8] Na Enciclopédia, no verbete Harmonia preestabelecida, escrito pelo abade Yvon, temos: “Cada uma dessas substâncias tem em si mesma o princípio e a fonte de suas próprias mutações. Cada uma atua para si e por si. Mas Deus tendo previsto o que a alma pensaria neste mundo, e o que ela iria querer livremente, de acordo com a situação do corpo, acomodou de tal modo o corpo à alma, que há uma harmonia exata e constante entre as sensações da alma e os movimentos do corpo.” (DIDEROT; D’ALEMBERT, 2017, v. 6, p. 328).
[9] No verbete Filosofia de Leibniz, da Enciclopédia, na caracterização da noção de mônada, Diderot (2017, v. 6, p.393) afirma: “Todo o ser criado está sujeito a mudança. A mônada é criada; e, portanto, cada mônada é uma vicissitude contínua [ .] Em geral, não há força, qualquer que seja, que não seja um princípio de mudança. Além do princípio de mudança, é preciso admitir, no que muda, também uma forma, um modelo de especificação e diferenciação. Daí o múltiplo no simples, o número na unidade, pois toda mudança natural é gradativa. Uma coisa muda, outra permanece inalterada. Há na substância, portanto, uma pluralidade de afecções, de qualidades e relações, malgrado a ausência de partes.”
[10] Conferir também o ensaio de Sejten (2015, p. 76), que, diferentemente, sugere uma modulação no conceito de sensação, pois “[...] se o sentir é invocado aqui , é porque a obra de arte evoca outra coisa que a sua materialidade [...] e por outro lado, em Diderot trata-se de pensar a partir da arte plástica considerada em sua presença material e concreta.”
[11] O termo “salvar a dissonância” é utilizado também por Rousseau, no verbete Harmonia (DIDEROT; D’ALEMBERT, 2017, v. 5, p. 336).
[12] Baudelaire (1995, p. 836) observará, na mesma direção, no Salão de 1859, sobre a paisagem, que Corot tem “[...] um profundo sentimento da construção, que observa o valor proporcional de cada detalhe no conjunto.”
[13] Michel Delon (DIDEROT apud DELON, 2008, p. 548) destaca que, “[...] na Enciclopédia, ‘a simpatia é a aptidão que tem alguns corpos de se unir ou incorporar, em consequência de certas semelhanças ou conveniências em suas figuras’. Em anatomia ‘é o acordo mútuo que preside diversas partes do corpo humano por intermédio dos nervos’. Em moral ‘é esta conveniência ou conformidade de afecções e inclinações, a viva inteligência dos corações, comunicada, propalada, sentido com uma rapidez inexplicável, uma conformidade de qualidades naturais, de ideias, de humores e de temperamentos, pelos quais duas almas se procuram, se amam, se ligam uma a outra’.”
[14] Maud Pauradier (2015, p. 59) sugere que, em Diderot, trata-se mais de uma “estética do contraste”, que de uma “estética de resolução”.
[15] Sobre a evolução das concepções estéticas de Diderot, perceptíveis no Salão de 1767, Chouillet (1987, p. 139) assevera que “[...] a imobilidade é apenas um caso particular do movimento, e a inércia uma mudança momentânea de energia que engloba tudo, produz tudo, inspirando as formas transitórias da natureza e da arte.”
[16] Michel Delon (2008, p. 569), em nota, observa que o termo “horizonte”, muito utilizado na Promenade, designa um limite, que sugere o infinito. Citando Michel Collot, afirma: “[...] o horizonte daqui para frente foge, recua, se aprofunda. A linha circular que dividia o universo clássico entre visível e invisível é substituída por uma fronteira imprecisa, indecisa, móvel. A paisagem pictórica abandona a perspectiva geométrica em proveito da perspectiva atmosférica.”
[17] De acordo com Thierry Belleguic (2000, p. 486), na filosofia de Diderot, a abolição de uma metafísica da substância ocorre em proveito de uma antropologia e de uma “física da relação”. Um mundo colocado sob o signo da circulação, dos fluxos.
[18] Cf. a preocupação legítima de Chouillet (1987, p. 155), para quem as ambiguidades e problemas da Promenade indiciam a perda, em Diderot, do anterior equilíbrio com o qual tratava a criação artística, em proveito de uma excessiva subjetivação, pois “[...] agora é no interior do espírito humano que vai se desenrolar a sorte da obra de arte.”
[19] Conforme Chouillet (1987, p. 150-159), trata-se de uma “[...] rota perigosa que leva Diderot do belo ao sublime”, tema que não será tratado aqui, por falta de espaço.
[20] Para Belleguic (2000, p. 496), na Promenade Vernet, os acidentes, as circunstâncias particulares exercem sobre as torrentes declinantes outras forças, além da de atração e peso newtonianos. A Promenade “[...] coloca em jogo um grande número de parâmetros, elementos de relações, que se ajuntam à turbulência geral. A natureza entendida como ‘turbilhão’ aponta para o paradigma epistemológico que tem duas faces: é estável-instável, pois a ordem vem da desordem.”
[21] Frank Saläun (1999, p. 168), em Notes sur Le Neveu de Rameau, na mesma direção, tentando entender a experiência do abjeto, vivida no diálogo pelo filósofo, afirma que, “[...] no fundo dele – mas onde exatamente? – o sobrinho sabe bem que existe outra forma de vida e de satisfações pessoais, tais como o prazer moral e o gozo de si como unidade, como lhe lembram ou lhe faz pressentir a harmonia musical.”