O SONHO


Henri BERGSON


Conferência feita no Instituto Geral Psicológico em 26 de março de 19011


O Instituto Psicolñgico me convidou para tratar de um assunto tao complexo, o qual suscita tantos problemas, alguns psicolñgicos, outios fisiolñgicos e mesmo metafisicos, assunto que requereria tao longos de- senvolvimentos e temos tño pouco tempo que pelo a permissño para suprimir todo preñmbulo, afastar o acessñrio e me colocar logo no cora- Rao da questño.

Eis, pois, um sonho. Vejo toda espécie de objetos desfilar diante de mim; nenhum deles existe efetivamente. Creio ii e vir, passar por uma série de aventuras, enquanto estou deitado em minha cama, bem tran- quilamente. Escuto-me falai e ou o o que me é iespondido; todavia es- tou sñ e nño digo nada. De onde vem essa ilusño? Pot que se percebem pessoas e coisas como se elas estivessem realmente presentes?

Mas, nño hñ absolutamente nada no sonho? Uma certa matéria sen- sivel nño é oferecida ñ vista, ao ouvido, ao tato, etc., no sono como o é na vig:lia?



O papel das sensapñes visuais


Fechemos os olhos e vejamos o que acontece. Muitas pessoas dirño que nño acontece nada: é que elas nño olham atentamente. Em realida- de, percebem-se muitas coisas. Inicialmente um fundo negro. Depois manchas de diveisas cores, ñs vezes pñlidas, ñs vezes de um brilho sin- gular. Essas manchas se dilatam e se contraem, mudam de forma e de nuan9a, estendem-se umas sobre as outias. A mudan9a pode ser lenta e gradual. As vezes acontece com extrema rapidez. De onde vem essa fantasmagoria? 0s fisiologistas e os psicñlogos tém falado em “poeira luminosa”, em “espectros oculares”, em “fosfenas”. Eles atribuem essas aparéncias as leves modifica9ñes que se produzem sem cessar na circu- la9ao ietiniana, ou ainda ñ pressao que a pñlpebra fechada exerce sobre o globo ocular, excitando mecanicamente o nervo Sptico. Mas pouco importa a explicapño do fenñmeno e o nome que se lhe dé. Ele se encon- tra em todo mundo, e fornece, sem nenhuma duvida, a matéria na qual esculpimos muitos de nossos sonhos.

Alfred Maury e, na mesma época, o marquis d'Hervey de Saint-De- nis, ja tinham observado que essas manchas coloridas de for mas moven- tes podem se consolidar no momento em que se adormece, desenhando assim os contornos dos objetos que iiño compor o sonho. Mas a observa- Rao era um tanto suspeita porque provinha de psicñlogos semi-adorme- cidos. Um filosolo americano, G.T. Ladd, professor na Universidade de Yale, imaginou entao um método mais rigoroso, mas de uma aplica9ño dificil, porque exige uma espécie de treinamento. Consiste em manter os olhos fechados quando se despeita, e em reter durante alguns instan- tes o sonho que vai se desvanecer do campo da visao e logo também, sem duvida, da memñria. Nesse caso, véem-se os objetos do sonho se dissolverem em fosfenas, e se confundirem com as manchas coloridas que o olho percebia realmente quando as pñlpebras estavam fechadas.

Lé-se, por exemplo, um jornal: eis o sonho. Desperta-se e do jornal cujas linhas se esfumam resta uma mancha branca com vagos iiscos negros: eis a realidade. Ou ainda, no sonho passeamos em alto mar; o oceano desvela, a perder de vista, suas ondas cinzentas coroadas com uma es- puma branca. Ao despertar, tudo se perde em uma grande mancha cin- za-pñlida peimeada de pontos brilhantes. A mancha estava at, os pontos brilhantes também. Havia, pois, oferecida ñ nossa percep9ño durante o sono, uma poeiia visual, e esta poeira serviu para a fabrica9ño do sonho. Somente ela serve? Para falar ainda apenas do sentido da visao, di- gamos que ao lado das sensa9ñes visuais cuja fonte é interna existem aquelas que tém uma causa exterior. Ainda que com as pñlpebras bem fechadas o olho distingue a luz da sombra e reconhece, até certo ponto, a natureza da luz. As sensa9ñes provocadas por uma luz real estño na origem de muitos de nossos sonhos. Uma vela acendida repentinamen- te fara suigir no sonhadoi, se seu sono nño for muito profundo, um con- junto de visñes nas quais dominarñ a idéia de incéndio. Tissié cita dois exemplos: “B... sonha que o teatro d'Alexandria estfi em chamas; o logo ilumina todo um quarteirao. De repente ele se vé transportado para o meio da fonte da Prapa dos Cñnsules; um coirimño de /oyo corre ao lon- go das correntes que ligam as grossas colunas colocadas em torno da fonte. Depots ele se encontra em Paris na Exposi9ño em chamas..., ele assiste a cenas dilacerantes, etc. Ele desperta em sobressalto. Seus olhos recebiam o feixe de luz piojetado pela lanterna silenciosa que a freira que fazia a ionda virava para a sua cama ao passar. M... sonha que se alistou na infantaria da marinha onde serviu outrora. Ele vat ao Fort-de-France, a Toulon, a Lorient, ñ Ciiméia, a Constantinopla. Ele percebe claiâes, ouve o estampido ..., assiste, enfim, a um combate no qual vé o foyo sair das bocas de canhño. Ele acorda em sobressalto. Como B..., ele for despertado pelo facho de luz lan9ado pela lanterna si- lenciosa da freira que fazia a ionda.” Tais sño os sonhos que podem ser provocados por uma luz viva e inesperada.

Muito diferentes sño os sonhos sugeiidos por uma luz continua e suave, como a luz da Lua. Krauss conta que uma noite, ao despertar, percebeu que ainda estendia o bravo para o que foi, em seu sonho, uma jovem, que agora era apenas a Lua da qual recebia plenamente os raios. Este caso nño é o unico; parece que os raios da Lua, acaiiciando os olhos do sonhador, tinham a virtude de assim fazei suigirem apaii5ñes virginais. Nño serta isso o que exprime a fñbula de Endymion o pastor adormecido para sempre, que a deusa Selena (ou seja, a Lua) ama com um profundo amor?


O papel das sensa$ñes auditivas


O ouvido tern também suas sensa9ñes interiores zumbido, zuni- do, assobio que ma1 distinguimos durante a vigilia e que o sono des- taca nitidamente. Continuamos, adormecidos, a ouvir alguns barulhos externos. O estalo de um mñvel, o logo que crepita, a chuva que bate na janela, o vento que lan9a sua gama cromñtica na chaminé, tantos sons ainda que tocam o ouvido e que o sonho converte em conversa, grito, concerto, etc. Esfregam-se as tesouras contra as pin9as nos ouvidos de Alfred Maury enquanto ele dorme: ele sonha imediatamente que ouve o sino tocar e que assiste aos acontecimentos de junho de 1848. Eu pode- ria citar outros exemplos. Mas seria preciso que os sons tivessem tanto espa$o quanto as formas e as cores na maior parte dos sonhos. As sen- sa9ñes visuais predominam; frequentemente apenas vemos enquanto acreditamos também ouvir. Acontece-nos, segundo a observa9ño de Max Simon, manter em sonho toda uma conversa9ño e nos darmos con- ta, de repente, que ninguém fala, que ninguém falou. Era uma troca di- reta de pensamentos, uma conversa silenciosa entre o nosso interlocu- tor e nñs. Fenñmeno estranho e, todavia, fñcil de explicar. Para que ou9amos os sons em sonho, é preciso geralmente que haja baiulhos re- ars percebidos. Com nada o sonho nño faz nada; e onde nño lhe fornece- mos uma matéria sonora, ele tern dificuldade de fabricar a sonoridade.


O papel das sensapñes tateis


O tato intervém tanto quanto o ouvido. Um contato, uma pressño também chegam ñ consciéncia enquanto se doime. Impregnando com sua influéncia as imagens que ocupam em um dado momento o campo visual, a sensa9ño tñtil poderñ modificar sua forma e significa9ño. Supo- nhamos que o sonhadoi sinta, de repente, o contato do corpo com a ca- misa; ele se lembraiñ que estñ levemente vestido. Se acredita estar pas- seando na rua, é neste aparato muito staples que se oferecerñ aos olhos dos transeuntes. Aliñs, estes nao ficarño chocados, porque é raro que as excentricidades as quais nos entregamos em sonho pare9am comover os espectadores, por mais confusos que nss prñprios possamos estar com elas. Acabei de citar um sonho bem conhecido. Eis um outro, que muitos de vocés jñ devem ter sonhado. Ele consiste em voar, planar, atravessar o espa9o sem tocar a terra. Em geral, quando ocorre uma vez, tende a se reproduzir, e a cada nova experiéncia se diz: “Tenho fiequen- temente sonhado que estou voando sob o Sol, mas dessa vez estou bem desperto. Sei agora, e you mostrai aos outros, que é possivel subtiair-se das leis da gravidade.” Se vocés despertarem bruscamente, eis o que creio que encontiarño: como vocés estariam deitados, sentiiiam que seus pés peideram os pontos de apoio; por outio lado, acreditando nño dormir, vocés nño teriam consciéncia de estar deitados, diriam a si mesmos que nño tocavam mais a terra, ainda que estivessem em pé. E esta convic9ño que o sonho de vocés desenvolveu. Observer, no caso em que vocés se sentem voando, que acreditam lan9ar seu corpo sobre o lado ñ direita ou ñ esquerda, elevando-o com um movimento brusco do bravo que seria como um golpe de bravo. Ora, este lado é justamente aquele sobre o qual vocés estño deitados. Despertem e verño que a sen- sa9ño de esfor9o para voar é apenas a sensa9ño de pressño do bravo e do corpo contra a cama. Esta, destacada de sua causa, nño era mais que uma vaga sensa9ño de fadiga, atribuivel a um esfor9o. Ligada entño ñ convic9ño de que seu corpo tinha deixado o solo, ela é resolvida em sen- sa9ño precisa de esfor o para voar.

E interessante ver como as sensa9ñes de pressño, remontando ao campo visual e aproveitando a poeira luminosa que o ocupa, podem se transpor em formas e cores. Max Simon sonhou um dia que estava dian- te de duas pilhas de pelas de ouro, que essas pilhas eram desiguais e que ele procurava iguald-las mas nño o conseguia. Experimentava um vivo sentimento de angustia. Esse sentimento, aumentando a cada ins- tante, acabou por desperta-lo. Peicebeu entño que uma de suas pernas estava presa pelas dobras da coberta, que seus dois pés nño estavam no mesmo nivel e procuravam em vño se aproximar um do outro. Tinha evi- dentemente surgido dat uma vaga sensa9ño de desipua/dade, a qual, ir- rompendo no campo visual e nele encontrando talvez (é a hipstese que proponho) uma ou varias manchas amarelas, se exprimia visualmente pela desigualdade de duas pilhas de pelas de ouro. Ha, pois, imanente as sensa9ñes tñteis que ocorrem durante o sono, uma tendéncia a se vi- sualizar, e a se inserir sob esta forma no sonho.

Mais importante ainda sño as sensa9ñes do “tato interior” emanan- do de todos os pontos do organismo, e mais particulaimente, das visce- ras. O sono pode lhes dar, ou antes, lhes devolved uma finura e uma acuidade singulares. Sem duvida elas estavam ai durante a vigllia, mas estñvamos distra:dos pela a9ao, viviamos exteriormente a nñs mesmos: o sono nos fez reentrar em nñs. Acontece de as pessoas sujeitas as la- ringites, as amidalites, etc., se sentirem retomadas por sua aiecQao no meio de um sonho e experimentarem picadas desagradñveis no lado da garganta. Simples ilusfio, dizem ao despertar. Ai de mim! A ilusao tor- na-se rapidamente realidade. Citam-se as doen9as e os acidentes graves, ataques de epilepsia, afec9ñes cardiacas, etc., que tém sido previstos e profetizados em sonho. Nño nos espantemos pois se filssofos como Schopenhauer querem que o sonho traduza ñ consciéncia os estimulos vindos do sistema nervoso simpatico, se psicñlogos como Scherner atri- buem a cada ñrgño o poder de provocar sonhos especificos que o repre- sentariam simbolicamente e, enfim, se médicos como Artigues escreve- ram tratados sobre "o valor semiolñgico" do sonho, sobre a maneira de fazé-lo servir ao diagnñstico das doenqas. Mais recentemente, Tissié mostrou como as peiturba9ñes da digestño, da respira9ño, da circula- Rao se traduzem por espécies determinadas de sonhos.

Resumamos o que precede. No sono natural nossos sentidos nño estño de modo algum fechados as impressñes exteriores. Sem duvida eles nño tém mais a mesma precisao, mas, em compensa9ño, reencontram muitas impiessñes "subjetivas" que passaram despercebidas durante a vigilia, quando nos moviamos em um mundo exterior comum a todos os homens, e que reaparecem no sono, porque at vivemos somente para nñs mesmos. Nño se pode nem mesmo dizei que a nossa percep§ño se estreita quando dormimos; antes, ela amplia, em certas dire9ñes pelo menos, seu campo de opera9ño. E verdade que ela perde em tensño o que ganha em extensño. Ela traz quase somente o difuso e o confuso. Isto nño significa que fabriquemos o sonho com menos sensa9ño real.

Como o fabricamos? As sensa9ñes que nos servem de matéria sño vagas e indeterminadas. Cbnsideremos aquelas que figuram no primei- ro plano, as manchas coloridas que evoluem diante de nñs quando esta- mos com as pñlpebras fechadas. Eis linhas negras sobre um fundo bran- co. Elas poderño representar um tapete, um tabuleiro de xadrez, uma pñgina escrita e, ainda, uma multidño de outras coisas. Ouem escolhe- ra? Oual é a forma que imprimirñ sua decisao ñ indecisao da matéria?


Esta forma é a lembranpa.


O sonho é criador?


Obseivemos, inicialmente, que em geial o sonho nño cria nada. Sem duvida citam-se alguns exemplos de trabalho artistico, literario ou cientlfico executado no decorrer de um sonho. Relembrarei apenas o mais conhecido de todos. Um musico do século XVIII, Martini, obstinava-se em uma composi9ño, mas a musa mostrava-se iebelde. Ele ador- meceu e eis que o diabo em pessoa apareceu, se apoderou do violino e tocou a sonata desejada. Ao despertar, Tartini escreveu esta sonata de memñria e deu a ela o nome de Sonata do Diabo. No entanto, nño pode- mos concluir nada a partir de uma narrativa tño sumñria. Seria preciso saber se Tartini terminou a sonata enquanto procurava lembrar-se dela. A imagina9ño do sonhador ao despertar faz acréscimos ao sonho, modi- fica-o ietroativamente, tapando os buracos que podem ser considerñ- veis. Tenho procurado observa9ñes mais aprofundadas e, sobretudo, de uma autenticidade mais segura. A unica que encontrei é a do romancis- ta inglés Stevenson. Em um curioso ensaio intitulado A chapter on dreams, Stevenson nos informa que seus contos mais originais foram compostos ou pelo menos esbo9ados em sonho. Mas se vocés lerem atentamente o capitulo, verño que o autor vivenciou, durante uma certa parte de sua vida, um estado psicolsgico no qual lhe era dificil saber se dormia on se estava desperto. Creio, em efeito, que quando o espirito cria, quando faz o esfor9o que a composi9ño de uma obra ou a solu9ño de um problema exige, ele nño estñ dormindo; pelo menos a parte do es- pirito que trabalha nño é a mesma que a que sonha; aquela prossegue, no subconsciente, uma pesquisa que nño influencia o sonho e que sñ se manifesta ao despertar. Ouanto ao prñprio sonho, ele é apenas uma res- surrei9ño do passado. Mas de um passado que podemos nño reconhe- cer. Frequentemente trata-se de um detalhe esquecido, de uma lem- bran9a que parecia abolida e que em realidade se dissimulava nas profundezas da memñria. Frequentemente, também, a imagem evocada é a de um objeto ou de um fato percebido distraidamente, quase incons- cientemente, durante a vigilia. Sobretudo, hñ fragmentos de lembran- has soltas que a memñria reune aqui e ali, e que apresenta de uma for- ma incoerente ñ consciéncia do sonhador. Diante dessa reuniño desprovida de sentido, a inteligéncia (que continua a raciocinar, inde- pendentemente do que se diga a seu respeito) piocura uma significa- Rao; ela atribui a incoeréncia ñs lacunas que ela preenche evocando ou- tras lembian9as, as quais, apresentam-se fiequentemente na mesma desordem, clamando, por sua vez, por uma nova explica9ao, e assim in- definidamente. Mas nño insistirei nisto no momento. Basta-me dizer, para responder fi questño apresentada anteriormente, que o poder en- formador dos materiais transmitidos pelos orgfios dos sentidos, o poder que converte em objetos precisos e determinados as vagas impressñes provenientes do olho, do ouvido, de toda a superficie e de todo o interior do corpo, é a lembran9a.


O papel da meméria


A lembran3a! No estado de vigilia, temos lembran9as que apare- cem e desaparecem, reclamando nossa aten9ño sucessivamente. Mas estas sño lembran9as que se ligam estreitamente ñ nossa situa9ao e ñ nossa alao. Lembro-me neste momento do livro do marquis de Heivey sobre os sonhos. E porque trato da questño do sonho e estou no Instituto Psicolñgico. Meu ambiente e minha ocupapño, o que percebo e o que sou chamado a fazer orientam em uma dire9ño particular a atividade de minha memñria. As lembran9as que evocamos durante a vigilia, por mais estranhas que frequentemente pare9am as nossas preocupa9ñes do momento, sempre se ligam a elas por algum aspecto. Oua1 é o papel da memñria no animal? E o de lhe lembrar, em cada circunstñncia, as consequéncias vantajosas ou prejudiciais que se seguiram aos antece- dentes anñlogos, e de the ensinar, assim, o que deve fazer. No homem, a memñria é menos prisioneira da a9ao, reconhepo-o, mas ela ainda lhe adeie: nossas lembran9as, em um dado momento, formam um todo so- lidñrio, uma pirñmide, se quiseiem, cujo cume incessantemente mo- vente coincide com nosso presente e penetra o futuro. Mas atras das lembranpas que vém assim colocar-se sobre nossa ocupa9ño presente e se revelar por meio dela, existem outras, milhares e milhares de outras, por baixo, sob a cena iluminada pela consciéncia. Sim, creio que nossa vida passada estñ ai, conservada até em seus mlnimos detalhes, que nño esquecemos nada, e que tudo o que percebemos, pensamos e qui- semos desde o primeiro despertar de nossa consciéncia, persiste inde- finidamente. Mas as lembran9as que minha memsria conserva em suas mais obscuras profundezas nela estño no estado de fantasmas invisi- vets. Elas talvez aspirem a luz; todavia nño tentam voltar ñ tona; elas sa- bem que é impossivel, e que eu, ser vivente e agente, tenho mais o que fazer do que me ocupar com elas. Mas suponham que em um dado mo- mento eu me desinteiesse da situa9ño presente, da a9ao urgente, en- finn, do que concentrava sobre um unico ponto todas as atividades da memñiia. Suponham, em outros teimos, que eu adorme9a. Entño, essas lembran9as imñveis, sentindo que acabo de afastar o obstñculo, de abrir o al9apño que as mantinha no subsolo da consciéncia, colocam-se em movimento. Elas se levantam, agem, executam na noite do inconscien- te uma imensa dan9a macabra. E, todas em conjunto, correm para a poita que acaba de se entreabrir. Todas elas querem passai. Elas nao podem, elas sño muitas. Desta multidño de chamadas, quais serño as escolhidas? Vocés adivinharño sem dificuldade. Hd pouco, em vigilia, as lembran9as admitidas eram as que podiam invocar rela9ñes de parentesco com a situa9ño presente, com as minhas percep9ñes atuais. Agora, sño as formas mais vagas que se desenham a meus olhos, os sons mais indecisos que impressionam meus ouvidos, é um toque mais indistinto que esta espalhado pela superficie de meu corpo; mas sño também as sensa9ñes mais numerosas que me vém do interior de meus ñrgños. Entre as lembran9as-fantasmas que aspiram a se carregai de cor, de sonoridade, enfim, de materialidade, sñ serño bem sucedidas aquelas que puderem assimilar-se ñ poeiia colorida que percebo, aos barulhos de fora e de dentro que oupo, etc., e que, além do mais, se har- monizarem com o estado afetivo geial que minhas impress0es orgñni- cas compñem. Ouando esta jumao entre a lembran9a e a sensa9ño se operar, eu terei um sonho.


Corpo e alma do sonho


Em uma pñgina poética da Eneida, o filñsofo Plotino, intérprete e continuador de Platño, nos explica como os homens nascem para a vida. A natureza, diz ele, esbo9a os corpos vivos, mas somente os esboQa. Ela nño iria até o finn apenas com as suas prñprias forpas. Por outio lado, as almas habitam o mundo das Idéias. Incapazes de agir e, aliñs, nem pen- sam nisso, elas planam acima do tempo, fora do espa9o. Mas, entre os coipos, hñ aqueles que respondem mais, por sua forma, as aspira9ñes de tais ou quais almas. E entre as almas, hñ aquelas que se reconhecem mais em tars ou quais corpos. O coipo, que nño sai totalmente viñvel das maos da natureza, se eleva para a alma que lhe daiia a vida comple- ta. E a alma, olhando o corpo onde acredita perceber o reflexo de si mcs- ma, fascinada como se fitasse um espelho, se deixa atrair, se inclina e car. Sua queda é o come9o da vida. Comparo, a essas almas desprendi- das, as lembran9as que estño ñ espera no fundo do inconsciente, do mesmo modo que nossas sensapñes noturnas assemelham-se a esses corpos apenas esbo ados. A sensa9ño é quente, colorida, vibrante e quase viva, mas indecisa. A lembranpa é nitida e precisa, mas sem in- terior e sem vida. A sensa9ño quer encontrar uma forma sobre a qual fi- xar a indecisño de seus contornos. A lembran9a quer obter uma matéria para se preencher, se carregar, enfim, se atualizar. Elas se atraem mutu- amente, e a lembran9a-fantasma, materializando-se na sensa9ño que lhe traz o sangue e a came, torna-se um ser que viveiñ uma vida prñ- pria, um sonho.

O nascimento do sonho nño tern, pois, nada de misterioso. Nossos sonhos se elaboram mais ou menos como nossa visño do mundo real. O mecanismo de opera9ño é o mesmo em suas grandes linhas. O que ve- mos de um objeto colocado sob nossos olhos, o que ouvimos de uma fra- se pronunciada ao nosso ouvido, é pouca coisa, em efeito, ao lado do que nossa memñria ai acrescenta. Ouando folheiam um joinal ou um li- vro, vocés acreditam perceber efetivamente cada letra de cada palavra, ou mesmo cada palavra de cada fiase* Nao leriam, entño, muitas pagi- nas de seu jornal. A verdade é que vocés percebem da palavra, e mesmo da frase, somente algumas letras ou alguns tra9os caiacteristicos, ape- nas o que é preciso para adivinhar o restante: todo o resto vocés figu- ram o ver, em realidade o alucinam. Experiéncias numerosas e concor- dantes nño deixam nenhuma duvida a esse iespeito. Citarei apenas as de Goldscheider e Mueller. Esses experimentadores escrevem ou impri- mem formulas de uso corrente: “Entrada estritamente pioibida”, “Prefñ- cio a quarta edi9ño”, etc.; mas eles tém o cuidado de cometer erios, tro- cando e sobretudo omitindo letras. A pessoa que deve servir de sujeito da experiéncia é colocada diante dessas fñrmulas, na escuridño, e natu- ralmente ignorando o que for escrito. Entño a inscii9ao é iluminada du- rante um tempo muito curto, muito curto para que o observador possa perceber todas as letras. Come9ou-se, em efeito, por determinar experi- mentalmente o tempo necessario para a visño de uma letra do alfabeto; é pois fñcil fazer de tal modo que o sujeito nño possa distinguir mais de oito ou dez letras, por exemplo, das trinta ou quarenta que compñem a fñrmula. Ora, o mais frequentemente, ele lé esta fsrmula sem dificulda- de. Mas este nño é o ponto mais instrutivo dessa experiéncia.


Mecanismo da perceppño normal


Se se pergunta ao observador quais sño as letras que ele estñ certo de ter percebido, ele pode designar letras que estño realmente presen- tes, mas indicarñ também letras ausentes, as quais foram trocadas por outras ou simplesmente omitidas. Assim, porque o sentido parecia exi- gir, ele viu destacarem-se em plena luz letras inexistentes. 0s caracte- res realmente percebidos serviram, pois, para evocar uma lembran9a. A memsria inconsciente, ieencontrando a fñrmula ñ qual eles davam um come9o de realiza9ao, projetou essa lembian9a para fora sob uma forma alucinatoria. E essa lembran9a que o observador viu, tanto e mais que a prñpria inscri9ño. Em suma, a leitura corrente é um tiabalho de adivi- nha9ño, mas nño de adivinha9ño abstrata: é uma exterioriza9ño de lem- bian9as, de percep9ñes simplesmente rememoradas e, consequentemente, irreais, as quais aproveitam-se da realiza9ao partial que encontram aqui e ali para se realizar integralmente.

Assim, no estado de vigilia, o conhecimento que tomamos de um objeto implica uma opera9ño analoga ñ que ocorre no sonho. Peicebe- mos da coisa apenas o seu esbo9o; este lan9a um apelo ñ lembran9a completa da coisa; e a lembran9a completa, da qual nosso espirito nño tinha consciéncia, que permanecia interior como um simples pensa- mento, aproveita a ocasiño para se lanpar para fora. E esta espécie de alucina9ño, inserida em um quadro real, que nos damos quando semos a coisa. Haveria, alias, muito a dizer sobre a atitude e a conduta da lem- bran9a no curso desta opera9ño. Nño é preciso acreditar que as lembran9as alojadas no fundo da memñria ai permane9am inertes e in- difeientes. Elas estao ñ espera, elas sño quase atentas. Ouando, com o espirito mais ou menos preocupado, abrimos nosso jornal, nño nos acontece de cair imediatamente sobre uma palavra que responde justa- mente ñ nossa preocupa9ño? Mas a frase nño tern sentido, e percebe- mos bem rapidamente que a palavia lida por nñs nño era a palavra im- pressa: havia simplesmente entre elas alguns tra9os comuns, uma vaga semelhan9a de configurapño. A idéia que nos absorvia deve ter dado o alerta, no inconsciente, a todas as imagens da mesma familia, a todas as lembran9as de palavras correspondentes, fazendo com que elas es- perassem, de alguma maneira, um retorno ñ consciéncia. Torna-se efe- tivamente consciente aquela que a percep9ño atual de uma certa forma de palavra come9ou a atualizar.

Tal é o mecanismo da perceppño propriamente dita, ta1 é o meca- nismo do sonho. Nos dois casos hñ, de um lado, impressñes rears produ- zidas nos ñrgaos dos sentidos e, de outro, lembran9as que vém se inse- rir na impressño e aproveitar sua vitalidade para voltar ñ vida.


Mecanismo do sonho


Mas, onde estñ a diferen9a entre perceber e sonhar? O que é dor- mii? Nño estou perguntando, bem se entenda, quais sño as condi§ñes fisiolñgicas do sono. Esta é uma questño para ser debatida entre os fisi- ologistas e ela estd longe de ser resolvida. Pergunto como devemos re- presentar o estado de alma do homem que dorme, afinal, o espirito con- tinua a trabalhar durante o sono. Ele atua acabamos de ver sobre as sensa9ñes, sobre as lembran9as e, quer esteja dormindo, quei esteja acordado, ele combina a sensa9ño com a lembran9a que ela evoca. 0 mecanismo de opera9ño parece ser o mesmo nos dois casos. Todavia temos de um lado a percep9ño normal e de outro o sonho. O mecanismo nño funciona, pois, da mesma maneira nos dois casos. Onde estñ a dife- renpa? Equal é a caracteristica psicolñgica do sono?

Nño confiemos muito nas teorias. Tern-se dito que dormir consiste em se isolar do mundo exterior. Mas mostramos que o sono nño fecha nossos sentidos as impressñes externas, que ele empresta delas os ma- terials da maior parte dos sonhos. Tern-se visto ainda no sono um ie- pouso dado as fun9ñes superiores do pensamento, uma suspensño do raciocinio. Nño creio que isso seja mais exato. No sonho, nos tornamos frequentemente indiferentes a lñgica, mas nño incapazes de logica. Eu quase diria, correndo o risco de beirar o paradoxo, que o erro do sonha- dor é antes o de raciocinar muito. Ele evitaria o absurdo se assistisse, como simples espectador, ao desfile de suas visñes. Mas quando quer a toda forma explicñ-las, sua lñgica, destinada a ligar entre si as imagens incoerentes, pode apenas parodiar a da razño e beirar o absurdo. Reco- nhe9o, aliñs, que as fun9ñes superiores da inteligéncia relaxam-se du- rante o sono, e que, mesmo que nño seja encorajada pelo jogo incoeren- te das imagens, a faculdade de raciocinar se distrai por vezes imitando o iaciocinio normal. Mas se diria o mesmo de todas as outras faculda- des. Nño é, pois, pela aboli9ño do raciocinio, nño mais que pelo fecha- mento dos sentidos, que caracterizaremos o estado de sonho. Deixemos de lado as teorias e tomemos contato com o fato.

E preciso realizar uma experiéncia decisiva consigo mesmo. Ao sair do sonho visto que pouco pode se analisar no curso do prñprio so- nho se observarñ a passagem do sonho a vigilia, se a cercarñ de tño perto quanto puder: atento ao que é essencialmente desaten9ño, sur- preender-se-ñ, do ponto de vista da vigllia, o estado de alma, ainda pre- sente, do homem que doime. E dificil, mas nño é impossivel para quem se exercitou nisso pacientemente. Permitam aqui ao conferencista con- tar um de seus sonhos, e o que ele acreditou constatar ao despertar.

O sonhador acredita estar na tribuna, discursando para uma assem- bléia. Um murmurio confuso eleva-se do fundo do auditñiio. Ele se acentua, toma-se estrondoso, uivante, alaiido, espantoso. Enfim resso- am de todas as partes, escandidos sobre um ritmo regular, os gritos “Fo- ra! Fora!” Desperta bruscamente neste momento. Um cño latia no jar- dim vizinho, e com cada um dos “Au, au” do cño se confundia um dos vocé; entregue-me seu segredo, vocé vat me deixar ver o que fazia.” A que o eu dos sonhos responden: “Veja: fu nño fazia nada, e é justamen- te isso o que nos difere, vocé e eu, um do outro. Vocé imagina que para ouvir um cao latir, e para compreender que é um cño que late, nño tern que fazer nada? Erro profundo! Vocé faz, nño duvide disso, um esfor9o considerñvel. E preciso que vocé tome toda a sua memñria, toda a sua experiéncia acumulada, e que a leve por um estieitamento subito, a apresentar ao seu ouvido apenas um desses pontos, a lembran9a que parece mais com essa sensa9ño e que melhor pode interpretñ-la: a sen- sa9ño é entño recoberta pela lembran9a. E preciso aliñs que vocé obte- nha a aderéncia peifeita, que nño haja o mais leve afastamento entre elas (senño, vocé estaria precisamente no sonho); vocé sñ pode assegu- rar esse ajustamento por uma aten9ño, ou antes, por uma tensño simul- tñnea da sensa9ño e da memñria: assim faz o alfaiate quando experi- menta em vocé uma vestimenta que esta apenas "alinhavada"; ele ajusta com alfinetes tanto quanto ele pode o tecido sobre seu corpo. Sua vida, no estado de vigilia, é pois uma vida de trabalho, mesmo quando vocé acredita nada fazer, porque a todo momento vocé tern que esco- lher, e a todo momento excluir. Vocé escolhe entre suas sensapñes, visto que rejeita de sua consciéncia milhares de sensa9ñes "subjetivas” que reapaiecem logo que vocé adormece. Vocé escolhe, com uma precisao e uma delicadeza extremas, entre as suas lembran9as, visto que afasta toda lembran9a que nño se molda sobre o seu estado presente. Essa es- colha que vocé efetua sem cessar, essa adapta9ño continuamente ieno- vada, é a condi9ño essential do que se chama o born senso. Mas adap- ta9ño e escolha o mantém em um estado de tensâo ininterrupta. Vocé nño se dñ conta dela no momento, do mesmo modo que nño sente a pressño da atmosfera. Mas se cansa com o tempo. Ter born senso é mui- to fatigante. Ora, eu lhe dizia hñ pouco: eu difiro de vocé justamente por nño fazer nada. Eu me abstenho pura e simplesmente de fazer o esfor9o sem trégua que vocé faz. Vocé se liga ñ vida; eu estou desligado dela. Tudo me é indiferente. Nada me interessa. Doimii é se desinteressar.° Dorme-se na exata medida em que se desinteressa. Uma mñe que dor- me ao lado de seu filho podeiñ nao ouvir os trovñes, enquanto um sus- piro da crian9a a despertara. Dormia ela realmente para sua crian9a?gritos “Fora!”. Eis o instante a ser apreendido. O eu da vigilia, que acaba de aparecer, vat se voltar para o eu do sonho, que ainda estñ at, e lhe dizer: “Eu lhe pego em flagrante delito. Vocé me mostra uma assembléia que grita, e hñ simplesmente um cao que late. Nño tente fugir; eu tenho

Nos nño dormimos para o que continua a nos interessar. “Vocé me per- gunta o que fato enquanto sonho. Vou lhe dizei o que vocé faz quando acorda. Vocé me toma eu, o eu dos sonhos, eu, a totalidade de seu passado e me leva, de contra9ao em contra9ño, a me encerrar no cir- culo muito pequeno que vocé tra9a em torno de sua a9ao piesente. Isto é estai desperto, é viver a vida psicologica normal, é lutar, é querei. Ouanto ao sonho, vocé tern necessidade que eu lhe explique? E o esta- do em que vocé se encontra naturalmente desde que se abandone, des- de que negligencie a concentra9ño sobre um unico ponto, desde que cesse de querer. Se vocé insiste, se exige que lhe explique alguma coi- sa, pergunte como a sua vontade laz, a cada momento da vigilia, para obter instantaneamente e quase inconscientemente a concentia9ño de tudo o vocé traz consigo sobre o ponto que lhe interessa. Mas dirija-se entño d psicologia da vigilia. Ela tern pot principal fun9ño lhe responder, porque estas desperto e querer sño uma sñ e mesma coisa.”

Eis o que diria o eu dos sonhos. E ele nos contaria muitas outras coisas se o deixñssemos. Mas é tempo de concluir. Onde estñ a diferen- 9a essential entre o sonho e a vigilia. Resumiremos dizendo que as mesmas faculdades se exercem, seja em vig:lia seja em sonho, mas elas estño tensas em um caso e relaxadas no outro. O sonho é a vida mental inteira, menos o esfor9o de concentra9ño. Ainda percebemos, ainda lembramos, ainda iaciocinamos: percep9ñes, lembran9as e raciocinios podem abundar no sonhador, porque abundñncia, no dominio do espiri- to, nño significa esfor9o. O que exige esfor9o é a piecisâo do ajuste. Para que um latido de cño acione em nossa memñiia, en passant, a lem- bran9a de um ruido de assembléia, nño temos que fazer nada. Mas para que ele encontre, de preferéncia a todas as outras lembran9as, a lem- bran9a de um latido de cao, e para que ela possa desde entfio ser inter- pretada, isto é, efetivamente percebida como um latido, é preciso um esfor9o positivo. O sonhador nño tern mais forma para fazé-lo. Por at, e por at somente, é que ele se distingue do homem desperto.

Tal é a diferen9a. Ela se exprime sob muitas formas. Nao entrarei nos detalhes; limitar-me-ei a chamar a aten9ño de vocés para dois ou trés pontos: a instabilidade do sonho, a rapidez com a qual ele pode se desenrolar, a preferéncia que ele dñ as lembran9as insignificantes.



Instabilidade dos sonhos


A instabilidade se explica facilmente. Como o sonho tern por essén- era o nño-ajustamento exato entre a sensa§ño e a lembran5a, contra a mesma sensa9ño se aplicarño lembran as muito diversas. Eis, por exemplo, no campo da visño, uma mancha verde salpicada de pontos brancos. Ela poderñ materializar a 1embran§a de um canteiro com flores, a de um bilhar com suas bolas e muitas outras ainda. Todas querem re- viver na sensa9ño, todas correm ñ sua solicita9ño. Algumas vezes elas a atingem uma apñs a outra: o canteiro toma-se bilhar e assistimos a transfoima9ñes extraordinñrias. Outras se reunem simultaneamente: entño o terreno é bilhar absurdo que o sonhador talvez procure elimi- nar por um raciocinio que mais o agravarñ.



Rapidez de alguns sonhos


A rapidez de alguns sonhos parece ser um outro efeito da mesma cansa. Em alguns segundos, o sonho pode nos apresentar uma série de acontecimentos que ocupariam dias inteiros durante a vigilia. Vocés co- nhecem a observa9ño de Alfred Maury:° ela permanece clñssica e, o que quer que se tenha dito a seu desperto nesses ultimos tempos, a conside- ro verossimil, porque tenho encontrado narrativas anñlogas na literatura do sonho. Mas esta precipita9ño das imagens nño tern nada de misterio- so. Observe que as imagens do sonho sño sobretudo visuais; as conver- sas que o sonhador acredita ter ouvido sño a maior parte do tempo re- constituidas, completadas, ampliadas ao despertar: talvez mesmo, em certos casos, fosse apenas o pensamento da conversapño, sua significa- Rao global, que acompanhava as imagens. Ora, uma multidño tño gran- de quanto se queira de imagens visuais pode ser dada de uma sñ vez, de forma panorñmica, e com mais forte iazño isso acontecera na suces- sño de um pequeno numero de instantes. Nño é pois espantoso que o sonho reuna em alguns segundos o que se estenderia por vaiios dias de vigilia: ele em iesumo; ele procede, em definitivo, como faz a memo- ria. No estado de vigilia, a lembran9a visual que nos serve para interpretar a sensa9ño visual é obrigada a se colocar exatamente sobre ela; ela segue pois seu desenrolar, ela ocupa o mesmo tempo; em suma, o reco- nhecimento perceptivo dos eventos exteiiores dura exatamente tanto quanto eles. Mas, no sonho, a lembran9a interpietativa da sensa9ño vi- sual reconquista sua liberdade; a fluidez da sensa9ño visual faz com que a lembran5a nño adira a ela: o ritmo da memñria interpretativa nao tern mais que adotar o da realidade; e as imagens podem desde entño se pre- cipitar, se lhes agradar, com uma rapidez vertiginosa, como fariam as de um filme cinematografico se o seu desenrolar nño fosse regulado. Preci- pita9ño, assim como abundñncia, nño é sinal de forma no dominio do es- pirito: é a regulagem, é sempre a precisño do ajustamento que reclama um esfor9o. Oue a memñria interpretativa se tencione, que ela preste aten9ño ñ vida, que ela saia, enfim, do sonho: os eventos de fora escan- dirño sua marcha e diminuirño seu andar como, em um relñgio, o ba- lancim recorta em partes e distribui em uma dura9ño de vñiios dras a distensño da mola que seria quase instantñnea se ela estivesse livre.



Retorno das lembranpas fugidias


Restaria saber porque o sonho prefeie tal ou qual lembran9a a ou- tras, igualmente capazes de se colocarem sobre as sensa9ñes atuais. As fantasias do sonho nño sño mais explicñveis que as da vigilia; pelo me- nos pode-se assinalar a sua tendéncia mais marcante. No sono normal, nossos sonhos reproduzem, de prefeiéncia, os pensamentos que passa- Ham como raios ou os objetos que percebemos sem fixai a nossa aten9ño sobre eles. Se sonhamos, ñ noite, com os acontecimentos do dia, sño os incidentes insignificantes, e nño os fatos importantes, que tém mais chances de reapaiecer. Estou totalmente de acordo com o modo de ver de Delage, de W. Robert e de Freud neste ponto.4 Estou na rua; espero o bonde; ele nño poderia bater em mim visto que estou na cal9ada: se, no momento em que ele me rota, a idéia de um perigo possivel atravessa o meu espirito que digo eu? Se meu corpo recua instintivamente sem que eu tenha mesmo consciéncia de ter medo, eu poderia sonhai, na noite seguinte, que o bonde me esmaga. Durante o dia sou um doente cujo estado é desesperador. Se um vislumbre de esperan9a se acender em mim por um instante luz fugidia, quase despercebida meu sonho da noite poderñ mostrar-me curado; em meu sonho estarei curado, nño sonharei que estou morto ou doente. Em suma, o que reaparece é de preferéncia o que for menos observado. Nada de espantoso nisso. O eu que sonha é um eu distraido, que se distende. As lembran9as que se harmonizam melhoi com ele sño as lembran9as de distra9ño, as que nño trazem a marca do esfor9o.

Tais sño as observa9ñes que eu queria apresentar a respeito dos so- nhos. Elas sño muito incompletas. Aplicam-se apenas aos sonhos que conhecemos hoje, ñqueles que lembramos e que pertencem ao sono le- ve. Ouando se dorme profundamente, tém-se talvez sonhos de uma ou- tra natureza, mas nño resta grande coisa deles ao despertar. Inclino-me a crer mais por razñes teñricas e por consequéncia hipotéticas que temos nesse caso uma visño muito mais extensa e mais detalhada de nosso passado. A psicologia deverñ dirigir seu esfor9o sobre o sono pro- fundo, nño somente para nele estudar a estrutuia e o funcionamento da memñria inconsciente, mas ainda para investigar os fenñmenos mais misteiiosos que surgem da “pesquisa psiquica” Nño me aventurarei neste terreno; nño posso entretanto me impedir de atribuir alguma im- portñncia as observa9ñes recolhidas com um tño infatigñvel zelo pela Society' for Psychical Research. Explorar o inconsciente, trabalhar no subsolo do espirito com os métodos especialmente•apropriados, tal sera a tarefa principal da psicologia no século que se abre. Nño duvido que belas descobertas estño reservadas, tño impoitantes talvez quanto fo- ram, nos séculos precedentes, aquelas das ciéncias flsicas e naturais. E pelo menos o que espero e desejo para ela ao terminal.

1 Tradução feita pelo professor-assistente doutor Jonas Gonçalves Coelho, professor de Filosofia no Departamento de Ciéncias Humanas da UNESP de Bauru.